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Capítulo 2 Como se forma o/a cozinheiro/a?

3. O trabalho dos cozinheiros

3.1. Jornada de trabalho

Como descrevi até aqui, segundo relatos dos próprios trabalhadores, os processos de trabalho na cozinha são complexos e diferenciados, dependendo do tipo de restaurante e culinária que se realiza.

Os trabalhadores e trabalhadoras descrevem sua jornada de trabalho nas cozinhas como horas seguidas em pé, em ambiente quente e abafado (geralmente em função das várias bocas de fogão e fornos acesos ao mesmo tempo). Em muitos locais, a cozinha não possui janelas, para evitar vento, poeira e o resfriamento da comida. Os restaurantes mais modernos contam com cozinhas mais abertas, com janelas basculantes que permitem a circulação do ar, ar-condicionado ou ventiladores, até algumas que permitem a entrada de iluminação natural, tendo paredes de vidro, as “cozinhas abertas”, visíveis.

122 Matias, 24 anos, cozinheiro.

Entretanto, essas condições não são homogêneas. Ao longo da pesquisa, encontramos cozinhas de diversos tamanhos, que correspondem à quantidade de funcionários que lá trabalham, assim como à quantidade de clientes atendidos. Por exemplo, o restaurante das irmãs libanesas tem uma cozinha minúscula, onde Samira trabalha apenas com uma ajudante.

Aqui a cozinha é pequena. Mas eu me acostumei tanto com ela! As coisas tão embaixo da geladeira, os temperos tão em cima. E tá tudo ali na mão123.

Idealmente, a jornada do restaurante se dá em dois turnos: o almoço e o jantar. O primeiro começa pela manhã, a partir de 7h ou 8h, dependendo do movimento (quantidade de pratos servidos), com o recebimento de mercadorias, conferência e a produção – mise-en-

place. Geralmente, antes do serviço do almoço é oferecido o almoço dos funcionários e

depois do serviço, a cozinha é limpa. Esse turno terminaria por volta das 15h.

O turno do jantar começa a partir das 17h, com a produção e o mise-en-place, aproveitando algumas coisas do serviço do almoço. Depois que o restaurante fecha, é feita uma limpeza mais pesada para o dia seguinte. Esse serviço vai até meia-noite ou uma hora da manhã, mais ou menos, mas houve relatos de sair do restaurante 2h ou 3h da manhã – principalmente na confeitaria, já que a sobremesa é o último prato servido.

O certo seria que cada turno fosse realizado por uma equipe diferente, mas isso não é comum. Geralmente, a mesma equipe faz todo o serviço do almoço e do jantar. Isso significa jornadas que começam às 7h da manhã e vão até a meia-noite.

... porque quando você tem duas equipes, você tem dois padrões. É muito difícil você manter um padrão quando você tem duas equipes. Quando você tem uma só, é sempre aquela pessoa que faz aquilo, então você consegue manter um padrão. Normalmente, um restaurante de alta gastronomia não tem duas equipes. Quando tem, são duas equipes de estagiários. Mas tem que ter alguém que está ali o tempo todo, alguém pra supervisionar o padrão124.

Em alguns casos, há estabelecimentos que adotam a jornada flexível, em que há um “descanso” para os funcionários entre o almoço e o jantar, de uma ou duas horas.

Matias: Sempre dois turnos, sempre trabalhei das 8h da manhã até o final do turno, e eu sempre saía antes, porque eu era responsável pela praça, aí eu saía tipo 3h da tarde eu saía, aí voltava às 6h e ficava até meia-noite.

Entrevistadora: Você sai as 3h da tarde, você vai pra onde? Pra ter que voltar às 6h?

Matias: Eu me acostumei a ir pra parques, sempre tenho um livro na bolsa, fico em parque, jogado na rua. Ou, aqui em São Paulo tem uma coisa legal,

123 Samira, 55 anos, cozinheira. 124Mariana, 31 anos, cozinheira.

que eu comecei a ir pra biblioteca. Então vou lá pra Cultura na Paulista, agora não mais, mas antes ia pra Paulista, dormia na Cultura mesmo, tinha alguma coisa naquele lugar que eu achava gostoso.

Entrevistadora: Você entrava às 8h da manhã, saía às 3h, voltava às 6h e ia até...

