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Monstrans: figurações (in)humanas na autorrepresentação travesti/trans* sudaca

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

Lino Alves Arruda

Monstrans: figurações (in)humanas na autorrepresentação travesti/trans* sudaca

Florianópolis 2020

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Lino Alves Arruda

Monstrans: figurações (in)humanas na autorrepresentação travesti/trans* sudaca

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Doutor em Literatura. Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Junqueira de Lima

Costa.

Coorientador: Prof. Dr. João Manuel Calhau de Oliveira.

Florianópolis 2020

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Lino Alves Arruda

Monstrans: figurações (in)humanas na autorrepresetanção travesti/trans* sudaca

O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

_________________________________________ Prof. Maria Juracy Filgueiras Toneli, Dra.

Universidade Federal de Santa Catarina _________________________________________

Profa. Lourdes Martínez Echazábal, Dra. Universidade Federal de Santa Catarina __________________________________________

Profa. Tatiana Nascimento dos Santos, Dra. Universidade Federal de Santa Catarina _________________________________________

Profa. Amara Rodovalho Fernandes Moreira, Dra. Universidade de Campinas

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de Doutor em Literatura.

___________________________________ Coordenação do Programa de Pós-Graduação

____________________________ _____________________________ Profa Dra Claudia Junqueira de Lima Costa Prof. Dr. João Manuel Calhau de Oliveira,

Orientador(a) Coorientador.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Cláudia de Lima Costa e ao coorientador João Manuel de Oliveira, pelo apoio, acolhimento, confiança e estímulo intelectual.

Às orientadoras Susan Stryker e Adela Licona, que, apesar das barreiras culturais e linguísticas, me receberam na University of Arizona e me encorajaram a desenvolver um capítulo ilustrado para esta tese.

À amiga e professora Melissa Gonzalez que além de colaborar na tradução dos zines selecionados para esta pesquisa, ofereceu apoio, afeto e oportunidades para a divulgação das produções dissidentes sudacas nos EUA.

À parceria CAPES/Fulbright que financiou a minha mastectomia, bem como o desenvolvimento desta tese.

Ao Prêmio Itaú Rumos, por assegurar o futuro deste projeto.

Ao Raye e à vida que construímos juntos.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Fulbright Brasil e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – código de financiamento 001.

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“Aprendi a alimentarme por generosidad, porque si yo sobrevivo, sobreviverán más y más travestis, locas y monstruos.” Claudia Rodríguez, Contodomisida (zine), 2016.

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RESUMO

Neste trabalho utilizo referenciais e perspectivas descoloniais dissidentes para analisar as diferentes maneiras como transgeneridade, travestilidade e transexualidade adentram o simbólico (literatura e imagens) através da autorrepresentação monstruosa em projetos autônomos (zines) e contraculturais sudacas. Para tanto, por meio de uma metodologia parcialmente autoetnográfica e fundamentada nos saberes, vocabulários e suportes dissidentes, proponho tecer uma genealogia da autorrepresentação monstruosa travesti/trans* no âmbito dos saberes feministas, efetuando análises comparativas entre imaginários e figurações emergentes no norte e no sul global. Atentando-me às retóricas e às estratégias representativas que diferenciam o repertório imagético norte-americano (especialmente as figuras que despontam nos textos de Mary Daly e de Susan Stryker) das autorrepresentações dissidentes autônomas (presentes em zines e outras produções autogeridas), postulo a pergunta: em seus alinhamentos com o não/humano, como se posicionam os monstrans* sudacas no que tange às estratégias micropolíticas, às temporalidades dissidentes, à colonialidade do gênero e à violência estrutural? A partir dessa indagação, enfatizo a potência singular das autorrepresentações travestis/trans* que, encarnadas no monstruoso e no animalesco, voltam-se à própria comunidade para pluralizar suas narrativas e fortalecer seus laços.

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ABSTRACT

This project carries out a dissident (queer) decolonial perspective for the analysis of sudaca zines in which transgender, travesti and transsexual people create self-representations that embody monstrous and animal tropes. Using a partially autoetnographic methodology structured in dissident knowledge, vocabularies and mediums, I trace a genealogy of monstrous travesti/trans* self-representations within the feminist field, and offer comparative analysis between imagery depicted in the north and the global south. Carefully scrutinizing the rhetoric and representational strategies that set apart the North-American repertoire (especially considering the figures that first emerged in Mary Daly’s and Susan Stryker’s essays) from sudaca autonomous self-representations published in zines and other countercultural projects, I pose the question: in their alignments with the non/human, what are sudaca monstrans* stances on micropolitical strategies, marginalized temporalities, gender coloniality and structural violence? While mapping different responses to these questions, in this dissertation I emphasize the singularities of travesti/trans* monstrous and animal self-representations’s potential to pluralize and counter normative discourse (such as academic, medical and legal approaches to trans*) in an effort to fortify community bonds and share survival strategies.

Keywords: Self-representation. Trans*. Travesti. Monstrosity. Zine.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Zines da distribuidora “Fracassando: Edições Precárias” ... 21

Figura 2 - Cartaz de evento da Distro Dysca ... 25

Figura 3 - Logo Distro Dysca ... 26

Figura 4 - Cartaz do Festival Vulva la Vida (2013) ... 27

Figura 5 - Capa do livro La Cerda Punk. Ilustração de Lino Arruda (2014). ... 28

Figura 6 - Capa do zine Plantas Marinhas ... 29

Figura 7 - Página do zine Ansiolítico ... 30

Figura 8 - Página do zine Plantas Marinhas ... 31

Figura 9 - Capa do zine UNIPEGAPONI ... 31

Figura 10 – Trecho do zine Dramas Pobres ... 33

Figura 11 – Trecho do zine Dramas Pobres ... 33

Figura 12 – Trecho do zine Dramas Pobres ... 33

Figura 13 - |Trecho zine Quimer(d)a (2016) ... 34

Figura 14 - Trecho zine Quimer(d)a (2016) ... 35

Figura 15 – Trecho do zine Quimer(d)a #1 (2016) ... 35

Figura 16 – Trecho do zine Ofensivo Trans (2013) ... 36

Figura 17 - Trecho de Poemário Transpirado ... 37

Figura 18 – Trecho do zine Estiercol: Suplemento Diverso de Binder (sem data de publicação) ... 38

Figura 19 – Trecho do zine Quimer(d)a #2, 2017. ... 38

Figura 20 - Trecho de Poemário Transpirado ... 39

Figura 21 – Poema em Contodomisida ... 39

Figura 22 – Gráfico de categorias sólidas e categorias porosas... 94

Figura 23 – Esquema Feminista Radical ... 98

Figura 24 – Editorial de Cuerpos para Odiar ... 147

Figura 25 – Zine Quimer(d)a – Quadrinhos dissidentes antiespecistas ... 148

Figura 26 - Página fotocopiada de Cuerpos para Odiar. ... 150

Figura 27 – Página do zine Dramas Pobres ... 160

Figura 28 – Trecho zine Quimer(d)a ... 161

Figura 29 – Trecho de Cuerpos para odiar ... 170

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Figura 31 – Trecho de Sapatoons #2 ... 194

Figura 32 – Trecho zine Quimer(d)a #1 ... 204

Figura 33 – Trecho de Poemário Transpirado ... 211

Figura 34 – Trabalho artístico DNI (De Natura Incertus) ... 214

Figura 35 – Trecho de Ofensivo Trans ... 217

Figura 36 – Foto de Cuerpos para odiar ... 223

Figura 37 – Capa de Estiercol: Suplemento Diverso ... 261

Figura 38 – Capa do zine Truques para produzir testosterona de forma natural e antiespecista ... 269

Figura 39 – Capa do zine The Transgender Herb Garden ... 269

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SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO ... 15 2 INTRODUÇÃO AO BABADO ... 20

2.1 AUTORREPRESENTAÇÃO MONSTRUOSA TRAVESTI/TRANS*:

PERSPECTIVAS DA CULTURA DISSIDENTE SUDACA ... 20

2.2 SÓ EXISTIMOS DESDE QUE NOS DESCOBRIRAM? EMBATES,

DESCONFORTOS E QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS DO CAMPO DOS ESTUDOS TRANS* 44

2.3 EMBATES ENTRE QUEER, KUIR E CUIR E OS ESTUDOS TRANS* SUDACAS: ESTRATÉGIAS DE RECUSA E HIBRIDIZAÇÃO DOS SABERES DO NORTE GLOBAL 47

