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Cartas de amor e violência: um estudo sobre a existência das mulheres a partir da tragédia shakespeariana

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Academic year: 2021

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FERNANDA CUNHA NASICMENTO

CARTAS DE AMOR E VIOLÊNCIA:

UM ESTUDO SOBRE A EXISTÊNCIA DAS

MULHERES A PARTIR DA TRAGÉDIA

SHAKESPEARIANA

NATAL/RN

2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

NATAL/RN

2019

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FERNANDA CUNHA NASCIMENTO

CARTAS DE AMOR E VIOLÊNCIA: UM ESTUDO SOBRE A EXISTÊNCIA DAS MULHERES A PARTIR DA TRAGÉDIA SHAKESPEARIANA

Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Artes cênicas da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte. Linha de Pesquisa: Interfaces da cena: políticas, performances, cultura e espaço, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestra em Artes cênicas.

Orientador: Profª. Drª. Nara Salles

Natal/RN 2019

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AGRADECIMENTOS

Obrigada a meus pais, que sempre fizeram de tudo para que eu tivesse a melhor educação possível. A meu pai, que me comprava livros quando criança. À minha mãe, que me disse que eu podia ser o que eu quisesse (mesmo quando ela não quis que eu fizesse faculdade de teatro).

Obrigada a minha irmã que sempre acreditou em mim mais que eu mesma. Obrigada à meu avô José, já falecido, e a minha avó Espedita que me ensinaram desde cedo que o estudo é a coisa mais fina do mundo.

Obrigada à minha tia Wilma, a meu tio Rômulo e às minhas primas Fafinha e Manu que são minha família e me suportam.

Obrigada a minha orientadora, Nara Salles, por me deixar livre, e me deixar enlouquecer e aprender a autonomia para fazer o melhor trabalho que eu posso fazer.

Obrigada as incríveis professoras que formam minha banca, Lara e Urânia, pelas contribuições valorosas; vocês são mulheres que me inspiram, espero um dia ocupar um cargo semelhante e dedicar tanta atenção e cuidado como vocês dedicaram a leitura do meu trabalho.

Obrigada a meus amigos, João Cláudio, Clara Felinto e Beatriz Fontenele por não desistirem de mim. Obrigada, Danilo, que acredita em mim.

Obrigada, Heloísa, por formar comigo o Teatro das Cabras, tenho a certeza que cresceremos juntas, tenho aprendido muito sobre mim ao observá-la, tenho aprendido muito sobre o fazer teatral. Nós estamos indo bem, não sejamos tão duras.

Obrigada, Carol, pelo olhar sensível e por conseguir por em fotos a alma dessa pesquisa. Eu sou sua fã.

Obrigada, a mim mesma, que conseguiu ter coragem e amor-próprio e abandonou uma relação acadêmica abusiva e pode fazer isto, que é o melhor que você pode fazer hoje, e talvez seja o melhor que você pode fazer, porque está cercada de mulheres fantásticas.

Obrigada a Lucas e a Mattheus que me ensinam sobre ser homem, compartilham poesias e estados de graça.

Obrigada a todos os Clowns de Shakespeare por despertar em mim o amor pelo teatro. Dudu, Camile, Fernando, Paulinha, Rafa, Renata e Diogo, vocês fazem parte da minha história, vocês formaram também o que eu sou.

Obrigada César Ferrario e Márcio Marciano, meus grandes mestres na dramaturgia. “É preciso agir mesmo sem coragem”, eu estou aprendendo,

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Márcio, e eu também estou compreendendo que “está tudo certo em errar”, César.

Obrigada a João Vítor que compartilhou comigo as dores e delícias desse mestrado e que me inspira a ser uma artista melhor e uma pesquisadora mais forte.

Obrigada a Bruno pela paciência. Desculpe te encher de dúvidas sempre. A sala da coordenação é muito pequena e eu não sei como ela comporta você e seu coração gigante.

Obrigada, Moisés, por ter criado comigo o embrião de algo que depois viria a ser

A tragédia mas insignificante do mundo.

Obrigada a UFRN, que acolheu minha pesquisa e me possibilitou ir a outros estados para apresenta-la.

Obrigada a todos os amigos e colegas que não mencionei o nome e são tantos, a todos que me deram força e ânimo.

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RESUMO

Esta pesquisa é produto de uma investigação teórica sobre a obra dramatúrgica do escritor inglês William Shakespeare e da morte das mulheres como elemento decisivo da tragédia, mediante a análise de três obras do autor: Tito Andrônico (1594), Hamlet (1601) e Otelo, O mouro de Veneza (1604). O trabalho se detém à análise dessas três obras para compreender os seguintes pontos: o silenciamento feminino, o direito da mulher sobre seu corpo e as reverberações da representação do feminino morto. O estudo sobre a morte feminina nas tragédias é realizado a partir da análise dos escritos de Nicole Loraux e do estudo de teóricas feministas, principalmente Naomi Wolf, sobretudo ao que concerne ao mito da beleza e a representação social feminina. Além disto, aborda-se a construção de um espetáculo cênico com base nestes estudos, para isto a principal base é a compreensão da construção da masculinidade, porque, aliado a compreensão do feminino, podemos tecer um panorama mais completo da violência que recai sobre a mulher. A partir dos estudos das três personagens das peças mencionadas, Lavínia, Ofélia e Desdêmona, da análise das mortes das mulheres na literatura e em alguns casos reais e da construção dramatúrgica deste objeto cênico, busca-se a compreensão da violência e do amor que recai sobre as mulheres tanto na vida, quanto na dramaturgia.

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RÉSUMÉ

Cette recherche est le fruit d'une réflexion théorique sur le travail dramaturgique de l'écrivain anglais William Shakespeare et la mort des femmes comme élément décisif de la tragédie, à travers de l'analyse de trois oeuvres de l'auteur: Titus

Andronicus (1594), Hamlet (1601) et Othello (1604). Le travail se concentre dans

l'analyse de ces trois œuvres pour comprendre les points suivants: la réduction au silence des femmes, le droit d'une femme sur votre corps, et les répercussions de la représentation de la femme tuée. L'étude sur la mort des femmes dans les tragédies est effectué sur l'analyse des écrits de Nicole Loraux et l'étude des théoriciens féministes, en particulier en particulier Naomi Wolf, sourtout en ce qui concerne le mythe de la beauté et la représentation sociale des femmes. De plus, la construction d'un spectacle scénique est basée sur ces études, la base principale étant la compréhension de la construction de la masculinité, parce que, avec la compréhension du féminin, nous pouvons donner une image plus complète sur la violence à l'égard des femmes. À partir des études des trois personnages des œuvres citées, Lavinia, Ofelia et Desdemona, de l’analyse de la mort de femmes dans la littérature et dans certains cas réels et de la construction dramaturgique de cet objet scénique, on cherche la compréhension de la violence et l’amour qui tombe sur les femmes dans la vie et le drame.

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Dedico este trabalho a todos os meus mestres, que não são tantos. E a todas as mulheres que eu admiro, um número incontável.

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SUMÁRIO

Introdução: ... 10

CARTAS ROTAS ... 19

Primeira carta das mulheres mortas ... 20

Carta das mulheres mortas que pensam ... 26

Carta das mulheres mortas que fazem inferências ... 31

Carta das mulheres mortas que indagam ... 37

Carta das mulheres que perderam a esperança ... 40

Carta das mulheres que foram mortas e sabem ler ... 44

Carta das mulheres que foram mortas e se despedem ... 48

CARTAS ECLIPSADAS ... 53

Que grande revolução nos espera quando os homens finalmente amarem as mulheres? ... 55

A grande revolução que será quando os homens conseguirem, apesar de seu desejo, manter seus falos dentro das calças ... 69

Quantas vezes maior um homem se vê sob o cadáver de uma mulher? ... 83

CARTAS A(o)S ARTISTAS ... 96

Carta I ... 98

Carta II ... 106

CARTA III ... 113

CARTA IV ... 115

A TRAGÉDIA MAIS INSIGNIFICANTE DO MUNDO ... 117

Carta final ... 128

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Introdução:

Carta de uma pessoa que pretende ser lida

Por que foges assim, barco ligeiro? Por que foges do pávido poeta? Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano, Tu que dormes das nuvens entre as gazas, Sacode as penas, Leviathan do espaço, Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

(Castro Alves)

