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Cozinha é lugar de mulher? : a divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

BIANCA BRIGUGLIO

COZINHA É LUGAR DE MULHER?

A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais

CAMPINAS 2020

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BIANCA BRIGUGLIO

COZINHA É LUGAR DE MULHER?

A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais.

Orientador(a): Profa. Dra. Angela Maria Carneiro Araújo

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO DO TEXTO PARA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA BIANCA BRIGUGLIO, ORIENTADA POR PROFA.

DRA. ANGELA MARIA CARNEIRO

ARAÚJO.

CAMPINAS 2020

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelas Professoras Doutoras a seguir descritas, em sessão pública realizada em 23 de março de 2020, considerou a candidata Bianca Briguglio aprovada.

Presidente

Profa. Dra. Angela Maria Carneiro Araújo (Unicamp)

Membros titulares

Profa. Dra. Bárbara Geraldo de Castro (Unicamp) Profa. Dra. Márcia de Paula Leite (Unicamp) Profa. Dra. Nadya Araújo Guimarães (USP) Profa. Dra. Joana de Moraes Monteleone (USP)

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Esta tese é dedicada à minha avó Maria, que tornou tudo possível. Seu amor, seu humor e o macarrão feito em casa me criaram.

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Agradecimentos

Esse trabalho só foi possível com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001, por meio da bolsa de estudos que me concedeu, tanto no Brasil quanto ao longo dos onze meses que passei na França, que garantiram condições mínimas para que eu pudesse viver e trabalhar exclusivamente na pesquisa.

Agradeço aos funcionários do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), que sempre foram solícitos e gentis em dar conta dos papéis, documentos e prazos nesse período. Agradeço também à professora Isadora Lins França, por todo o apoio e trabalho duro como coordenadora do Programa de Doutorado em Ciências Sociais no tempo em que a tese foi desenvolvida.

À professora Angela Maria Carneiro Araújo, minha orientadora, uma pessoa que admiro muito, como pesquisadora, professora e militante, que sempre me inspirando e fornecendo sugestões e conselhos valiosos para realização deste trabalho.

À professora Aparecida Neri de Souza, da Faculdade de Educação da Unicamp, coordenadora do convênio Capes-Cofecub, que viabilizou a realização do meu doutorado sanduíche na França, por todo o apoio e agilidade no processo;

À professora Selma Borghi Venco, pelo apoio, por sua leitura atenta e conselhos gentis no exame de qualificação desta tese.

À professora Helena Hirata, minha supervisora durante o período do sanduíche, uma pessoa querida e profundamente inspiradora. Sou muito grata por toda a sua gentileza e generosidade, por seu cuidado e carinho, pela atenção e bondade sem fim. Muito deste trabalho e das minhas inquietações de pesquisadora são inspirados por suas pesquisas e defesa intransigente dos direitos das mulheres.

À professora Bárbara Castro, com quem tive a sorte e o prazer de conviver em Paris, de conhecer para além de sua produção e de suas reflexões acadêmicas, e que sempre me presenteou com palavras de apoio e de incentivo.

Às pesquisadoras e pesquisadores do Centre de Recherche Sociologique et Politique de Paris (CRESPPA), no site Pouchet, em Paris, que me receberam e acolheram, especialmente nas figuras das professoras Sabine Fortino e Régine Bercot. Também agradeço aos meus vizinhos do andar dois e meio, Franck Satierf e Malek Bouyahia, pelas conversas e socorro nas situações de aperto.

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Aos meus vizinhos na Maison du Brésil, Pablo Fontoura, Natália Castilho, Leonardo Barone, Ana Carolina Andrada, Martim (e Júlio ainda na barriga), pela amizade e confiança que transcendeu muito a casa, a cidade e o continente, por todo amparo, toda ajuda, todos os favores, todas as quiches, todas as conversas, todas as mensagens e todo afeto que me fazia tanta falta.

À Liliane Bordignon, anja, que sempre me ajudou a abrir e a atravessar portas, a trilhar bons caminhos, a chegar aos lugares que eu queria e que me acolheu de tantas maneiras.

À Thaís Lapa, amiga para a vida e companheira de ciladas. Tive a sorte de compartilhar com ela não apenas as angústias e aflições do doutorado e das viagens à Campinas, mas também pude receber seu carinho e apoio sempre, no Brasil e na França, de longe e de perto. Sem ela, tudo teria sido mais difícil.

À Michele Escoura Bueno, por todas as conversas e toda a paciência, por ter me recebido em Belém, me levado passear, comer, nadar e conhecer essa cidade incrível cheia de possibilidades. Por ter me dado tanta força, presencialmente ou por Skype.

Aos colegas do Doutorado em Ciências Sociais, pessoas queridas que tive a sorte de conhecer e de compartilhar experiências, medos e angústias, mas também happy hours e risadas, numa rede de apoio mútuo. Aos colegas da linha de pesquisa Trabalho, Política e Sociedade, Juliana Sousa, Pedro Queiroz, Thales Vilela Lelo e, sobretudo, Patrícia Rocha Campos, que se tornaram grandes amigos e parceiros, além de interlocutores.

À Bel Mesquita, amiga querida, que me ouviu e leu meus lamentos, dividiu os seus e sempre compartilhou comigo seu olhar perspicaz sobre a realidade, me ajudando a voltar ao prumo e a seguir em frente.

À Erika Kulessa de Souza, companheira de sempre, amiga de todas as horas, por ser tão imprescindível, precisa e sensível. Espero que estejamos sempre juntas. À Ana Paula Martins, pelo pragmatismo ímpar e contagiante, pela compreensão e acolhimento. Às amigas Samira Bandeira e Thaís Assunção, pelos anos de amizade e afeto que superaram todas as distâncias e todos os obstáculos, por serem amigas de todas as horas.

Às queridas Priscila Vieira, Tata Chang e Bia Pasqualino, cuja amizade e parceria tornaram as coisas mais leves e divertidas, que me falaram tantas vezes que era assim mesmo e que ia ficar tudo bem, que eu até acreditei.

Às minhas companheiras de militância, Bruna, Elaine, Erika, Laura e Mia, por sempre terem uma palavra de apoio e fé na força que temos unidas, no feminismo.

Aos amigos de Brasília, onde quer que estejam, principalmente Marianne (2N), que adotou minha gata durante meu período de sanduíche e, mais tarde, adotou a mim também.

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Meu muito obrigada ao Fernão Lopez, esse amigo que passou por acaso na minha casa e nunca mais saiu da minha vida.

Aos amados Filipe Miranda, Fernando Morari, Kadine Teixeira, Gi e Ion Hernandez e Andrea Belinda Schultz, amigos e amigas queridas que me receberam além-mar, me buscaram no aeroporto ou na rodoviária, me deixaram dormir no sofá e me permitiram entrar em seus cotidianos. Todos me fizeram sentir em casa, mesmo tão longe de casa.

Minha família na Austrália, Taty Marcondes, John e George, de quem sinto saudade todos os dias, que me inspiram com sua doçura e amor, que me lembram que é possível conquistar o inimaginável.

Aos meus tios Rita e Daniel Bonfim, a família que eu escolhi e que amo, pelo apoio de sempre, por nossa ligação tão profunda e tão verdadeira. Daniel Bonfim, meu tio comunista, que me inspirou sempre e que estará sempre comigo (não tem perhaps).

Minha mãe Tereza e meu irmão Enrico foram, são e sempre serão as pessoas mais importantes da minha vida. Muito além de um núcleo familiar, somos parceiros. Eles sempre acreditaram em mim, estavam ao meu lado me encorajando e me dando força todos os dias, até quando as coisas ficaram muito difíceis. Sou muito grata pela sorte de tê-los.