2.4 QUANDO O OUTRO NOS ENCONTRA: REPRESENTAÇÃO

TRAVESTI/TRANS* NO CISTEMA ACADÊMICO BRASILEIRO ... 54 2.5 REPRESENTAÇÃO COMO PONTO DE VISTA: MAIS ALGUMAS NOTAS SOBRE MOTIVAÇÕES, OBJETIVOS E PÚBLICOS DOS CISTEMAS ACADÊMICOS . 61 2.6 ESBOÇANDO UMA METODOLOGIA COMPATÍVEL ... 63

3 A ALTERIDADE MONSTRIFICADA ... 70

3.1 2.1 FRANKENSTEIN E A TRANSEXUALIDADE FEMININA: UMA TRILHA NA GENEALOGIA DA MONSTRIFICAÇÃO DISSIDENTE ... 70 3.2 CONTEXTUALIZANDO O SURGIMENTO DO MONSTRO TRANSEXUAL NO CAMPO DOS SABERES FEMINISTAS RADICAIS ... 72 3.3 MONSTRUOSIDADES REINCIDENTES ... 79 3.4 POR QUE FRANKENSTEIN? INTRODUZINDO ARTIFICIALIDADE E CIÊNCIA NO DEBATE SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SEXUADA. ... 81 3.5 O BERÇO CIENTÍFICO DA TRANSEXUALIDADE: RELAÇÕES ENTRE “TRANSEXUALISMO” E A CRIATURA DE FRANKENSTEIN ... 82 3.6 AS INCISÕES DE FRANKENSTEIN NA IDENTIDADE ... 87 3.7 SEXO E GÊNERO NA ESCOLHA PELO MONSTRO DE FRANKENSTEIN .. 88 3.8 ADENTRANDO AS ENTRANHAS DO MONSTRO TRANSEXUAL ... 89

(12)

3.9 OS MONSTROS E A AMEAÇA DA VIOLAÇÃO DE FRONTEIRAS ... 92 3.10 O MONSTRO DESTITUÍDO DE POTÊNCIA ... 95

3.11 MONSTRUOSIDADES AUTO-DECLARADAS: SUSAN STRYKER

CORPORIFICANDO A CRIATURA TRANSEXUAL... 100

3.12 REINSERINDO O MEDO E MOBILIZANDO A POTÊNCIA DO

MONSTRO... 101 3.13 CHACOALHANDO O BERÇO CIENTÍFICO ... 102 3.14 A “FÚRIA TRANSGÊNERO”: PRODUTO DA ININTELIGIBILIDADE E PROCESSO DA AUTO-MONSTRIFICAÇÃO ... 103 3.15 TRANSFORMAR A NATUREZA, DESESTRUTURAR O HUMANO ... 106

3.16 MONSTRO DE SI MESMX: O STATUS ARTICULATÓRIO EM

QUESTÃO 107

3.17 UMA DAS ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS MONSTRUOSAS:

APROPRIAÇÃO DA INTERPELAÇÃO INJURIOSA ... 110 3.18 ESCUTANDO NAS ENTRELINHAS: RAZÃO, ACÚMULO, ERUDIÇÃO, ELOQUÊNCIA E OUTROS RASTROS OCULTOS ... 114 3.19 REIVINDICAÇÕES E ESCUTA: PROMESSAS DOS MONSTROS DO FUTURO 115

3.20 PALESTRA OU FALATÓRIO? ... 119

4 MONSTROS DO CU DO MUNDO: RETRUCANDO A COLONIALIDADE

DO GÊNERO ... 123

4.1 “NO SÉ HABLAR PERO NO SOY MUDA”: A LÍNGUA BIFURCADA E OUTRAS (TRAVA)LÍNGUAS DE CLÁUDIA RODRÍGUEZ ... 123

4.2 LÍNGUA-MONSTRO: RECURSOS ENUNCIATIVOS DE CLÁUDIA

RODRÍGUEZ ... 126

4.2.1 Balbucio e animalização: a linguagem-outra ou “lugar sem linguagem”? .. 127 4.2.2 “Viadinho me gritaram e eu fiquei torcida”: descobrir-se monstra ... 134 4.2.3 Enfrentando a linguagem cara a cara: a “elucubração plástica”, o zine, a (h)ortografia e o errorismo como projetos enunciativos travesti. ... 138

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4.4 PRAZAMIGAS: LÍNGUAS E FERIDAS INTRACOMUNITÁRIAS ... 153 4.5 (H)ORTOGRAFIA COMO ESTILO E GÊNERO DE UMA ESCRITA TRAVESTI ... 156 4.6 “ERRORISMO” E O “NÃO-SABER”: FERRAMENTAS PARA INTER/FERIR N/A LINGUAGEM ... 159 4.7 (H)ORTOGRAFIA, HIPERVISIBILIDADE E ININTELIGIBILIDADE: O MONSTRO NO REGIME ESPECULAR ... 168 4.8 . PROMESSAS E HORRORES DE UMA KING KONG TRAVESTI ... 172 4.9 RELEMBRANDO KING KONG ... 178

4.10 LINGUAGEM E KING KONG: INCLINAÇÕES À VIRADA

(IN)HUMANA ... 179

5 MONSTROS ANIQUILÁVEIS, ESTRATÉGIAS E AFETOS

MICROPOLÍTICOS ... 186

5.1 A PROMESSA DE MORTE: MAPEANDO TRAVESTICÍDIO ATRAVÉS DE KING KONG ... 186

5.2 QUADROS TEÓRICOS PARA AQUILO QUE NÃO SE PRETENDE

SALVAR 191

5.3 VIOLÊNCIA ESTRUTURAL E AS POTENCIALIDADES DE

AUTORREPRESENTAÇÕES MONSTRUOSAS: “ESTAR AQUI” E PERMANÊNCIAS NA FERIDA 193

5.3.1 Substituindo a “agenda política” pela agência micropolítica: “E aqui estou!”, ressentimento e vingança agenciadas por meras existências contra-reivindicativas ... 200

6 CLOSE DA KING KONG TRAVESTI: MONSTRO, GÊNERO E RAÇA 225

6.1 HIPERVISIVILIDADE, RACIALIZAÇÃO E COLONIALIDADE DE GÊNERO: REARTICULANDO KING KONG NO DOMÍNIO ESPECULAR ... 225

6.2 ACUENDOU A NECA? REMAPEANDO SEXO, RAÇA E GÊNERO EM KING

KONG 231

6.3 REINTERPRETANDO VIOLAÇÃO SEXUAL E HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA: UM OLHAR DISSIDENTE PARA O DESEJO DA CRIATURA ... 235

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6.4 MULHERIDADE OBJETIFICADA / TRAVESTILIDADE ABJETIFICADA:

ABISMOS E PONTES ENTRE CIS E TRANSFEMINILIDADES EM KING KONG ... 238

6.5 ANIMALIDADES E MONSTRUOSIDADES TRAVESTI: MULHERIDADE RECONFIGURADA ... 242

6.6 DA SOLIDÃO ESTRUTURAL AO TRANIMAL ... 257

6.7 CIRURGIAS ALGO-MAIS-QUE-HUMANAS ... 263

7 CONCLUSÃO ... 278

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1 APRESENTAÇÃO

Como são representadas as experiências travesti/trans* na cultura contemporânea (artes visuais, literatura, cinema, teatro etc.)? Quem opera os dispositivos de produção e difusão dessas representações? A quais retóricas a transgeneridade, a transexualidade e a travestilidade estão sendo associadas? E, o mais importante: a comunidade travesti/trans* latino-americana se identifica com o imaginário que supostamente representa seus corpos e experiências? Essas provocações instigam reflexões acerca de como algumas representações tendem a reificar cistemas identitários1 e a vincular-se à produção de saberes, perspectivas e posições de sujeito hegemônicas.

