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O PODER PELA VIOLÊNCIA. A era do terror: o mundo depois de 11 de setembro.

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Setembro. Rio de Janeiro: Campus, 2002.

Capítulo 2

O PODER PELA VIOLÊNCIA:'

A REINVENÇÃO DO

EXTREMISMO ISLÂMICO

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mido explicitamente sua autoria.* Os perpetradores, tanto suicidas quanto sobreviventes, não chegaram ao ponto de con-fessar seu crime ou receber o crédito pelo golpe heróico que acreditavam ter desfechado contra os símbolos do poderio fi-nanceiro e militar da América. E como se preferissem que o terror e a carnificina falassem por si. Quando uma entrevista gravada de Osama Bin Laden foi ao ar na televisão no dia 7 de outubro, dia do início dos ataques aéreos das forças america-nas e britânicas contra alvos afegãos, o líder da Al-Qaeda limi-tou-se a louvar os mártires por terem atingido os Estados Uni-dos com a "espada do islã", como punição pela ocupação das terras santas muçulmanas por americanos e israelitas.

Para este autor, um historiador do Oriente Médio que cres-ceu naquela parte do mundo, a mensagem de violência de Bin Laden chega como um grave lembrete do que se tornou a re-gião — e não só porque uma atrocidade de magnitude sem precedentes foi cometida por alguns de seus habitantes contra

* Em 1 3 de dezembro de 2001, o envolvimento de Osama Bin Laden no planejamento e execução dos ataques terroristas contra o World Trade Center e o Pentágono foi considerado comprovado. Os Estados Unidos divulgaram uma fita de vídeo em que o líder da Al-Qaeda disse que ele e "nossos irmãos" ficaram muito felizes com a notícia de que os ataques haviam sido executados e confirmou sua participação nos atenta-dos, discutindo alguns detalhes de sua preparação e execução: "Nós calculamos antes o número de pessoas que seriam mortas com base na posição da torre." No entanto, a opinião pública, principalmente no Oriente Médio, ficou dividida; ainda havia quem acreditasse que a gravação fora forjada. [Fonte: www.estadao.com.br] (N.T.)

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os Estados Unidos, que é tanto demonizado nâTegião quanto sedutor para muitos que lá vivem. Nem porque tal ato confir-mou os piores estereótipos de violência e fanatismo há muito associados ao islã e ao Oriente Médio; mas também porque tamanha barbaridade revelou muito sobre o inegável e alar-mante crescimento do extremismo religioso no mundo mu-çulmano, tendência intimamente relacionada à torturada ex-periência histórica da transição para a modernidade.

Há um esforço admirável nos tstados Unidos e em outras sociedades ocidentais no sentido de distinguir o extremismo da corrente oficial de crenças e práticas islâmicas. A presença de muitas comunidades muçulmanas no Ocidente exerce, por si só, um efeito educativo e salutar^Todos nós, imagino (quais-quer que sejam nossa situação e perspectivas), gostariam de crer que Bin Laden, junto com a rede de sua Al-Qaeda, não passa de uma anomalia grotesca. Se pudéssemos acreditar nis-so, nos sentiríamos mais seguros, além de ser um bom augúrio para o diálogo — e coexistência — das culturas e sociedades muçulmanas e não-muçulmanas. Contudo, essa última mani-festação de extremismo islâmico não pode ser isolada de pro-blemas mais amplos e profundos tanto do próprio Oriente Médio quanto da essência da política ocidental — e americana — com relação à regiãoj

Na busca de um contexto histórico para o atual surto de agressividade, podemos apelar não só para a tradição de obser-vação racional tão apreciada no Ocidente como para os repeti-dos apelos do Corão à razão. A outrora florescente tradição de humanismo e receptividade a outras culturas no mundo islâmico também poderia servir como ponto de partida Ironi-camente, a terra que hoje é o Afeganistão, atualmente um dos mais sofridos e brutalizados países do mundo, já foi testemu-nha de um brilhante e enriquecedor intercâmbio entre civili-zações. Foi lá que as culturas persa e budista convergiram, dando

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origem a uma tradição humanista de coexistência. Mais tarde, Herat, que constava com destaque da lista de alvos dos bom-bardeiros americanos no último trimestre do ano, foi, no sécu-lo XV, o centro de \jmà expsécu-losão de criatividade nas artes, literatura, arquitetura e ciência — comparável, em sua abran-gência e na qualidade de suas realizações, à Renascença que se encontrava em curso no sul da Europa mais ou menos no mes-mo período. Em contraste simbólico, no primeiro semestre do ano o Talibã, em uma evidente demonstração de fanatismo e ignorância, destruíra as magníficas efígies do Buda na antiga cidade de Bamiam, na parte central do país.,

Ao procurar compreender esse contraste, não podemos deixar de ver o fenômeno do Talibã como o resultado final de uma falha arraigada na própria estrutura do país. As potências coloniais européias do século XIX, junto com as superpotên-cias do século XX, têm muito pelo que responder. As. regras do Grande Jogo, como foi denominada a rivalidade entre In-glaterra e Rússia, determinaram que o Afeganistão ressurgisse como um amortecedor. Para tanto, porém, era preciso criar ,um novo país, que se encontrava fragmentado pelo idioma, etnicidade, vassalagens tribais, credo religioso, geografia e ex-periências culturais e históricas. O resultado nunca chegou a submeter-se por completo aos desejos das potências colo-niais, nem jamais integrou-se totalmente como um Estado-nação moderno. Quando, no final do século X X , essas falhas estruturais cederam ao peso de ideologias antagônicas e vi-ram-se expostas aos caprichos das rivalidades entre as super-potências, o rígido e raivoso islã do Talibã emergiu como a única força capaz de manter o Afeganistão coeso. Sob esse aspecto, o país refletiu a dolorosa história de grande parte do mundo muçulmano pós-colonial, exibindo os extremos da militância religiosa que assoma no horizonte de tantas socie-dades islâmicas