Gostaria de agradecer a todos que me permitiram entrar em suas vidas e conhecer suas histórias: os entrevistados e entrevistadas. Pessoas que não me conheciam e que dividiram comigo suas angústias, sonhos, problemas, desejos, me receberam em suas casas ou em seus locais de trabalho e pararam o fluxo de suas vidas para conversar comigo. Sem essa confiança e solidariedade, esta pesquisa não teria sido possível. Agradeço muito a colaboração de cada um deles.

Aproveito para agradecer, de maneira póstuma, à chef Benê Ricardo. Sem me conhecer, ela abriu as portas de sua casa e me recebeu com um bule de café e um bolo de fubá. Dona de uma humildade e modéstia impressionantes, seu pioneirismo, acredito, ainda será reconhecido pelos futuros cozinheiros e, especialmente, cozinheiras do Brasil. Espero que este trabalho honre sua história de vida e trajetória, não como narrativa heroica, mas como um exemplo de luta.

Esta tese é dedicada à minha avó materna, Maria, que faleceu dois meses após minha chegada na França. Só consegui realizar e concluir o doutorado na cidade de São Paulo porque tive o privilégio de morar na casa dela, logo depois que ela foi institucionalizada. Encontrei muito dela em mim nesse período. Gratidão é uma palavra insuficiente para traduzir o meu sentimento, mas nesse momento é a que mais se aproxima.

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“The kitchen is where work mingles with desire, pleasure, creativity, violence, safety and other people; and where domestic technologies, architects and designers create devices and spaces which shape gender”. (Louise Johnson, 2006, p.123)

(“A cozinha é onde trabalho mistura-se com desejo, prazer, criatividade, violência, segurança e outras pessoas; e onde tecnologias domésticas, arquitetos e designers criam artefatos e espaços que moldam gênero”).

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Resumo

O tema principal desta tese é a divisão sexual do trabalho que se realiza em cozinhas profissionais. A partir de um panorama histórico da profissão de cozinheiro/a, no Brasil e na França, procura-se compreender o mercado de trabalho, as condições e relações de trabalho nesse segmento profissional. A pesquisa baseia-se principalmente em entrevistas com homens e mulheres que trabalham ou trabalharam em ocupações ligadas à cozinha, como chefs, cozinheiras/os, ajudantes/ auxiliares, saladeiras/os, assim como proprietários de estabelecimentos, trabalhadores autônomos, prestadores de serviços de alimentação e “empreendedores”. A pesquisa adota a perspectiva de gênero, classe e raça como ponto de partida, assim como interroga os contornos da divisão sexual do trabalho, tanto no mercado quanto no ambiente de trabalho. A cozinha profissional, principalmente em restaurantes, é um espaço eminentemente masculino e masculinizante, que cria obstáculos e dificuldades para a permanência de mulheres. Para além das responsabilidades familiares e do trabalho doméstico, a própria cozinha profissional opera em uma lógica masculina e agressiva, que supervaloriza a força física e um exercício de comando sexuado, que chega, não raro, ao assédio moral e sexual, e que exclui as mulheres. Expandindo as fronteiras do trabalho em restaurantes e observando alguns serviços de alimentação – como venda de marmitas, catering e serviços de comida em domicílio –, observamos como as mulheres acabam preferindo o trabalho autônomo ou por conta própria, seja por precisarem de mais flexibilidade para conciliar atividades profissionais com o trabalho de cuidado e família, seja pela possibilidade de gerir e administrar o próprio trabalho.

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Abstract

The main theme of this thesis is the sexual division of labor that takes place in professional kitchens. Based on a historical overview of the cooking profession, in Brazil and France, we seek to understand the labor market, working conditions and relationships in this professional segment. The research is based mainly on interviews with men and women who work or have worked in occupations in the kitchen, such as chefs, cooks, helpers/ assistants, salad makers, as well as establishment owners, self-employed workers, food service providers, and “entrepreneurs”. The research adopts the perspective of gender, class and race as a starting point, as well as interrogating the contours of sexual division of labor, both in the labor market and in the workplace. Professional cuisine, especially in restaurants, is an eminently masculine and masculinizing space, which creates obstacles and difficulties for women to remain. In addition to family responsibilities and domestic work, the professional kitchen itself operates in a masculine and aggressive logic, which overestimates physical strength and a sexual exercise of command, which often turns into moral and sexual harassment, and which excludes women. Expanding the frontiers of work in restaurants and observing some workers in food services - such as selling prepared meals, catering and home food services -, we see how women end up preferring self-employment or autonomous work, either because they need more flexibility to reconcile professional activities with care work and family, whether by the possibility of managing and administering their own business.

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Lista de Siglas e Abreviações

A&B: Alimentos & Bebidas, uma das áreas de um hotel, assim como Governança, Segurança, Eventos, Recepção, Vendas etc.

CBO: Classificação Brasileira de Ocupações

CNAE: Cadastro Nacional de Atividades Econômicas

Contratuh: Confederação Nacional dos Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade Dieese: Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos FGTS: Fundo de Garantia por Tempo de Serviço

INSS: Instituto Nacional de Seguridade Social Ipea: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada MTE: Ministério do Trabalho e Emprego MST: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Rais: Relatório Anual de Informações Sociais

Sampapão: Sindicato dos Industriais de Panificação e Confeitaria de São Paulo Senac: Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio

Sinthoresp: Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis, Apart-hotéis, Motéis, Flats, Restaurantes, Bares, Lanchonetes e Similares de São Paulo e Região.

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Lista de Imagens

Figura 1 - “Le cuisinier François”, de LaVarenne, publicado em 1651, considerado o primeiro livro de culinária

p. 43 Figura 2 - “Le pâtissier François”, de La Varenne, publicado em 1653. p. 45 Figura 3 - Societé des Cuisiniers de Paris [1905-1915] p. 50 Figura 4 – O primeiro livro brasileiro de receitas, O cozinheiro imperial ou

Nova arte de cozinha da cidade e do campo em todos os seus ramos,

publicado por R.C.M. em 1839.

p. 54

Figura 5 – La brigade de Cuisine p.69

Figura 6 – Fotografia da culinarista de televisão Cidinha Santiago, no

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Sumário

Introdução ... 16

1. Metodologia de Pesquisa ... 20

1.1.O desafio do recorte ... 21

1.2. Trabalho de campo ... 25

2. O desenho da tese ... 30

Capítulo 1 - De onde vêm os/as cozinheiros/as? ... 32

1. Histórico da profissão ... 32

1.1. O nascimento do restaurante ... 35

1.2. A importância da gastronomia francesa ... 42

1.3. Os/As cozinheiros/as no Brasil ... 51

1.4. Os restaurantes a partir dos anos 2000 ... 60

2. As ocupações e os processos de trabalho na cozinha ... 65

2.1. Chef ... 73

2.2. Cozinheiro/a ... 79

2.3. Auxiliar de cozinha ... 81

3. Considerações finais do capítulo ... 83

Capítulo 2 - Como se forma o/a cozinheiro/a? ... 84

1. Dom e paixão: o ethos ... 84

2. Qualificação Profissional ... 95

2.1. Os cursos de Gastronomia ... 97

2.2. Formação profissional nas cozinhas ... 100

2.3. Os estágios ... 107

3. O trabalho dos cozinheiros ... 116

3.1. Jornada de trabalho ... 117

4. Considerações finais do capítulo ... 130

Capítulo 3 - Cozinha é lugar de mulher? ... 132

1. A divisão sexual do trabalho ... 132

2. Trabalho doméstico: conflito trabalho e família... 142

3. Cozinha quente, cozinha fria: trabalho de homem, trabalho de mulher. ... 149

4. Mixidade no trabalho... 156

5. E para trabalhar de noite em São Paulo? ... 159

6. “Além de ser mulher, negra”. ... 161

(15)

6.2. Benê Ricardo ... 168

7. Considerações finais do capítulo ... 182

Capítulo 4 – Para além da brigada: as diversas formas do trabalho culinário ... 185

1. Formal ou informal? ... 187 2. Proprietários/as ... 191 2.1. Daniel ... 193 2.2. Samira ... 196 2.3. Mariana ... 200 3. Serviços de Alimentação ... 206 3.1. Consultorias ... 209 4. As plataformas digitais ... 212

5. Mulheres negras no trabalho formal e informal ... 219

6. Considerações finais do capítulo ... 225

Considerações finais ... 227

Referências Bibliográficas ... 233

Anexo Metodológico – Entrevistas ... 243

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Introdução

Esta pesquisa investiga o trabalho de cozinheiros e cozinheiras. As diferenças e desigualdades entre homens e mulheres nesse segmento profissional e suas implicações em termos de vida profissional e pessoal são o tema central desta tese. Ainda que as cozinhas profissionais tenham recebido cada vez mais mulheres, elas encontram mais dificuldades para ascender na carreira e serem reconhecidas publicamente. Por quê?