Cara amiga,

Espero que não se zangue por julgar a princípio que sejas mulher. Talvez seja um homem que neste momento percorre os olhos por essas linhas com espaçamento 1,5 e letra arial tamanho 12, não importa. Julgar-te-ei como minha amiga. Não porque tu não me sejas caro, é sim. Demasiadamente caro. Tenho-te enorme carinho e meu coração se alegra porque nesse momento estás aqui e agora estamos, de alguma forma, em comunhão. Recentemente descobri o valor da cumplicidade feminina e por isso escolho tratar-te por confidente. Creio que primeiro deva me apresentar, pois talvez não nos conheçamos e aqui eu vou me expor de forma muito vulnerável a ti. Me chamo Fernanda, sou mestranda (enquanto escrevo isto, talvez quando você estiver a ler, eu já haverei

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de ter me tornado mestra) e formada em licenciatura em teatro pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Sou latino-americana. Brasileira. Nordestina. Potiguar. Formada em um núcleo familiar católico. Não sigo a doutrina, pois acho que é permeada de culpa e medo. Sou solteira. Sem filhos. 22 anos (talvez agora mais). Filha de um ex-representante farmacêutico e uma mãe desempregada. Há alguns anos descobri que uma das mulheres muito próxima ao meu convívio foi violentamente assediada moralmente no trabalho, além de também receber assédios sexuais por homens distintos, ambos seus chefes. No meio desta dissertação percebi-me performando a escrita.

Por que é importante falar isso? Porque escrever, sobretudo escrever para teatro (desde o princípio), é um ato político. Política está ligada a defesa de ideias e as ideias estão inseparáveis de quem somos, de onde falamos. Isto é o que me compõe, é daqui que eu falo e somente daqui posso conversar com você, porque este é o meu lugar no mundo.

Devo infelizmente confessar que me é bastante penoso escrever cartas. Não fui criada neste tempo onde as cartas são comuns, sou filha da comunicação instantânea e, por vezes, falho na escrita dessas cartas que me proponho fazer. Falta-me o tempo da espera e o tempo da surpresa. Quem escreve uma carta tem urgência de se comunicar, mas não tem exatamente pressa em ser correspondido.

Minha geração é menos feliz do que as anteriores no que concerne a comunicar-se. Queremos tudo demasiado rápido e não damos tempo às palavras. Muitas vezes falamos sem nos comunicar. Ontem conversava sobre isso com meu amigo João e ele me disse que 90% dos problemas atuais são causados por problemas de comunicação. É claro que este é um percentual altíssimo e inventado por ele próprio, mas ainda assim passei a pensar que os problemas causados pela má comunicação são muitos. Talvez por isso mesmo tenha optado por escrever este trabalho em cartas, por uma extrema necessidade de retomar a comunicação. E deleitar-se sobre o tempo.

Deleitemo-nos então aqui por uns momentos. Respiremos. Agora estamos prontos para ler o que há de vir.

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Como você já deve ter notado, eu sou mulher, por isto nasci colada ao meu sexo e ao medo de me violentarem. Ser mulher é viver arrastando a morte como uma possibilidade sempre presente. Porque o estupro é também uma maneira de matar algo dentro de uma mulher: mata-se a legislação sobre o próprio corpo. Lembro que quando eu tinha sete anos meu pai me chamou para conversar e disse que eu tinha de ter cuidado com os meninos e com os homens, que eles poderiam me fazer mal, que eu deveria me sentar com as pernas fechadas, não usar roupas que me mostrassem demais e deveria sempre sair acompanhada de um adulto, de preferência um homem. Ali eu tomei conhecimento, pela primeira vez, que o corpo da mulher é um espaço trágico, porque a tragédia, descobri sendo mulher, começa a nascer da palavra.

Compreendi, muitos anos após a conversa com meu pai, que ele foi o primeiro mensageiro da minha morte. Ele anunciou-a antes mesmo dela acontecer e ali matou a ideia de que eu era igual aos meus colegas meninos que tinham o mundo para si. O discurso é importante, porque, como afirma Nicole Loraux1,

tudo se passa nas palavras – É certo que ela está falando da morte das mulheres na tragédia e eu estou ampliando para a vida, mas no fim, tudo é o mesmo. Quando pensei em escrever sobre as mulheres na tragédia, deparei-me com um vasto campo ensopado de sangue e água. Falar das mulheres na peças trágicas, desde Antígona2 até Hamlet3, é, inevitavelmente, escrever sobre a morte das

mulheres nas tragédias. E para tratar de um tema assim tão delicado, me vi presa a condição teatral primordial: no teatro necessitamos no outro, o teatro é a arte do encontro. Deste modo, inevitavelmente, não poderia escrever sozinha esta dissertação.

O teatro não é uma coisa, mas um Senhor e todos nós estamos ligados a ele de uma maneira ou outra. E como disse Decio de Almeida Prado4 em sua carta para

1 Nicole Loraux foi uma helenista, antropóloga, historiadora e tradutora francesa, diretora de

estudos na École des hautes étudies em sciences sociales.

2 Tragédia escrita por Sófocles (em grego: Σοφοκλῆς, Sophoklês; 497 ou 496 a.C.- inverno de

406 ou 405 a.C ), por volta de 442 a.c.

3 Tragédia escrita por William Shakespeare (1564 — 23 de abril de 1616) entre 1599 e 1601. 4 Décio de Almeida Prado (São Paulo, 14 de agosto de 1917 — São Paulo, 4 de fevereiro de

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Cacilda Becker5: “Se o teatro se elevar, subiremos com ele. Caso contrário, se

permanecer na posição inferior atual, não passaremos de tristes e incompreendidos maníacos, desses que cultivam carinhosamente, humildemente, alguma pobre arte esquecida de todos”6. Quero, espero, almejo

sempre elevar o teatro, em cada ação banal do meu cotidiano, pois entendo a arte como a única possibilidade da humanidade.

Entretanto, o teatro é também um senhor que não se sustenta sozinho. Precisa-se de público, de uma economia favorável, de incentivos governamentais, etc, etc, então como poderia eu escrever só? Assim como o Teatro, sou relacional e ensimesmada em mim, haveria de morrer comigo, em algum momento, a escrita desta dissertação.

Pus-me então a pensar qual a melhor forma de responder a seguinte questão: “O que dizem -os silêncios d- as mulheres na tragédia?”. Analisando isto compreenderia se a representação que fazem da mulher é justa ou fantasiosa e talvez compreendesse porque se mata tanto as mulheres. Mas como dizer isto? A forma é de extrema necessidade para o Teatro, porque o modo de dizer também implica no que quer ser dito. E o que estou dizendo sempre foi uma coisa muito importante para mim, desde que eu me entendo como pessoa. Já tentei escrever de três formas este texto, e, muito embora talvez uma escrita formal fosse a mais indicada para expressar o conteúdo do meu trabalho, ela não comporta a dimensão do que sinto. E isto eu aprendi depois de uma conversa com meu grande amigo e mestre, Makarios Maia7.

Estávamos conversando numa sexta-feira à tarde na lanchonete da Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte quando ele me perguntou: “qual o albatroz da sua escrita?”. Não entendi a dimensão da pergunta à priori. Depois percebi que, com esta questão, ele queria saber como eu me aproximaria do assunto da representação trágica feminina e das mortes das personagens femininas na tragédia. “Albatroz” era uma referência ao trecho que encabeçou

5 Cacilda Becker Iaconis (Pirassununga, 6 de abril de 1921 – São Paulo, 14 de junho de 1969)

foi uma conhecida atriz brasileira.

6 PRADO, 1997, p. 77.

7 Professor, ator, encenador, dramaturgo, cenógrafo, compositor e pesquisador das artes do

espetáculo. Atualmente compõe o quadro de professores do curso de teatro da universidade federal do rio grande do norte.

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esta carta, que ele havia lido para mim pouco antes, e que é o meio com o qual o poeta se aproxima do navio. Qual seria o meu albatroz, de onde eu estaria falando sobre estas questões? Como mestre que é, Makarios me apontou uma possibilidade. E com seus trinta anos a mais, iluminou este caminho.

E pela luz dos seus trinta anos a mais, eu resolvi escrever a forma final para comportar o que eu quero dizer: Falo, escrevo, pelas mulheres que foram mortas. Eis aqui o próprio assunto se traduzindo em forma. Compreende porque a forma me é tão cara? E escrever por elas/com elas faz com que eu não me sinta só e assim possa ir adiante.