Matias: Até acabar. Meia-noite, 1h da manhã, não tem... Já fiquei, já cheguei a tipo, no outro dia, já trabalhei em restaurante que teve feijoada, no outro dia teve feijoada. Eu fiquei cortando linguiça até 4h da manhã125.

Agora não se contrata mais, quase não se contrata mais, pra um turno só. O que que eles fazem? Isso pra mim é um caos. As pessoas têm que entrar no restaurante. Os cozinheiros entram no restaurante 9h da manhã, fazem o turno do almoço até 1, 2h da tarde, são dispensados, dormem, teoricamente, duas horas nos almoxarifados, ou ficam na rua, enfim, até às 5, voltam às 5 e vai até as 2h da manhã126.

E assim, o cara fez uma proposta pra mim, parece que eu não quero trabalhar. Mas não é isso. É que é cada absurdo que a gente escuta. É melhor vender balinha no sinal, mil vezes. Porque ele falou assim "olha, a proposta é essa: você vai ganhar 1.200, vai fazer o cardápio de sobremesa dos dois restaurantes", que é um colado com o outro, a cozinha tem um corredor que integra, "vai fazer o cardápio das duas casas e vai cuidar da equipe das duas casas. 1.200 mais caixinha". A caixinha não ia dar isso tudo porque é um restaurante novo. Ele disse "Mas, se você quiser dobrar, seu salário vai pra 1.600". (...) Em dois restaurantes ao mesmo tempo. Eu até pensei em denunciar. Porque ele não tá pagando hora extra, o restaurante é novo, não sei como é que tá a caixinha. Não tem hora de almoço. As pessoas que dobram não fazem o intervalo de 3 horas, que tem que fazer, ele não tava liberando. Porque um dos restaurantes era aberto o tempo todo, então você não tinha como fazer intervalo de 3 horas127.

A chamada “jornada flexível” ou “móvel” corresponde ao trabalho nos dois turnos, com um intervalo de duas a três horas no meio do dia. Entretanto, em uma cidade grande como São Paulo, em que o tempo de deslocamento é alto, principalmente considerando que as pessoas não necessariamente trabalham perto de onde moram, esse tempo de “descanso” no meio do dia não representa um descanso, realmente.

Porque não tem um ambiente pra descanso, você acaba ficando lá no restaurante. Quando fala dobra, e aí tem esse intervalo, você fica na rua, ou então você fica... porque não tem uma estrutura pra deixar você acomodado128.

Diversos trabalhadores narraram a exaustiva e desgastante experiência de trabalhar dois turnos seguidos e as consequências que essa jornada traz para sua saúde e para a vida

125 Matias, 25 anos, cozinheiro. 126

Lenice, 30 anos, chef.

127 Manuela, 32 anos, confeiteira. 128 Manuela, 32 anos, confeiteira.

pessoal. Não são apenas as horas que ocupam quase todo o dia, mas os efeitos do cansaço no tempo que resta que também tem consequências.

Chegar a trabalhar até 3h, 4h da manhã. E 6h, 7h, não, minto, umas 8h tem que voltar, tem que estar de volta. (...) Já cheguei trabalhar 26 horas direto. (...) Não é começar e parar. Lógico, você sentava, você almoçava, jantava, mas assim, você acordar 8h da manhã, ficar até 9h do outro dia. (...) Não que confunde, você vai perdendo um pouco, vamos se dizer, o foco. Você precisa dormir, você precisa descansar, a sua mente precisa descansar e você voltar pro seu dia normal. Quando você força muito, você perde, fica mais fraco. Você se sente fraco. Ah eu quero fazer isso rapidinho, não dá. Você tá cansado129.

Você tem que entrar lá às 7h da manhã e sair às 2h da manhã. E eu comecei a fazer isso, quase que involuntariamente. E aí eu acabei sem vida. Acabei com um casamento, acabei com a minha vida pessoal, eu não fazia mais nada, então eu resolvi sair. É, não fazia sentido pra mim. Mesmo que eu não estivesse no local de trabalho, eu tava em casa no celular, com funcionário me ligando, com meu sous-chef desesperado e a madrugada. Então eu acabava dormindo cinco horas por noite, quando eu conseguia dormir, e aí no outro dia de manhã eu tinha que estar lá também, fazendo os dois turnos, então eu resolvi que não é pra mim130.