Os objetivos que orientam essa investigação são conhecer as condições e relações de trabalho em cozinhas de restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação, compreender os contornos da divisão sexual do trabalho nesses espaços, assim como suas implicações em termos de formação profissional, movimentação no mercado de trabalho e constituição de carreira, conhecer trajetórias pessoais e profissionais de trabalhadores e trabalhadoras desse segmento.

Esta pesquisa nasceu durante o período em que trabalhei na Confederação Nacional dos Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade (Contratuh), em Brasília (DF), como assessora técnica da subseção do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), entre 2012 e 2014. A Contratuh é uma entidade de base eclética, que representa cerca de dez categorias diferentes, como os trabalhadores em entidades filantrópicas, em asseio e conservação, profissionais de beleza e estética e o ramo de hotelaria, entre outros.

Cada uma dessas categorias profissionais tem suas especificidades, mas, desde aquela época, pareceu-me surpreendente que não havia nenhuma ação ou atividade sindical voltada para os trabalhadores em cozinhas de restaurantes. O trabalho nessa entidade possibilitou o acesso a algumas informações referentes a esse segmento como, por exemplo, os baixos pisos salariais negociados pela categoria em todos os estados, a alta rotatividade1, e práticas como a

chamada jornada “flexível”2.

Uma investigação inicial sobre o tema do trabalho em cozinhas profissionais revelou pouquíssimas pesquisas a respeito deste assunto no Brasil. A gastronomia era abordada a partir de diversos aspectos, como a história da alimentação, a relação entre o alimento e a

1 Dieese. Rotatividade Setorial: dados e diretrizes para a ação sindical. São Paulo: Dieese, 2014. Disponível em

http://www.dieese.org.br/livro/2014/livroRotatividade.pdf (Acesso em 03/05/2019).

2 A jornada flexível refere-se à jornada em dois turnos, no caso dos restaurantes, o serviço do almoço e do jantar,

com um intervalo de duas ou três horas (o serviço do almoço termina por volta das 15h e o do jantar começa por volta das 17h). Essas horas são descontadas da jornada total, mas, na prática, o trabalhador não pode voltar para casa nem descansar, e permanece no estabelecimento à disposição do empregador.

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cultura, a transformação dos hábitos alimentares ao longo do tempo, as biografias e autobiografias de grandes chefs, mas não havia trabalhos que observassem diretamente as cozinhas do ponto de vista do trabalho ou dos trabalhadores.

A pesquisa bibliográfica revelou livros e artigos sobre a história da culinária e da alimentação que mostraram números assombrosos quando tratavam de achados históricos sobre banquetes da Antiguidade (KURLANSKY, 2004), por exemplo. Milhares de animais abatidos, toneladas de grãos, centenas de litros de vinho consumidos em festas e banquetes que tinham como propósito intimidar os convidados ou demonstrar poder. Mas não havia uma linha sequer sobre quem preparou essa quantidade descomunal de comida. Quantas pessoas trabalhavam? Eram homens? Mulheres? Livres ou escravizados? Como era preparada toda essa comida?

A cozinha é um espaço fundamental da vida social. Uma linha importante da Antropologia sustenta que é na cozinha que se transforma natureza em cultura (LÉVI-STRAUSS, 1991), onde o alimento se torna comida. Há, inclusive, pesquisas antropológicas baseadas em achados arqueológicos que afirmam que cozinhar nos tornou humanos (WRANGHAM, 2010).

Nesta tese, entretanto, não se trata de olhar para a comida. Ou melhor, não diretamente. Não se trata dos temperos, dos sabores, dos perfumes, da montagem dos pratos, da sensação de água na boca. Trata-se de olhar para quem prepara a comida. Quem entende dos temperos, dos sabores, dos perfumes e da montagem dos pratos: os cozinheiros e as cozinheiras.

Ainda que a cozinha tenha conseguido um lugar de destaque e visibilidade nos anos recentes, eventualmente foi mais difícil para os cozinheiros. Para as cozinheiras, então, mais ainda. Trata-se, segundo alguns autores (DROUARD, 2015; TRUBEK, 2000), da aposta que os cozinheiros franceses fizeram na profissionalização no final do século 19. Para tornar sua profissão visível, dotada de prestígio, diferentemente da cozinha doméstica, era fundamental convencer o mundo de que eles eram profissionais. E isso passava, por exemplo, pela proibição expressa da entrada de mulheres nos locais de trabalho e associações profissionais, além de criticar caso elas fossem contratadas para desempenhar essa nobre função.

Considero, a partir da sociologia elisiana, que a vida social é um processo. Não há um marco zero a partir do qual os movimentos começam, um estado de imobilidade do qual partem as mudanças e transformações. “De onde quer que comecemos, observamos movimento, algo que aconteceu antes. Limites podem ser traçados a uma indagação retrospectiva, preferivelmente correspondendo às fases do próprio processo” (ELIAS, 1994,

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p.73-74). Nesse sentido, as mudanças sociais não são manifestações de desordem e seu significado real só pode ser apreendido em uma perspectiva histórica de longo prazo, na qual é possível observar quais são as mudanças que esse processo constrói.

O processo civilizador analisado por Elias aponta na direção da constituição da sociedade burguesa, capitalista. Em sua concepção, o desafio que se coloca para o pesquisador é entender os vínculos entre indivíduo e sociedade como realidades que constituem ambos. Em “Mozart, a sociologia de um gênio” (1991), por exemplo, Elias centrou-se em uma história singular para compreender as configurações de toda uma época. Indivíduo e sociedade referem-se a dois níveis diferentes, mas inseparáveis. Pensar em termos de configuração significa raciocinar não mais em termos de individualidades ligadas umas às outras, mas em termos de relações necessariamente variáveis, com posições definidas pelo sistema dessas relações.

O método proposto por Elias, portanto, é pensar a vida social como um processo. O indivíduo não atravessa um processo, ele é o processo. Ele parte de um entendimento das estruturas que seres humanos mutuamente dependentes estabelecem e das transformações que sofrem, tanto individualmente quanto em grupos, devido ao aumento e à redução de suas interdependências e seus gradientes de poder. Em suas próprias palavras:

A concepção que cada um de nós tem destas configurações é uma condição básica para a concepção que tem de si próprio, como pessoa isolada. O sentido que cada um tem da sua identidade está estreitamente relacionado com as “relações de nós” e de “eles” do nosso próprio grupo e com a posição dentro dessas unidades que designamos por “nós” e “eles”. (...) As configurações a que se referem pode mudar no decurso de uma vida, tal como a pessoa muda (ELIAS, 1980, p. 139).

Quando há expressiva diferença no gradiente de poder (monopólio de fato ou de direito) tem–se a figuração dos estabelecidos e outsiders (intrusos, os de fora, da periferia, do grupo inferior, excluídos, marginais etc). Ocorre então uma autoatribuição, por parte dos estabelecidos, de características humanas superiores. Um dos grupos está bem instalado numa posição de poder que é disputada, ainda que com poucas chances de sucesso, pelo outro, daí a interdependência entre os dois grupos. Não é possível entender a condição de estabelecidos a não ser em suas vinculações com os outsiders. Por meio dos estudos dos processos de mudança de equilíbrio de poder se compreende as ações de cada um dos grupos e de seus componentes (e não os analisando isoladamente).