Reconhecendo que o repertório imagético e as técnicas representativas são ferramentas básicas para forjarmos concepções massificadas e universalizantes de corporalidades (através de estereótipos, simulacros etc.) e também evidenciando seu potencial de estimular autorreconhecimento dentro de uma comunidade, neste projeto proponho análises críticas das retóricas e estéticas trans* no âmbito dos Estudos Feministas norte-americanos – que associam transgeneridade e transexualidade à monstruosidade – e as comparo às autorrepresentações que emergem atualmente na contracultura dissidente sudaca2. Os materiais originais reunidos para este estudo são os poemas, histórias e imagens que compõem os zines e publicações independentes Dramas Pobres, Manifesto Horrorista, Enferma del Alma, Contodomisida e

Cuerpos para Odiar, da poetisa prostituta travesti chilena Claudia Rodríguez; Relatos de Canecalón e Poemário Transpirado, da artista travesti argentina Susy Shock; Ofensivo Trans,

de um coletivo argentino anônimo formado por homens trans gays; e Sapatoons e Quimer(d)a:

quadrinhos dissidentes antiespecistas, que produzi colaborativamente com amigas/os das

comunidades les-bi-trans*.

No primeiro capítulo, objetivando a elaboração de uma metodologia de pesquisa, problematizo a representação dos corpos gênero-diversos nos discursos acadêmicos, frisando a relação pouco contingente entre as posições de sujeito dos/as pesquisadores/as, o local de

1 Nas palavras da teórica trans Viviane Vergueiro: cistema é “uma corruptela de ‘sistema’, com a intenção de

denunciar a existência de cissexismo e transfobia no sistema social e institucional dominante” (VERGUEIRO, 2015, p. 225). Ou seja, o neologismo (cisgênero + sistema) é aqui empregado para explicitar os efeitos e processos assimétricos operantes nas estruturas organizativas sociais e institucionais que beneficiam subjetividades hegemônicas, tais como a cisgeneridade.

2 Termo que se refere pejorativamente à América Latina e a seus habitantes. Seu emprego se dá especialmente a

partir dos fluxos migratórios dos anos 1990 no contexto espanhol, visando a interpelação negativa de imigrantes latino-americanos. Neste trabalho a apropriação dessa terminologia visa evocar os tensionamentos xenofóbicos/raciais e ressignificar seu uso e sentido original

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produção, a terminologia adotada, o formato do trabalho, os referenciais, os objetivos e o público das pesquisas. Desvelando os agentes, processos (incluindo metodologias) e efeitos dessas representações, indico, através de uma analítica trans*3, que produto final é geralmente alienante, objetificante e exotizante, uma vez que raramente incorpora os saberes e vocabulários das comunidades gênero-diversas em questão. Esse exercício crítico ressalta a importância de procurarmos por autorrepresentações travesti/trans* sudacas e por seus projetos de resistência epistemológica em lugares-outros (DE LAURETIS, 2007), ou seja, nas margens das instituições culturais, políticas e educativas que as excluíram histórica e cistematicamente. Sobrevoando as singularidades monstruosas e precárias das autorrepresentações travesti/trans* e brevemente apresentando seus potenciais de subversão dos cistemas de produção de conhecimento, esboço também experimentações metodológicas que permitirão explorar outras formas de produção e difusão de teoria, como a autoetnografia e a escrita combinada com ilustrações e histórias em quadrinhos.

Com o intuito de tecer uma genealogia da autorrepresentação monstruosa, no segundo capítulo introduzo o debate da monstrificação da transexualidade no âmbito dos saberes feministas a partir da análise do texto Boundary Violation and the Frankenstein Phenomenon (1978) de Mary Daly. Utilizando a teratologia contemporânea, identifico os elementos que compõem o monstro transexual no contexto norte-americano e investigo sua operação enquanto dispositivo do pensamento feminista radical. Na sequência, analiso o artigo My Words to Victor

Frankenstein above the Village of Chamounix, no qual Susan Stryker (1994) corporifica a

criatura de Frankenstein para responder às teorias de Daly, e destaco a centralidade das intervenções somáticas, bem como as relações de classe e raça que eclodem no debate em questão. Esmiuçando o processo de apropriação da interpelação injuriosa e identificando a eloquência como um dos principais elementos de afinidade entre Stryker e a criatura em

Frankenstein, postulo a pergunta: o monstro poderia falar sem cair em uma armadilha

ontológica? As indagações formuladas nessa análise indicam que o emprego da criatura de

Frankenstein enquanto tropo autorrepresentativo da transexualidade está fundamentado numa

perspectiva norte/eurocêntrica, pautada pela racionalidade e pelo domínio das ferramentas de produção institucional de conhecimento. Esse estudo oferece uma base comparativa para as

3 Conforme sugerido por Kai M. Green em seu artigo Troubling the Waters: Mobilizing a Trans* Analytic (2016),

a proposta de uma analítica trans*expande a definição de “trans” enquanto identidade categórica para uma analítica teórica, ou seja, um método de análise que “tem ramificações ontológicas, ideológicas e epistemológicas. Não se trata de alteridade perpétua, mas de presença perpétua” (2016). As metodologias associadas a essa analítica são desenvolvidas no primeiro capítulo da pesquisa.

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análises das autorrepresentações monstruosas sudacas, especialmente considerando as relações limítrofes que tecem com a linguagem hegemônica e com a racionalidade.

Nos capítulos 3, 4 e 5 analiso a contracultura travesti/trans* observando as monstruosidades que emergem em zines e outros projetos autorrepresentativos autônomos. Em linhas gerais argumento que, criando resistências aos discursos patologizantes, estereotípicos e abusivos, as monstruosidades travesi/trans* sudacas figuradas em zines anunciam seus despertencimentos à matriz altamente gendrada e racializada do “humano”, ao mesmo tempo em que recusam o alinhamento a formas compulsórias de designação de posições de sujeito e se dissociam das temporalidades hegemônicas (cronológicas, progressivas, lineares, projetadas para o futuro etc.).

Particularmente no terceiro capítulo exploro as publicações independentes Dramas

Pobres, Manifesto Horrorista, Enferma del Alma, Contodomisida e Cuerpos para Odiar, da

poetisa, artista e prostituta travesti chilena Claudia Rodríguez, e sugiro que as estratégias representativas inauguradas nesses projetos operam através do emprego de linguagens-outras e de vocabulários alternativos (a exemplo das noções de “(h)ortografia” e “errorismo” cunhadas pela autora), dispostos também em formatos precários e dedicados à sua comunidade. As análises das estratégias autoenunciativas de Rodríguez são intimamente conectadas com as identificações que a autora traça com diferentes monstruosidades: por exemplo, seu rechaço da personagem principal do filme O Homem Elefante (o monstro europeu capaz de agenciar sua própria subjetividade empregando a linguagem hegemônica) contrasta como sua desidentificação4 (MUÑOZ, 1999) com monstruosidades animalizadas e híbridas, como a criatura em King Kong e a Minotaura, que figuram barreiras ontológicas inegociáveis e intraduzíveis, acenando em direção a uma virada (in)humana.

Esboçando uma teratologia travesti, associo a escolha de Rodríguez pela figura de King Kong ao desejo de produzir e permanecer dentro da “ferida colonial”, ou seja, o local de onde proposições ressentidas e vingativas emergem parodiando o norte-global e denunciando a colonialidade do gênero (LUGONES, 2014). Tecendo conexões entre a King Kong travesti de Rodríguez e outras autorrepresentações monstruosas que também operam com a premissa de aniquilamento da dissidência e abarcam a noção de morte social identifico, no capítulo 4,

4 A discussão acerca da desidentificação virá em momento oportuno, mas cabe delinear o processo de

desidentificação. Nesse sentido: “desidentificar-se é ler a si mesma/o e à sua narrativa de vida num momento, objeto ou sujeito que não é culturalmente codificado para ‘conectar’ com o sujeito desidentificante” (MUÑOZ, 1999, p.12).

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diferentes estratégias micropolíticas contra-reivindicativas e as diferencio das propostas identitárias tipicamente associadas às agendas políticas LGBT (comumente pautadas nos direitos humanos e nas políticas de visibilidade da dissidência). Nesse exercício utilizo centralmente o poema “Yo monstruo mío”, da artista e musicista travesti argentina Susy Shock, em que a recusa é articulada como principal estratégia de interferência nos sistemas hegemônicos.