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fO surgimento do construto que chamamos de extremismo

islâmico, com seu pendor para provocação, ressentimento e violência, tem origem na história da sensação de declínio dos muçulmanos e seu encontro infeliz com a dominação ociden-tal / É interessante lembrar a freqüência com que o Oriente Médio, como parte do mundo muçulmano, tem sido varrido por ondas de violência em sua história recente. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a área que se estende do Egito e da Turquia, no oeste, ao Afeganistão, no noroeste, e o Iêmen, no sul, sofreu pelo menos dez guerras mais vultosas — isso, sem contar com as atividades americanas em solo afegão após 11 de setembro. As baixas chegaram à casa dos milhões. Popula-ções inteiras foram dizimadas, sociedades extirpadas, estrutu-ras políticas demolidas — tudo em escala maciça. Três das guerras da região foram contra potências ocidentais (os ata-ques franco-britânicos ao Egito durante a crise de Suez, em

1956; o longo e derrotado esforço da União Soviética para subjugar o Afeganistão, na década de 1980; e a campanha, li-derada pelos Estados Unidos para libertar o Kuwait do Iraque, em 1990-91); Israel e seus vizinhos árabes travaram cinco guer-ras (1948, 1956, 1967, 1973 e 1982); Iêmen e Líbano sofre-ram guerras civis prolongadas; e o Iraque e o Irã digladiasofre-ram- digladiaram-se durante oito anos. Os efeitos transformadores dessas cridigladiaram-ses vêm assombrando as últimas gerações no Oriente Médio. Em toda a região, as pessoas ficaram ainda mais decepcionadas com as ditaduras profundamente arraigadas em seus próprios paí-ses, o colapso das instituições democráticas, uma retórica na-cionalista oca e a falência de suas economias^

Ivluitos atribuem a culpa, direta e indireta, às potências ocidentais. Seja com base na realidade histórica ou em uma percepção distorcida, responsabilizá-las faz sentido sobretudo no contexto de um Ocidente poderoso e um Oriente Médio

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subjugado. Desde o tempo das potências coloniais européias, no século XIX, até as intervenções mais recentes das superpo-tências, verifica-se um padrão de presença diplomática, mili-tar e econômica vinculando ao Ocidente o destino do Oriente Médio e seus recursos. Fossem motivadas pelo petróleo, por alguma estratégia mais ampla ou pelo apoio a Israel, as potên-cias ocidentais ou estiveram envolvidas ou se percebia que es-tavam por trás da maioria crises políticas da região,

Por conseguinte, aos olhos das novas gerações da região, a imagem do Ocidente (e sobretudo dos Estados Unidos) so-freu uma mudança radical para pior. Há muito se perdeu a idéia de ianques benfazejos, que instituíam escolas, universi-dades e hospitais, distribuíam alimento e apoiavam empre-endimentos de cunho nacionalista. Em seu lugar surgiu o fascí-nio pelo esplendor da cultura popular dos Estados Unidos, que só fez intensificar-se graças a Hollywood e à tecnologia de ponta do país — computadores, videogames e antenas parabólicas. En-tretanto, em uma reviravolta paradoxal, à medida que cresciam as filas diante dos consulados americanos em busca de vistos de entrada, uma nuvem de desconfiança e ressentimento contra os Estados Unidos também se instalou sobre a região. O povo do Oriente Médio começou a ver a sociedade americana pelas len-tes das comédias televisivas e programas de computador. Para muitos olhos desacostumados, os Estados Unidos pareciam ser o centro de um mundo ganancioso, materialista e egoísta, obce-cado pela violência e promiscuidade. O irrestrito apoio ameri-cano a Israel, seu endosso de regimes impopulares e seus jatos de combate sobrevoando o Oriente Médio só fizeram contri-buir para a intensificação dos sentimentos antiamericanistas.

2.

A desconfiança com relação ao Ocidente recrudesceu em de-corrência da maneira problemática como o Oriente Médio

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improvisou sua própria versão da modernidade-"Desde o prin-cípio do século XX, a ocidentalização vem transformando es-tilos de vida e expectativas. Entretanto, apesar de uma inegá-vel dose de crescimento e avanço material, o Oriente Médio de hoje, pela maioria dos indicadores econômicos, ainda é uma das regiões menos desenvolvidas do mundo. Enfrenta uma batalha interminável contra um falho planejamento centrali-zado, altos índices de natalidade, uma distribuição de riqueza assimétrica, altas taxas de desemprego, corrupção desenfrea-da, burocracias ineficientes e problemas ambientais e de saú-de. A frustração, endêmica entre as classes urbanas jovens (ge-ralmente filhos de imigrantes rurais que vieram para as cida-des em busca de uma vida melhor e uma renda mais alta), é uma resposta para tais enigmas..

fcara a população do Oriente Médio, cada vez mais jovem em virtude dos elevados índices de natalidade, desarraigada de seu contexto tradicional e privada dos privilégios utópicos que vê ao seu redor e nas telas dos televisores mas não pode ter, o espaço familiar e reconfortante do islã constitui uma alternativa acolhedora. Orações diárias, sermões às sextas-fei-ras, grupos de estudo do Corão, caridade islâmica — todos esses elementos fazem parte desse espaço. Todavia, aí tam-bém se incluem as manifestações de rua e os panfletos clan-destinos, com sua mensagem contrária ao sistema estabeleci-do, anti-secular e anti-sionista.

A.o lidar com essas multidões turbulentas, os governos do Oriente Médio e as elites dominantes a eles associadas pouco têm a oferecer. Eles mesmos são parte do problema, na medi-da em que contribuem para a sensação pública de impotência. No período que se seguiu imediatamente à Segunda Guerra Mundial, as ideologias nacionalistas foram muito eficazes na mobilização do povo contra a presença colonial européia. Com o passar do tempo, porém, acabaram tolhendo o crescimento

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das instituições democráticas e a emergência de uma socieda-de civil duradoura. Os oficiais que tomaram o posocieda-der no Egito, Síria, Iraque e outros países mediante golpes militares e pro-longaram sua liderança por meios repressivos investiram maci-çamente na retórica antiocidental. Conquanto confrontassem a erosão de sua própria legitimidade, aprenderam a aprovei-tar-se dos sentimentos islâmicos em expansão em suas socie-dades, utilizando-os para intermediar o contato entre a elite e as massas e suprimir as liberdades individuais.