Como se poderá observar, todo o processo de autocontrole e autorregulação dos corpos e das funções fisiológicas, dos modos de ser e de estar, dos gostos, a própria concepção do

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que é certo e errado, o que, de forma genérica, podemos dizer que Elias chama de processo civilizador é um processo de transformação individual e social que se deu durante séculos. Não se trata de uma evolução, mas na concepção elisiana, da percepção da mudança em um longo período, nas interdependências e relações que se transformaram, nas tensões que se acentuaram e alianças que se romperam ou se fortaleceram. Trata-se, sobretudo, de compreender o sentido das mudanças, o sentido da história.

Para além da compreensão da história como um processo, há uma perspectiva teórica e metodológica importante neste trabalho, que está em consonância com a proposição de Sandra Harding (1989), a ideia de pesquisa feminista. Segundo ela, as pesquisadoras feministas empregam os métodos de pesquisa como em qualquer pesquisa tradicional: escutar informantes (ou interrogá-los), observar o comportamento e examinar vestígios e registros históricos. Entretanto, elas dedicam uma atenção especial ao que dizem as mulheres, visibilizando suas histórias de vida e dando centralidade às suas visões e interpretações da própria realidade.

A autora entende que uma epistemologia é uma teoria do conhecimento que responde à pergunta de quem pode ser sujeito de conhecimento. As feministas argumentam que as epistemologias tradicionais excluem sistematicamente a possibilidade de as mulheres serem sujeitos ou agentes do conhecimento, sustentam que a voz da ciência é masculina e que a história foi escrita desde o ponto de vista dos homens. Entretanto, o problema das pesquisas feministas não se resolve somando-se ou agregando-se as mulheres, simplesmente. Para Harding, se pensarmos na maneira como os fenômenos sociais se convertem em problemas que requerem uma explicação, veremos que não existe problema algum se não houver pessoa ou grupo de pessoas que o defina: um problema é sempre um problema para alguém (HARDING, 1989, p.10-11).

Ainda de acordo com a autora, os desafios do feminismo revelam que as perguntas que são formuladas – e, sobretudo, as que não são – determinam a pertinência e a precisão da imagem global dos fatos, assim como as respostas que podem ser encontradas. Um traço definitivo da pesquisa feminista é que define sua problemática desde a perspectiva das experiências femininas, e emprega essas experiências como um indicador significativo da realidade. Em consonância com essas afirmações, a descrição das experiências das próprias trabalhadoras entrevistadas é o eixo central do presente trabalho.

É fundamental considerar e destacar as narrativas das mulheres e a complexidade das relações que elas descrevem, pois é a partir destas que considero os elementos que compõem a configuração. Homens também foram entrevistados e suas narrativas também são

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importantes, também são analisadas e consideradas. Mas elas não adquirem centralidade nessa pesquisa, não porque não sejam importantes, mas porque dentro do universo de histórias de vida e trajetórias de gênero, as femininas têm preponderância.

1. Metodologia de pesquisa

Olhar para o trabalho implica olhar para as relações e para as condições de trabalho. Desde o começo, a pesquisa empírica foi orientada por questões referentes às jornadas de trabalho (quantas horas por dia, quantos dias por semana, como são divididos os turnos, intervalos e períodos de descanso), à informalidade (registro em carteira - se existe, se está ou não de acordo com o trabalho efetivamente realizado, trabalho como freelancer e temporários ou extras, acesso aos direitos trabalhistas e benefícios previstos em lei), mercado de trabalho (busca por emprego, currículo, rede de contatos e indicações, diferentes valorações das experiências profissionais), à formação profissional (formação empírica no trabalho, cursos, formações técnicas, aprendizado) e à forma como as relações sociais de gênero estão implicadas nessas relações - como se colocam para os homens e para as mulheres.

A investigação, entretanto, não poderia ficar restrita a essas questões, pois o universo com o qual me deparei durante a realização da pesquisa de campo e as entrevistas era muito mais amplo e mais complexo. Todavia, mesmo diante de uma bibliografia mais vasta e de outras questões interessantes que emergiram, a orientação da pesquisa sempre foi olhar para o trabalho vivo. Quer dizer, não para as máquinas e instrumentos, a tecnologia da cozinha, mas para as atividades dos seres humanos, a transformação, as relações sociais de produção. Não se trata de olhar para o alimento em si, apartado da atividade que o produz, apartado de seu contexto social de produção. Meu objetivo discutir exatamente as técnicas de preparo, os ingredientes e o resultado final, a estética do prato, a apresentação, nem mesmo sua história.

Os alimentos precisam ser colocados, aqui, em um contexto em função de uma leitura de classe. Existem alimentos caros, quase inacessíveis para a grande maioria da população, alimentos não produzidos em massa, que não são populares e não fazem parte do universo gastronômico comum, básico. Tais alimentos estão restritos a determinados grupos sociais, extratos da população com alto poder aquisitivo, que os conhecem, sabem apreciá-los e, portanto, sabem prepará-los.

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trabalhava havia alguns anos em restaurante como cozinheira e decidiu fazer o curso técnico de cozinheiro-chef como estratégia para melhorar suas oportunidades profissionais. Quando questionada sobre seu aprendizado no curso, afirmou que teve acesso a insumos que não conhecia, aprendeu a trabalhar com ingredientes com os quais não estava acostumada como, por exemplo, lagosta. Trata-se de um crustáceo extremamente caro em quase todos os lugares do mundo, é um ingrediente nobre. A chef entrevistada, oriunda das classes populares, não tinha acesso a esse ingrediente na sua vida fora do restaurante. Como poderia saber preparar um alimento que ela mesma nunca comeu? Esse exemplo ilustra nosso percurso, no sentido que não se trata, aqui, de olhar para o ingrediente e discutir se deve ser fervido vivo, regado com manteiga ou grelhado, mas entender as relações de classe que estão colocadas e como alguns alimentos/ pratos/ técnicas são elementos distintivos que nos permitem enxergar essas relações.

Também não se trata de fazer uma análise dos restaurantes ou dos estabelecimentos de alimentação. Nas duas cidades onde foi possível fazer a pesquisa, São Paulo e Paris, a oferta gastronômica é incomensurável. Pensar na heterogeneidade dos estabelecimentos é olhar para um caleidoscópio de sabores, perfumes e possibilidades globais: o que é gastronomia contemporânea? O que é gastronomia brasileira? O que é gastronomia brasileira contemporânea? São tantos termos, tantas nomenclaturas, tantas classificações diferentes, que olhar para elas e tentar defini-las escaparia muito aos meus objetivos.

Aqui, só farei referência ao tipo de culinária, ao tipo de alimento ou de serviço quando estes reportarem às relações de produção e de trabalho. Assim como os ingredientes, o tipo de gastronomia também se refere a um lugar de classe: pode-se argumentar que um restaurante popular por quilo, que serve feijoada às quartas-feiras, trabalha com gastronomia brasileira, mas não é a mesma coisa que um restaurante cuja chef é mundialmente famosa, que oferece gastronomia brasileira contemporânea em um menu-degustação que custa, aproximadamente, R$ 400 por pessoa3. Então, não se trata de discutir o tipo de gastronomia, mas as formas que o

trabalho assume nos dois tipos de estabelecimento.

1.1. O desafio do recorte

O primeiro desafio de todo trabalho de pesquisa, e provavelmente o mais perene, é o

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recorte. As teses e dissertações que acessei para preparar este texto já revelavam dificuldades e percalços para estabelecer um recorte: definir o que faz parte da pesquisa e o que não faz.