Queria poder dar-te mais. Queria fazer com que sentisses o apertar da corda, o corpo ensopando pouco à pouco de água e sendo arrastado pela correnteza ou o cheiro de sangue após o corte seco na garganta. Mas quando escrevo, tento da forma como posso, retirar-lhe da inércia da leitura acadêmica. Proponho um deslocamento sensível. Me acompanhe. Optei por uma escrita poética, delicada e fora das amarras acadêmicas. Afinal, estar em um mestrado de artes cênicas, não só me permite, como me mostra que é necessário se fazer uma escrita outra. Aqui devo agradecer a minha orientadora que sempre me apoiou a traçar novos caminhos e a investir na escrita performativa.

O primeiro lote de cartas foi perdido no tempo. Essas cartas jamais foram encontradas. Estão perdidas nos esgotos e baús naufragados. Estão cobertas de pó e banhadas em sangue. Serviram de alimento para as traças e, pelo tempo, poderiam se desfazer em pó ao mais leve toque das mãos. Entretanto, o que dizem jamais pode ser calado e persiste como eco nas brisas.

Imagine que honra foi para mim, poder ouvir no vento essas cartas. Toda tradução sempre deixa a desejar em algum ponto, mas me mantive o mais fiel que pude.

Há um sentimento novo em mim quando releio agora estas primeiras cartas. Esteja atenta à extrema necessidade que estas mulheres tem de comunicar-se e ao esforço que fazem para dizer o que pretendem.

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Essas mulheres, que há muito morreram, e muitas tantas continuam a morrer hoje e ontem, que foram assassinadas, pretenderam escrever em linhas que foram esquecidas, sua história e uma denúncia.

Amiga leitora, veja que as primeiras cartas tratam, sobretudo, do silenciamento e da representação feminina na ficção, mas também, obviamente, na vida. Falam da mulher como o “outro inessencial”, como bem disse Simone de Beauvoir8,

que foi lembrada por essas minhas irmãs esquecidas.

Quando essas mulheres mortas expressam melhor que eu mesma o que eu pretendo dizer, o que eu devo fazer? Minha mãe sempre me disse que é importante calarmos e ouvirmos, às vezes. Eis então o que eu fiz. Elas assumiram as letras e eu as ouvi, a fim de desvendar e escutar seus pensamentos. Não falo aqui em “dar voz”, não podemos “dar voz a ninguém”, cada um tem a sua, o que podemos fazer é escutá-las.

O segundo capítulo são cartas que recolhi em fragmentos entre as linhas das peças shakespearianas. Elas estavam roída por traças e eclipsadas sobre as negras letras do papel, mas ainda assim consegui lê-las.

Reuni os fragmentos em três cartas distintas, cada qual pertence a uma heroína Shakespeariana. A primeira é de Desdêmona. É uma carta curta, direta à Shakespeare. A mulher de Otelo questiona sobre o amor, sobre o ciúme e porque, no homem, o amor parece sempre manifestar-se como um impulso assassino, para além de um impulso suicida.

A segunda carta é de Lavínia. Ela, que foi estuprada e teve a língua e as mãos cortadas para que nada do que lhe foi feito fosse revelado. Aprendeu, com o tempo, a escrever cartas e a falar muito claramente sobre suas aflições. Lavínia escreve à Shakespeare na tentativa de compreender a quem pertence o corpo feminino, qual o direito que o homem tem sobre ele.

Por fim, juntei os trechos molhados que pertenciam a Ofélia. Ela, que muito pouco teve fala nas mãos do Bardo, escreve como quem se liberta. Escreve para tentar compreender que mecanismo de subversão é esse que os homens criaram para converter a morte de uma mulher num assunto estético e não mais

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trágico. A morte feminina passou a figurar no domínio da beleza e por isso comove, não por se tratar de uma perda ou de um fim.

São relatos demasiado vivos, muito embora se fale de morte. É uma tentativa de compreender não somente os fins, mas o meio das histórias. É uma negação do silêncio e finalmente uma busca por respostas.

Por fim, o último capítulo, a última série dessas divisões, sou eu que me correspondo com outras artistas.

Endereço cartas a quem faz teatro, na tentativa de iluminar um caminho onde possa ver a possibilidade da construção de um texto teatral. São cartas que tratam não somente do modo como eu crio a dramaturgia de um espetáculo baseada em todas essas cartas que encontrei, mas que também tratam-se de todos os abismos que carrego comigo pelo déficit da minha graduação na área de dramaturgia.

São caminhos por onde é possível ir e acreditar que a arte muda o mundo, porque a arte muda os sujeitos.

Eu espero, cara amiga, que você siga comigo nesta jornada para que ao final possamos nos olhar e dizer “conseguimos, estamos aqui, estamos vivas”. Fico feliz em fazer arte, fico feliz em poder ter a liberdade de tornar a forma o conteúdo. Fico feliz que vivamos em um tempo onde eu também possa escrever e estudar. E quem sabe até algum homem apreenda comigo.

Algumas das coisas que contei aqui talvez não tenham acontecido realmente, outras sim, mas que importa a veracidade das coisas perante o encanto que elas podem exercer? Freud já nos ensinou que se a verdade existe na fantasia de quem relata, em alguma instância o acontecimento se faz verdade, de fato. Assim é nos processos criativos; imaginamos e damos forma ao que inexiste, porque nele acreditamos e podemos concretizá-lo em arte. Não há aqui nenhuma mentira em qualquer instância, minha intenção jamais foi ludibria-la. Quero apenas contar-lhe algo e quero contar-lhe com alguma poesia para que não morras de tédio, muito pelo contrário fique embevecida e desfrute lentamente cada significante.

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Quem sabe, comece desde aqui o texto cênico que pretendo propor no último capítulo?

Com imensa alegria por estarmos juntas, Fernanda.

Junho de 2018.

P.S: Todas as referências, contendo normas da ABNT estarão em notas de rodapé, pois as cartas não se escrevem seguindo normas técnicas. Espero que a leitura seja prazerosa, mesmo que possa ser difícil em alguns momentos. O que digo é expresso com uma imensa necessidade de ser lido.

P.S.s: Todas as fotos foram tiradas por Caroline Macêdo em fevereiro de 2019, num ensaio que tinha como objetivo mostrar corpos violados. Carol é uma jovem fotógrafa potiguar cuja trabalho eu sempre admirei. Sobretudo suas fotos de cadeiras.

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CARTAS ROTAS

Essas cartas jamais foram encontradas. Estão perdidas nos esgotos e baús naufragados. Estão cobertas de pó e banhadas em sangue. Serviram de alimento para as traças e, pelo tempo, poderiam se desfazer em pó ao mais leve toque das mãos. Entretanto, o que dizem jamais pode ser calado e persiste como eco nas brisas.

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Primeira carta das mulheres mortas

Prezado W.S.,

Esperamos que esta carta não te encontre em má hora. Há muito tempo estamos quebrando nossas cabeças e estendendo nosso léxico na busca de encontrar as melhores palavras para podermos nos corresponder com o senhor. Entretanto decidimos que mesmo sem estarmos de acordo sobre qual o melhor termo a ser usado aqui ou ali, era urgente que escrevêssemos para você o quanto antes, porque a cada momento que passa, o mundo e o tempo nos distancia e nos aproxima em tamanha velocidade que a violência do choque ou da repulsão poderia fragmentar nossa memória, nossa existência. Isso, é claro, jamais aconteceria com o senhor, que é imortal. Dito isto, seria melhor iniciar o assunto que nos levou a urgência de escrever-lhe.

Nós, que já estamos mortas, escrevemos pelo substrato da voz que não se cala, escrevemos porque é necessário e nem mesmo o evento trágico nos silencia. Escrevemos porque morremos. Escrevemos na esperança que esta carta te alcance no futuro. Escrevemos para vós, ó Shakespeare, porque, como és imortal, tendo vivido todos os séculos, talvez saibas mais do que nós. Talvez o tempo tenha lhe ensinado e esclarecido coisas que para nós a morte confinou às sombras da ignorância. Buscamos a ti, Bardo, porque em todos esses anos sua obra parece se atualizar a cada vez que um par de olhos humanos a encontra. Encontram-se as mais variadas respostas de problemas atuais nas linhas que você escreveu séculos atrás, e talvez em ti encontremos a solução de nossas aflições.

