Informações básicas sobre temas
fundiários para os Kaiowá e Guarani
no Mato Grosso do Sul
Mba’éichapa ikatu ojapo va’erã
Kaiowá ha Guaranikuéra
Índice
Informações básicas sobre temas fundiários para os Kaiowá e Guarani
7 9 13 21 23 27 30 32 40 42 44 Apresentação... 1. Como os guarani chegaram à situação de vida atual
Uma pequena história... 2. O direito do índio e o direito do branco... 3. A Constituição Federal, a lei maior do Brasil... 3.1 A primeira parte, a mais importante, fala assim... 3.2 O que é Terra Indígena... 3.3 Como a Terra Indígena deve ser usada de
acordo com a Constituição... 4. Identificação e delimitação de Terra Indígena... 5. Alguns temas da justiça que são importantes para vocês
5.1 Identificação e delimitação dos tekoha... 5.2 Os prazos: tempo para o governo tomar
providências... 5.3 O direito do índio entrar na justiça...
Ñe’è renondegua ... 1. Mba’éichapa ñande jahasa mbairy oguahèrõguare
ko’ãngapeve ... 2. Ava reko ha karai reko ... 3. Constituição Federal, ko lei tuichavéa Brasilpe ... 3.1 Tenonderã ko lei he’i upéicha ... 3.2 Mba’éichagua karai lei omboete ñande yvy ... 3.3 Mba’éichapa jaiporúta ñande rekoha
Constituição, ko lei tuicháva rupi ... 4. Mba’éichapa oì ñande rekoha oñemedi hanguã ... 5. Umi ñeporandu iporã jaikuaa hanguã pe parte justiça... 5.1 Identificação ha delimitação ñande derecho voi ... 5.2 Gobierno omoì día oñatende hanguã ñande rupi ... 5.3 Ñande derecho voi jaike hanguã justiçape ... 5.4 Mba’éichagua oì ñande kuatia yvyrehegua
mburuvicha guasu rendápe... Mba’éichapa ikatu ojapo va’erã Kaiowá ha Guaranikuéra pe parte yvyrehegua 51 53 62 72 74 80 83 86 97 98 100 103 106
Primeiras palavras ... 1. Como nós passamos desde a chegada dos
estrangeiros até agora ... 2. O modo de ser dos índios guarani e
o modo de ser do branco ... 3. A Constituição Federal, a lei maior do Brasil ... 3.1 No começo essa lei fala assim ... 3.2 Como a lei do branco respeita a nossa terra ... 3.3 Como vamos usar a nossa terra de acordo
com a Constituição, essa lei grande ... 4. Como a nossa terra é medida ... 5. As informações que são boas para sabermos
em relação à justiça... 5.1 A identificação e a delimitação são, portanto,
nossos direitos ... 5.2 O governo estabelece uma data para nos atender... 5.3 Portanto, temos o direito de entrar na justiça... 5.4 Como os nossos documentos sobre a terra
estão sendo tratados pelas autoridades grandes...
Nota Metodológica ...
O que os Kaiowá e Guarani podem fazer em relação à sua terra 111 113 122 131 132 138 142 145 155 156 158 161 164 169
Neste livro estão anotadas algumas das informações mais importantes para os Kaiowá e os Guarani do Mato Grosso do Sul sobre seus direitos territoriais. Conta-se como chegaram à situação de vida atual e se explica as leis que lhes permitem recuperar, pelo menos em parte, o seu antigo
território, os tekohakuéra. Explica-se também o que é a
identificação e delimitação, como se dão os processos na justiça e se fala sobre as instituições do homem branco, do
karai.
O texto foi traduzido para o guarani, para que as velhas e os velhos também possam entender seus direitos. Sua colaboração no momento da identificação é muito importante, por isso é bom que eles conheçam seus direitos como estão garantidos e escritos na Constituição Federal. Agradecemos muito à todos os Kaiowá e Guarani que têm hospedado generosamente Celso Aoki desde 1978, e também Paz Grünberg durante os últimos anos, em suas
Ambrósio Gomes Martins de Pueblitokue e João Rodrigues
de Mbarakay colaboraram na tradução cultural do texto em
português ao guarani. Colaboraram com as correções dos
textos: Maria de Lourdes C. Nelson — Kuña Jeguaka, Elizeu
Ribeiro, Marta Maria Azevedo e Sandra Regina da Silva que também participou dos trabalhos de tradução.
A todos estes o nosso muito obrigado.
Atima porãite enteropeguarã.
Ponta Porã, junho de 2004
Celso Aoki
Friedl Paz Grünberg PKG
Programa Kaiowá
celso.aoki@trabalhoindigenista.org.br Centro de Trabalho Indigenista
O problema da terra começa pela história da chegada dos
brancos. No início eles eram poucos. Com o passar dos anos
foram aumentando e cada dia iam ocupando todo o território
de vocês, todos os ava rekoha, todo o ava retã. Naquela
época, não havia muita gente branca e a terra parecia que era muito grande e que dava para todo mundo viver nela, tanto os índios, como os brancos. Muitos dos velhos disseram que estavam derrubando o mato para o
fazen-deiro no seu próprio espaço de vida, no próprio tekoha.
Estavam changueando para os brancos e não sabiam que depois eles iam tomar as terras e expulsá-los do lugar.