As vítimas previsíveis de tal apaziguamento foram as modernizantes classes médias urbanas do Oriente Médio. Ainda que pequenas e vulneráveis, as classes médias eram canais cruciais para a modernização, ao mesmo tempo em que pre-servavam um senso de cultura nacional. Egito, Iraque, Síria, Turquia e Irã, em sua pressa de gerar um falso crescimento econômico e uma ilusão de maior eqüidade, solaparam delibe-radamente as bases econômicas de suas respectivas classes mé-dias. Para tanto, valeram-se de um planejamento estatal opres-sivo e de programas de nacionalização imprudentes. As classes médias do Oriente Médio de hoje, sitiadas e intimidadas, não têm disposição ou não são mais capazes de defender a causa das reformas democráticas. Em vez disso, deram origem à crosta deteriorada da classe politicamente silenciada e submissa cuja voz de protesto faz-se ouvir, cada vez mais, por meio de causas extremistas,,

Foi desse meio que veio Mohamed Atta, filho fracassado de um próspero advogado egípcio. Outro exemplo é o princi-pal lugar-tenente de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, um médi-co de uma célebre família egípcia.

Essa perturbadora reorientação no sentido do islamismo radical tem de ser compreendida à luz de uma crise de identi-dade mais profunda do mundo árabe Wo período pós-coloni-al, a maioria dos Estados-nação da região teve de improvisar

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suas próprias ideologias de nacionalismo territorial, a fim de manter a coesão do que em geral não passavam de identidades locais e étnicas desconexas. Ao mesmo tempo, precisavam manter-se fiéis à ideologia do paivaràbismo (o conceito, ou sonho, de que todos os povos árabes constituíssem uma só supernação), projeto que estava destinado a um triste fracas-s o . ^ Egito fracas-saiu da experiência colonial munido do que talvez constituísse a base de seu próprio nacionalismo, mas, sob Gamai Abdel Nasser, trocou-o pela liderança da causa pan-árabe. En-tretanto, as experiências do pan-arabismo secular, seja a da era Nasser, nos anos 50 e 60, ou a dos regimes Ba'thist do Iraque e da Síria nos anos 60 e 70, revelaram-se enganosas para a maioria dos intelectuais que o defendiam. Ele foi ainda mais nocivo para as massas árabes, que, por décadas, permanece-ram expostas às máquinas estatais de propaganda e à política de rua, geralmente demagógica. A dura realidade dos regimes militares e paramilitares do mundo árabe extinguiu o entusias-mo até dos mais ardentes defensores do nacionalisentusias-mo árabe,

fcoi nesse ambiente de desespero que as impotentes mas-sas árabes vieram a compartilhar a causa comum do combate ao sionismo. A resistência à fundação da pátria judaica, a par-tir do fim da Primeira Guerra Mundial e com a criação do Estado de Israel, em 1947, ofereceu ao mundo árabe um pon-to de convergência de grande poder simbólico. As experiên-cias posteriores de derrotas seguidas nas guerras contra Israel trouxeram à tona, na mente árabe, lembranças da prolongada dominação colonial. Do ponto de vista nacionalista árabe, o sionismo não era apenas mais uma forma de nacionalismo ori-ginada no século XIX, mas um projeto elaborado pelo Oci-dente com o objetivo de perpetuar sua presença imperial e proteger seus interesses velados na região — a mais recente manifestação de séculos de hostilidade em relação aos povos muçtilmanos. Para muitos do mundo árabe, era reconfortante

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acreditar que centenas de milhões de árabes eram incapazes de derrotar Israel em virtude da proteção das potências ocidentais de que este supostamente gozava. E não era difícil encontrar evidências que os convencessem da validade de suas queixas.

3.

Não é de admirar que as sensações de desespero com relação aos regimes repressivos que vigoravam no âmbito interno e de desamparo no tocante à consolidação do Estado sionista vizi-nho tenham engendrado um novo espírito de solidariedade islâmica — radical na política, monolítico na abordagem e re-belde em relação ao Ocidente.

A transformação decisiva não foi deflagrada dentro do mundo árabe, mas pela revolução iraniana de 1979. A funda-ção de uma república islâmica, sob a intransigente liderança do Aiatolá Khomeini, evocou, em todo o mundo muçulmano, o há muito acalentado desejo de criar um regime genuinamen-te islâmico. Conquanto fosse pregado por um clero Shi'a radi-cal, que cometeu enormes atrocidades contra seu próprio povo, o modelo iraniano de islã revolucionário foi visto como um indicador do caminho para um islã "autêntico" e universalista. Valendo-se de fitas cassete e passeatas, os revolucionários ira-nianos conseguiram derrubar o Xá e o poderoso regime Pahlevi, a despeito de seu vasto arsenal militar, programa de seculari-zação e sustentação ocidental. A retórica antiimperialista da revolução foi uma fonte de poder ainda maior..

Depois que seus seguidores sitiaram a embaixada america-na e fizeram seus funcionários reféns, em 1980-81, Khomeini rotulou os Estados Unidos de Grande Satã por seu apoio aos poderes "faraônicos" — uma referência ao xá e governantes conservadores dos demais países da região — e por reprimi-rem os "deserdados" da TerraH

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A Guerra Irã-Iraque de 1980-88 estabelecéfo com firmeza ainda maior o apelo do paradigma do martírio, há muito pro-fundamente arraigado no islã Shi'a. O conflito foi apresentado como um

jíhad

apocalíptico entre as forças da verdade e as da falsidade. Além de defender seu próprio país, os iranianos acre-ditavam que estavam exportando sua revolução. Como decla-ravam os

slogans

estampados nas faixas dos manifestantes e confirmavam os gritos de guerra dos muitos voluntários ado-lescentes, o caminho da libertação islâmica estendia-se pelos campos de batalha, chegavam às cidades santas dos Shi'a — Karbala' e Najaf, no Iraque — e iam até Jerusalém.