Minha proposta sempre foi pesquisar o trabalho dos cozinheiros e cozinheiras de restaurante. Mas o campo foi se abrindo, revelando outras realidades, outros trabalhos, outras dinâmicas, outros assuntos e temas igualmente interessantes, e manter esse recorte simples foi ficando mais difícil. Ao chegar à França para o período do doutorado sanduíche, eu me deparei com uma gama ainda maior de trabalhos e teses, de conceitos e discussões, e tudo parecia se relacionar e contribuir com a minha pesquisa. O recorte é precisamente a separação entre o que vai ficar e o que vai sair. E por mais que seja difícil abrir mão de algumas coisas, não é possível abarcar tudo que parece interessante em uma tese.

Olhar para um segmento profissional extremamente heterogêneo e diversificado, que se transforma constantemente, que permite diversas leituras e abordagens cria uma miríade de possibilidades de investigação muito tentadora, mas era preciso escolher apenas uma. A realização de um campo inicial e exploratório, que abrangeu diversas ocupações e trabalhos no espectro da cozinha e do restaurante, já revelava algumas dessas possibilidades, mas as entrevistas que foram realizadas após o exame de qualificação seguiam um recorte mais preciso e, ainda assim, pareciam apontar novas direções.

Encontrei muitos profissionais que haviam começado, há mais ou menos tempo, seu próprio negócio. Abrindo um restaurante, prestando serviços de alimentação ou trabalhando na televisão, os cozinheiros e cozinheiras que entrevistei me permitiram enxergar um novo campo para além da cozinha do restaurante, meu objetivo inicial, e revelaram outros elementos que eu não havia previsto. Meu objetivo nunca foi entrevistar os donos de estabelecimentos, mas eles apareceram na pesquisa e seus relatos pareciam ilustrar algumas questões que já haviam surgido.

Minha pesquisa exploratória havia tornado patente que o trabalho de campo era imprevisível, que ele não confirmaria minhas hipóteses (ao contrário) e que revelava uma riqueza de possibilidades e leituras muito além do que eu imaginava. E que isso era o melhor indicativo de que eu estava percorrendo um bom caminho, permitindo que aqueles homens e mulheres me informassem sobre suas realidades, colocando meus conhecimentos prévios à prova e deixando que as premissas iniciais caíssem por terra.

Mas meu objetivo inicial permaneceu. Pesquisei o trabalho dos cozinheiros e cozinheiras de restaurante. A vida dessas pessoas não se circunscreve apenas a esse universo e, por isso, seus relatos revelaram tantas outras possibilidades. Procurei relatar e analisar isso nesta tese. Assim, a pesquisa tratou do trabalho culinário em um sentido mais amplo. Busquei

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investigar as condições de trabalho, o mercado de trabalho, a formação profissional e a constituição de uma carreira a partir de uma perspectiva de gênero.

Um recorte inicial se manteve, todavia. Não pesquisei o trabalho em cozinhas industriais, refeitórios, cantinas escolares ou outros serviços de alimentação em larga escala. A natureza do trabalho nesses ambientes é muito diferente do trabalho em restaurantes ou dos serviços que estão no escopo da pesquisa. A produção em cozinhas de larga escala se organiza de outras formas, em outros espaços e engendra outras dinâmicas. A chamada "cozinha coletiva", além de servir centenas de pessoas em cada refeição, passa por outros processos de preparação, de seleção, outras exigências de formação e qualificação, outro tipo de carreira, outro serviço.

Fast food também não será analisada aqui. A natureza do trabalho nesses

estabelecimentos de comida rápida e/ou lanchonetes também é diferente. Por um lado, trata-se de um trabalho altamente prescrito, controlado e, arriscamos dizer, “taylorizado”4. Nos fast

foods, não se trata tanto de um trabalho de cozinhar, mas muito mais de montar uma refeição

seguindo determinadas regras preestabelecidas. Os restaurantes ou lanchonetes de fast food são essencialmente pontos de venda, nos quais apenas a fase final da preparação é realizada, pois trabalham com produtos já prontos ou semiprontos (e, em muitos casos, congelados), que devem ser montados de uma maneira padronizada (no caso das lanchonetes, os hambúrgueres não são preparados na lanchonete, os pães estão prontos, os molhos vêm prontos e em grandes embalagens plásticas. “A oferta limitada e padronizada dos pratos, conjugada às escolhas relativamente estáveis dos consumidores permitiu organizar a produção em fluxo de maneira racional e para ganhar tempo"5 (FELLAY, 2010, p.45).

Os trabalhadores desses estabelecimentos não são, de fato, cozinheiros. E nem precisam ser. Seu trabalho de manejo e montagem dos lanches e refeições é marcado por uma separação especializada, a qual se traduz por uma parcialização do processo e mecanização das tarefas. Não são os trabalhadores da lanchonete que produzem os hambúrgueres, que

4Aqui estou me referindo ao trabalho taylorizado como uma modalidade específica na área de alimentação, como

trabalho taylorizado um tipo específico de trabalho na alimentação, que consiste em montar os lanches e refeições segundo uma rígida prescrição. Existe uma ampla bibliografia sobre o trabalho nas grandes redes de fast food, mas esse trabalho diverge do trabalho culinário (do outro, culinário, aquele que investigo precisamente em função de alguns preceitos do taylorismo, como a racionalização de gestos e movimentos, a separação entre trabalho intelectual e manual, a divisão do trabalho em várias etapas, o controle por conta de uma gerência. O filme "Fome de Poder" (The Founder, 2017) dirigido por John Lee Hancock, trata do nascimento da franquia de fast food mais bem-sucedida do mundo, o McDonald's, e mostra como os irmãos McDonald’s racionalizaram o trabalho no menor espaço possível, criando estações de trabalho, controlando os gestos e movimentos na cozinha para garantir que todos os lanches seriam idênticos, independentemente de quem estivesse trabalhando na cozinha. A fórmula, além de agilizar o atendimento, garantiu o sucesso do negócio em todo o mundo.

5 Tradução livre de "L’offre limitée et standardisée des plats, conjuguée aux choix relativement stables des

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cortam as batatas ou que fazem os molhos (como em outras lanchonetes, por exemplo).

Entretanto, em função da riqueza que as entrevistas proporcionaram, a pesquisa avançou para além dos trabalhadores de restaurantes e passou a englobar o que estou chamando de "serviços de alimentação". Geralmente realizados por profissionais que decidiram empreender, esses serviços são diversificados e objetivam dar conta de uma série de necessidades específicas dos consumidores. Foi possível, por exemplo, entrevistar uma cozinheira que produz comida em sua própria casa e vende marmitas congeladas por meio de um aplicativo, outra cozinheira que prepara coffee breaks e refeições sob encomenda para eventos e banquetes, assim como pessoas que prestavam serviços de consultoria.

Assim, ainda que muitos parâmetros e discussões que estavam previstos desde o projeto tenham sido mantidos, a tese também traz novos problemas e realidades que emergiram do campo, das narrativas dos entrevistados, da constante transformação desse segmento econômico e das condições de trabalho.

Tomo a liberdade de fazer uma pequena digressão sobre a utilização de outros materiais que deram algum suporte às minhas reflexões. Como já apontei, a alimentação e a gastronomia se tornaram assuntos muito populares, que ocupam diversas mídias. Entre programas na televisão aberta, nos canais por assinatura, nas redes sociais e internet, os eventos gastronômicos, o interesse pelo assunto parece crescente e diversificado. Isso apresentou um problema no sentido do recorte e, principalmente, do ruído. São muitos os discursos, que vão desde a alimentação saudável, orgânica e as relações farm to table – ou direto do produtor –, até as alergias e restrições alimentares, novas formas de produzir alimentos, o debate com a indústria, as mudanças constantes no mundo da alimentação. É importante ressaltar que, como uma pessoa que vive nessa sociedade e que tem interesse nessas questões, esse universo se apresentava para mim cada vez mais rico, cada vez mais diverso, cada vez mais interessante.