Experimentando metodologias alternativas fundamentadas na diferença entre “olhar com” e “olhar para” os corpos gênero-diversos, no quinto capítulo proponho um mergulho profundo na figura da King Kong travesti, objetivando remapear raça, gênero, sexualidade e classe, dentre outras intervenções que a versão dissidente do primata oferece em relação ao seu

script original. Argumentarei que a desidentificação da autora com a figura de King Kong

promove um comentário crítico à colonialidade do gênero, inaugurando um gesto autorrepresentativo descolonial que, dentre outras coisas, reelabora a noção de “mulheridade”. Complementarmente, a análise aprofundada do alinhamento dissidente que Rodríguez tece com Pamela “Anderssen”, Marylin Monroe, Madonna e outras figuras icônicas de “Holiwood” exalta o potencial da figuração monstruosa de escapar dos efeitos estereotípicos e simulacrais comumente reificados em representações humanoides.

Na sequência, focalizo os debates sobre as intervenções somáticas transexualizadoras e emprego os quadros teóricos Tranimal e Não/humano, para organizar e justapor retalhos de diferentes corpos monstruosos sudacas a partir de fragmentos dos zines Sapatoons, Quimer(d)a,

Estiercol, Contodomisida e do livreto Poemário Transpirado. Através da conexão de

fragmentos desses projetos, sugiro que as autorrepresentações monstruosas, híbridas e animalizadas não só desestruturam as engrenagens do sistema visual em sua demanda de projeção compulsória de gênero e sexo, como também reconfiguram as noções tradicionais acerca das corporalidades travesti e trans*, especialmente no que tange às intervenções somáticas: articulando agentes não/humanos (próteses, bactérias, substâncias químicas etc.). Ademais, incorporando o impreciso e o precário nas incisões tecnológicas e prostéticas comumente associadas à transexualidade, em vez de reivindicar novas constituições identitárias, as proposições selecionadas promovem um olhar crítico ao Humano e às hierarquias que o sustentam.

Em comprometimento com a prerrogativa de que é preciso expandir as epistemes autorizadas pelo cistema acadêmico para estabelecer um diálogo com as comunidades por ele marginalizadas, no capítulo conclusivo serão explorados outros formatos, suportes e modelos

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de produção de teoria: combinando ilustrações e autoficções, Monstrans: experimentando

horrormônios é um capítulo-zine no qual enveredo o Não/humano em representações

autobiográficas para recontar minhas experiências transmasculinas de ininteligibilidade. As ilustrações acompanhadas de texto e apresentadas no formato de história em quadrinhos sugerirão que as subjetivações monstruosas rompem o laço indexical entre representação e realidade ao empregarem, em narrativas autobiográficas, estéticas que se transformam constantemente para escapar ao humano. Ou seja, tendo como ponto de partida as impossibilidades subjetivas dissidentes, nesse trabalho aponto para a possibilidade de imaginar representações que transitam de uma posição de gênero para outras potências de vida informadas por temporalidades dissidentes.

Certificar-se de que o trabalho esteja em diálogo com as comunidades gênero-diversas implica não somente o emprego de vocabulários desautorizados e a legitimação de saberes subalternos, mas também a adoção de métodos eficazes de difusão e circulação do conteúdo em questão. Assim sendo, o capítulo conclusivo será organizado no formato de zine e integrará a iniciativa editorial autônoma (distro) de arquivamento, produção, distribuição e tradução de zines autorais dissidentes sudacas Fracassando: edições precárias, a qual disponibilizará esse material de forma acessível para travestis e pessoas trans*.

(20)

2 INTRODUÇÃO AO BABADO

“Produzo outro tipo de saber, um que a acadêmica em mim sabe que não é

acadêmico”.

(DUMARESQ, 2014)

2.1 AUTORREPRESENTAÇÃO MONSTRUOSA TRAVESTI/TRANS*: PERSPECTIVAS DA CULTURA DISSIDENTE SUDACA

Uma breve análise da retórica nacional sobre transgeneridade, travestilidade e transexualidade sugere que as travestis e pessoas trans* foram subordinadas a um entrelaçamento de censura e depreciação, patologização psicomédica, proibições legais, representações estereotipadas nos meios de comunicação de massa e ridicularização pública. Pode-se dizer que essas condições se deram, em parte, devido à marginalização histórica de travestis/trans* das esferas autorizadas de produção de conhecimento (literatura, artes visuais, política, instituições de ensino etc.), bem como em decorrência da subjacente conversão desses sujeitos em objetos de projetos e pesquisas institucionais (educacional, médica e cultural), em detrimento de seu envolvimento ativo na produção do conteúdo. Portanto, diante desse quadro, faz-se necessário procurar em lugares-outros (DE LAURETIS, 2007), como, por exemplo, nos arquivos dissidentes anti-institucionais, para encontrar os locais de enunciação dos saberes travesti/trans* e as autorrepresentações capazes de comunicar premissas, experiências, culturas e histórias travesti/trans* de maneira intracomunitária, promovendo o fortalecimento de laços internos e de autorreconhecimento.

O principal objetivo desta pesquisa é identificar, organizar e analisar um arquivo literário e imagético autorrepresentativo, autônomo e contracultural travesti/trans*, visando criar canais através dos quais essas vozes dissidentes possam estar em diálogo produtivo com outras, a fim de remodelar o repertório simbólico mainstream. Para tanto, desaquendar5 dos sistemas institucionais que consistentemente excluíram as autoenunciações e autorrepresentações travesti/trans* é uma das prerrogativas deste projeto, especialmente considerando os imaginários e os discursos exotizantes e alienantes comumente figurados nos locais autorizados de produção de conhecimento acerca das subjetividades dissidentes. Diante

5 “Desaquendar” é uma terminologia do dialeto Pajubá, que se traduz como “desfazer-se”, “desapegar-se” ou

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dessa asserção faz-se necessário indagar: onde podemos encontrar proposições autorrepresentativas, que comuniquem de forma intracomunitária? Quais projetos estariam embebidos nos saberes subalternizados? E quais as ferramentas disponíveis para o desenvolvimento de uma metodologia ética para abordar tal material?

Considerando a hipótese de que é possível enxergar na marginalidade e no micropolítico formas afetivas e efetivas de resistência, sugiro que, à margem dos sistemas e dos aparatos ideológico-culturais dominantes, muitos corpos dissidentes, impulsionadxs pelo ócio criativo, têm se contaminado e se agrupado em manadas afetivo-políticas autônomas para produzir imaginários incisivos e deliberadamente políticos voltados às suas comunidades. Os espaços expositivos que abrigam essas produções autorrepresentativas são geralmente as bibliotecas de ocupações e os eventos micropolíticos autônomos (por exemplo, encontros transfeministas, como o Venir Al Sur), e, em vez de aparecerem em catálogos de exposição, essas proposições, quando registradas, circulam xerocadas em baixa qualidade em zines e outros tipos de publicação independente, como é o caso dos materiais que centralmente compõem esta pesquisa.

Figura 1 – Zines da distribuidora “Fracassando: Edições Precárias”

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Os projetos dissidentes em questão, por estarem circunscritos a lógicas e domínios pouco abrangentes (se comparados aos filmes, às publicações oficiais, aos anúncios e programas de televisão, às imagens das revistas, aos acervos de museus e galerias etc.), pertencem a um grupo de proposições que teve seu potencial subversivo historicamente deslegitimado, especialmente por destoarem dos modelos políticos hegemônicos e capitalistas (que transformam o objeto em commodity e a informação em consumo) e das correspondentes ambições de produção e de circulação em massa. Entretanto, justifica-se a potencialidade dos zines de operar como tecnologias contra-hegemônicas reconhecendo os efeitos que proposições locais e micropolíticas podem promover, por exemplo, no campo da construção ou desconstrução do gênero:

A construção de gênero é atualmente continuada por várias tecnologias de gênero (como o cinema) e discursos institucionais (como a teoria) que têm poder de controle sobre o campo do significado social e que, portanto, produzem, promovem e “implantam” representações de gênero. Mas os termos para uma construção diferente de gênero também existem nas margens dos discursos hegemônicos. Propostos do lado de fora do contrato social heterossexual e inscritos nas práticas micropolíticas, esses termos também participam da construção do gênero, e seus efeitos residem num nível “local” de resistência, na subjetividade e na autorrepresentação. (DE LAURETIS, 1987, p. 18)

Enfatizando a significância política da impossibilidade que as subjetividades sexo/gênero-diversas enfrentam para comunicar dentro do regime cis-heterossexual (tendo em vista a limitação de acesso aos dispositivos midiáticos e a inadequação aos seus formatos), atento para o potencial subversivo imbuído nessas proposições micropolíticas fronteiriças que estão sendo produzidas nas brechas da cultura hegemônica e que incorporam os próprios estigmas subalternizantes nos quais os corpos e experiências dissidentes se emaranharam historicamente. Ou seja, diferentemente dos investimentos da agenda política neoliberal LGBTTQI (que comumente higieniza e incorpora a dissidência dentro dos sistemas humanitários imperantes, por exemplo, através de campanhas que reforçam a igualdade, a visibilidade e os direitos humanos), em vez de suturar ou dispensar os estigmas (in)humanos que situam as experiências travesti/trans* na sua própria trajetória histórica, as proposições selecionadas para esta pesquisa incorporam na autorrepresentação a animalidade e a monstruosidade, além de outras figurações e entrelaçamentos não/humanos.