Como, de forma tão subliminar, acrescentas textos nas suas entrelinhas? Quantos Hamlets você já fez, caro William? Ao longo desses mais de quatro séculos, por quantas vezes você recriou suas obras? Por que elas falam sempre algo novo se a fonte é só uma? Buscando nessas respostas encontrar a solução das nossas dúvidas, encaminhamos-te essa carta.

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Escrevemos para o Shakespeare do futuro, esse Shakespeare que não conhecemos e mal sabemos o que descobriu da própria obra, esse Shakespeare que deve ser muito mais sábio que o do presente, e ainda mais esclarecido do que nós que estamos no escuro da morte. Escrevemos-te porque existem alguns pontos na sua obra que muito nos chamam a atenção e nos tiram o sono, assim como nos tiraram a vida. Percebemos e padecemos dessas questões que, para além de suas letras, projetam-se na vida não ficcional. Talvez, se entendêssemos a gênese desses problemas, poderíamos encerrar essa questão atando com pontos essa ferida. Talvez você, William do futuro, já tenha notado e compreendido a importância dessas coisas, mas o Bardo do presente ainda não parece ter a consciência da necessidade do esclarecimento dessas coisas e por isso temos a urgência de alertá-lo para esses pontos.

A primeira coisa que precisamos entender é: o que vale mais, matar ou morrer? Você já deve saber que no século que sucede sua morte, Goethe9 instaurou a

grandiosidade e a poética do ato de morrer, sobretudo morrer por um grande amor. Em decorrência da publicação do livro Os sofrimentos do Jovem Werther instaurou-se uma série de suicídios que imitavam o destino do protagonista, desta forma a morte passou a ser compreendida como o desfecho final para qual a vida dos amantes foi feita. Para compreender a imensidão disto, note que denominamos efeito werther o pico de suicídios que pretendem copiar o ato de um suicídio amplamente divulgado. Você já deve ter ciência disto tudo, mas registramos novamente aqui para relembrá-lo do simbolismo da morte. Entretanto, você surgiu mais de um século antes de Goethe e morrer ou matar para você não é o mesmo que para ele ou Homero.

Na verdade, notamos que, para você, morrer não pode ser uma opção. Matar é a ação fundante. Matar é o que define o contorno do sentido da vida. Matar é uma ação fundamentalmente humana, fundamentalmente política. Morrer é está configurado na esfera do divino e por isso nenhum de seus personagens trágicos encontra a morte de maneira tranquila, plácida e natural. Todos são humanos, muito humanos e não podem morrer com divindade, não é, Shakespeare?

9 Johann Wolfgang von Goethe (Frankfurt am Main, 28 de Agosto de 1749 — Weimar, 22 de

Março de 1832), foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX.

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Hamlet existe porque deve lavar com sangue a memória da traição que seu pai sofreu; os Macbeth banham-se em espesso líquido carmim para vestirem a coroa; Titus Andrônico faz Tamora comer as vísceras de sua prole na busca por justiça.

Tudo isso nos atentou para o destaque dado ao ato de matar em sua obra. E por isso chegamos a seguinte análise: Matar aparece como uma condição fundante da sociedade. Arriscamos dizer das sociedades. O primeiro ser humano que pisou na terra matou um bicho qualquer para poder alimentar-se. Depois vieram as disputas com outras pessoas pelo alimento. Por terras. Por mulheres. Por poder. Por puro prazer da autodestruição também, por que não? Mas eis então que resta uma questão fundamental: quem matamos?

Esta pergunta, embora tola, William, é de extrema urgência porque na história da humanidade, quando olhamos aqui do presente, fica claro que matamos os

inimigos (Claro, matamos também muito animais que nos serviram de comida

ao longo da história. Mas estou me referindo aos humanos.) E os amantes? Também os matamos, não? Só quando o amor se confunde com uma outra coisa, semelhante a posse e poder, mas agora não é hora de falarmos disso, concentremo-nos no alvo da morte.

Isto parece óbvio: é claro que o alvo da morte são nossos inimigos. Entretanto, eis mais uma questão: se matamos os inimigos, por que na história da literatura

e na grande história mundial, mata-se sempre as mulheres? Matam-nos às

dezenas, às centenas, aos milhões.

Aqui entramos na razão de termos tido o ímpeto de escrevê-lo sem demora: Notamos que em sua obra morremos sempre, morremos como se morrer fosse regra entre nós, como se matar-nos fosse então uma necessidade. É assim que enxerga nossa existência, ó Bardo?

Quando e qual foi o fato que nos tornou as inimigas da humanidade?

Que mal pode uma mulher fazer aos homens, Shakespeare, se desde que inventou-se a sociedade, se definiu que a mulher nada mais seria do que o “sexus sequior, o sexo que sob qualquer ponto de vista é inferior, o segundo sexo, e em relação a cuja fraqueza deve-se, por conseguinte, ter

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consideração”10? (Veja bem, estas não são palavras nossas, mas do famoso

filósofo alemão Arthur Schopenhauer11, que foi lembrado por algumas de nossas

irmãs que escrevem esta carta).

Dito isso, temos muitas dúvidas e ficaríamos muito felizes se você pudesse nos escrever sua opinião sobre.

Quando nossa suposta inerente fraqueza tornou-se ameaça? Ou tornamo-nos fracas para os homens depois de eles quebrarem nossos ossos e nos matarem apedrejadas12? O que pensa você sobre isso, Shakespeare? Será que foi depois

de queimarem nossa carne nas fogueiras? Ou foi quando, ainda virgem, nos tomavam como cordeiro imolado e nos ofereciam em sacrifícios13?

O que tornou-nos inimigas? Fizemos então um exercício de suposição e chegamos à conclusão que talvez tenha sido a diferença primordial entre os sexos: a genitália. Estava ali colada a cada ser da espécie humana uma diferença, até então, impossível de ser transposta. Havia este bicho: humano. Entretanto, ele não era igual. Será esse o conflito primordial que fez com que os homens tornassem as mulheres suas inimigas? Será que foi isto que definiu a primeira disputa de poder da história? É esta a genealogia da nossa sociedade que ainda hoje é patriarcal?

Conversando entre nós, achamos por bem transcrever um trecho de O segundo

sexo de Simone de Beauvoir14, autora que unanimemente, entre as que sabem

e puderam ler, admiramos. O trecho é breve e conta o seguinte:

É de maneira formal, nos registros dos cartórios ou nas declarações de identidade, que as rubricas, masculino, feminino, aparecem como simétricas. A relação dos dois sexos não é a das duas eletricidades, de dois polos. O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos “os homens” para designar os seres humanos, tendo-se assimilado ao

10 SCHOPENHAUER, 2004. P 4.

11 Arthur Schopenhauer (Danzig, 22 de fevereiro de 1788 — Frankfurt, 21 de setembro de 1860)

foi um filósofo alemão do século XIX.

12 Segundo as leis do judaísmo, a mulher deveria ser apedrejada caso fosse violada na cidade,

onde poderia pedir socorro, e não o fez. KNIBIEHLER, 2016.

13 LORAUX, 1988.

14 Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, mais conhecida como Simone de

Beauvoir (Paris, 9 de janeiro de 1908 — Paris, 14 de abril de 1986), foi uma escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política, feminista e teórica social francesa.

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24 sentido singular do vocábulo latino vir o sentido geral do vocábulo homo. A mulher aparece como o negativo, de modo que toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade15.

É certo que o você poderá estar exclamando agora “ela só pensa assim porque é mulher”, de fato, Simone de Beauvoir é uma mulher, nós também somos, mas não podemos rebater tal pensamento que possa ter surgido em você com um simples “você pensa assim porque é homem”, pois não teria crédito algum (assim como cremos que a primeira afirmação não o possua, entretanto, ela é, ou podemos dizer, foi, visto que não sei como é este mundo no futuro onde a carta te encontra, socialmente aceita). Mas por quê? Talvez por essa disputa inicial e que até hoje persiste, essa disputa dos sexos que as gerações futuras não escolheram participar e ainda assim participam.

“A humanidade é masculina, o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo”16, escreveu

Beauvoir no mesmo livro; os homens (sinto muito falarmos aqui por generalizações, mas precisamos conversar sobre a grande história e este é o verbo que encontramos) subjugaram-nos como “o Outro”, o inessencial perante o essencial, que são vocês.