A sociologia da alimentação contemporânea e os food studies contemplam um mundo amplo de debates e reflexões, que conjugam várias disciplinas e perspectivas, que trazem elementos de diversas áreas para compor o pensamento sobre a alimentação, a culinária, a cozinha e a gastronomia. A palavra universo é apropriada para descrever esse campo de estudos que tem ganhado força e adeptos ao redor do mundo.

O foco que adotei, todavia, é das relações sociais de sexo e de trabalho. Não se trata, portanto, da história da alimentação, da antropologia e nem da sociologia da alimentação, mas do trabalho que homens e mulheres realizam para que outros possam comer. E o trabalho aqui se refere à produção de refeições, e não de alimentos – não estou pensando sobre a produção

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agrícola, agricultura familiar, distribuição, nem mesmo a questão dos venenos e agrotóxicos, tão em voga hoje em dia– e um assunto recorrente entre os próprios cozinheiros, uma vez que impacta diretamente seu trabalho.

1.2. Trabalho de campo

A pesquisa é centrada e, em grande medida, estruturada a partir de informações obtidas no trabalho de campo, que foi realizado desde o começo do doutorado (a primeira entrevista foi realizada em abril de 2015). Para além das entrevistas, que estão descritas em um item específico e no Anexo Metodológico II, foram realizadas observações em eventos, como a Feira Internacional de Panificação, Confeitaria e Varejo Independente de Alimentos – Fipan6 (São Paulo, 25 a 28 de julho de 2017), o Encontro Mundial de Chefs (em Guararema/

SP, de 21 a 23 de setembro de 2017), a Oficina de Alimentação com as mulheres merendeiras do Movimento Nacional dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na Feira Nacional de Economia Solidária (4 a 6 de maio de 2018, São Paulo), e o Salon du Chocolat7 (Paris, 30 de outubro a 3

de novembro de 2018).

Eventos como a Fipan e o Salon du Chocolat não serão analisados aqui, pois serviram como uma aproximação ao universo desses profissionais, mas sem a possibilidade de realizar observações em profundidade. Eram eventos muito concorridos, que ofereciam cursos e

workshops, presença de chefs famosos, comercialização de alimentos, insumos, maquinários,

livros e outros produtos relacionados. E este caráter comercial era muito mais forte do que um espaço dos próprios profissionais.

A Oficina com as merendeiras do MST foi uma oportunidade única e incrível de conhecer o trabalho que essas mulheres fazem no cotidiano dos assentamentos, sua relação com a produção e a alimentação das crianças, as alternativas que encontram para os alimentos

6A Fipan é uma feira anual que acontece na cidade de São Paulo, promovida sobretudo por sindicatos e

associações patronais, como o Sampapão, sigla que agrega os Sindicato e Associação dos Industriais da Panificação e Confeitaria de São Paulo e o Instituto de Desenvolvimento da Panificação e Confeitaria, escola técnica de panificação mantida pelo sindicato. A feira não é aberta ao público. De acordo com o site, “A Fipan é uma feira de negócios voltada somente para empresários e funcionários de empresas ligadas aos setores representados no evento” (Disponível em http://fipan.com.br/perguntas-frequentes/. Acesso em 10/10/2019). Ainda assim, no ano que visitei a feira, 2017, foram mais de 65 mil visitantes.

7 O Salon du Chocolat é um evento aberto ao grande público, que comercializa não apenas maquinários e

insumos, mas tem estandes e lojas de produtos de confeitaria, pâtisserie e, claro, chocolate, premiações e concursos de mestres pâtissiers e confeiteiros, cursos, master classes, uma exposição de esculturas de chocolate, ateliês de práticas com chocolate, palestras e mesas redondas. A programação está disponível em https://www.salon-du-chocolat.com/ (Acesso em 10/10/2019).

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industrializados que seriam, em tese, “obrigadas” a servir, o engajamento na proposta de uma alimentação saudável e saborosa, as redes e as relações que criam entre elas para trocar conhecimentos e darem apoio umas às outras, além das receitas com PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais) e leites vegetais. Entretanto, esse trabalho foge muito do escopo da pesquisa e não será analisado aqui.

Descreverei minha experiência no Encontro Mundial de Chefs, que considerei uma imersão riquíssima no universo dos cozinheiros, cozinheiras, estudantes de gastronomia e

chefs, e o conjunto de entrevistas que foram realizadas.

1.2.1. Encontro Mundial de Chefs

O Encontro Mundial de Chefs foi realizado na cidade de Guararema, no interior de São Paulo, a 68 km da capital, entre os dias 21 e 23 de setembro de 2017. Participei de tal evento a partir de um contato com a assessoria de imprensa, que me possibilitou acompanhar os chefs, os workshops, oficinas e palestras durante os três dias do encontro. Também colaborei com o trabalho das assessoras, fazendo entrevistas curtas e conversas informais com os participantes, além de produzir as fotos que abasteceram as redes sociais.

O acontecimento foi idealizado pelo chef Luís Faria, que no momento trabalhava para a cozinha experimental da multinacional Bunge – gigante da indústria de alimentos. Ele foi reconhecido internacionalmente quando ganhou o prêmio de melhor chef pâtissier do mundo em 2016, prêmio da Union of Bakers and Confectioners (UIBC). Em um almoço de preparação do evento, realizado em 14 de setembro de 2017 apenas para jornalistas e proprietários de restaurantes na cidade de Guararema, o chef divulgou o evento como uma iniciativa sua para “compartilhar conhecimentos” e discutir a produção sustentável. Ao longo do almoço, ficou claro que o evento era, em parte, financiado pela Bunge.

Para participar, era necessário preencher uma inscrição simples na página do Facebook do evento, sem custo. Ao longo do encontro, ficou evidente que o chef Luís Faria centralizava toda a organização, assim como fazia questão de estar próximo dos chefs mais famosos e estrelados que passaram por lá, posando para fotos e conversando com a imprensa. Também ficou clara uma relação próxima e familiar entre o chef e a proprietária do hotel em que se deu o encontro, o que com certeza foi fundamental para a realização do evento neste lugar específico e no município de Guararema.

Durante o Encontro, as manhãs eram ocupadas por palestras ou conferências em um espaço afastado do prédio principal do hotel, com capacidade para muitas pessoas, com

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cadeiras, palco e telão, mas sem estrutura básica, como banheiros e bebedouros. Entretanto, como as atividades realizadas nesse lugar estavam voltadas para todos os participantes, era fundamental que ocorressem em um local com muito espaço. O cenário, na verdade, era bem agradável, à beira de um lago.

À tarde, as atividades eram descentralizadas entre oficinas e workshops realizados em salas e auditórios dentro do hotel, da mesma forma que patrocinadores e empresários do setor disponibilizavam seus produtos em estandes e outros espaços, conversando e interagindo com os participantes. Muitas atividades aconteciam simultaneamente e era difícil acompanhar todas.

Muitas pessoas compareceram à abertura. Os chefs vestiam dólmãs8 especiais, com o

símbolo do encontro e seus nomes bordados, assim como o chapéu alto. Muitos também usavam aventais. Além dos incontáveis chefs devidamente paramentados, também exibindo dólmãs e chapéus, os estudantes de Gastronomia de diversas escolas estavam na plateia - levados pelas escolas para assistir às palestras, participar dos workshops e, alguns, para abonarem horas de atividades extras, auxiliando os chefs responsáveis pelos workshops e oficinas. A vestimenta é uma parte importante da identidade do cozinheiro, e os diferenciava dos demais participantes civis.

A imersão de três dias nesse encontro foi uma rica possibilidade de conhecer melhor o universo dos cozinheiros fora de seu hábitat. De um lado, trabalhando com a assessoria de imprensa pude perceber que, de fato, a vaidade desses profissionais é muito grande. Falar com os jornalistas, aparecer na televisão, posar para fotos e alimentar os feeds das redes sociais era uma agenda diária e intensa para os chefs presentes. De outra parte, as mesas-redondas e palestras permitiram que alguns temas de interesse desses profissionais - e do segmento de restaurantes como um todo - fossem discutidos, como a formação de jovens cozinheiros e a gestão de negócios em alimentação.