Os índios, os ava, trabalharam com esses colonos porque
eles traziam mercadorias. Traziam ferramentas, panelas, roupas, armas e munições de que tanto se precisava naquela época para caçar. Traziam comida diferente, principal-mente sal ou comida salgada do tipo charque. Parecia que
Como os guarani chegaram à situação de vida atual. Uma pequena história.
Quase sempre os primeiros colonos chegaram onde havia
muitos índios, muitos ava, porque lá encontravam o
traba-lho barato para abrir as fazendas. Então, com a ajuda dos próprios moradores da terra, foram abrindo a mata, plan-tando as roças, as chacras deles. Depois plantaram capim, e assim formaram as suas propriedades. Os fazendeiros
foram junto ao governo e conseguiram o título, um kuatia
mbarete tuicháva, que, na lei do branco, dá direito à posse
da terra. Depois da fazenda aberta eles já não precisavam mais dos índios e os expulsaram.
Mas o território de vocês, o ava retã, ainda permaneceu
grande até um certo tempo porque havia ainda muito mato.
As famílias expulsas dos tekoha podiam ir para o tekoha de
parentes ou ficavam trabalhando perto do lugar onde mora-vam. Mais fazendeiros foram chegando e muitas famílias foram saindo em busca de trabalho e das coisas do homem
branco. Pressionados, abandonaram seus tekoha e foram,
de fazenda em fazenda, trabalhando para viverem, até que
um dia essas famílias de ava foram sendo chamadas de
índios de fazenda.
Aí o ava retã, o território de vocês, começou a ficar
pe-queno e não cabia mais os índios. Já não tinha mais mato para derrubar e os fazendeiros não queriam que vocês ficassem mais na terra que eles tinham tomado. Ajudados pelo governo, missionários, polícia, e outros, os índios de
fazenda foram levados para as reservas ou, como diziam, a terra da Missão. Rapidamente essas reservas foram ficando
cheias. Não tinha mais terra para plantar, apenas para fazer suas casas e changuear nas usinas de cana, o único lugar
de changa que ficou. O trabalho de changa nas fazendas quase acabou. Não têm mais fazendas para abrir, acabou
o mato e os tekoha estão agora nas mãos de fazendeiros.
O ava retã, o território de vocês, agora só tem lavoura ou é
habitado pelo gado dos fazendeiros.
Aquelas muitas famílias que não quiseram ser aldeadas nos
Postos, lutaram para permanecer nos tekoha e os
confli-tos com os fazendeiros aumentaram. As notícias foram para longe e chegaram até as autoridades dos brancos.
Depois, alguns tekoha foram demarcados: Rancho Jakare,
Guaimbe, Takuaraty, Jaguapire, Pirakua, Sete Cerros, Guasuty, Jarara e outros. Mas muitos ainda não foram
resolvidos.
Hoje tem várias comunidades que estão lutando pelos
tekoha. Estão se reunindo e se organizando nas reservas
para poderem retornar ao lugar de origem. A partir disso está criado o “problema da terra”.
Agora é preciso dar um manejo ao problema:
• tem que levantar a história do tekoha,
• tem que saber quantos índios ocupavam a terra, • tem que saber quem vivia lá,
• tem que lembrar como e onde viviam, e • tem que contar porque saíram.
que tomaram as suas terras. Os índios já sabem como pressionar o governo. Agora têm mais oportunidades
por-que já conhecem melhor o jeito do branco, o karai reko:
• as leis,
• os papéis, os kuatia,
• os documentos, os kuatia mbarete tuicháva
Quando vocês reivindicam um tekoha, dois tipos de
direi-tos estão em jogo:
1— o direito indígena — o ava reko e
2— o direito do homem branco — o karai reko.
O direito sobre a terra está definido nas leis dos brancos. Os
brancos criaram muitas leis, para tentar resolver todos os
conflitos entre os brasileiros — índios e não índios — e assim conseguirem viver em paz. Mas os problemas continuam porque muitos não obedeceram as leis. Ou porque são mais poderosos ou porque não são honestos. Por isso as leis têm funcionado mais a favor dos brancos que para os índios, principalmente aqui no Mato Grosso do Sul.
Mas, os conflitos podem ser resolvidos na base da lei, se essa for obedecida. Principalmente aquelas que estão
O direito do índio e o direito do branco.
A Constituição de 1988 garantiu mais direitos aos índios. Então, é preciso conhecer melhor para exigir que esses direitos sejam respeitados de fato. Para que não fique
apenas no papel, no kuatia. Quando as leis não funcionam,
são leis vazias, leis rei. Quando os papéis também não
fun-cionam, são papéis vazios, kuatia rei.
Então, para conseguir a terra é preciso que a mobilização dos índios esteja forte. Tem que pressionar as autorida-des responsáveis. Tem que fazer com que elas também façam a sua parte, como mandam as leis, e assim garantir
aqueles direitos que estão no kuatia. Vocês já sabem que
estes papéis são leis e documentos que funcionam para os brancos. Então é preciso que eles funcionem a favor de vocês, também.
Diante disso, vamos discutir quem é que decide, afinal, os direitos sobre a terra.