Se esta dicotomia se instaurou por uma necessidade de criar-se a sociedade, como afirmou Lévi-Strauss17 no trecho que transcrevemos logo abaixo, talvez

ela faça algum sentido. Lévi-Strauss escreve que:

A passagem do estado natural ao estado cultural define-se pela aptidão por parte do homem em pensar as relações biológicas sob a forma de sistemas de oposições: a dualidade, a alternância, a oposição e a simetria, que se apresentam sob formas definidas ou formas vagas, constituem menos fenômenos a serem explicados que os dados fundamentais e imediatos da realidade social18.

15 BEAUVOIR, 2016, p.11-2. 16 Idem, p. 16.

17 Claude Lévi-Strauss (Bruxelas, 28 de novembro de 1908 — Paris, 30 de outubro de 2009) foi

um antropólogo, professor e filósofo belga.

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Talvez ela, a dicotomia, tenha sido necessária num primeiro momento, mas porque permanecemos nela? Não seria, na verdade, um maniqueísmo paradoxal este? Veja bem, é uma disputa que, aniquilando-se de fato o “inimigo” só se perde, pois precisamos coexistir para sobreviver.

Quem saí vencedor numa disputa onde a vitória é um futuro estéril? Certamente não seremos nós.

Um dia vocês descobrirão que tampouco venceram. Por hora isto é o que podemos dizer.

Estamos no aguardo de suas respostas. Basta escrever uma carta e enterrá-la. Ponha uma pedra em cima. Se possível, envie-nos flores, adoraríamos recebe-las. E cigarros.

Até breve,Will. As mulheres que foram mortas

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Carta das mulheres mortas que pensam

Querido Will,

Ainda não obtivemos nenhuma resposta à nossa primeira carta. Não é uma cobrança, entendemos que devas ter muito a fazer, mas se possível, uma hora ou outra, escreva-nos, isso nos traria imensa felicidade.

Estivemos pensando muito sobre o que escrevemos na carta passada e notamos que ela não explicita todas nossas angústias. Podemos debater um pouco mais sobre isto?

Acho que melhor seria retomar o que escrevemos na carta passada, porque, se você a tiver perdido, não haverá ruídos em nossa comunicação:

1º Nós notamos que a ação fundante de suas peças é matar, não morrer. 2º Supomos que matamos sempre nossos inimigos para não nos subjugarmos a ele.

3º Percebemos que na história da humanidade mata-se muito as mulheres. 4º O que por dedução e consequência faz das mulheres inimigas dos homens (muito embora este cargo nos foi imposto por nosso próprio carrasco - mesmo que veladamente).

5º Por fim, Will, nos demos conta de que esse maniqueísmo dos sexos é autodestrutivo e paradoxal, visto que não há, de fato, vencedores.

Você está lembrado disto tudo que aqui transcrevemos aqui de maneira rasa apenas para reavivar a memória?

Esperamos que sim, por isto gostaríamos de lhe propor mais uma indagação que nos atormenta e não permite nosso descanso eterno: Como um ser humano é capaz de sujeitar o outro a condição objeto tão facilmente? Perguntamos isso porque ao tirar a vida de uma mulher, o homem, inegavelmente põe-se como dono do direito dela existir ou não, relegando-a ao papel de objeto.

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27

É claro que aqui retomamos mais uma vez à questão dos sexos, mas entenda, somos atormentadas por isto. O sexo foi o que nos fez morrer tão jovem, bruscamente ou violentamente.

Pode parecer um ponto básico: o sujeito se define sujeitando o outro a objeto. O homem se definiu sujeitando a mulher a objeto. As judias entre nós, lembram as preces matinais de seus maridos onde eles repetiam a cada amanhecer: “Bendito seja Deus nosso Senhor e o Senhor de todos os mundos por não me ter feito mulher”. Pense bem, Shakespeare, você não acha que esta é apenas uma forma de dizer “bendito seja Deus que não nos fez objeto”? Ou “bendito seja Deus que nos fez Sujeito e senhores e não coisa”? Por que eles agradecem por não ter nascido mulher? Talvez pela certeza (construída e não natural) da superioridade masculina enquanto sujeito, perante a mulher, mero objeto de seus desejos.

Esta ilusão de superioridade foi ao longo da história reafirmada por figuras como Schopenhauer (Sim, novamente ele, William). Parece mesmo, ao longo dos escritos da história, que a mulher não é um ser humano, mas uma espécie de bicho ou coisa. Analise por si só, se não é isto que está implícito nesse trecho escrito por Schopenhauer:

As mulheres existem somente para a propagação da espécie, e seu destino se reduz a isso; assim, elas geralmente vivem mais para a espécie do que para o indivíduo; no fundo, levam mais a sério os assuntos da espécie do que os dos indivíduos. Isso confere a toda sua essência e a todos seus impulsos uma certa leviandade e uma posição basicamente diferente da do homem, o que origina a discórdia tão frequente e quase normal no casamento19.

Percebe a armadilha? A mulher é quase exclusivamente um receptáculo de esperma, um meio para a fecundação de novos homens. Vivem para o outro e não para si. Escrevemos porque estamos aflitas em razão dessa lógica (ilógica) parecer persistir ainda na sociedade que hoje nossas irmãs vivem, lógica esta

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muito pautada no que afirmava o Rapport d’Uriel escrito por Julien Benda20 em

1946, quando escreveu que: “O corpo do homem tem um sentido em si, abstração feita do da mulher, ao passo que este parece destituído de significação se não evoca o macho... O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem”21. Não achamos que nosso corpo é incompleto, nem que nossa

existência é destituída de sentido sem vocês. Você pensa que só vivemos em razão de ti, Shakespeare? É uma pergunta extremamente honesta e sem mágoa, buscamos a ti porque se você criou a humanidade, como afirma o literata Harold Bloom, então, você melhor do que ninguém deve saber A verdade, esta grande verdade com um artigo em maiúsculo antes, que impede qualquer incerteza de prosseguir caminho.

Você pode também nos perguntar muito humildemente: “Por que vocês não contestaram a soberania masculina?”. Entendemos sua questão, mas não fomos nós que nos definimos como “o Outro”, como inessenciais. Como bem afirmou Simone de Beauvoir, a dependência da mulher não é consequência de uma evolução ou de um evento, ela não aconteceu, William e por isso é tão difícil achar suas raízes para arrancá-las de uma vez.

A posição da mulher foi formada a partir de uma oposição relacional primordial. Nós mulheres não destruímos essa relação porque os laços de opressão que nos unem a nossos opressores, vocês, é distinto de todos os outros. Nós somos “o Outro dentro de uma totalidade cujos dois termos são necessários um ao outro”22. De novo aqui se mostra ilógica aquela disputa entre os sexos, percebe,

Shakespeare? Tudo isso pelo seu caráter autodestrutivo.

A nossa dependência não aconteceu, porque, diferente da escravidão ou do

apartheid, nunca houve um evento histórico que marcasse formalmente a divisão

entre os sexos, aqui de novo estamos usando os argumentos de Beauvoir. Todavia, bom amigo, você há de convir que não partilhávamos o mundo em igualdade de condições com vocês, homens. Nunca partilhamos. A história é contada pelos vitoriosos e nossa história é essencialmente masculina. Vocês

20 Julien Benda (26 December 1867 – 7 June 1956), filósofo e novelista francês. 21 BENDA apud BEAUVOIR, 2016, p. 12.

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aparecem como vencedores porque a disputa foi criada por vocês, nos deixando assim em desigualdade de combate.

Mesmo quando começamos a tomar parte na elaboração do mundo, a escrever e construir nossa própria história, o mundo ainda é um mundo que pertence ao outro sexo. Durante muito tempo o homem teve poder financeiro sobre a mulher, por exemplo, sendo ele o dono da casa e mesmo do salário que nós ganhávamos como bem escreveu Virgínia Woolf23 em Um teto todo seu.

Neste mesmo ensaio, a autora argumenta sobre a questão das mulheres e a ficção e afirma que uma mulher precisa ter seu próprio dinheiro e seu próprio teto, um espaço próprio, se quiser escrever ficção. Quando seu sexo, já formado homem adulto e livre, precisou de permissão feminina para uma coisa tão simples, Shakespeare?