Ainda que a revolução iraniana não tenha conseguido fir-mar raízes alhures, sua celebração do fir-martírio encontrou am-pla repercussão. Os xiitas revolucionários do grupo libanês Hezbollah e, mais tarde, os jovens palestinos que se ofereciam avidamente para bombardeios suicidas em nome do Hamas e do Jihad Islâmico viam o martírio como um meio de conquis-tar poder. Não é difícil identificar os mesmos traços entre os seqüestradores de 11 de setembro,

O ritmo acelerado do radicalismo islâmico no início da década de 1980, fosse inspirado pela revolução iraniana ou em reação a ela, ajudou a modelar a perspectiva de uma geração inteira, de onde se originou o extremismo do próprio Osama Bin Laden. Na casa de seus vinte anos, este era um estudante devoto mas desinteressante da Universidade de Jidda, na Arábia Saudita. Vinha de uma família extremamente rica, que tinha laços estreitos com a realeza saudita. Em novembro de 1979, deve ter testemunhado o cerco da Grande Mesquita de Meca e a revolta liderada por uma figura messiânica, que afirmava ter recebido, diretamente das mãos do Profeta, a autoridade para fazer justiça A rápida supressão da revolta pelos gover-nantes sauditas ocorreu apenas um mês depois da assinatura do acordo de paz entre Israel e Egito, em Camp David. O

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tra-tado foi recebido por ativistas islâmicos de todo o mundo ára-be como um ato de traição às causas áraára-bes e muçulmanas. Apenas um ano mais tarde, em outubro de 1980, o presidente egípcio, Anwar al-Sadat, foi assassinado por um grupo dissi-dente dos Irmãos Muçulmanos — aos quais Ayman al-Zawahiri, futuro lugar-tenente de Bin Laden, pertencia.

O levante em Meca e o assassinato de Sadat foram ambos inspirados por uma tradição de radicalismo religioso que re-montava à Sociedade dos Irmãos Muçulmanos, nos anos 20 e 30, e, antes disso, ao movimento wahabita, iniciado em fins do século XVIII. A doutrina central do wahabismo era um retor-no ao caminho dos "ancestrais virtuosos" — uma interpreta-ção extremamente retrógrada e monolítica do islã, conhecida como salafiya, tendência doutrinária que durante séculos esti-mulara a adesão estrita a princípios puritanos.

No começo do século XX, a salafiya desempenhou um papel fundamental na estruturação da Arábia Saudita como um Es-tado islâmico. Foi também a doutrina em que se basearam os Irmãos Muçulmanos em sua meta de reconstrução moral e política. Sob a inspiração das idéias de Sayid Qutb, líder do movimento (executado em 1966 pelo regime Nasser), a ideo-logia ganhou vida nova. O verdadeiro crente deveria "renun-ciar" ao obscuro sacrilégio de seu ambiente secular. Os alvos primários eram os regimes do mundo árabe, cujo secularismo foi considerado um retorno ao "paganismo" dos tempos pré-islâmicosi Qutb instou os Irmãos Muçulmanos a que adotas-sem o modelo do Profeta e buscasadotas-sem refúgio na segurança de um espaço isolado. Sua exortação era um convite a que os fiéis revivessem a

Hijra

(imigração), na qual o Profeta deixou a Meca dos pagãos e viajou para Medina. Foi o momento que marcou o princípio do calendário e da história muçulmanos.

A doutrina da salafiya e sua articulação por Sayid Qutb conquistaram uma esmagadora aceitação entre os radicais

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islâmicos no início dos anos 80. Entretanto, os etrnos que lhes serviriam de refúgio não podiam ser reproduzidos na Arábia Saudita de Bin Laden, tão rica em petróleo, nem no Egito de al-Zawahiri, infestado de turistas. Em compensação, o Afe-ganistão acenava. Seu florescente movimento de resistência contra as forças de ocupação soviéticas era extremamente

atraen-— e não só para os sentimentos radicais, mas também para os moderados. O país estava em condição de unir ativistas de todas as facções muçulmanas em torno da cau£a comum do combate à difusão do ímpio comunismo^demais, a defesa da causa dos mujahidin afegãos contra os soviéticos ajudou a ele-var o prestígio do regime saudita aos olhos tanto dos muçul-manos quanto dos americanos, determinados a impedir os avan-ços de Moscou na direção do Golfo Pérsico.

Na década que se seguiu à invasão do Afeganistão pelos soviéticos, no final de 1979, fundos sauditas públicos e priva-dos, junto com o treinamento e apoio militar secretos dos Es-tados Unidos, patrocinaram a guerra dos mujahidin. Contri-buindo para o esforço, o exército paquistanês providenciou o apoio logístico, e as escolas religiosas de orientação wahabita localizadas em Peshawar — cidade na fronteira paquistanesa, aos pés do Passo de Khyber — garantiram um fluxo contínuo de fervorosos missionários islâmicos e combatentes ferozes e devotos para a batalha em curso contra os ocupantes do "Im-pério do Mal" no Afeganistão. Para intensificar ainda mais o caráter islâmico da belicosa resistência afegã, a CIA também buscou, no reino saudita, a presença simbólica de um dos pios membros da família real

4.