Antes da chegada do branco eram vocês que decidiam tudo, porque eram os únicos donos. Quando um grupo de famílias,
parentes, já não queriam mais ficar no tekoha porque tinha
algum conflito, algum sarambi, ou alguém morreu, este
grupo saía do lugar e ia procurar outra terra melhor. Saía andando até encontrar uma terra boa para plantar, com água boa, mato bom e não muito longe dos parentes que ficaram no tekoha antigo. Assim, podiam ir visitá-los, ir nas festas e
casar.
Mas agora tem os brancos vivendo na mesma terra. Derru-baram o mato, plantaram capim, ou fazem lavouras de soja, milho e jogam muito veneno nas plantações, envenenando
a terra e a água também. Não tem mais caça, peixe, mel e remédios para colher. Os fazendeiros nem deixam vocês passarem mais pelas terras que foram suas. Eles dizem que os índios espantam o gado. Em alguns lugares eles dizem que os índios comem os seus bois. Os brancos são muito mais numerosos e mais fortes porque têm muitos recursos, muito maquinário, polícia e armas. Eles trazem muitas doenças também.
A situação hoje é que vocês têm que lidar com o mundo do
branco também. Têm que conhecer como eles funcionam,
suas LEIS, GOVERNO e JUSTIÇA. Têm que saber como cada um funciona no seu trabalho, na sua responsabilidade, no seu dever. E têm que conhecer seus interesses também. No GOVERNO FEDERAL os mais importantes para tomarem as primeiras providências sobre a terra são:
• a Funai (Fundação Nacional do Índio) e • o Ministério da Justiça.
São esses órgãos que fazem as identificações e delimita-ções de Terras Indígenas. São as suas autoridades, seus
mburuvicha, que assinam os documentos, os kuatia mbarete tuicháva, que reconhecem os direitos sobre as Terras
Indí-genas. A Funai foi criada para isso: tomar providências sobre a terra, demarcar e proteger de invasões.
• quem faz as leis é o legislativo: deputados, senadores — reunidos no Congresso; ou seja: os políticos.
• a JUSTIÇA são: os juízes e procuradores que cuidam para ver se as leis estão sendo aplicadas e respeitadas. Então vamos ver o que cada um faz, que tanto pode ajudar, como pode prejudicar os interesses de vocês.
O GOVERNO FEDERAL é que tem a responsabilidade de
tomar as providências para que o tekoha seja
reconheci-do como Terra Indígena, e de fazer a demarcação, porque assim manda a Constituição. Para isto tem a Funai, que é um órgão que cuida deste assunto e tem o poder de garantir que a terra seja destinada aos índios.
O primeiro passo é fazer a identificação do tekoha. Isto
significa fazer um estudo e um levantamento para que a terra que os índios estão querendo demarcar seja garanti-da conforme a lei. Essa lei é o Estatuto do Índio e o decreto 1775. Essa lei fala que é preciso comprovar que os índios
já habitavam os tekoha há muito tempo, inclusive antes
do fazendeiro chegar. Este estudo, este levantamento de informações, é para provar que a comunidade já habita-va o lugar, desde muito antes do fazendeiro e conforme os próprios costumes e tradições.
A maior prova está na memória viva dos mais velhos, por-que eles é por-que sabem como viviam antes e como foi por-que os
brancos tomaram posse dos tekoha. Muitas vezes os velhos
já morreram, mas eles deixaram as lembranças para os mais novos, que podem testemunhar. A memória dos velhos e as
É deste jeito que os índios podem provar a sua ocupação e também podem demonstrar através de outros meios, como: cemitérios, antigas moradas, nomes dos lugares. Além do mais, tem também uma prova muito grande que é a própria comunidade de carne e osso, viva. As pessoas, sabendo quem é parente de quem, os grupos de famílias organizadas.
Então se faz a identificação da área que é o estudo da comunidade:
• os costumes (teko),
• as tradições (teko ymaguare),
• as rezas e cantos (teko marangatu),
• a sua organização política,
• como ocupam ou ocuparam o tekoha.
Esta identificação da Terra Indígena, do tekoha, deve estar
de acordo com as necessidades do grupo. Deve ser suficien-te para que possa se mansuficien-ter e também mansuficien-terem os filhos e netos que vêm depois.
A justiça, como as leis e o governo, pode defender tanto o fazendeiro, como os índios. Por isso, é preciso que vocês lutem também neste campo. Como vocês podem fazer? Primeiro, vocês devem apresentar as provas de que já se falou. Provas ou testemunhas de que a terra é um direito
Mas os juízes não vão ver se vocês estão vivos ou não. Eles ficam em seus gabinetes e olham apenas os documentos.
Por isso a memória dos velhos é tão importante!
A história que eles contam vai se trans-formar em documentos de verdade, em
kuatia mbarete tuicháva.
A memória dos velhos feitos documentos de verdade provarão a ocupação da terra pela comunidade.
A lei do branco tem que respeitar esses documentos.
Se as provas da ocupação indígena forem mais fortes que os documentos dos fazendeiros, os juízes vão decidir a favor dos índios. Como já foi dito antes, os juízes podem decidir ou favor ou contra.