As mesas sobre formação de jovens cozinheiros e tendências do mercado, infelizmente, mostraram um tom neoliberal carente de senso crítico, mas hegemônico entre os cozinheiros. Dessa forma, humildade, curiosidade e generosidade eram as características necessárias para se tornar um grande chef. Também foram contadas e recontadas as histórias de sucesso daqueles chefs que começaram como "pias" ou como "pés de boi", a trajetória heroica do cozinheiro: o/a jovem que entra na cozinha sem saber nada, começa lavando louça

8

Dólmã é um tipo de jaqueta justa, o uniforme dos cozinheiros, geralmente branco, com oito ou dez botões. Sua origem é uma túnica militar. Com a touca ou com o chapéu branco, o traje foi instituído como uniforme de cozinha por Auguste Escoffier (1846-1935).

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(o/a "pia"), carregando caixas, levando panelas, que se forma no próprio trabalho e ganha destaque a partir do próprio talento.

Esse mesmo discurso valoriza a figura do líder, aquele/a que inspira seus subordinados. Segundo as palavras dos chefs presentes, nem todo cozinheiro vai ser um chef, nem todo chef vai ser um líder. “Quando nós colocamos o coração naquilo que fazemos, certamente teremos sucesso”, afirmou um dos presentes, professor universitário em cursos de Gastronomia. “Humildade e compartilhamento de conhecimentos são fundamentais, assim como o respeito ao alimento”, disse a coordenadora de um dos principais cursos de Gastronomia do país.

Durante o evento, o tema empreendedorismo foi recorrente. Os debates sobre formação profissional e os jovens estudantes de Gastronomia sempre terminavam nesse assunto, principalmente quando alguns chefs defendiam a importância de se ensinar business

management e noções de empreendedorismo nos cursos, pois “abrir o próprio negócio” é um

objetivo de carreira, possivelmente o principal, associado ao sucesso profissional.

Nesse sentido, participar desse Encontro foi muito enriquecedor para a pesquisa, pois foi possível conhecer melhor a discussão que se realiza entre os profissionais, suas aspirações e preocupações, ouvir docentes, coordenadores de cursos, proprietários de restaurantes, chefs e cozinheiros, estudantes, participar das oficinas e verificar como eles entendem o próprio trabalho, como ensinam, o que consideram ser importante transmitir para os jovens estudantes, como se promovem, entender alguns dos valores que norteiam seus trabalhos. Também ficou evidente como a questão de gênero aparece naturalizada neste tipo de acontecimento, uma vez que havia pouquíssimas chefs e cozinheiras mulheres, em um universo eminentemente masculino e branco. No cartaz de divulgação do evento, apenas duas figuras femininas apareciam, e somente um homem negro. Para minha sorte, uma das mulheres participantes acabou se tornando uma preciosa informante e uma amiga querida, justamente em um momento em que ela estava imprimindo novos rumos à sua carreira.

1.2.2. Entrevistas

Circunscrevi as entrevistas à cidade de São Paulo e, durante o período do doutorado sanduíche, fiz cinco entrevistas com brasileiros e brasileiras em Paris. A cidade de São Paulo é a maior metrópole do Brasil e da América do Sul. A oferta de restaurantes e estabelecimentos de alimentação é a maior do Brasil – tal oferta contempla a gastronomia de mais de 43 países. São Paulo também é o polo econômico mais dinâmico para os profissionais da área: dentre os

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restaurantes brasileiros que receberam duas estrelas Michelin em 2019 (foram apenas três), dois estão em São Paulo e um no Rio de Janeiro. Dentre os que possuem uma estrela, são cinco cariocas e nove paulistanos9.

De acordo com os dados da Rais 2018, apenas a cidade de São Paulo tinha 12,9% do total de trabalhadores formalmente empregados como cozinheiros no segmento de restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação no país. Enquanto a diferença entre homens e mulheres empregados nesse segmento no Brasil é da ordem de 32,3% de homens para 67,7% de mulheres, na capital paulista essa diferença é muito menor e a relação se inverte: são 51,8% homens e 48,2% mulheres. No capítulo 3, aprofundarei a discussão sobre as desigualdades de gênero nesse segmento, mas, por ora, é interessante notar que a capital concentra uma parcela significativa da força de trabalho e que esta possui algumas características diferentes do resto do país.

Conversar com os cozinheiros e cozinheiras revelou ser uma tarefa mais árdua do que eu inicialmente havia imaginado. São pessoas difíceis de contatar. Por um lado, seus horários de trabalho e rotinas dificultam interações sociais fora do local de trabalho. Por outro, a conversa ou a aproximação no próprio local de trabalho pareceu ser praticamente impossível.

Em um primeiro momento, fui a vários restaurantes e conversei com chefs e cozinheiros. Dei a eles meus contatos, anotei telefones, telefonei. Nenhuma resposta ou evasivas, encontros eram marcados e desmarcados, nenhum contato dessa natureza resultava em uma conversa. Fui a uma pizzaria, conversei com a proprietária e ela pediu que o chef e a cozinheira conversassem comigo durante seus intervalos, na própria pizzaria. Foram entrevistas diametralmente opostas. O chef, orgulhoso, falante. A cozinheira, tímida e reticente. Lição aprendida: entrevista no local de trabalho não funcionaria. Entrevista solicitada pelo patrão ou patroa também não.

Um desses encontros no próprio restaurante ocorreu em um pequeno estabelecimento no bairro do Paraíso, em São Paulo, área nobre, próxima à Avenida Paulista. Eu já conhecia o local e sabia que uma de suas principais “marcas” era sua pequena capacidade, apenas seis mesas e, portanto, atendia a um número limitado de clientes por dia. E mais: só uma cozinheira. Conversei com uma das proprietárias, irmã da cozinheira. Expliquei sobre a pesquisa e pedi uma entrevista. Para minha surpresa, a conversa com as irmãs durou duas

9 O Guia Michelin é considerado o guia gastronômico mais importante do mundo. Ele surge por iniciativa de

André Michelin, dono da fábrica de pneus, em 1900. Como uma forma de promover passeios automobilísticos pelo interior da França, o guia listava em ordem alfabética as cidades em cujas garagens e hotéis poderiam interessar ao motorista. Apenas em 1933 o guia passa a distribuir cotações aos restaurantes por toda França. O Guia confere uma, duas ou três estrelas aos melhores e mais sofisticados restaurantes do mundo. Receber três estrelas Michelin é considerado uma grande conquista e uma honra para um chef.

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horas, que passei ouvindo suas histórias de infância no Líbano enquanto elas me ofereciam tabule, hommus e babaganush. Algumas perguntas do roteiro foram respondidas, mas, em determinado momento tornou-se impossível continuar a conversa, pois elas criaram um diálogo próprio, com suas memórias. Sobrinhos e sobrinhas chegaram. Virou uma reunião familiar.

Diante das dificuldades para encontrar cozinheiros e cozinheiras, passei a acionar minhas redes pessoais, conversar com amigos e conhecidos para pedir contatos de pessoas que trabalhavam em restaurantes. Algumas entrevistas foram agendadas, algumas conversas desenrolaram. Mas a técnica da bola de neve não funcionou. Quando um entrevistado dizia “vou passar um contato” ou “vou falar sobre sua pesquisa com alguém”, eu nunca mais recebia uma mensagem ou uma resposta.

Discuto os pormenores das entrevistas, o contexto de sua realização, assim como faço comentários sobre os entrevistados no Anexo Metodológico II.

2. O desenho da tese

Nesta introdução, abordei os objetivos e os aspectos metodológicos da pesquisa de campo que compõem o corpo de análise da tese. Procurei discutir os parâmetros e orientações adotados para olhar para o mundo do trabalho de cozinheiros e cozinheiras, assim como a importância das relações de gênero, classe e raça no arcabouço analítico da pesquisa.