C )sama Bin Laden, o ardente e carismático voluntário, foi mais convincente e eficaz que qualquer envelhecido e relutante

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prín-cipe saudita. Bin Laden desfrutava do apoio financeiro e polí-tico de muitos dos conservadores que patrocinavam o movi-mento. Figura imponente de dois metros de altura, que na época costumava vestir ternos Savile Row, ele chegou a Peshawar em meados da década de oitenta. Ali, logo entrou em desacordo com os mujahidin, faccionais ao extremo, que nem ao menos falavam árabe, mas pashtun e dari (um dialeto persa). Menos ainda deles compartilhavam da devoção de Bin Laden ao wahabismo militante. Com o passar do tempo, po-rém, ele se refugiou em uma roda de voluntários de idéias similares, que logo ficaram conhecidos como árabes afegãos. O que mantinha a coesão dessa brigada internacional crescen-te, que talvez montasse a cinco mil, era um senso de camara-dagem árabe na solidão de uma terra estranha. Eram renega-dos e auto-exilarenega-dos de todo o mundo árabe, de Marrocos ao Iêmen, muitos com um passado de militância religiosa em suas terras natais,

/"No abrigo de seu quartel-general, Bin Laden e suas tropas desenvolveram seu plano de lançar as bases de um Estado islâmico universalista, se necessário recorrendo ao uso da vio-lência. Seu programa para um Estado islâmico, tal como arti-culado ao longo dos anos seguintes, envolvia um domínio feu-dal teocrático do mundo árabe e muçulmano, retomando a concepção islâmica clássica de califado.

Em Peshawar figuravam, entre os mentores de Bin Laden, Abdullah Azzam, um palestino jordaniano radical morto em um carro-bomba em 1989, e Abdul Rasul Sayaf, um pregador wahabita militante enviado pelas autoridades sauditas para atuar como procônsul ideológico junto aos mujahidin afegãos. A inglória derrota das forças soviéticas incrementou o prestígio de Bin Laden no Afeganistão e dentro do mundo islâmico de modo geral, muito embora a contribuição dos árabes afegãos para os combates tenha sido marginal e chegado tarde. Foi

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durante a retirada soviética que Bin Laden funddu a Al-Qaeda (literalmente, "a base"), uma série de acampamentos de cu-nho ideológico-militar. Seu objetivo primordial era disseminar o wahabismo entre os afegãos, mas não teve grande êxito. A Al-Qaeda logo constituiria um refúgio para os remanescentes dos árabes afegãos e suas famílias e, bem de acordo com seu nome, uma base para operações alhures.

No princípio dos anos 90, Bin Laden tornou-se uma espé-cie de nômade. A caótica disputa que se seguiu ao colapso do regime pró-soviético e acabou por conduzir os altercadores mujahidin afegãos a Cabul em 1992 o decepcionou, já que a facção de Hekmatyar — o mais radical dos mujahidin, que ele apoiava — não chegou ao poder. Após um breve retorno à Arábia Saudita, ele se mudou para o Sudão, onde um regime islâmico militante ascendera ao poder

A grande reviravolta de sua vida, porém, ocorreu com a Guerra do Golfo. Por ocasião da ocupação do Kuwait por Saddam Hussein, Bin Laden defendeu o lançamento de um

jihad

con-tra o Iraque, mas foi desencorajado pelas autoridades sauditas, que o consideraram incômodo e constrangedor. Não viu com bons olhos a intervenção americana, e sua desaprovação con-verteu-se em franca hostilidade com a instalação de um gran-de contingente gran-de tropas americanas em solo saudita. Ele en-tendia que uma presença militar não-muçulmana na península arábica contrariava os rígidos ensinamentos do islã wahabita. E provável que seu rancor também se devesse, ao abandono dos mujahidin afegãos após a retirada soviética,

Qualquer que seja a origem da aversão pessoal e antipatia doutrinária de Bin Laden contra os Estados Unidos, ele tinha ao seu dispor uma fonte crescente de extremismo antiameri-canista à qual recorrer para estruturar suas redes. O desfecho da Guerra do Golfo Pérsico foi a confirmação, para muitos, de um funesto paradoxo na condução da política externa

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norte-americana. Acreditava-se que os Estados Unidos estavam en-gendrando uma grande coalizão contra o Iraque motivados por seus próprios interesses nacionais, sobretudo a segurança e continuidade do fornecimento de petróleo. O discurso da pro-teção da integridade territorial do Kuwait, portanto, parecia descaradamente hipócrita para quem o comparava com a deli-berada negligência americana quanto à prolongada ocupação dos territórios palestinos por Israel. Aos olhos dos críticos, a decisão "dos americanos de não levar a guerra para além do Kuwait foi considerada mais uma prova da estreiteza e egoís-mo de sua política. Eles permitiram que Saddam Hussein es-magasse as revoltas que se ergueram contra ele dentro do Iraque, ao mesmo tempo em que impuseram sanções debili-tadoras ao povo iraquiano — praticamente fragmentando o país, mas mantendo sua tirania intactai

A odisséia pessoal de Bin Laden veio reforçar seus propósi-tos antiamericanistas. Em 1994, sob pressão americana, as au-toridades sauditas revogaram seu passaporte e congelaram seus bens. Dois anos depois, Washington logrou pressionar o Sudão no sentido de negar-lhe o porto seguro de que ele ali desfruta-ra até então. Como ultimo recurso, Bin Laden buscou refúgio junto ao Talibã — que havia assumido o controle de Cabul em

1996 —, em troca de apoio financeiro e logístico.

'O Talibã era o outro lado da moeda da Al-Qaeda. A cam-panha de propaganda wahabita, que sucedera sob os auspícios sauditas por pelo menos duas décadas, foi o principal fator por trás da emergência desse movimento militante estudantil que assumiu o controle do Afeganistão. Nas décadas de 1980 e 1990, graças ao patrocínio e ao trabalho missionário, ao finan-ciamento da construção de novas mesquitas comunais da Indonésia e Filipinas à África subsaariana e Ásia Central, ao treinamento de jovens estudantes de muitas nacionalidades em seminários pró-wahabitas subsidiados, à dkponibilização

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para o público de literatura wahabita, ao estabelecimento de instituições de caridade e bolsas de estudo para os pobres, à facilitação do deslocamento dos hadjis e ao apoio aos

elemen-tos clericais conservadores com tendências wahabitas, o a '

establishment

saudita ergueu uma forte rede em expansão que está, neste momento, mudando a face do islã nas cidades e aldeias de todo o mundo muçulmano. Inadvertidamente, essa rede revelou-se um solo fértil para granjear apoio para Bin Laden do Paquistão e sul do Afeganistão à Ásia Central, África e Su-deste Asiático^