Tem vários lugares que o cara fica praticamente o dia inteiro. Eu como chef e

sous-chef ficava o dia inteiro e não tinha horário, não batia cartão, não tinha

nada. Trabalhava pelo menos 12 horas por dia. (...) No meio a gente fazia pré-produção pra noite ou pré-produção pro dia seguinte131.

Meu estágio aqui [na França] foi remunerado, mas eu trabalhava das 8h da manhã até 3h da tarde, pausava, depois eu entrava às 5h da tarde e ficava até 1h da manhã132.

Jornadas que se iniciam de manhã cedo e adentram madrugadas, de trabalho contínuo, intenso e em pé, com uma pausa mais longa (duas ou três horas) no meio do dia, que não permite que os trabalhadores voltem para casa, sequer descansem em condições decentes (“dormir em almoxarifados” ou em livrarias não são condições para ninguém descansar), podem explicar em parte a alta rotatividade no setor e alguns tipos de adoecimento psíquico e fadiga.

Também são comuns as práticas ilegais, como “bater o ponto”, ou seja, encerrar o expediente, e continuar trabalhando, sem ter as horas contabilizadas, nem sequer para o banco de horas.

129 Valdemar, 34 anos, chef. 130 Lenice, 30 anos, chef..

131 Daniel, 32 anos, chef. e proprietário. 132 Mariana, 31 anos, cozinheira e proprietária.

Tinha essa questão, eles faziam a gente bater ponto no intervalo da gente, no almoço, e voltar. A gente almoçava em pé, nas docas. Tinha uma questão que me deixava irritada, era... eu trabalhava à noite, e depois de você ter feito um serviço genial, ter servido 700 a mil pessoas por dia, aí você tinha que lavar forno e coifa. E você só era liberado se uma das sous-chefs passasse na sua praça, olhasse, que nem hotel, olhasse, passava o dedo, tá limpo, pode ir. Pode ir. O cartão de ponto não contava não, não tem essa. Só saía depois que elas liberassem. Eu achava o cúmulo. Nisso a gente ia até 3h da manhã, todo dia. Eu entrava umas 16h133.

Os restaurantes, na medida em que se encontram intimamente associados ao lazer, precisam estar abertos nos dias de descanso da maior parte da população. Eles costumam ter maior movimento aos fins de semana e feriados, porque é justamente quando as famílias de determinados estratos sociais vão desfrutar uma refeição juntos.

São poucos os estabelecimentos que não abrem aos domingos, pelo menos durante o almoço, justamente o dia tradicional que as famílias vão comer fora. Em geral, fecham aos domingos os restaurantes que possuem público cativo de “hora de almoço”, ou seja, que se localizam próximos a empresas ou bairros comerciais. As escalas de folga para os funcionários permitem que esses descansem apenas um dia (jornada 6 por 1: trabalha seis dias e descansa apenas um), muito raramente aos fins de semana. Como há uma obrigação legal de que os funcionários tenham folga ao menos um domingo por mês, nesse caso se faz um rodízio.

Todos os dias. Inclusive aos fins de semana. Inclusive e principalmente aos fins de semana e feriado. Então, realmente, você quando tem uma folga, tem uma folga na segunda-feira que você não faz nada, e nessas duas horas de folga você também não faz nada, né, porque você não vai embora pra casa134.

Dois turnos de trabalho, durante a semana [o restaurante] fecha das 3h até às 6h é fechado. E de fim de semana, sábado é direto e domingo é só horário do almoço. (...) Domingo não porque é meio que tem, como eu falei, você tem que dar um domingo de folga, um domingo de folga e um dia na semana pelo menos. Então segunda-feira é fechado e domingo eles têm que revezar135.

Esse esquema de trabalho também tem consequências para a vida pessoal dos trabalhadores, que não conseguem estar livres para passar tempo com a família no momento em que a família está em casa. Não conseguem se dedicar ao próprio lazer, não conseguem descansar, porque, afinal, a folga durante a semana os permite cuidar daquilo que não conseguem nos dias de trabalho ou, em muitos casos, apenas descansar.

133

Manuela, 32 anos, confeiteira.

134 Lenice, 30 anos, chef. 135

Mais do que eu gostaria, às vezes eu queria tipo assim "ah eu vou pra praia, curtir uma praia sozinha" não posso. Esquece, surreal. É uma vontade de um dia poder fazer isso. Porque hoje eu não posso. Eu mais que quero ficar com elas [as filhas]. Minha mãe, ah, sai, vai com seus amigos. (...) Se eu quero ir pra uma festa, eu vou. Mas eu prefiro ficar com elas. Mais gostoso acompanhar elas crescendo, minha filha fez uma arte, bateu a boca, quebrou o dente... a minha vida é cheia de adrenalina136.