Nós, mulheres, precisávamos conquistar independência financeira para que pudéssemos escrever ficção. Vocês já a escreviam desde antes de Homero24,

muito antes de começarmos a contar a era de Cristo que já tem mais de dois mil anos. Até hoje muitas de nós lutam pelo direito de escrevermo-nos nas páginas da grande história mundial; uma luta iniciada por gerações passadas cujos espíritos ainda aqui se debatem diante de injustiças que permanecem mesmo após seus ossos já terem virado pó.

Por muito tempo usou-se o argumento, muito pautado na religião, de que o homem deveria ser o provedor e deveria proteger a mulher. Veja bem, ninguém nos protegeu, muito pelo contrário, desejaram-nos a morte e até mesmo sujaram as mãos com nosso sangue. Que mulheres são protegidas pelos homens? As que encaixam-se nos padrões de feminilidade? Não queremos ser protegidas, caro William. Queremos ser respeitadas e queremos viver longamente. Queremos menos falsa proteção e mais direitos. Nas palavras de Woolf:

23 Adeline Virginia Woolf, (Kensington, Middlesex, 25 de janeiro de 1882 — Lewes, Sussex, 28

de março de 1941) foi uma escritora, ensaísta e editora britânica. Condicionada ao impedimento de sua escrita, caiu em depressão e em 28 de março de 1941, Woolf colocou seu casaco, encheu os seus bolsos com pedras, caminhou em direção ao Rio Ouse, perto de sua casa, e se afogou

24 Homero foi um poeta épico da Grécia Antiga, ao qual tradicionalmente se atribui a autoria dos

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“Qualquer coisa pode acontecer quando ser mulher deixar de ser uma ocupação protegida [...]”25.

Proteger. Protegem-se as coisas delicadas, muito mais que as valiosas. Protegemos xícaras de porcelanas, gatos de cristais. Protegemos também o que temos medo que nos roubem ou nos tirem, como joias e a propriedade privada. Mas nós mulheres pertencemos ao mundo, este mundo que vocês insistem em tomar para si, e não somos feitas de vidro ou porcelana. Somos feitas da mesma matéria humana que vocês e não queremos ficar guardadas como pérolas e joias.

Deixemos a proteção para coisas, deixem-nos ser. Deixem-nos estar no mundo e ocupa-lo. Aí então, tudo pode acontecer.

Na espera de que possamos mais, As mulheres que foram mortas.

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Carta das mulheres mortas que fazem inferências

W. S,

A imortalidade é sempre vinculada à ignorância. Como você jamais morreu, como você ainda hoje persiste nesse mundo e reescreve suas obras, como anunciam que talvez você seja eterno, talvez você jamais conheça como é a existência aqui deste lado, por isso decidimos escrever-lhe para contar como é. Talvez assim ganhemos um pouco da sua afeição, atenção e obtenhamos alguma resposta.

Nós, que fomos mortas e somos muitas, ocupamos o mesmo lugar e formamos uma nação. Onde quer que se olhe, vê-se mulheres. Muitas. A perder de vista. Estamos no mesmo lugar porque fomos mortas, nos mataram ou nos obrigaram a suicidar-nos. Estão aqui Marielle Franco26, Virgínia Woolf (que até hoje carrega

as pedras nos bolsos), Joana D’arc27 e muitas, muitas outras. A maioria de nós

não tem o nome escrito nos livros de história, nem mesmo nas páginas de jornal. Somos muitas e nos enterraram sem lápide.

Numa mesma proporção às mulheres que pisaram na terra e lá foram assassinadas, existem as que foram escritas. Aqui a terra é ocupada em grande proporção pelas mulheres que a literatura criou para logo a seguir assassiná-las. Nos campos recônditos desta terra vagam Isolda, Antígona e Makária. Estão aqui também, todas suas filhas abortadas na dramaturgia. Ofélia, Lavínia, Cordélia, Lady Macbeth... Todas elas se reúnem e acendem fogueiras. Algumas choram, outras, cujas lágrimas secaram há muito tempo, carregam punhais nas bainhas. Por isso, tenha cuidado! Não garanto que a recepção será pacífica, quando aqui você chegar.

26 Socióloga, feminista, defensora dos direitos humanos e política brasileira, morta no Rio de

Janeiro em 14 de março de 2018. Até hoje, dia 10 de Julho de 2018, 118 dias após o assassinato, as investigações, que levaram até uma munição usada pela polícia do Rio de Janeiro não revelou quem mandou matar Marielle.

27 Joana d'Arc (1412 – 30 de maio de 1431), é uma heroína francesa e santa da Igreja Católica.

É a santa padroeira da França e foi uma chefe militar da Guerra dos Cem Anos. Foi executada na fogueira, em um auto de fé pelos Borguinhões em 1431.

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Imagino que você esteja se perguntando como é aqui. Aqui toda terra tem cor de barro. E existe muita, muita terra. Existe também um grande punhado de água, que ora é rio (doce e de uma correnteza às vezes mansa, às vezes violenta), ora é mar (com ondas ressacadas, que arrastam a terra). Existe também uma grande e frondosa árvore, cuidada por Eva que todos os dias nos distribui o fruto do conhecimento. Quando é primavera, flores macias e brancas nascem sob nosso corpo, e toda a terra se cobre de cravos, lírios, tulipas, girassóis... Algumas colhem flores, outras as escondem para que elas não desapareçam quando a primavera acabar. À noite, sentamos em roda e cada uma conta sua história para que não sejamos esquecidas. Isto é o mais importante.

Confessar-te-emos um segredo, para que você o propague pelo mundo para aliviar nosso sofrimento. Estamos aqui, mas muitas de nós estão sumindo. Explico.

Quando os vivos falam sobre nós, escrevem sobre nós ou pensam em nós, é como se nossa alma recebesse alívio, nossa carne ganha matéria e somos capazes de permanecer em pé. Então escrevemos e nosso grito ainda pode ecoar no mundo, porque não fomos esquecidas, porque ainda vive em alguma lembrança nosso corpo, nossa voz.

Imagine o seguinte: as almas que estão no inferno padecem de um calor intenso. O único alívio que recebem é quando algum vivo chora por elas. Nesse instante as lágrimas banham o corpo das almas e, por um breve momento, o calor não é tão insuportável. Mas há de chega o dia em que todos que poderiam chorar por quem se foi também morrerão, e aí só resta arder e quem sabe sumir. Conosco a lógica é semelhante.

Morremos, muito embora não quiséssemos morrer, por isso mesmo morrermos com uma denúncia atravessada na garganta. Morremos com um grito atravessado na garganta. Morremos com um homem atravessado na garganta. Se nos esquecerem, se ninguém mais falar do nosso nome ou se revoltar por nossa morte, pouco a pouco vamos sumindo. E é feroz a velocidade em que sumimos. Jyoti Singh28 e Marielle estão fortes como jamais foram, porque

28 Jovem indiana violentamente estuprada e agredida por cinco homens e um menor de idade

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centenas de pessoas choram por suas tragédias e se revoltam, e espalham suas denúncias para que crimes assim jamais ocorram novamente (embora ocorram neste exato momento). Todavia, Shakespeare, existem centenas de nós que foram mortas à menos de uma década e já não tem nenhum dente, ou dedo e o corpo todo foi reduzido a pó e as vozes a eco. Ninguém nos conheceu, ninguém nos chorou e ninguém gritou nossa dor.

Morremos queimadas, e não só nas fogueiras da santa inquisição. Mesmo em 2012, essa era a sétima causa mais comum de morte entre as mulheres com idades entre 15 e 44 anos em todo o mundo29.

Aqui estão as filhas de Eva, cada qual morta de uma forma, todas igualmente falecidas, fenecem aqui como cerejeiras no deserto. Mutilação genital. Abortos ilegais em condições dantescas. Assassinatos. Feminicídio. Crimes políticos. Estupros. Crimes “passionais”30. Crimes em nome da honra31. E silêncio. São

muito poucas de nós que conseguem ter um nome no jornal para denunciar esses crimes.

São muitas de nós que desapareceram para sempre, engolidas pela história. Nisto, nossas irmãs feitas na escrita tem vantagem sobre as de carne e osso, porque estão imortalizadas em livros (e muitas vezes também em quadros) e assim é mais difícil de serem esquecidas e sumir. É claro que de uma ou outra não restou nem o pó, apagaram-se por completo porque acabam se perdendo nas ruínas do tempo ou foram incendiadas na biblioteca de Alexandria.