O primeiro capítulo será dedicado a discutir o trabalho em cozinhas. Apresentarei um histórico dessa ocupação a partir de material pesquisado, sobretudo na França, assim como um panorama desse mercado de trabalho e suas transformações em anos recentes no Brasil. Tendo como ponto inicial as descrições dos/as entrevistados/as, apresentarei os processos de trabalho realizados nas cozinhas profissionais e o conteúdo das ocupações distribuídas hierarquicamente (assistente, cozinheiro/a e chef).

O segundo capítulo é dedicado a pensar o ethos da profissão, as relações entre trabalho e formação profissional nesse segmento e as condições de trabalho (jornada, remuneração, aspectos de saúde etc.). Assim como há muitos séculos, a cozinha ainda se baseia em uma aprendizagem “artesanal”, em que um/a mestre toma um/a aprendiz e lhe ensina tudo o que sabe. O local de trabalho é também um local de ensino, e a qualificação profissional está intimamente relacionada às experiências profissionais, aos chefs, ao que se aprendeu onde se trabalhou. Abordarei a oferta de cursos profissionalizantes e de graduação na área da

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gastronomia, assim como seu impacto nesse mercado de trabalho e sua imbricação nas próprias relações de trabalho.

O terceiro capítulo se debruça sobre a divisão sexual do trabalho nas cozinhas profissionais contemporâneas. Considerando principalmente as entrevistas com homens e mulheres cozinheiros/as, descrevo como a divisão sexual do trabalho se expressa na separação de trabalhos de homens e mulheres, na cozinha doméstica e profissional, como o trabalho de preparo de alimentos constitui um “gueto” masculino, apesar da maioria de mulheres em suas fileiras, e como a construção social da cozinha profissional como um espaço masculino torna-o htorna-ostil para as mulheres, torna-o que se ctorna-oncretiza na ftorna-orma de váritorna-os mecanismtorna-os que as excluem dos postos de comando e chefias, e por consequência, do reconhecimento público e do prestígio.

Finalmente, o quarto capítulo é dedicado a um achado do campo que não estava previsto no desenho inicial da tese, os novos contornos do trabalho culinário e o “empreendedorismo gastronômico”. No cenário mais amplo das mudanças no mundo do trabalho, e no caso específico do Brasil, de ataque às leis trabalhistas e enfraquecimento das relações já precárias, o trabalho por conta própria aparece como uma alternativa cada vez mais viável e revestida de um discurso “empoderador” muito sedutor. Especialmente para as mulheres, como veremos, a atividade autônoma oferece mais alternativas para a conciliação entre o trabalho doméstico e o profissional, remunerado e não remunerado, e articula a ideia de um trabalho mais autoral, mais criativo, mais associado à sua própria identidade, mesmo quando ele representa, na prática, mais risco, mais tempo e, por fim, mais trabalho.

Finalmente, procuro retomar os objetivos propostos na conclusão da tese. Esta tese também conta com dois anexos metodológicos, que trazem os pormenores e comentários sobre as entrevistas e os/as entrevistados, assim como as informações obtidas a partir da Rais.

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Capítulo 1 - De onde vêm os/as

cozinheiros/as?

“Às cozinheiras a cozinha burguesa e doméstica. Aos cozinheiros a alta cozinha codificada por Carême no início do século 1910” (DROUARD, 2015, p.36).

Este capítulo começa com uma recapitulação histórica do trabalho dos cozinheiros como o conhecemos hoje, desde as cozinhas dos castelos do Antigo Regime na Europa, principalmente na França. Nesse histórico, analiso o surgimento do restaurante enquanto instituição moderna e a importância que ele passa a ter na sociedade burguesa pós-Revolução Francesa, que mantém muito de seus elementos distintivos e característicos até os dias de hoje, pelo menos no mundo ocidental.

Em seguida, trago essa história para o lado de cá do Atlântico, retomando alguns elementos da história da alimentação no Brasil e o surgimento dos restaurantes aqui, principalmente nos emergentes centros urbanos do Sudeste (São Paulo e Rio de Janeiro), para refletir sobre a atividade dos cozinheiros dentro das nossas especificidades de mercado de trabalho, até a atualidade.

A segunda parte do capítulo refere-se às descrições dos processos de trabalho, conforme detalhadas e narradas pelas pessoas entrevistadas, considerando três ocupações na hierarquia da cozinha: assistente ou auxiliar, cozinheiro/a e chef. A descrição dos processos de trabalho é fundamental para ilustrar as discussões que serão realizadas nos capítulos subsequentes e para dar ao/à leitor/a uma ideia do que consiste, de fato, o trabalho em cozinhas profissionais.

1. Histórico da profissão

Na história da alimentação, há muita ênfase em história antiga e medieval, como sendo esse um espaço temporal onde se cria um “passado comum” de todos os países europeus, em que nascem os “mitos de origem” de diversos alimentos e pratos, que mais tarde se tornarão elementos constitutivos das identidades nacionais. Essas histórias e crônicas, algumas

10 Tradução livre do original: “Aux cuisinières la cuisine bourgeoise et de ménage. Aux cuisiniers la haute

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anedóticas, que recontam os mitos originários dos alimentos são muito consumidos nos dias de hoje. Trata-se de uma história profundamente eurocentrada.

Essa supervalorização da história da alimentação e de costumes europeus, sem dúvida mais uma herança do nosso passado colonial e do próprio pensamento colonial, que sobrevive até hoje, ainda está associada à nossa noção de civilização. Em “O processo civilizador”, Elias (1994) mostra como se dá a educação do gosto, como ele se transforma e vai sendo construído com o tempo. Ele afirma que “o comportamento social e a expressão de emoções passaram de uma forma e padrão que não eram um começo, que não podiam em sentido absoluto e indiferenciado ser designado de ‘incivil’, para o nosso, que denotamos com a palavra ‘civilizado’” (ELIAS, 1994, p.73). Ao avaliar os chamados “costumes medievais”, Elias observa a centralidade dos atos de comer e beber, pois era à mesa que se dava o convívio social, e daí a importância de livros e manuais que prescreviam os comportamentos para tais ocasiões.

Na segunda metade do século 17, na França, os costumes, comportamentos e modas da corte espalhavam-se continuamente por classes médias altas, onde eram imitados e mais ou menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. No caso francês, "a

intelligentsia burguesa e grupos importantes da classe média foram atraídos relativamente

cedo para a sociedade cortesã" (ELIAS, 1994, p.51). Ainda que o Antigo Regime se baseasse na diferenciação social que se assentava sobre a aristocracia e a ascendente burguesia ou classes médias, ao longo de muitos anos a presença burguesa se fez presente na corte, e seu poder aquisitivo garantia que ela acessasse os mesmos bens que a nobreza orgulhosamente exibia (obras de arte, roupas e vestimentas, móveis e imóveis, cavalos, cachorros etc.).

A burguesia e as classes médias procuravam mimetizar os comportamentos aristocráticos como forma de se diferenciarem dos estratos "inferiores", dos plebeus comuns, dos camponeses. Elias observa que civilisé se refere ao termo que os membros da corte utilizavam para designar seus próprios comportamentos, o refinamento de suas maneiras sociais, quando comparavam-se com as maneiras de indivíduos mais simples e socialmente inferiores” (ELIAS, 1994, p.54).

A sociedade de corte francesa é a figuração central da estrutura de dominação aristocrática, nas relações de poder e interdependência que se estabelecem entre os indivíduos e, portanto, na configuração (ELIAS, 2001). As interdependências suscitadas pela luta entre a aristocracia e a burguesia geram uma conduta baseada no crescente autocontrole das pulsões e impulsos naturais. O comportamento individual está exposto à vigilância permanente de todos os concorrentes que, através da observação, tratam de adivinhar as intenções ou

Referências

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