Vimos que não é uma pessoa só, ou várias pessoas, que decidem sobre o direito da terra. São muitas e de diferen-tes órgãos federais. Participam antropólogos, engenheiros, agrônomos, cartógrafos e muitas autoridades dos brancos. Então, para responder à pergunta sobre quem decide sobre a terra, pode-se dizer que são duas partes:
• As comunidades, que mais se esforçam para a luta e que estão melhor preparadas.
• A outra parte depende da vontade de resolver dos
karai.
Não basta que a comunidade esteja unida em torno de uma liderança. Também é necessário que os índios tenham aliados para enfrentarem todos os níveis de luta. Essa luta
vai mais longe que só o retorno ao tekoha, como vocês
chamam: a retomada, com sua própria força e vontade, não é o fim do caminho.
É necessário também que muitos brancos estejam a favor da Terra Indígena, principalmente aqueles que estão no governo
e na justiça. Quando a comunidade decidir entrar no tekoha,
a lei terá que estar a seu favor para que a posse seja garan-tida. Quando a lei está a favor de vocês até a polícia vai
pro-teger vocês e não vai expulsá-los do seu tekoha.
• Dizemos que o governo é chamado de executivo porque tem que fazer o que manda a lei; executar as leis e tomar providências.
• O legislativo é a casa dos políticos e são eles que fazem as leis.
Vocês têm ouvido falar muito da PROCURADORIA DA REPÚBLICA. A Procuradoria faz parte da justiça. Mas ela tem um trabalho especial: fiscalizar as decisões dos juízes e do governo, isto é, do judiciário e do executivo.
Os procuradores estão olhando se os juízes e o governo estão fazendo bem, ou mal, ou não estão fazendo o que a lei manda. Então, quando um juiz tomar uma decisão contra os índios e se esta decção for injusta, os procuradores podem anular a decisão. Quando um governo não está protegendo os interesses dos índios, como manda a lei, os procuradores podem fazer com que a lei seja aplicada. Os procuradores
são autoridades muito importantes (mburuvicha) que os
Agora vamos falar sobre a Constituição, a lei mbarete tuichavéva, importante porque trata dos direitos de todas
as pessoas que moram no Brasil. Esta lei tem uma parte que fala dos povos indígenas. Todos os índios têm os mesmos direitos: os Guarani, os Kaiowá, Terena, Xavante, Kaiapó, enfim, todos os povos indígenas, de norte a sul. Os seus direitos estão no artigo 231 da constituição.
Capítulo VIII: DOS ÍNDIOS
231: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os
A Constituição Federal, a lei maior do Brasil
1O. São terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais ne-cessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
2O. As terras tradicionalmente ocupados
pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
4O. As terras de que trata este artigo são
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
231: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originá-rios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
1— organização social, costumes, línguas, crenças e tradi-ções:
Tudo isso é o jeito que cada comunidade indígena vive:
— como cada um vive com o outro; como se casam; o que cada um tem de direito e dever com a comunidade;
— como é a sua liderança, quem são os seus mburuvicha,
como o capitão tem que agir e como ele tem que ajudar a resolver os problemas da aldeia;
— como estão trabalhando: cada um sozinho, em grupo ou
— como contam o surgimento do mundo, o que eles sabem
sobre o funcionamento desse mundo, dos Tupã, dos
espíritos, das plantas, dos bichos, das aves;
— como os antigos foram passando os conhecimentos de mãe e pai para os filhos;
— o jeito deles de curar doenças, as rezas e bençãos;
— como estão construindo as suas casas, como preparam a comida, o jeito deles de morarem — no campo ou no mato;
— como estão se vestindo e se adornando;
Tudo isso se chama organização social; são os costumes, crenças e tradições.
O mais importante é que esse jeito diferente de viver de cada
povo, faz os índios diferentes do homem branco, dos karai:
na religião (teko marangatu), nos costumes, na língua; na
maneira pela qual vêem o mundo, como vive uma pessoa
com a outra. E tudo sem anotar em papéis, tudo sem kuatia,
sem gravador, sem escola. Todos os brancos falam portu-guês, mas os índios têm línguas próprias. Então, este jeito diferente de ser, de trabalhar, de rezar, de falar é a cultura
indígena. A constitiuição, a lei mbarete tuichavéva, tem que
proteger e ajudar a manter para as gerações futuras.
Quer dizer que todas estas coisas vocês têm direito de manter, não precisam trocar nada. Mas se vocês quiserem trocar também podem fazê-lo.
A Constituição, a lei mbarete tuichavéva, manda o governo
tomar providências para que esses direitos sejam respeita-dos. Para isso a maior e principal providência é a terra.
2— direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam:
Isto significa que os índios têm direito à terra que habitam ou habitavam há muito tempo; onde já estavam antes do
bran-co chegar. Vocês foram desse lugar sempre, desde a origem
dos antepassados. É isto que significa serem originários da terra. O branco não é originário deste lugar porque chegou de fora: do Rio Grande do Sul, do Paraná, de São Paulo, do Paraguai — e se apossou do lugar. Então ele não é originário, não é do lugar.