Há outra variável dentro da cozinha que precisa ser considerada para entender como se dá a jornada de trabalho: a intensidade do trabalho, que está relacionada à quantidade de trabalhadores no mesmo turno. Uma equipe composta de três pessoas que serve 100 refeições em um período trabalha intensamente e sob muito mais pressão do que se fosse uma equipe de cinco ou seis, durante o tempo em que dura o serviço. Os profissionais precisam estar muito bem articulados e dispostos a trabalhar sem parar, isto é, em condições físicas para tal.

Por isso que eu falei pra você desse negócio de trabalhar em equipe, é se ajudar. Às vezes a pessoa tá supertranquila lá, ela fez tudo que precisava, mas a pessoa do seu lado tá se matando pra fazer, você pode descascar uma batata pra ela, sabe? Não é parar e eu fiz o que eu tinha que fazer, fiz o meu trabalho, isso aqui. Porque meu trabalho nunca acaba. Uma vez uma mulher tava falando que falou pro fulano, que é o chefe, falou que tava tranquilo lá onde ela tava, aí ela foi ver o que que o outro tava precisando. Ele falou, não, mas a geladeira tá uma bagunça, você pode arrumar. Não para o trabalho aqui, não tem essa de acabou, não tenho trabalho. Você pode arrumar outra coisa pra fazer. Nem que seja ajudar o próximo. Você pode ir lá arrumar o congelador, etiquetar coisa nova137.

Não, você pausa lá no restaurante mesmo, você estica a perna, olha seu celular, tira um cochilo, come alguma coisa e é isso. E muitas vezes eu nem conseguia tirar essa pausa, porque me davam tanta coisa pra fazer que eu não tinha habilidade de fazer rápido, porque eu estava aprendendo ainda, que eu nem tirava pausa138.

Em um contexto em que o trabalho precisa ser planejado e executado em equipe, não há espaço para tempo ocioso, nem para descanso não programado. A questão do trabalho em equipe é muito importante para o trabalho nos restaurantes, pois é necessária uma certa harmonia entre todos, para que os pratos saiam juntos, para que todos os passos da execução sejam realizados conforme as prescrições das “fichas técnicas” (receitas) ou conforme a orientação do chef.

Nesse sentido, quando um funcionário deixa de ir trabalhar, ele/a “sobrecarrega” os colegas, que terão que dividir o trabalho do/a faltante entre si, pois todas as funções precisam ser executadas.

136 Elisa, 28 anos, cozinheira. 137 Carina, 18 anos, estagiária. 138 Mariana, 31 anos, cozinheira.

3.2. Assédio

Para discutir práticas abusivas e de assédio moral e sexual, é importante salientar que, do ponto de vista metodológico, trata-se de um assunto muito complicado de abordar em entrevistas. Como pretendo demonstrar, o assédio é tolerado nas cozinhas e considerado um comportamento aceitável na medida em que se relaciona ao ethos dos cozinheiros e corrobora a ideia de que apenas os fortes sobrevivem a esse trabalho. Assim, admitir ter sofrido algum tipo de assédio ou violência, narrar acontecimentos em que a pessoa precisa se colocar como vítima e que se viu impotente para reagir é muito difícil para esses profissionais. De fato, foi um assunto delicado, mas que apareceu algumas vezes por iniciativa do/a entrevistado/a, até em tom de vantagem, de heroísmo ou de anedota. Também foram muitos os casos em que o/a entrevistado/a falava de algo que aconteceu com um conhecido ou um colega, com outra pessoa, “mas não comigo”.

Nas cozinhas predomina um sentimento de pertencimento que se baseia em uma cultura profissional do “mais forte”. A natureza física do trabalho, carregar caixas e panelas pesadas, as longas jornadas de pé constituem um ethos profissional “somente para os fortes”, em que é preciso ter “paixão”, “amar muito o que faz”. Nesse sentido, a agressividade, as brincadeiras sexistas, as práticas discriminatórias e o assédio, em última instância, são entendidos por alguns profissionais como uma forma de garantir que apenas “sobrevivem” aqueles que realmente querem permanecer na cozinha.