Teóricas pós-coloniais como Greta Gaard, Giuseppe Campuzano, Hija de Perra e Maria Lugones identificam investimentos coloniais na interdependência da noção de pessoidade e da designação de sexo/gênero/sexualidade, avaliando também o impacto da intersecção entre racialização e outros marcadores de dissidência no genocídio de corpos

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considerados subhumanos ou (in)humanos durante o período colonial. Pautando a forma como existências análogas às travestis, transexuais e transgêneras foram historicamente associadas à animalidade, à abjeção e à monstruosidade no contexto latino-americano, esses percursos teóricos permitem vislumbrar uma história fragmentada que aglomera distintas corporalidades dissidentes sudacas baixo a insígnia “não/humano”.

A esse respeito, analisando a dicotomia humano/não-humano, em seu artigo Rumo a

um Feminismo Decolonial, Lugones apresenta uma perspectiva descolonial que permite

entender gênero como um dispositivo do colonizador e seu papel na deshumanização. A autora explica que as categorias “homem” e “mulher” eram a distinção que “tornou-se a marca do humano e a marca da civilização” (LUGONES, 2014, p.936) e enfatiza que, embora no contexto da colonização não houvesse propriamente a diferenciação entre sexo e gênero, paradoxalmente, o bestial não era gendrado: as/os colonizadas/os e escravizadas/os eram submetidas/os a uma categorização com base em um “dimorfismo sexual” (macho/fêmea) dissociado de gênero (pessoidade).

Relacionando “selvageria” aos processos de desumanização perpetrados no período colonial, Lugones coloca que só os civilizados possuíam os status privilegiados “homem” ou “mulher”, enquanto do outro lado da relação dialética (interconstitutiva e, ao mesmo tempo, excludente) estavam os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as, que “eram classificados/as como espécies não humanas – como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens” (LUGONES, 2014, p. 936). Essa formulação que, intermediada por componentes raciais, isola sexo de gênero é o cerne da distinção que a autora faz entre humano/não-humano e civilização/selvageria, e reverbera, com princípios semelhantes, nas monstruosidades que emergem em alguns projetos autorrepresentativos travesti/trans* sudacas. Acredita-se que a partir da organização e das análises das monstruosidades reincidentes em autorrepresentações travesti/trans* é possível observar como a apropriação e a desidentificação (MUÑOZ, 1999) do estigma colonial “não/humano” ou (in)humano colaboram na reformulação propositiva das experiências, culturas e corpos travesti/trans*. Embora essa proposta de situar as subjetividades travesti/trans* em sua própria história focalizando os estigmas coloniais aparente reiterar os discursos depreciativos que circunscrevem os corpos dissidentes, cabe ressaltar que, através do recurso apropriativo, esses estigmas são reelaborados e transformados em artifícios de vetores desestabilizadores dos discursos hegemônicos, conforme teorizado por Judith Butler. Suas ideias sobre a apropriação da interpelação injuriosa (BUTLER, 1997) sugerem que a autoenunciação apropriativa de

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palavras originalmente depreciativas (como, por exemplo, “traveco”) permite às comunidades marginalizadas atribuir significados alternativos, organizados por perspectivas dissidentes e, assim, promover novas iterações hibridizadas que, ao mesmo tempo, carregam e desafiam os sentidos primordiais dos termos em questão.

Complementarmente, uma contribuição importante para a reestruturação do trans* a partir de uma perspectiva autoenunciativa é oferecida pela teórica Susan Stryker, cuja análise crítica do conceito “Humano” subsidia a teoria Pós-humana e oferece novos quadros epistemológicos, através dos quais o desejo trans* é capaz de escapar à matriz do Humano para então voltar-se a ela, destrinchá-la e finalmente, desafiar subversivamente a grande divisão Natureza/Cultura.

Na esteira de Stryker, o investimento autorrepresentativo não/humano travesti/trans*, além de explicitar a colonialidade de gênero (teorizada por Lugones), aponta para a possibilidade de coalizões inusitadas e para encontros/parcerias que desafiam os binômios sustentadores da identidade. A partir de alinhamentos entre diferentes subjetividades expulsas do Humano, podem ser imaginadas forças que vislumbram um nível intenso de contaminação das categorias ontológicas como, por exemplo, a potência “tranimal” teorizada por Eva Hayward e Lindsay Kelley:

Tranimais também brinca com o prefixo “trans” enquanto pluralidade – assim como em animais – para sugerir o constante trabalho de agentes que cruzam espécies. Trans sugere o cruzamento energético e material que desestabiliza categorias bifurcadas. Animais sugere organismos literais, não seres metafóricos ou puramente representativos, que existem somente na intencionalidade antropocêntrica. (HAYWARD; KELLEY, 2013, p.115-116. Tradução minha6.)

Esses desvios tranimal e não/humano acenam à ideia de que a feitura do corpo implica a contaminação de ontologias que se organizam em entidades comuns, levando ao limite o que o monstro vem a representar no plano simbólico:

Descrever a virada não-humana como um câmbio de atenção, interesse ou preocupação aos não-humanos mantém em mente a qualidade física e o movimento envolvido na ideia de uma virada, a virada não-humana deve ser entendida como uma virada corporificada em direção ao mundo não-humano, incluindo a não-humanidade que está dentro de todas/os nós. (GRUSIN, 2015, p.20)

6 Todas os textos escritos em línguas estrangeiras que têm excertos traduzidos e reproduzidos nesta tese

tiveram tal tradução feita por mim. Assim, visando a facilitar a leitura do texto, não mais explicitarei no mecanismo de referência autor-data que se trata de “Tradução Minha”.

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Ao sugerir que a virada não/humana instiga um questionamento ontológico (volta-se criticamente à não-humanidade que levamos dentro) Grusin evoca a potência não/humana de desestabilização da identidade, o que é também uma prerrogativa do monstro. Pode-se dizer que, a partir da proposta monstruosa, ao invés de reivindicar visibilidade, integração e inteligibilidade, as autorrepresentações dissidentes selecionadas para esta pesquisa desafiam as armadilhas ontológicas que a identidade oferece. O “ser alguém/algo” é uma impossibilidade para o monstro visto que ele não sustenta uma identidade fixa: trata-se, senão, do termo antagônico a toda identidade, conforme articularei no próximo capítulo. Nesse sentido, alinhando-se ao animalizado, ao monstruoso e ao não/humano as autorrepresentações travesti/trans* selecionadas para a pesquisa vislumbram economias representativas pós-identitárias, conforme exemplificarei a seguir.

No campo especular, as monstruosidades híbridas e animalizadas desafiam as engrenagens dos sistemas visuais, uma vez que promovem a ininteligibilidade e a inconsistência de gênero: argumenta-se que a opção por esse tipo de autorrepresentação logra, até certo ponto, a ofuscação do gênero e a ênfase na ambiguidade, além de idealizar uma possibilidade de evasão da diferenciação sexual no campo especular, conforme pode ser observado na figura abaixo (Figura 2), em que a representação monstruosa/animalizada reorganiza (já que excede e ao mesmo tempo evade) a designação compulsória de sexo e gênero.