A ocupação tradicional é muito importante porque é o que vai provar que a terra é tradicionalmente indígena. É a ocu-pação o que mais importa, o que tem mais valor, porque
é a própria história de como vocês viveram no tekoha. É
o documento que tem mais força que os documentos dos fazendeiros, até mais força que o título de propriedade do fazendeiro. Por isso é que a comunidade precisa trabalhar a memória dos mais velhos, precisam lembrar de como viviam antes de chegar os brancos e como os brancos os expulsaram da terra. Esta ocupação é a história que prova o direito e será escrita na Identificação. Por isso, esta parte é muito importante para a demarcação e é quando a comunidade mais tem participação.
res-Para isso tem a Funai. Mas, então, porque ainda não se demarcou e porque demora tanto para tomar providências? Depende muito do jeito do branco e de vocês de trabalharem o problema. Do jeito que vocês se organizam, do jeito de enfrentar os brancos, do jeito que vocês usam as leis dos
brancos e das armas dos brancos:
• a imprensa, • as autoridades, • os aliados.
Se vocês acham que podem conseguir que as terras sejam demarcadas, então têm que conseguir que os brancos façam com que a lei seja cumprida. E para isso, é preciso entender o jeito do branco trabalhar e como funcionam as leis.
Capítulo VIII: DOS ÍNDIOS
231: 1O. São terras tradicionalmente
ocu-padas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescin-díveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
1— São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente:
São as terras que os índios sempre moraram e nunca saíram
do lugar. Então, como ficam os tekoha de onde vocês
saíram há muito tempo? Alguns já fazem 30, 40 ou 50 anos.
perto, changueando para o próprio fazendeiro. Mas ele não deixava plantar para que vocês não tivessem a condição de ocupantes. Por isso é que os fazendeiros dizem ainda hoje que os índios que estavam em sua propriedade eram em-pregados, peões. Outros dizem que não eram índios, mas paraguaios. Assim, esses índios ficaram sendo conhecidos como “desaldeados”.
2— as utilizadas para suas atividades produtivas:
São as terras que a comunidade usa ou usava para plantar, também para se manter com a caça; coletando mel, frutas, palmito ou remédios e coletando os materiais necessários para construir as casas e outros objetos.
3— as imprescindíveis à preservação dos recursos ambien-tais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua re-produção física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
São as terras que têm riquezas naturais, como:
• matas, rios, cerrados, banhados, campos e tudo que tem dentro: bichos, aves, frutas, palmitos, mel, remédios,
• material para casa ou para artesanato: madeira, takuára,
cipó, sapé, palmeira;
• minas de água, lugar para lavar roupas e tomar banho. Tudo isso deveria ter na terra de vocês porque isso são as condições para se ter bem-estar: viver bem.
Além disso, esta terra com recursos ambientais deve ser o bastante grande para que os filhos e netos, por muitas gerações futuras possam ter estes mesmos recursos por muito tempo.
2O. As terras tradicionalmente ocupados
pelos índios destinam-se a sua posse per-manente, cabendo-lhes o usufruto exclu-sivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
4O. As terras de que trata este artigo são
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
Essa parte da constituição explica como a terra deve ser usada por vocês. Já falamos que a constituição manda a Funai demarcar e proteger as Terras Indígenas. Demarcar significa separar as terras que são dos índios e as que são dos fazendeiros, porque cada um usa de modo diferente. A Terra Indígena só pode ser ocupada pelos próprios índios
que moram no tekoha. Isto é o que a lei diz: “o usufruto
exclusivo das terras”. Então, só vocês podem usar e ocupar o tekoha. E só vocês podem retirar as riquezas que têm em
cima da terra.
Para que a Terra Indígena seja ocupada somente pela co-munidade, a constituição manda o governo protegê-la dos
outros que não são índios, protegê-la dos invasores brancos. Os brancos se aproveitam das Terras Indígenas, daquelas já identificadas, de várias maneiras:
• Pegam um pedaço da terra e depois ocupam com lavou-ra ou gado, colocando a cerca mais por dentro da área, algumas vezes até moram neste lugar. Podem também apenas plantar na terra ou retirar riquezas como madeira, bichos ou remédios.
• Usam a terra, seja plantando ou criando animais, gado, mesmo com o consentimento, o acordo, dos próprios índios — como é o caso dos arrendamentos das Terras Indígenas.
Além do governo ter que proteger a Terra Indígena das inva-sões e da exploração dos recursos naturais, deve também proteger de quaisquer tipos de negociações de venda, troca ou outra forma que mude o jeito de ocupação que fora des-tinado aos índios.
Sempre se fala que o governo ou a Funai deve tomar pro-vidências para o problema da terra. O que são essas provi-dências? Já sabemos que a Constituição manda a Funai: • Identificar e delimitar,
• demarcar e
• proteger as Terras Indígenas.
Este é o trabalho da Funai e só ela é responsável em fazê-lo.
O primeiro passo para resolver o problema da terra é a
identificação e delimitação do tekoha. Vocês sabem que é
uma luta para se conseguir isso: é preciso muitas reuniões, discussões na comunidade e muita pressão lá em Brasília,
onde ficam os mburuvicha dos brancos. É um longo
cami-nho a percorrer, com muitos passos.
Esse passo é quando o presidente da Funai nomeia e envia um Grupo de Trabalho (GT) de Brasília que chega aqui para fazer o estudo da comunidade e fazer a delimitação da área que vocês estão reivindicando. Essa equipe tem um
cabe-çante que é o antropólogo. É ele que vai fazer os kuatia
Identificação e Delimitação de Terra Indígena.
e nesses kuatia vocês vão contar toda a história de como
ocuparam o tekoha e como os fazendeiros foram
chegan-do e, enfim, tomanchegan-do a terra.