29 “Algumas instituições calculam que 25 mil mulheres recém-casadas são mortas ou mutiladas

a cada ano, como resultado da violência relacionada ao dote. Neste caso, grande parte das mulheres tem o corpo incendiado.

De acordo com o estudo Global Burden of Disease, realizado pela OMS, edição 2012, as queimaduras são a 7ª causa mais comum de morte entre as mulheres com idades entre 15 e 44 anos em todo o mundo. Na região sudeste da Ásia, o fogo foi a 3ª causa mais comum dessas morte.” Fonte: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/violencia-contra-mulher/

30 A OMS e a Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres descobriram que mais de 35%

de todos os assassinatos de mulheres no mundo são cometidos por um parceiro íntimo. Em comparação, o mesmo estudo estima que apenas 5% dos assassinatos de homens são cometidos por uma parceira. Fonte: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/violencia-contra-mulher/

31 A ONU estima que, no mínimo, 5 mil mulheres são mortas por crimes de honra no mundo por

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Os males pelos quais padecem as mulheres de letra, William, muito se assemelham aos das mulheres de carne, porque a arte imita a vida (ou seria o contrário?).

As mulheres nascidas da marca da letra no papel não se livram de morrer e contam que existem rituais muito precisos para suas mortes. Por exemplo: As gregas (e aqui escutamos a voz das personagens dessas tragédias) nos contam que o suicídio é uma morte feminina, sobretudo aquele que se dá pelo enforcamento32, e quem me conta isto é Antígona. É como se culminasse, na

morte pelo laço, a expressão de toda feminilidade. É como se existisse uma lei da feminilidade, nos afirma a grega, “que determina que diante da própria infelicidade se ache uma saída no nó de um laço”33.

Ifigênia acaba de romper a sala desesperada, gritando: ELES NOS MATAM COM FACAS! COM FACAS TRANSPASSAM NOSSOS CORPOS COMO SE FÔSSEMOS ALIMENTO OU UM BICHO.

Nem só de suicídios morrem as mulheres, Shakespeare. Somos assassinadas também. Ifigênia foi degolada em sacrifício por Ésquilo e Eurípedes. Spaghé, ela explica. Este é o nome dado a essa morte, e que “caracteriza a morte pela espada como morte ‘pura’ em contraste com o enforcamento”34.

Pura, ou impura, preferíamos que a morte não fosse nosso destino. De nada vale morrer “puramente”, se somente vivas mudaríamos nossa história, você não concorda, ó Bardo?

Entretanto, continuemos, porque existem outras que clamam a palavra. Eis aqui Jocasta, que é duas: uma Jocasta de Sófocles e uma de Eurípedes. A primeira, talvez mais conhecida, enforca-se depois de descobrir-se amante do próprio filho, Édipo (Com certeza você conhece essa história, William, ela lhe foi ensinada na escola). A segunda Jocasta não se enforca, ela resiste ao sofrimento do incesto e só se mata muito depois com o mesmo gládio que seus filhos se chacinaram.

32 LORAUX,1988. 33 Idem, p. 29. 34 Idem, p. 37.

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Por quê isto é relevante, meu amigo Bardo? Porque a análise deste fato por Nicole Loraux (tão próxima do nosso afeto, que apesar de não ter sido assassinada, de vez em quando vem nos visitar) parece nos indicar que não existe saída para existir enquanto mulher. Nas palavras de Loraux:

A partir deste exemplo e de alguns outros cheguei a esboçar, evocando a morte trágica das mulheres, uma generalização onde o enforcamento estaria associado ao casamento – ou melhor, à supervalorização da condição de esposa (nymphe) – e o suicídio sanguinolento à maternidade, pela qual, nas dores “heroicas” do parto, a esposa se realiza plenamente35.

Vê? Parece que não existe saída para nós, as mulheres que foram mortas na tragédia. Imagino que nesse momento você proclame: “Mas as virgens estão salvas”. E adivinhe só? Não, não estão. Escreveu também Nicole: “as virgens não se matam, são mortas”36. Parece-nos um destino ainda pior. Porque não

foram elas enganadas pela falsa noção de autonomia, não “escolheram” elas a própria morte. A morte é dada às virgens como um presente nefasto e é uma condição sempre presente.

De novo, Ifigênia aqui toma a palavra. Ela pede para escrevermos a ti esclarecendo que ela foi morta em sacrifício no lugar que normalmente se põe um animal. Você deve ter percebido, William, que nada das mortes virginais era posto em cena, tudo era confiado a sugestão das palavras37.

(E aqui, caro Shakespeare, precisamos confessar-lhe que Ofélia deu uma leve risada de deboche e comentou com sua irmã mais próxima “ainda bem que mudou, não é?”)

Por que estamos falando sobre isso? Imagino que você deva estar se perguntando isso. Perceba:

- começamos falando sobre como vivemos aqui e da necessidade que temos em ser lembradas.

35 LORAUX, 1988, p. 39. 36 Idem, p. 63.

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- falamos de como mataram a nós, mulheres de carne e osso - falamos também de como mataram a gente, mulheres de letra. Há relação nisso tudo? Sim, há.

E como somos mulheres, e por sermos, sobretudo, mulheres mortas, sabemos que nem você, nem ninguém (por que afinal, em última instância estamos sempre falando com homens) irá acreditar em nós, por isso iremos argumentar nossa fala com as palavras de um homem. E não somente um homem, mas um homem europeu.

Entender a morte das mulheres de letra, talvez seja um caminho para compreender porque matam as mulheres de carne. Por que, William? Porque somos seres de linguagem (Prepare-se, aqui entrará o argumento masculino). Heidegger afirma que “a linguagem é a casa do ser. É nessa morada que habita o homem”38. Tudo se passa nas palavras, tudo está nas palavras. Talvez o que

seja escrito é a projeção de um desejo a ser também concretizado na vida. Ou a projeção de um desejo que foi concretizado e está sendo reapresentado.

Morrer parece ser uma atividade puramente feminina. O masculino, o viril, é matar. E nas suas obras, William, matar é imperativo. Já falamos sobre isso. Somos moldadas pela linguagem. Ela determina nosso lugar no mundo, porque nos atribui uma história mesmo antes de escolhermos quem queremos ser. A linguagem delimita nosso lugar no mundo, porque a cada sexo ela dá um conjunto de significações e determinações.

Se sempre nos matam, o que a linguagem quer dizer sobre ser mulher no mundo dos homens?

Com interrogações infinitas e muitas convicções, Nós, as mulheres que foram mortas.

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Carta das mulheres mortas que indagam

W. S.,

Contar histórias é um privilégio. Sobretudo quando se é mulher. Existem muitas formas de contar uma história e há mais de quarenta maneiras de dizê-las sem palavras, mas o repertório dos assuntos é escasso. Há anos e anos estamos ruminando sobre os mesmos temas. Traição, luta, poder, vingança e, é claro, o amor. E o ódio, que se parece muito com amor e às vezes é confundido com ele, não é mesmo, Shakespeare?

Por favor, gostaria que calmamente lesse essa história. Essa história velha e conhecida:

Havia um rei, um nobre, um homem que desejava poder mais. Havia uma mulher que era forte e se colocou em seu caminho. Ele a mata. Existe uma mulher que é sua amante, sua mãe. Ele desconfia dela. Ele termina matando-a. Acidentalmente ou não. Existe sempre uma mulher a ser morta. As ocasiões culminam em seu suicídio. Em seu assassinato. O repertório feminino impressiona pela escassez.

(Na vida, e na morte, fora da literatura o tema não tem fins muito variados. A maior parte das que aqui estão morreram por crimes passionais, e muitas das que um dia virão aqui terminar, temos certeza, será pela mesma razão.)

William, quando o amor excede e mata? Quando o amor se confunde com morte? Amamos, mas não desejamos morrer de amor. Isto é apenas um excesso da linguagem. Matar por amor, é confundir carinho com posse e afeição com poder. Não se mata porque se ama, se mata porque se julga ter poder sobre o outro.

E como variar o tema, Shakespeare? Como podemos fazer isso se a primeira pena a escrever uma estória mandou as mulheres calarem? O silêncio das mulheres começou quase concomitantemente ao início da literatura ocidental com a ocasião de Telêmaco dizendo a Penélope, sua mãe, para ela se calar na

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Odisséia39 e se reafirma na bíblia, quando está escrito no novo testamento “Eu

não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio”. Como então poderiam variar nossas histórias se sempre nos foi reservada a mudez?