Figura 2 - Cartaz de evento da Distro Dysca

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Observa-se que esse artifício representativo tem sido cada vez mais empregado em suportes contraculturais contemporâneos (como zines, livretos e outros materiais literais autônomos), especialmente em projetos que pretendem interpelar o/a observador/a (através do emprego da figura de um corpo que rápida e intuitivamente gera identificação) e, ao mesmo tempo, evadir o fardo de evocar compulsoriamente, através da representação do corpo, uma unidade identitária. Principalmente em autorrepresentações dissidentes, a estratégia que agencia o animalizado no campo visual abrange diferentes possibilidades identitárias ao mesmo tempo, podendo inclusive conter combinações contraditórias (alude simultaneamente a trans*, gay, lésbicas, travestis etc.), sem encerrar o sujeito em nenhuma delas, a exemplo da logo da distribuidora de zines Monstruosas (Figura 3) e do cartaz do festival feminista Vulva la Vida (Figura 4).

Figura 3 - Logo Distro Dysca

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Figura 4 - Cartaz do Festival Vulva la Vida (2013)

Fonte: Acervo do Autor (2020)

Algumas imagens animalizadas que representam corpos dissidentes logram interpelar identidades específicas sem delinear outros marcadores sociais: baleias e porcas são utilizadas para representar/interpelar pessoas gordas (respectivamente nos zines de Tatiana Nascimento e no livro de Constanzx Álvarez), da mesma forma que sapos correspondem a lésbicas (em cartazes e zines feministas) e imagens de veados evocam experiências e corporalidades gays afeminadas. Enquanto essas estratégias representativas agrupam distintas subjetividades marginalizadas baixo uma única insígnia, outros monstros e animais híbridos são cada vez mais utilizados para aludir às travestis e pessoas trans* em suas intersecções com diferentes marcadores sociais.

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Figura 5 - Capa do livro La Cerda Punk. Ilustração de Lino Arruda (2014).

Fonte: Acervo do Autor (2020)

O monstruoso como impossibilidade identitária e, ao mesmo tempo, como chamado político (convite à manada) é uma estratégia de representação visual mais ou menos alinhada à ideia de coalizão: é esboçada a tentativa de efetivar uma aliança pós-identitária, entretanto, permanece um recorte seletivo baseado no empirismo da dissidência, ou seja, essa estratégia opera como chamado indistinto a vivências marginalizadas e interpela as diferentes subjetividades que escapam à norma que circunscreve o Humano. Assim sendo, pode-se dizer que o animalizado e o monstruoso emergem tanto na escrita como no repertório visual contracultural dissidente evocando uma manada aberrante (o não/humano conecta facilmente a racialização, a deficiência, a sexualidade desviante, a transição de gênero etc.), sem delimitar contornos que especificariam as subjetividades interpeladas. Trata-se de uma estratégia negativa e não identitária, visto que as únicas identidades demarcadas são aquelas excluídas do domínio da monstruosidade, ou seja, as que correspondem à norma.

Para exemplificar essa ideia, cabe atentar à capa do zine Plantas Marinhas e ao quadrinho do zine Ansiolítico (ambos produtos de colaborações entre pessoas

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trans*/não-binárias), nos quais é impossível atribuir sexo e gênero à figura representada, uma vez que os registros que conferem essas demarcações no campo visual (as estilizações e estéticas gendradas) são neutralizados pela animalidade.

Figura 6 - Capa do zine Plantas Marinhas

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Figura 7 - Página do zine Ansiolítico

Fonte: Acervo do Autor (2020)

De maneira semelhante, no zine Plantas Marinhas (Figura 8) a correspondência entre as figuras representadas (lobisomem, vampiro e múmia) e as identidades evocadas no texto (“bicha”, “viado” e “sapatão”) é inabilitada. Complementarmente, a estratégia de justapor cabeças de animais sobre desenhos de corpos humanos na capa do zine UNIPEGAPONI (Figura 9) permite evocar corpos dissidentes sem aludir a alguma identidade específica: sabe-se que esse zine evoca afetos LGBTTQI, de forma que qualquer combinação, excluindo-se a prática cis e/ou heterossexual, pode se tornar o sujeito do chamado.

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Figura 8 - Página do zine Plantas Marinhas

Figura 9 - Capa do zine UNIPEGAPONI

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Servindo-se da potência teratológica que vislumbra a evasão aos gêneros e, simultaneamente, o escape ao Humano, dando novos rumos à proposta apropriativa teorizada por Butler, os zines selecionados para essa pesquisa exaltam o contraste entre margem e centro para deliberadamente proclamar a negatividade como componente fundamental desse investimento pós-identitário: trata-se de estratégias autorrepresentativas precárias e antissociais que, segundo Jack Halberstam, são premissas distintivamente dissidentes. O autor interconecta a contracultura dissidente ao fracasso, à perda, ao esquecimento, à descontinuidade e ao precário afirmando que a negatividade imbuída nesses projetos, bem como na autodeclaração a partir de alguns estigmas historicamente repudiados, são componentes praticamente intrínsecos à formação subjetiva dissidente: em vez de abdicar à marginalidade e de aspirar ao sucesso, à legitimidade e à normalização, muitas produções travesti/trans* contraculturais abarcam o fracasso que elas representam de qualquer forma e, para tanto, designam a monstruosidade como local privilegiado e multifacetado em busca de uma autorrepresentação plural, contra-reivindicativa, vingativa, ressentida e pós-identitária.

Dessa forma, vislumbra-se nesta pesquisa a possibilidade de identificar nos zines locais profícuos para a análise da contracultura travesti/trans*, focalizando especialmente a autoenunciação e a autorrepresentação alinhadas ao não/humano e ao monstruoso como propulsoras de perspectivas dissidentes no que diz respeito à noção de temporalidade, ao emprego de linguagens alternativas, às estratégias micropolíticas de resiliência e, sobretudo, às incisões críticas nos sistemas identitários e à noção de Humano. Para tanto, o repertório monstruoso travesti/trans* selecionado reúne figuras como o Homem Elefante (Figura 11), a Minotaura (Figura 12) e a versão travesti de King Kong (Figura 10), empregadas por Cláudia Rodríguez para expressar sua relação limítrofe com a linguagem, com a colonialidade e com a temporalidade hegemônica (diante das diferentes vias de organização temporal impostas pelo travesticídio).

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Figura 10 – Trecho do zine Dramas Pobres7

Fonte: Rodríguez (2015, p.70)

Figura 11 – Trecho do zine Dramas Pobres8

Fonte: Rodríguez (2015, p.81)

Figura 12 – Trecho do zine Dramas Pobres9

Fonte: Rodríguez (2017)

No trabalho de Rodríguez as monstruosidades King Kong, canibal e minotaura afloram criando vocabulários dissidentes, representando mulheridades outras, sugerindo filiações e redes de interconstituição com agentes não/humanos e expressando o impacto da colonialidade

7 Tradução: “Sei que quando eu vir um filme vou chorar. Holliwood destruiu a ilusão da minha infância.

Sempre os malvados dos filmes morriam ou ficavam aleijados, nenhum se salvava de seu cruel destino. Quando eu vi o King Kong morrer sabia que era eu quem a indústria estava matando. Não se pode ser tão grande, tão feia e viver no centro da cidade”.

8 Tradução: “Tudo o que não posso gritar como o grito que dá o homem elefante, eu sublimo e escrevo

ternamente...”.

9 Tradução: “Às vezes pareço com a Marilyn... Quando pego o cigarro e olho fixamente pro passado...

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do gênero na formação subjetiva travesti sudaca (especialmente nas passagens em que a autora referencia Marylin, Pamela Anderssen e outras celebridades de Holiwood). Essas monstruosidades, em especial a figura da King Kong travesti, serão detalhadamente analisadas nos capítulos 3, 4 e 5 deste trabalho, focalizando a potência contra-reivindicativa, vingativa e ressentida com a qual operam essas representações.