É nessa hora que vocês vão apresentar as provas do seu direito à terra. O direito legítimo, como se diz.
Como prova principal, vocês vão apresentar a comunidade, as pessoas vivas, a comunidade organizada. Os velhos e velhas, como já dissemos, são pessoas mais importantes porque são eles que saberão contar como o grupo vivia no
tekoha desde muito tempo atrás. São eles também que
sabem dos costumes, das tradições e de muitos fatos que vem ocorrendo desde o tempo de seus avós e bisavós. São eles as provas vivas de ocupação que é chamada “tradicional”. Eles e o conhecimento que têm, a memória e seus descendentes são as provas dessa tradição.
Vejam que tradição não é uma coisa antiga e que já foi, já passou. Não, tradição é uma coisa que vem desde o tempo muito antigo e continua até os dias de hoje. As pessoas nascem, ficam velhas, morrem e nascem outras e os costumes continuam.
os pais contaram para eles. Por isso vocês não puderam ter
a continuidade da ocupação do tekoha.
A identificação da área de uma Terra Indígena é baseada
na história, no modo como vocês ocuparam o tekoha. É
como se fossem as provas que a comunidade apresenta para fazer a identificação. Os lugares que usaram para os roçados, casas, os rios e as matas são os marcos para fazer a delimitação da área, que pode ser chamada também de mapa. O mapa é elaborado a partir das linhas de divisa entre a área indígena e as terras dos fazendeiros vizinhos.
Ao mesmo tempo, a equipe vai verificar o que os fazendei-ros construíram dentro da terra para que o governo pague para eles. São as benfeitorias: as “coisas” do fazendeiro. Este levantamento chama-se fundiário.
Então a identificação tem dois tipos de levantamentos: • antropológico e
• fundiário.
O levantamento antropológico é o mais importante porque
é o documento, o kuatia, que vai provar que a comunidade
existe e que o tekoha é o seu lugar de habitação desde antes
do primeiro fazendeiro chegar. Este kuatia vai ter a história
da ocupação da terra pela comunidade, contada pelos mais velhos, principalmente, e depois este antropólogo transfor-ma a memória dos velhos em documento verdadeiro. Não
é um documento inútil, não é kuatia rei. Neste kuatia vai
ter escrito quem são vocês; como vivem; como o fazendeiro chegou e tudo o que aconteceu depois.
Os mais velhos vão contar sobre os lugares onde cada família construiu a sua casa, onde fez roça, os caminhos que fizeram para um ir na casa do outro; os lugares onde colheu coisas da natureza para comer ou para fazer casas ou
obje-tos de uso como o banco, o apyka; o cocho de chicha e
outras coisas; onde pegou água e onde tomou banho; onde
colocou as trampas monde e ñuha; onde enterrava os seus
mortos; e tudo o mais que era importante para a vida da comunidade.
Esses lugares são os marcos de ocupação que, junto com o engenheiro, o antropólogo vai usar para fazer o mapa da área. A área será aquela que a comunidade usou e ocupou, mais um pedaço que é necessário para as famílias de hoje e para as famílias que virão mais tarde, quando a população
aumentar. Além disso, o tekoha deverá ter uma reserva
ambiental para poder ter sempre as coisas da natureza.
É importante que o tekoha tenha boas
condições ambientais, não só agora, como para o futuro. Por exemplo, as cabeceiras dos rios e riachos devem
estar dentro do tekoha para que vocês
tenham condições e mando sobre elas porque senão o branco vai sujar a água
Este mapa, com as divisas do tekoha e as divisas das
fazendas dos brancos é a delimitação da área. Delimitar significa colocar limites; separar a terra dos índios da dos
brancos. Antigamente não tinha divisas porque não tinha brancos, não tinha gado.
O levantamento fundiário se faz a partir do que tem em cima da terra feito pelo fazendeiro durante o tempo que ele ocupou o tekoha: pastos, casas, aramados, mangueira, açude. Tudo
o que o fazendeiro fez é o que se chama de benfeitorias; é
o fazendeiro mba’e. Na maioria das fazendas foram vocês
mesmos que trabalharam para construir as benfeitorias. Então, vemos que o antropológico é o levantamento de como a comunidade ocupou a terra. O levantamento fundiário é aquele sobre como o fazendeiro ocupou a terra e o que ele mandou construir. Este estudo é para achar um jeito para que o
tekoha fique conforme as necessidades
da comunidade, hoje e no futuro.
Para a delimitação da área é preciso verificar quatro tipos de espaço:
• O espaço de ocupação: são os lugares que as famílias usaram para fazer as suas casas, os caminhos e onde buscaram água, enfim, aonde vocês viviam.
• O espaço de uso produtivo: são os lugares onde fizeram as suas roças, onde caçaram, pescaram e buscaram mel,
palmito, madeira, folhas para cobrir as casas, takuára,
remédios e demais plantas.
• Reserva para futuras gerações: para deixar para os filhos e netos; para quando a população aumentar.