É certo que você deve ter notado que, ao longo dos anos, a boca muda das mulheres, uniu-se a dedos ágeis. É fato que passamos a escrever nossas histórias. E quando escrevemos isso referimo-nos às mulheres de carne, essas registradas em cartórios, que apodreceram sob a terra, e que depois vieram a influenciar a escrita dos homens para então poder haver algumas mudanças nas mulheres de letras, essas cujo corpo só existe nas curvas e linhas das letras, parágrafos e estrofes.

Todavia, Bardo, há aqui um empecilho primordial. Pois compreendíamos desde muito cedo e através de uma herança cultural muito arcaica, que a esfera pública é a esfera masculina e que uma mulher falando em público, na maioria das vezes, não era, por definição, uma mulher40.

O que eram estas mulheres então? O que éramos?

Que poder deformador é este que a voz tem ao sair da garganta feminina? Que força é essa capaz de transformar a mais doce donzela numa besta? Como a escrita, ao sair de mãos feminis, deforma o corpo fazendo-nos abandonar a imagem de mulher e nos convertermos em animais? Como a palavra modifica a estrutura de uma mulher? Que força sobrenatural ela lhe confere? Como uma mulher com voz se parece? Que rosto ela tem? E os olhos são de cabra? Que tamanho tem a boca? Uma mulher com voz é uma mulher com asas? Quem tem medo de uma mulher que escreve? Ela se parece mais com um ser humano? A morte, campo aberto para as palavras, transfigurou-nos em pessoas. Lamentamos sua imortalidade, pois não podes desfrutar assim de liberdades singelas da morte, uma delas: ser quem é e ser dona de si e das suas palavras. Mas sendo homem, cremos que podes desfrutar disto em vida, não é, Shakespeare?

39 BEARD, 2014. 40 BEARD, 2014

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Talvez, uma mulher que saiba falar, possa falar, que saiba escrever e possa escrever, assuste tanto os homens porque se parece muito com eles.

O que pensa você sobre isso, Shakespeare?

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Carta das mulheres que perderam a esperança

William,

Há um sentimento novo em relação a você. É uma tristeza, que traz consigo resignação e desalento. Não cremos que nos compreenda bem. Há uma coisa que se move em nós que inexoravelmente nos afasta. Não sentimos que realmente nos compreenda. Isto é terrível. Poderíamos mesmo chorar, mas estamos secas.

Tem uma carta de Augusto Frederico Schmidt41 para sua esposa, Yedda, que

diz o seguinte:

Seria preciso que tu viesses debaixo de uma grande chuva, cheia de uma piedade infinita e que me desses imediatamente todo o teu carinho — todo o carinho da tua alma. Seria preciso que me desses, para o meu abandono, todo o teu abandono. Que só eu estivesse em ti, que me abrigasses no teu coração com uma violência realmente maternal. Seria preciso tudo isso para que o nosso amor estivesse salvo.

Sentimos o mesmo em relação a você. Sentimos que não há salvação para nosso afeto porque não há empatia. Porque onde deveria haver compreensão e diálogo, impera o silêncio. Nos diga, Shakespeare, quem mandou matar todas essas mulheres que aqui estão? Nos diga somente isso e aí então pararemos de nos corresponder com você e iremos falar diretamente com ele.

Não sabemos com quem falar, mas como ouvimos que você criou a humanidade42, remetemo-nos a ti para que descubras na tua criação nossas

respostas. Enquanto não descobrimos quem mandou nos matar, somos tristes e incompletas.

41 Augusto Frederico Schmidt (Rio de Janeiro, 18 de abril de 1906 — Rio de Janeiro, 8 de

fevereiro de 1965) foi poeta da segunda geração do Modernismo brasileiro.

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Por falar em tristeza, não sabemos se você sabe, mas Pandora é a mulher mais triste que já morreu. Pandora foi a primeira mortal43 e já nasceu com a

incumbência de ser um fardo. A primeira mulher foi uma forma dos deuses punirem a humanidade. Trágico, não é, William?

Somos todas, desde então, um castigo? Quem marcou nosso sexo com o signo da culpa?

Veja, Pandora abriu a caixa deixando escapar todos os males, Eva, enganada pela serpente, induziu Adão a comer o fruto proibido, Lady Macbeth, com o desejo de ser rainha (ou seria ser rei?), levou a Escócia a afogar-se em sangue.

Será somente a mulher que é vil e errônea nesta terra?

Talvez estejamos analisando nosso sexo por termos injustos, pois pode ser que a linguagem seja, como afirma Luce Irigaray44, falocêntrica. Deste modo,

estamos errando ao teorizar o feminino em termos de uma determinada relação entre o masculino e o feminino nos discursos dados, porque a própria noção de discurso não é relevante quando a linguagem é propriedade de um sexo45.

Poderíamos também usar as palavras de Judith Butler: “A relação entre masculino e feminino não pode ser representada numa economia significante em que o masculino constitua o círculo fechado do significante e do significado”46.

William, nesta economia de linguagem em que o masculino é significante e significado, nós mulheres não somos muito diferentes de um ser “ocasional”, como declarava Sto. Tomás. Nós não somos muito mais do que um ponto de ausência linguística, pois nunca nos é dada a oportunidade de sermos sujeitos. Nós somos sempre sujeitas às suas vontades.

William, espero que este apelo aqui escrito seja compreendido por você! Nós cremos que a mulher não é, não pode mais existir alicerçada pelo homem. A mulher não é o segundo sexo, resultado de um desvio do sexo masculino perfeito, a mulher não é a “falta” ou o “outro”. A mulher é. Quem sabe precisemos

43 SCHMITT-PANTEL apud KNIBIEHLER, 2016.

44 Luce Irigaray (nascida em 3 de maio de 1930) é uma feminista francesa, filósofa, linguista,

psicolinguista, psicanalista e teórica cultural.

45 BUTLER, 2017, p. 33. 46 Ibidem.

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criar uma nova economia da linguagem! As mulheres também devem ser postas como sujeitos da linguagem e das significações, não achas, Bardo?

É precisamente sobre isso que quiçá tenhamos errado até aqui! Temos nos referido a nós mesmas como uma massa uniforme e uníssona do sujeito feminino. Temos reduzido a vasta pluralidade que somos numa única máscara de mulher que não cabe a todas nós.

Na economia da linguagem “homem” é tanto a universalidade da espécie humana, como o sujeito masculino individual. Todavia, não enquadra-se os sujeitos masculinos todos numa universalização já posta e arquetípica deste nome. Por que o fazemos com a mulher?

Melhor seria libertarmo-nos disto e assumir que cada mulher performa o gênero feminino à sua maneira, como afirma Butler47.

A quem serve definirmo-nos como uma só máscara e cabermos numa só palavra?

Virgínia Woolf acaba da levantar-se do seu leito. Cansada, ela profere, e todas nos calamos: “Aos homens. Isto serve sempre mais aos homens do que a nós”. E continua:

As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural. (...) Seja qual for seu uso nas sociedades civilizadas, os espelhos são essenciais para todas as ações violentas e heroicas. É por isso que tanto Napoleão quanto Mussolini insistiam tão enfaticamente na inferioridade das mulheres, pois se elas não fossem inferiores, eles deixariam de crescer48.

Calamo-nos.

Somos espelhos dos homens ou somos um castigo para vocês, William? Poderia um homem admitir realmente o que somos? Poderíamos nós nos definirmos por nós mesmas? Seria a relação de alteridade entre os sexos, uma relação que

47 BUTLER, 2017. 48 WOOLF, 2014, p 54-55

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prioriza a construção falocêntrica? Para Irigaray, sim. Algumas das mulheres que aqui estão recitam como um credo que: a mulher “não é o sexo que é designada a ser, mas, antes, é ainda – encore (e en corps) – o sexo masculino, apresentado à maneira de alteridade”49.

Será este o motivo para a falta de compreensão no nosso diálogo? Será que é porque quando olhamos para ti, Shakespeare, vemos uma pessoa e quando você olha para nós, vê muitos reflexos que te engrandecem?

Esperando compreensão, Cada uma das mulheres que foram mortas.

Referências

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