Eu tenho colegas, eu não (graças a deus), mas eu tenho colegas que quase apanharam ou apanharam, fora ofensas mesmo, tipo xingamento. (...) Aqui

[França] era xingamento, era grito. Se você faz alguma coisa errada, você

era um merda, não serve pra nada, você deveria desistir dessa profissão. Isso que eu fico muito chocada, que as pessoas aqui, que fazem estágio, elas têm o quê? 15, 16. A maioria tá no liceu profissionalizante. São muito novos. Eu que já era mais velha fiquei muito abalada, imagino uma pessoa mais nova. Aí eles dizem que cozinha é pros fortes, mas eu não acredito nesse método de seleção139.

Isso é legal, mas em relação ao tratamento dos chef. com os cozinheiros, com os estagiários, era aquele tratamento à base de grito, de assédio mesmo. Teve um dia que eu presenciei, não comigo, mas com uma menina, uma estagiária do Rio, uma carioca. Ela tinha... já faz tempo que ela tava estagiando lá e ela chegou meio que atrasada assim, a única vez que ela chegou atrasada, tipo 20 minutos de atraso, alguma coisa assim. E eu vi o

chef. de cozinha, não me lembro o nome dele, esculachar ela. Falar um

monte, humilhar, gritar, como se... só faltou bater, sabe?140

139 Mariana, 31 anos, cozinheira. 140 Manuela, 31 anos, confeiteira.

Mas vi pessoas que se tornavam estouradas. Claro que você tem que compreender que existe uma cobrança. Quanto mais alto é o público (alto no sentido financeiro mesmo) o público que você trabalha, pior é a cobrança. Cobrança de atitude, cobrança de qualidade. Então isso é tenso, é muito tenso. Mas você começa a compreender que, tenso ou não, tem que resolver, tem que funcionar. Agora, tem homens que eu conheci que eram estourados141.

Considerando o ethos dos/as cozinheiros e das características que são valorizadas nesse ambiente profissional, há uma zona cinzenta quando o assunto é assédio e violência. Entretanto, conforme a conversa avança, aos poucos, algumas pessoas vão se sentindo mais à vontade para compartilhar suas histórias.

Em uma cultura profissional que valoriza a resistência física, a capacidade de suportar a pressão e condições adversas, determinadas situações são difíceis de serem caracterizadas como assédio ou um comportamento não aceito pelo grupo. Mais do que isso, viver uma situação de violência ou assédio e, mesmo assim, continuar, torna-se um valor. Os entrevistados de Arnoldsson (2015: 4), que trabalhavam em restaurantes sofisticados, referiam-se ao “mito” de que ser capaz de suportar o assédio e o que o autor chama de

bullying142 é parte da profissão, e que para aprender as coisas boas é preciso aguentar todas as

ruins que vêm junto. Assim, ter muita experiência na cozinha significa ter aturado muitas situações difíceis, ter conquistado respeito, um certo lugar, e isso, de alguma maneira, credencia essa pessoa a reproduzir os mesmos comportamentos que sofreu quando estava em outra posição. Em nome de ter uma experiência no currículo ou em troca de aprender com um/a chef. famoso/a, muitos/as cozinheiros/as ou “chef. em treinamento” estão dispostos a suportar abusos (BLOISI, HOEL, 2008).

Arnoldsson (2015) observou que principalmente na hora do serviço (quando o restaurante está cheio e os trabalhadores tendem a estar mais estressados), em função desse forte elo de pertencimento profissional, muito do que se diz chocaria outsiders. Segundo seus entrevistados, coisas que não seriam aceitas em outros grupos ou ambientes profissionais são

141 Décio, 48 anos, professor de Gastronomia.

142 Arnoldsson utiliza o termo bullying para se referir ao assédio no trabalho. Ele afirma que nos países

escandinavos há pesquisas sobre bullying desde a década 1990, que começam no ambiente escolar, mas que rapidamente passam para as políticas sociais de regulação das condições de trabalho. Sua definição de bullying, entretanto, é muito próxima do que entenderíamos como assédio. “Einarsen et al. (2003b) provides a definition of bullying that is widely used today: “Bullying at work means harassing, offending, socially excluding someone or negatively affecting someone’s work tasks. In order for the label bullying (or mobbing) to be applied to a particular activity, interaction or process it has to occur repeatedly and regularly (e.g. weekly) and over a period