• Reserva ambiental: também são reservas que é para garantir que a comunidade tenha uma qualidade de vida boa, porque muitas coisas vêm da natureza. Então, reserva ambiental é a terra que vai garantir os produtos do mato, para que não acabem os bichos; material como por exemplo: madeira para construção, lenha, material para artesanato, mel, remédios e toda a riqueza que a natureza dá e que deve ser suficiente para a comunidade de hoje e para as futuras gerações. Pensando nesta qualidade de vida, o mais importante dos recursos é a água. A preservação desse recurso deve estar dentro do espaço do tekoha para que a comunidade possa preservar para
o seu consumo. Em muitas áreas os fazendeiros vizinhos estão jogando veneno, lixo da cidade e de frigoríficos dentro dos rios que a comunidade usa.
Aqui no Mato Grosso do Sul não tem autoridade fiscalizan-do em volta das áreas indígenas. Os vizinhos brancos estão prejudicando as comunidades e ninguém está denunciando isso.
Terra Indígena é terra de uso da comu-nidade. É de cada pessoa, de cada família que pertence ao grupo, dos parentes e dos descendentes das famílias que lá viveram.
Muitos problemas de identificação ocorreram no passado. Alguns exemplos são:
Jaguary tem apenas 480 ha. Na época em que foi
identi-ficada, 1986, o próprio governo fazia pressão para que o
tekoha fosse o menor possível, ou que não se identificasse
nada para não contrariar os que mandavam na Funai. Então a comunidade não teve quase nada de participação na identificação da área. O antropólogo não deu condições de se eleger uma área que fosse sequer mínima para as suas necessidades. Quando, depois de muita luta, o grupo pode
retornar ao tekoha, eles ficaram surpresos que o outro lado
do rio não estivesse dentro da área. Eles não compreende-ram como é feita uma identificação e delimitação. Durante o trabalho de identificação eles tampouco puderam falar e expressar o que queriam, o que era o seu direito.
Sukuriy tem também uma área muito pequena: 535 ha. É
uma terra que a identificação tomou como limites somente a área que o grupo ocupava no momento do conflito que estava acontecendo. Como a comunidade estava em uma área em litígio, o estudo não seguiu o jeito de ocupação
de um tekoha. Ou seja: a área teria que ser delimitada
pela ocupação tradicional e não a que o grupo ocupava no momento do conflito com o fazendeiro.
Cerrito: na identificação, a comunidade também não teve
oportunidade de participar da eleição da área. A ocupação tradicional ou imemorial (naquela época) dava-se também na fazenda vizinha. A própria equipe da Funai pressionou para que não se incluísse na identificação.
Outras áreas foram identificadas com participação das comunidades nas decisões, porém, logo depois se viu que eram insuficientes para as necessidades do grupo. Embora se estivesse comprovando que a área de ocupação tradicional era maior, decidiu-se, junto com a comunidade, por uma área mínima, porque, na época, havia uma forte pressão de não aprovar área maior que 2.000 hectares aqui
no Mato Grosso do Sul: Jaguapire, Takuaraty, Guasuty,
Já foi falado sobre esse passo, que é importante para a ga-rantia das terras. As identificações devem ser entendidas como um direito para que vocês possam decidir, conforme
o seu jeito, o ava reko de ocupar a terra. E essa
ocupa-ção deve ser discutida conforme a lei dos índios e a lei dos
brancos. É isto que significa identificar e delimitar Terras
Indígenas.
Antigamente não havia como os índios discutirem os seus direitos. A Funai dizia que vocês não eram capazes de saber, por sua própria conta. As informações sobre leis e providên-cias do governo eram poucas e por isso muitas
identifica-ções, ou não foram feitas, ou foram mal feitas: Jaguary,
Guasuty, Jarara, Sukuriy e muitos outros. Nem a equipe do
governo e nem os próprios índios sabiam muito bem como
Alguns temas da justiça que são importantes para vocês.
5
fazer a identificação. A pressão contra as comunidades era muito forte e todos diziam que era melhor garantir um pouco, do que nada. As lideranças mais velhas sabem como isto era discutido e encaminhado para o governo. E agora quase todas as áreas necessitam de nova identificação porque as pessoas já vivem apertadas.
Vocês sempre têm escutado os karai falarem para esperar
mais um pouco que eles vão tomar providências. Toda vez que vocês fazem uma reunião, quando as lideranças vão para
Brasília falar com os mburuvicha, sempre estão escutando
que as autoridades vão tomar providências, mas que nunca chegam. Para que essas providências não ficassem só na
promessa, os próprios karai fizeram outras leis. Colocaram
prazos para que os passos para a demarcação fossem cumpridos por todos.
Ocorre que esses prazos de meses acabam virando em anos, em muitos anos. Cada presidente da Funai diz que vai identificar e demarcar tantas terras por ano e nada disso está acontecendo. E mesmo que as identificações sejam feitas, as áreas demarcadas, os fazendeiros continuam na posse das terras. Tudo continua no mesmo.
E quando os índios entram em seus tekoha, que já estão
reconhecidas pelo governo federal, os mburuvicha dos
karai fazem acordos e novos prazos são feitos para
solu-cionar o problema da terra. São os acordos para ficarem em um pedacinho de terra até que a justiça tenha uma
decisão final. Assim é que estão as comunidades de Ñande
Ru Marangatu, Jatayvary, Arroyo Cora, Sukuriy, Guyra Roka, Takuára e outros. Esses acordos acabam sendo uma
maneira de os fazendeiros continuarem explorando a terra
e, ao mesmo tempo, os índios “ficarem” no tekoha, naquele
pedacinho que deixam para vocês.