O movimento talibã criou raízes entre os deslocados e ca-rentes filhos dos refugiados afegãos, que foram treinados nas escolas religiosas do Paquistão — financiadas com recursos privados sauditas. Armados com o fervor wahabita para o

jihad

— e não muito mais que isso — e patrocinados pela inteligên-cia do exército paquistanês, os seminaristas foram organizados em uma força de combate. A lacuna política decorrente da devastadora guerra civil afegã abriu caminho para o gradual avanço talibã e sua vitória final. O regime por eles estabeleci-do, encarnando todo o zelo neowahabita pregado nas escolas de Peshawar, reviveu e impôs uma rígida ordem patriarcal, extremamente hostil às mulheres e à sua educação e presença pública. Permitia o espancamento e até o assassinato de mu-lheres por seus parentes homens, determinou o uso do véu facial e fechou a maioria das escolas para meninas; demons-trou uma inacreditável intolerância em relação aos xiitas e ou-tras minorias, obliterou mesmo os mais primitivos símbolos de uma cultura moderna e aboliu todos os direitos humanos e individuais. Em nome do expurgo do sectarismo no Afeganistão e do fim da guerra civil, o Talibã converteu o país em uma fortaleza miserável, cujo povo sofria de inanição e isolamento

No ano em que Bin Laden chegou ao Afeganistão, lançou uma

fatwa,

uma norma religiosa, que determinava que todos

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os muçulmanos matassem americanos como dever religioso. A explosão de bombas nas embaixadas americanas em Nairóbi e Dar es Salaam, em 1998, foi, até onde se sabe, sua primeira tentativa de colocar sua própria lei em prática — ocorrida na mesma época da fusão da Al-Qaeda com o Jihad Islâmico egíp-cio (liderado por Ayman al-Zawahiri, que coordenara, havia pouco, o assassinato de 58 turistas em Luxor, no Egito) e ou-tras organizações terroristas aumentaram drasticamente a ca-pacidade de Bin Laden de promover devastação. Os Estados Unidos tentaram puni-lo pelo bombardeamento das embaixa-das disparando mísseis contra seus acampamentos. O fato de ele ter escapado ileso aumentou sua autoconfiança e contri-buiu para sua reputação de invencibilidade aos olhos de seus seguidores. Bin Laden e seus companheiros da Al-Qaeda acre-ditavam que a guerra terrorista contra os Estados Unidos era uma batalha enraizada no nobre passado do islã e cuja vitória estava garantida por Deus. Nesse contexto, o ataque a estrutu-ras gigantescas que representavam o poderio militar e econômi-co americano seria um ato em grande parte simbólieconômi-co, capaz, esperavam eles, de subjugar o inimigo de modo milagroso, as-sim como os infiéis do islã acabaram por sucumbir aos ataques do Profeta às suas caravanas. Essa teoria do terror, violenta e indiscriminada, embora completamente contrária à interpre-tação oficial do islã, atraiu um grupo pequeno mas dedicado de devotos, que também viam o auto-sacrifício como uma via aceitável para a concretização simbólica de suas metasj

Sob vários aspectos, porém, a visão apocalíptica de Bin Laden baseava-se na realidade e relacionava-se ao possível. Ele e seus companheiros eram homens de recursos mundanos, capazes de valer-se de modelos da administração de empresas para gerar receita, investir capital no mercado, criar uma lide-rança disciplinada, recrutar voluntários, incorporar outros gru-pos extremistas, organizar e manter novas células, emitir

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or-dens e comunicar-se através de uma rede franqueada de uni-dades semi-autônomas em escala global. Essa mistura do messiânico com o pragmático permitiu que a Al-Qaeda ade-quasse sua retórica aos ressentimentos de seu crescente públi-co e levasse o recrutamento e a doutrinação a cabo em escala mais amplia.

A grande maioria dos muçulmanos não aprova o terroris-mo de Bin Laden, nem compartilha sua ambição de erguer uma comunidade monolítica sobre a base de uma ordem pan-islâmica. Não obstante, existe uma inegável simpatia pelo modo como ele vem manipulando rancores e símbolos. As imagens contrastantes entre a América "pagã" e o islã "autêntico" en-contram aceitação em setores amplos e diversos. Um exemplo é o dos garotos afegãos e paquistaneses refugiados, submeti-dos a uma lavagem cerebral nos seminários wahabitas finan-ciados com recursos sauditas, de cujas fileiras emergiu o Talibã (termo que significa "estudantes"). Outro é a nova geração de classes médias árabes educadas no Ocidente, recrutadas para as células suicidas da Al-Qaeda na Europa.

No testamento de Mohamed Atta, o egípcio que encabe-çou os ataques de 11 de setembro, podemos ler o típico entu-siasmo obsessivo de um muçulmano que renasceu. Em troca de sua utilização do terror e destruição em massa, Atta busca a promessá da recompensa celestial, reservada especialmente aos mártires, de que fala o Corão.

Sua leitura literal do texto sagrado está imbuída de refe-rências sexuais. "Saibam", promete ele a seus cúmplices, "que os jardins do paraíso esperam por vocês em toda a sua beleza. E as virgens do paraíso estão à sua espera, chamando: 'venham para cá, amigos de Deus'. Estão vestidas com suas roupas mais belas." Sua descrição adquire um tom ainda mais vulgar, além de perversamente patético, quando contrastada com os últi-mos encontros de Atta, em um clube

destrip-tease

na Flórida.