Além da King Kong travesti e da Minotaura, outra personagem animalizada que representa a liminaridade das vivências sexo/gênero-dissidentes é o Lobis-homem-trans (Figura 13). Aparecendo pela primeira vez no zine de quadrinhos dissidentes Quimer(d)a #1, o lobis-homem-trans é acionado como efeito colateral da hormonização em interações sociais em que a transmasculinidade é ininteligível. A contrapelo do ativismo tradicional LGBTTQI (que reivindica visibilidade às identidades marginalizadas) a faceta invisível ou inapreensível da transmasculinidade emerge através dessa personagem como recurso: sua monstruosidade animalizada oferece uma alternativa não só de recusa, como também de ameaça às masculinidades cis-heteronormativas e à cultura subjacente (Figuras 14 e 15), conforme demonstrarei no terceiro capítulo deste trabalho.

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Figura 14 - Trecho zine Quimer(d)a (2016)

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Figura 16 – Trecho do zine Ofensivo Trans (2013)

Fonte: Acervo do Autor (2020)

Complementarmente, através de uma proposta separatista (em que os agentes organizam normas-outras, ativadas no interior de uma comunidade dissidente), os autores do zine Ofensivo Trans (Imagem 16) imaginam a transmasculinidade como desvio da espécie humana e propõem políticas representativas que negam explicações sobre as identidades e sexualidades dissidentes, ao mesmo tempo em que explicitam o funcionamento das engrenagens da cultura visual desumanizante (ao referenciarem o zoológico, o circo e o Freak

Show). Alinhando-se à investida Tranimal (HAYWARD; KELLEY, 2013) do Lobis-homem-trans*, o zine Ofensivo Trans sugestivamente representa as subjetividades dissidentes sem

atribuir-lhes visibilidade e contornos bem delimitados, esboçando um projeto autorrepresentativo pós-identitário também ancorado na ininteligibilidade.

Semelhantemente, no livreto Poemário Transpirado, as identificações de Susy Shock com animalidades e monstruosidades híbridas (como vulcões, cachorros, borboletas etc.) recusam a ordem binária dos gêneros e as políticas identitárias neoliberais calcadas em jargões como “somos todos humanos”. Por exemplo, no poema Yo, monstruo mio, apropriando-se ironicamente do vocabulário reivindicativo tipicamente associado às políticas dos direitos

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humanos, Shock reclama a própria monstruosidade e enfatiza a inoperabilidade da sua experiência nos sistemas identitários (jurídico, científico, educativo, religioso) em vigor.

Figura 17 - Trecho de Poemário Transpirado

Fonte: Shock (2011).

Através do quadro teórico Não/humano (GIFFNEY; HIRD, 2008) as autorrepresentações animalizadas de Shock (Figuras 17 e 20) se conectam com a personagem principal do zine Estiericol, de Gabriela Binder (Figura 18), com as figuras mutantes dos zines

Sapatoons e Quimer(d)a (Figura 19) e com os alinhamentos (in)humanos de Rodríguez (Figura

21). Justapostas, essas proposições tecem filiações e parentescos pós-humanos em que agentes inusitados (como bactérias, cachorros e próteses) emergem como parte integral do corpo prostético travesti/trans*, desafiando as separações entre cultura/natureza e humano/não-humano.

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Figura 18 – Trecho do zine Estiercol: Suplemento Diverso de Binder (sem data de publicação)

Fonte: Acervo do autor (2020).

Figura 19 – Trecho do zine Quimer(d)a #2, 2017.

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Figura 20 - Trecho de Poemário Transpirado

Fonte: Susy Shock (2011, p.26)

Figura 21 – Poema em Contodomisida

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Diversas estratégias alternativas ao ativismo reivindicativo tradicional (tipicamente associado às agendas de coletivos institucionais LGBTTQI que solicitam visibilidade, integração e direitos humanos) são apresentadas nessas publicações autônomas que operam primordialmente através da contação de histórias e da autoteorização. Formando um arquivo contracultural, essas produções inventam e compartilham estratégias micropolíticas embebidas em afetos vingativos e ressentidos, fomentando a sobrevivência das subjetividades dissidentes, bem como a possibilidade de fortalecer laços intracomunitários. Um exemplo pode ser observado na passagem em que Rodríguez narra a monstruosidade como arma em interações sociais cotidianas, bem como na história em quadrinhos em que a personagem Lobis-homem-trans* trava uma batalha vingativa micropolítica dentro do ônibus (vista nas figuras 14 e 15).

Na rua um sedutor poeta da construção me disse: por que não me dá um sorriso de presente? E a minha boca se abriu de lado a lado, mostrando minha salada de dentes tortos, meio que me predispondo a comer o homem, porque meu sorriso é o de um monstro. Minha resistência, minha arma, meu punhal, meu fuzil é monstrificar-me; admitir que não sou outra coisa senão um fracasso para qualquer modelo, que não sei amar como dizem que se deve amar, que o amor é privativo e não incomensurável. Sou um monstro, senhores, sobretudo quando me seduzem e me fazem rir, porque tendo a comê-los. (RODRÍGUEZ, 2015, p.83)10

Essas produções culturais selecionadas para a pesquisa localizam-se fora do espaço social (são marcadas por um gesto antissocial separatista ou anarquista), emaranham-se em vocabulários desautorizados e se materializam em formatos precários, visando apresentar os múltiplos pontos de vista que compõem mosaicos de experiências travesti/trans* sudacas. Enredando-se nos estigmas coloniais, esses projetos elegem o abjeto, o animal, o monstruoso e o (in)humano para expressarem sua ininteligibilidade e inadequação, ou seja, contemplam estratégias representativas pós-identitárias subversivas e, ao mesmo tempo, afetivas e canalizadas na negatividade, na recusa, na falta, no fracasso e, em última instância, no despertencimento à categoria “humano”.

O fracasso aflora nessas produções dissidentes na medida em que as reivindicações humanitárias da agenda política LGBTTQI (demandas às vezes acomodadas pelos governos neoliberais como, por exemplo, o direito ao casamento e à constituição familiar) são

10 Do original: “En la calle un seductor poeta de la construcción me dijo: porque no me regala una

sonrisa? Y la boca se me abrió de par en par, mostrando mi ensalá de dientes chuecos, como desponiendome a comerme el hombre, porque mi sonrisa es la de un monstruo. Mi resistencia, mi arma, mi puñal, mi fusil es mostruosiarme; admitir que no soy otra cosa que un fracasso para cualquier modelo, que no sé amar como dicen que hay que amar, que el amor es privativo y no incomensurable. Soy un monstruo, señores, sobre todo cuando me seducen y me hacen reír, porque tiendo a comérmelos” (RODRÍGUEZ, 2015, p.83).

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substituídas pelo desejo de habitar a ferida colonial e permanecer às margens da sociedade. Esse gesto antissocial e anarquista é acompanhado de estéticas, vocabulários e suportes que substituem aqueles empregados institucionalmente para representar as experiências travesti/trans*. Por exemplo, o zine – enquanto publicação independente e autônoma – surge como alternativa à imprensa oficial, escapando do crivo e da censura das editoras e ignorando o cânone literário e seu público expandido. A escolha11 desse formato já implica por si uma série de fracassos: depositando confiança na necessidade de manter alguns saberes isolados de maneira separatista, as publicações autônomas dispensam o sucesso de vendas e desarmam, assim, as premissas do sistema capitalista imperante. Ao mesmo tempo que essa atitude antissocial garante a oportunidade de contarmos histórias-outras (desde a perspectiva da lupa cis-heteronormativa), essa ferramenta desautorizada é subestimada, uma vez que restrições na circulação e na difusão são consideradas indicativas de uma derrota supostamente não reivindicável.

O zine também é por excelência um suporte do fracasso no sentido de que seu formato implica a perda do conteúdo e a dificuldade de arquivamento: as páginas saem da sequência original ou simplesmente desaparecem, a fotocópia borra e corta alguns trechos do conteúdo (um convite ao improviso e à interpretação criativa), a matriz se dobra, molha e rasga durante o transporte etc. A dinâmica de vida desse tipo de objeto cultural é mais um elemento que impossibilitaria o enredamento de seu conteúdo na história oficial, a qual normalmente se afirma coerentemente organizada a partir da comprovação, do registro e do arquivamento. É interessante observar essas características analogamente às formas fragmentadas, orais, afetivas, pouco ou nada registradas e completamente desautorizadas através das quais as histórias das dissidências subalternadas sudacas persistiram, se transformaram e também se perderam ao longo do percurso. Todas essas condições apontam para formas alternativas de arquivar as memórias dissidentes e, complementarmente, para uma concepção também inusitada da noção de temporalidade, que se desvencilha de propostas reivindicativas, comumente orientadas para o futuro.