É isso que está acontecendo no Mato Grosso do Sul: os
mburuvicha dos karai vão deixando os problemas para
depois, para não enfrentar as pressões. Primeiro vão deixan-do as identificações, depois as demarcações, depois o di-reito de ocupação.
Tem uma parte na CONSTITUIÇÃO FEDERAL, essa lei maior do Brasil que trata do direito dos índios de poderem entrar na justiça:
Art. 232: Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
Esta parte da Constituição também é muito importante porque os índios todos são reconhecidos como iguais a todos os demais brasileiros diante da lei. Significa que a Funai não é mais o único órgão responsável em representar os índios na justiça. Com esta nova Lei, qualquer índio, qualquer comunidade ou organização indígena pode recla-mar, exigir seus direitos na justiça, podendo também nomear um advogado por conta própria. Pode processar quem quiser que esteja prejudicando os seus interesses, inclusive o governo por não cumprir com o seu dever de garantir os direitos. Por exemplo, não estar cumprindo com as leis sobre as Terras Indígenas.
O Ministério Público tem que estar ao lado dos índios em todos os passos na justiça para defender os interesses das comunidades indígenas. No Ministério Público trabalham os Procuradores que muitos de vocês já conhecem e eles têm sido aliados muito importantes em defender as causas dos índios. São eles que podem falar com os Juízes.
Mas se a Lei diz tudo isso, então por que os direitos indíge-nas não são reconhecidos na prática, nem pelo governo federal e nem pela justiça?
Vocês mesmos sempre falam que os karai gostam de fazer
política. Todos vão fazer pressão no governo, porque o go-verno representa os interesses de cada tipo de pessoa. Ricos, pobres, militar, donos de bancos, de supermercados, empregados das fábricas, etc. E o governo faz as coisas para um ou para outro dependendo das pressões que recebe. Por isso é que os representantes indígenas também vão lá
em Brasília para fazer pressão nos mburuvicha: o
Depois que a Funai fez a identificação e delimitação da
área, o documento é encaminhado ao Ministro da Justiça.
Os fazendeiros podem também fazer o seu levantamento e estudo para provar que a terra não é indígena. Contrata um profissional e apresenta também ao Ministro da Justiça. Caso o Ministro esteja convencido das provas da Funai, ele declara a terra como indígena e manda a Funai demarcar. Os fazendeiros podem não aceitar e, neste caso, vão na justiça reclamar os seus direitos. O juiz que vai decidir sobre o caso, pega os documentos da Funai e do Ministério Público e dos fazendeiros para ver quem tem razão. Se ele ficar na dúvida ele nomeia um perito para estudar o caso
novamente. Mais levantamentos, mais kuatia e audiências.
Tudo isso leva muitos anos e a comunidade fica esperando pelas decisões que muitas vezes são contra as comunidades. Então os procuradores têm que recorrer contra a decisão do juiz e mais tempo vai ser necessário esperar. Enquanto isso, quem fica com a posse das terras são os fazendeiros e os índios ficam naquele pedacinho, no “chiqueirinho”, como vocês costumam dizer, até que o juiz decida de vez.
Como vocês sabem, os juízes nunca vêm saber como vocês estão passando, como estão vivendo. Eles só olham para os
kuatia. Só falam com vocês e os fazendeiros em audiência.
Por isso, é importante que os documentos que vão parar na justiça sejam provas boas e válidas dos seus direitos, porque os fazendeiros fazem a mesma coisa: querem provar que a terra é deles. Apresentam documentos como títulos de propriedades, pagamentos de impostos, todo
tipo de kuatia. Os índios não têm esses kuatia. Mas têm
aquele documento que foi feito na identificação e outros depoimentos e memórias que foram registrados e transfor-mados em documentos.
O problema é que durante essa briga na justiça, que demora muitos anos, são os fazendeiros que estão na posse da terra. E ninguém sabe até quando: 2, 5, 20 anos? Uma comunida-de inteira não pocomunida-de ficar esperando anos e anos, para po-derem ocupar e usar a terra que é do seu direito. A justiça deve encontrar outro caminho que não sacrifique somente vocês. O espaço que as autoridades estão destinando para as comunidades, nos casos de litígio, é muito pouco. É apenas para dizer que vocês não foram expulsos pela justiça e que estão dentro da terra.
Como a Terra Indígena é patrimônio da União, então o governo tem o dever de defender e conseguir que vocês ocupem o tekoha.
Este kuatia é um pedaço das muitas conversas e reuniões
que nós, Celso e Paz, fizemos com vocês, principalmente
os velhos e velhas, durante muitos anos em muitos tekoha.
Escolhemos alguns assuntos que achamos mais importantes para que estas informações possam chegar para mais
pes-soas, ajudando a compreender o jeito do karai de fazer as
leis e lidar com elas e também seu jeito de não fazer ou desobedecer o que mandam essas leis.
Esperamos que este kuatia possa ajudar a recuperar o
ter-ritório de vocês, o ava retã, para que os tekoha sejam o