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É inevitável imaginar que ele tenha olhado as

strippers

semi-nuas de seu mundo antecipando as lindas virgens que aguarda-vam os bravos e virtuosos no paraíso. Essa era a recompensa que Atta esperava por seu martírio na "batalha em nome de Deus", em que se empenhou, como ele mesmo nos lembra, do mesmo modo como "os pios patriarcas". Esse misto surreal de pio e profano, recheado de uma litania de versos do Corão, revela uma desconcertante crosta pseudomoderna por cima do cerne de extremismo;

Quanto ao próprio Bin Laden, entrou em evidência depois que o 11 de setembro envolveu-o e à sua causa em uma aura apocalíptica. Sua declaração, transmitida em 7 de outubro pela televisão, remeteu, em seu tom e conteúdo, a uma narrativa seminal do islã. Ele afirmou que, acima de tudo, depositava sua total confiança em Deus em sua batalha dos verdadeiros crentes contra os infiéis, seguro da recompensa última do mar-tírio. Suas referências à iminente queda dos "hipócritas" — os indivíduos e governos muçulmanos que não apoiavam sua cau-sa — e à vitória certa dos justos montados a cavalo e armados com suas espadas — presumivelmente em contraste com o armamento sofisticado de seus inimigos — encontram eco na história registrada do princípio do islã. Em um depoimento veiculado na mesma época, al-Zawahiri, principal lugar-tenen-te de Bin Laden, referiu-se à catastrófica perda da Espanha sarracena no fim do século X V — o que também visava a lem-brar os muçulmanos dos grandes dias do islã antes de sua der-rota diante do cristianismo, complementando, assim, a visão de Bin Laden de um passado glorioso.

5.

Q u e a Al-Qaeda é eficaz em comunicar-se com um público amplo que vai muito além de seu círculo extremista, não resta

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dúvida. Para tanto, ela tem encontrado umasrabundância de oportunidades, graças à mídia global e à complacência e igno-rância dos serviços de inteligência e órgãos garantidores da lei ocidentais. Os dilemas e a inconsistências da política externa norte-americana na região também forneceram à Al-Qaeda suas armas favoritas para apelar para a frustração e raiva da maioria dos muçulmanos de todo o mundo

No cerne do ressentimento tão disseminado no mundo ára-be e islâmico encontra-se Israel e o tratamento por ele dispen-sado aos palestinos dos territórios ocupados. Centenas de mi-lhões de árabes, bem como um número crescente de outros muçulmanos, agora mais do que nunca mantêm-se informa-dos, através da mídia, dos intermináveis confrontos dos pales-tinos com as forças de segurança israelenses. As cenas de jo-vens atirando pedras contra as armas de fogo de Israel, casas palestinas destruídas, lamentos e cortejos fúnebres, greves e fechamento de lojas, bloqueios nas estradas e revistas humi-lhantes, fechamento dos territórios, estrangulamento da eco-nomia e aumento da pobreza palestina e campos de refugiados cheios de entulho contrastam com os limpos assentamentos israelenses, recém-construídos em pomares usurpados aos pa-lestinos. A audácia dos colonos judeus, a arrogância dos políti-cos israelitas, os tanques, helicópteros e jatos de caça rugindo nos céus, os ataques noturnos, as detenções e freqüentes viola-ções dos direitos humanos — tudo isso provoca sentimentos intensos de raiva e frustração. Transmitidas pelas redes árabes e, mais recentemente, pela rede de televisão global Al Jazira, ba-seada no Catar (o canal de manifestação preferido do próprio Bin Laden), essas imagens trágicas apresentam-se cada vez mais mescladas a símbolos da resistência islâmica: as missões suici-das do Hamas e do Jihad Islâmico contra alvos israelenses, os irascíveiss/og<ms e sermões antiamericanistas e antiisraelitas nas congregações às sextas-feiras. A isso se acrescenta o enorme

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volume de panfletagem radical islâmica, de conteúdo antiame-ricanista e anti-sionista, não raro encontrada nos livros didáticos árabes, com referências anti-semitas escancaradas;

Os regimes politicamente repressivos em vigor na maioria dos países árabes permitem as manifestações anti-sionistas (e até anti-semitas) como uma válvula de segurança — o que con-tribui para o valor simbólico da causa palestina como uma po-derosa expressão da unidade árabe com crescente colorido islâmico^Desde a intifada de 1986 e o Acordo de Paz de Oslo, em 1993, a arremetida da opinião pública árabe tem sido direcionada contra o destino dos palestinos nos territórios ocu-pados, em vez de contra a existência de Israel em si./Não obstante, os regimes árabes opressivos ainda recorrem à retó-rica hipócrita da segurança nacional como um impedimento à difusão da democracia em seus próprios países. Em um am-biente tão repressivo, a mesquita costuma funcionar como fórum político. Ali, a distinção entre a postura israelense e a política externa norte-americana fica toldada. Como a opinião pública árabe acredita, em geral, que o

lobby

judaico nos Esta-dos UniEsta-dos é o único determinante da política americana na região, não diferencia muito a política externa dos Estados Unidos e o abuso dos palestinos por IsraeL

"Os proponentes da piedade muçulmana também atribuem às "corruptoras influências" americanas a culpa pela erosão das tradições supostamente "autênticas" de austeridade e devo-ção islâmicas. Tais influências são amplamente associadas aos piores clichês da cultura popular e estilo de vida americanos. Neste mundo de mal-entendidos, as imagens de promiscuida-de, ostentação de riqueza, crime organizado, violência aleató-ria, uso de drogas, glutonaria e desperdício difundidas por todo o globo entram em agudo contraste com as virtudes islâmicas idealizadas de rigor moral, auto-sacrifício, valorização do ou-tro mundo, fraternidade e piedade. Os extremistas são ávidos

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e hábeis em vender esse choque às mal informadas massas muçulmanas — agora, mais do que nunca, baseando-se em imagens visuais, graças ao poder da mídia eletrônicaJ

rara os espectadores muçulmanos de todo o mundo, esses contrastes exagerados proporcionam um conforto ilusório, na medida em que parecem explicar a causa fundamental do mau funcionamento que percebem em seus próprios governos e sociedades. São ainda mais sugestivos por se apresentarem astuciosamente interligados com o histórico de sofrimento do povo palestino, nas mãos dos israelenses, e dos iraquianos, sob as sanções mantidas pelos Estados Unidos. Para completar, o público é constantemente lembrado da "profanação" das ter-ras santas muçulmanas pela presença de tropas americanas na Arábia Saudita.<