Por outro lado, esse formato favorece e encoraja a hibridização do conteúdo e sua constante reterritorialização: o copyleft (que incentiva a livre edição do conteúdo), as traduções localizadas e essas “redefinições circunstanciais” do registro desafiam a aura estática de oficialidade que acompanha a noção de “original” (seja na literatura ou nas artes visuais). Assim

11 Aqui “escolha” pode abarcar também os projetos que, tendo sido negados pelas editoras, assumem

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sendo, tais proposições encorajam o nomadismo e a transformação ou atualização do objeto. Essa tendência à transformação também pode ser interpretada como análoga à maior receptividade que as subjetividades e corporalidades gênero-diversas têm à mutação e à metamorfose. Argumento que outros formatos de publicação podem refletir desejos-outros e formas alternativas de organizarmos e entendermos história, cultura e a própria construção dos nossos corpos.

A vida curta e o malfeito, a precariedade e o fracasso podem ser encarados como acessos reivindicáveis de negatividade que se sintonizam com os recursos e dispositivos historicamente postos ao alcance da dissidência: embora a validação de uma trajetória marginal não se manifeste universal e rigorosamente na totalidade da produção das comunidades marginalizadas, estima-se que o gesto antissocial está epistemologicamente vinculado à constituição de subjetividades dissidentes em vários contextos, a exemplo do “sujeito excêntrico” (fora do centro) teorizado por De Lauretis. A autora, pesquisadora da obra de Monique Wittig e de seu postulado de que as lésbicas não são mulheres, coloca que

a “lésbica” formulada por Wittig não é simplesmente um indivíduo com uma “preferência sexual” pessoal ou um sujeito social com uma prioridade “política”, mas um sujeito excêntrico constituído num processo de luta e interpenetração, uma reescrita do ser […] em relação a uma nova compreensão de comunidade, de história, de cultura. (DE LAURETIS, 2007, p. 181)

Esse “sujeito excêntrico” (que escapa do gênero para subverter a heteronorma) se constitui dentro de um lugar outro (elsewhere) onde uma série de prerrogativas originais surge para orientar suas estéticas, representações, ideologias, escritas, intenções e formas de relação e organização. Um aspecto fundamental desse lugar outro é sua característica falta de unidade e estabilidade, ou seja, sua capacidade de abarcar uma multiplicidade de contradições. Exemplificando essa ideia, de Lauretis afirma que a “sociedade lésbica” (separatista) originalmente concebida por Wittig

não é um termo descritivo para um tipo de organização social (não tradicional), nem um projeto para uma sociedade futurística, utópica ou distópica […], trata-se, senão, de um termo para um espaço conceitual e experiencial talhado fora do campo social, um espaço de contradições, no aqui e agora, que precisa ser afirmado mas não resolvido. (2007, p. 181. Grifos meus)

Uma versão mais contemporânea do “sujeito excêntrico” é apresentada por J. Jack Halberstam, que expande o território lésbico para alcançar um escopo mais amplo e abrigar também outras subjetividades dissidentes. Segundo o autor, a subjetividade queer exalta o

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contraste entre centro e margem para vincular a subjetividade “excêntrica” à marginalidade, à negatividade, à perda, ao fracasso, ao esquecimento, à descontinuidade e à falta de perspectivas de futuro. Halberstam dissocia os projetos e as estéticas das subjetividades queer da produção de significado humanitária e positiva para formular uma conexão entre dissidência e negatividade. Citando o trabalho de Lee Edelman (2005), o autor coloca que

[...] o sujeito queer, conforme argumentado por Edelman, está epistemologicamente conectado à negatividade, ao sem sentido, ao improdutivo e à ininteligibilidade, e, em vez de lutar contra essa caracterização arrastando a dissidência para dentro do reconhecimento, ele [Edelman] propõe que abracemos a negatividade que, de qualquer forma, estruturalmente representamos. (HALBERSTAM, 2011, p.106)

A escolha por negatividade não passa, então, de uma inversão da maneira de encarar preceitos praticamente intrínsecos às subjetividades dissidentes: Halberstam sugere que, em vez de abdicar da marginalidade e almejar o sucesso, a plenitude, a legitimidade, o direito e a normalização; muitas proposições de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros e travestis assumem e acolhem o fracasso como prerrogativa e a margem como local de suas produções.

Apesar das diferenças estruturais entre o “sujeito excêntrico”, de Lauretis, e o “sujeito

queer”, de Halberstam, ambas as propostas convergem celebrando e encorajando à

receptividade ao perceber-se e constituir-se como uma outra coisa – uma espécie de des-tornar-se, des-ser, des-fazer, que abre caminho para outros modos, menos categóricos e estáveis, de (auto)representação, aos quais se alinham as animalidades e as monstruosidades dos projetos selecionados para essa pesquisa.

Podemos tomar emprestadas partes dessas teorias que conectam as subjetividades marginais a formatos e desejos-outros, entretanto, é preciso ressaltar que, mais que um elemento de caracterização do sujeito queer, excêntrico, kuir ou cuir, a precariedade das produções contraculturais que analisarei é aqui abordada principalmente enquanto ressonância de um estigma colonial que está sendo reapropriado e explicitado principalmente pelos corpos não-brancos e gênero-diversos no nível local. Dessa forma, aqui é inserida uma camada adicional de fracasso e de precariedade a essas teorias importadas que esboçam o sujeito

queer/excêntrico: depois de devorado por meio da proposta antropofágica (ROLNIK, 1998) do

sul global, esse quadro teórico é excretado e diluído na diarreia do nosso cu do mundo (PELÚCIO, 2012) ou, então, desponta hibridizado e encarnado/parodiado nas monstruosidades

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travesti/trans* sudacas famintas: “Soy la Marylin travesti que se come a los hombres como um

acto de generosidad hacia mis amigas travestis, porque sé que no existe perdón con hambre”12. Considerando que tanto os materiais selecionados para esta pesquisa como seus proponentes se localizam – e, em sua maioria, desejam permanecer – fora do marco institucional de produção de conhecimento, antes de iniciar as análises aqui propostas é preciso atentar aos questionamentos metodológicos e epistemológicos que emergem atualmente no campo dos Estudos Trans*, especialmente considerando os métodos extrativistas tradicionalmente associados à pesquisa acadêmica.

Levando em conta que se pretende instaurar uma metodologia pautada na validação de retóricas, representações e cosmo-visões enredadas em conhecimentos-outros, se faz necessário levantar uma série de indagações epistemológicas: como produzir uma pesquisa acadêmica centrada em materiais e posições subjetivas que foram histórica e sistematicamente excluídas da produção oficial de conhecimento? Como gerar um produto do qual a comunidade travesti/trans* possa usufruir? Como lidar com as assimetrias que minha posição subjetiva de pesquisador transmasculino branco, feminista e antirracista engendra? Quais partes dos discursos institucionais que “norteiam” os corpos e as experiências sexo-gênero dissidentes podem ser reapropriadas e quais devem ser descartadas, questionadas e substituídas para que possamos imaginar epistemes e analíticas dissidentes sudacas, atribuindo uma perspectiva descolonial aos estudos travesti/trans*? E, ainda, como formular uma metodologia que seja ética e formalmente compatível com uma perspectiva travesti/trans* descolonial?

Nos próximos tópicos, através de análises de metodologias e de práticas institucionais de produção de conhecimento, pretendo demonstrar que muitos métodos contingentemente reiterados na pesquisa acadêmica produzem representações e outros conteúdos institucionais profundamente alienados das vivências travesti/trans*. O destrinchar desses métodos tradicionais de pesquisa será justificado a partir da necessidade de abrir espaço para novas perspectivas e metodologias orientadas pela autorrepresentação travesti/trans* latino-americana.

2.2 SÓ EXISTIMOS DESDE QUE NOS DESCOBRIRAM? EMBATES, DESCONFORTOS E QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS DO CAMPO DOS ESTUDOS TRANS*

12 Tradução: “Sou a Marylin travesti que come os homens como um ato de generosidade às minhas

Referências

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