Bin Laden é um mestre na exploração dessas referências simbólicas. Os Estados Unidos e seus aliados ocidentais tenta-ram convencer o mundo, e principalmente o mundo islâmico, de que a campanha contra Bin Laden e a Al-Qaeda não está voltada contra o islã, mas contra o terrorismo. No entanto, essa distinção não fará muita diferença para muitos muçulma-nos enquanto Bin Laden, "vivo ou morto", dispuser de armas de propaganda tão poderosas. A questão não é somente o pe-rigo de que ele, ou pessoas como ele, transformem seu sonho extremista em uma guerra religiosa entre o islã e o Ocidente. De igual importância é o fato de que eles provocarão uma es-calada do conflito entre o islã militante neowahabita e as for-ças retrógradas e hesitantes vozes da moderação e da tolerân-cia dentro do mundo muçulmano, Bin Laden representa, para grande parte de sua platéia, a imagem de um profeta messiânico. Mesmo que morra em nome de sua causa, terá sofrido, aos seus olhos, uma morte de mártir.

A operação militar iniciada em 7 de outubro será julgada à luz da totalidade de suas conseqüências gerais e a longo prazo,

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não de seus êxitos intermediários. Caso atinja civis, desestabilize a região, alimente o extremismo e polarize a opinião pública muçulmana, será considerada um imenso fracasso. Os Estados Unidos já possuem recordações dolorosas o suficiente do bom-bardeio aéreo e suas conseqüências no Vietnã, Camboja e Iraque para gerar ceticismo quanto ao êxito desta empreitada. Con-tudo, se a eliminação de Bin Laden e sua rede for viável, e — tão importante quanto — caso seja seguida de um esforço sin-cero no sentido de resolver os agudos problemas da região, só então consideraremos a ação militar justificável. Isso implica a necessidade de encontrar uma resposta duradoura e abrangente para o vácuo político que vai formar-se no Afeganistão e desco-brir soluções para as misérias que o povo desse país vem supor-tando, há duas décadas, nas mãos das superpotências e de seus próprios fanáticos e generais viciosos.

km escala mais ampla e a longo prazo, os Estados Unidos e seus aliados ocidentais não podem deixar de rever sua atual postura em relação ao Oriente Médio e ao mundo muçulmano como um todo, com todas as suas complexidades culturais. Seria altamente imprudente, e até negligente, tratar o Oriente Médio e as sociedades muçulmanas vizinhas, com uma popu-lação de meio bilhão de indivíduos, simplesmente em termos de seus recursos disponíveis de energia e valor estratégico. Como única superpotência remanescente — e beneficiária di-reta desses recursos — os Estados Unidos não podem esqui-var-se de suas responsabilidades para com o bem-estar dessa regiãqj As experiências do último meio século mostraram que L os profundos problemas trazidos à luz com tanta violência pelo 11 de setembro não podem ser resolvidos pelo mero uso da força militar, diplomacia fisiologista e sustentação de regimes opressivos mas pró-ocidentais. Em virtude de sua vulnerabi-lidade intrínseca de sociedade aberta, os Estados Unidos não podem se dar ao luxo de apoiar injustamente um dos lados de

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uma contenda prolongada e emocional em óbvio detrimento do outro. Ademais, os próprios preceitos democráticos ameri-canos de liberdade de discurso e representação popular, bem como suas garantias das liberdades individuais e civis, entram em aparente contradição com um programa de política exter-na que perpetua a repressão e o conflito. Tal programa só faz assegurar mais seguidores para o extremismo islâmico e acar-retar novos atos de violência.

Por mais que os especialistas em segurança nacional e par-tidários de uma defesa mais forte exijam a forüticação das muralhas da segurança, não é realista acreditar na possibilida-de possibilida-de enfrentar o problema global do terror e do extremismo convertendo a América em uma fortaleza. Os Estados Unidos só teriam a ganhar com o avanço da causa da democracia e da sociedade aberta no mundo muçulmano, bem como com o estímulo às vozes da moderação, tolerância religiosa e direitos humanos, pelo menos nos países sobre os quais ainda exercem influência. Fomentar de maneira sustentada e prudente as ins-tituições democráticas, sem pôr em risco a própria estabilida-de estabilida-dessas sociedaestabilida-des, e permitir a estruturação estabilida-de um proces-so democrático endógeno são os parâmetros proces-sobre os quais os interesses vitais americanos vão encontrar sustentação. Se, por outro lado, os Estados Unidos e seus aliados ocidentais insisti-rem em se dedicar a intervenções militares sem qualquer dose de compaixão, provavelmente vão pagar caro pelas conseqü-ências de um Oriente Médio não-democrático, instável e em-pobrecido, mergulhado nas chamas do extremismo religioso, o das disputas territoriais e das demonstrações violentas de frus-tração.

A situação das sociedades do Oriente Médio não é tão irre-mediável e infeliz quanto possa parecer. Há vozes de coexis-tência, tolerância e compreensão. Há quem defenda a aceita-ção de uma ordem mundial baseada na integraaceita-ção,

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colabora-ção e amizade. Para encontrar motivos de esperança, basta olhar para o Irã de hoje — vinte anos depois de uma revolução que instituiu um regime islâmico repressivo. Apesar das exigências consistentes de conformidade autocrática e doutrinação reli-giosa de agora, as experiências democráticas não se extingui-ram. O clamor por uma sociedade aberta, pela coexistência e pelo respeito à léi estão mais audíveis do que nunca. E, apesar do slogan de "Morte à América" promovido pelo regime, o entusiasmo por um maior conhecimento sobre o Ocidente e os Estados Unidos está no auge. São perspectivas que não de-vem ser ignoradas em meio à reação aos atos terroristas e à caçada aos seus perpetradores.

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