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Tradução anotada dos Medicamina Faciei Femineae, do poeta Ovídio

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM MESTRADO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

TRADUÇÃO ANOTADA DOS MEDICAMINA FACIEI FEMINEAE, DO POETA OVÍDIO

TASSIANA DE BRITO VIANA MARQUES

NATAL-RN 2020

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TASSIANA DE BRITO VIANA MARQUES

TRADUÇÃO ANOTADA DOS MEDICAMINA FACIEI FEMINEAE, DO POETA OVÍDIO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção de título de Mestre em Estudos da Linguagem. Área de Concentração: Linguística Teórica e Descritiva

NATAL – RN 2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Marques, Tassiana de Brito Viana.

Tradução anotada dos Medicamina Faciei Femineae, do poeta Ovídio / Tassiana de Brito Viana Marques. - Natal, 2020. 95f.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Hozanete Alves de Lima.

1. Ovídio - Dissertação. 2. Poesia antiga - Dissertação. 3. Roma - Dissertação. 4. Poesia didática- Dissertação. 5. Elegia - Dissertação. 6. Feminino - Dissertação. I. Lima, Maria Hozanete Alves de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.09 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

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TASSIANA DE BRITO VIANA MARQUES

TRADUÇÃO ANOTADA DOS MEDICAMINA FACIEI FEMINEAE, DO POETA OVÍDIO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção de título de Mestre em Estudos da Linguagem. Área de Concentração: Linguística Teórica e Descritiva

Data da defesa:_____/_____/_________

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Maria Hozanete Alves de Lima (Orientadora) (Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN)

____________________________________________________________________

Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa (Examinador Interno) (Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN)

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Francisco Edi de Oliveira Sousa (Examinador Externo) (Universidade Federal do Ceará – UFC)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente:

A Deus, pelo dom da vida, saúde, força e disposição.

À minha orientadora, Profª. Drª. Maria Hozanete Alves de Lima, por toda paciência, empenho e partilha do saber, sem os quais não seria possível a realização deste trabalho.

Aos professores com os quais tive a oportunidade de estudar na pós-graduação, pelos ensinamentos de grandíssimo valor que me foram passados.

À minha mãe, pelo amor, incentivo e apoio incondicionais.

À Coordenação de Apoio de Pessoal de Nível superior (CAPES), pela concessão de bolsa durante a realização deste mestrado.

E a todos os amigos e colegas que direta ou indiretamente contribuíram para a conclusão deste trabalho.

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Quem é belo é belo aos olhos – e basta. Mas quem é bom, é subitamente belo. Safo de Lesbos.

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RESUMO

Esta dissertação consiste em uma tradução anotada do poema Medicamina Faciei Feminea, que traduziremos como Cosméticos para o Rosto da Mulher. A obra em questão foi escrita pelo poeta romano Ovídio, no primeiro século a. C. Pretendemos apresentar uma análise minuciosa da obra, buscando descobrir quais motivos fizeram com que este poema fosse menosprezado pelos estudos literários, mesmo tendo sido escrito por um dos maiores expoentes da literatura romana. Levantamos algumas hipóteses para justificar o desapreço que a obra sofreu: o tamanho do texto, o tecnicismo excessivo da linguagem, a "futilidade" do tema e a questão de ser um livro didático dedicado ao público feminino. Após estudar com interesse todos os argumentos, concluímos que uma série de fatores contribuiu para o descaso sofrido. Além das questões já citadas, também percebemos que o texto apresenta um caráter fragmentário, e ainda, caracteríticas de um trabalho de transição. Mas, com todas suas peculiaridades, a leitura dos Medicamina se faz intrigante para aqueles interessados nas obras ovidianas.

Palavras-chave: Ovídio, poesia antiga, Roma, poesia didática, elegia, mulher, feminino, beleza

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ABSTRACT

This dissertation consists of a commented translation into Portuguese of the poem Medicamina Faciei Femineae, now translated as Cosmetics for the Female Face. This poem was written by the Roman poet Ovid in the first century b. C. We intend to present a thorough analysis of the work, in order to find out the reasons why this poem was underestimated in the literary studies, even though it was written by one of the greatest Latin literature exponents. We raised several hypotheses to justify the lack of appreciation that the work suffered: the text size, the excessive technicism of the language used in the poem, the "futility" of the theme and the fact of being a poem dedicated to the female audience. After studying with interest all the arguments, we concluded that a series of factors explains why the work was neglected. In addition to the issues already mentioned, we also realize that the text is fragmentary and also has characteristics of a transition work. Nevertheless, with all its peculiarities, the reading of Medicamina is intriguing for those interested in Ovidian pieces of writing.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 9

2. OVÍDIO – VIDA E OBRA ... 12

2.1. Arte de Amar – Remédios para o Amor – Cosméticos para a face da mulher ... 20

3. A POSSIBILIDADE DA TRADUÇÃO ... 39

3.1 Traduzindo, uma vez mais, obras clássicas ... 45

4. MEDICAMINA: TRADUÇÃO E CONTEÚDO ... 50

4.1 A puella elegíaca e a puella ovidiana ... 58

4.2 O imoral da magia e a moral da virtude ... 66

4.3 Remedia faciei ... 70

5. CONCLUSÃO ... 79

6. REFERÊNCIAS ... 84

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1. INTRODUÇÃO

Em nosso trabalho, desenvolvemos uma tradução comentada do texto Medicamina Faciei Femineae (doravante, também, Medicamina), escrito pelo poeta Ovídio, no primeiro século a.C. De acordo com os estudos literários, o poema, que contém apenas 100 versos, não chegou completo até nós. Além disso, dentre toda a poesia ovidiana, Medicamina Faciei Femineae, que traduzimos aqui como Cosméticos Para o Rosto da Mulher, é um dos seus poemas menos conhecidos e estudados. A partir do que já se tenha pesquisado e comentado sobre a obra, talvez possamos entender o conjunto de razões condicionantes ao pouco efeito que ela tenha promovido nos estudos literários. Nossa tradução e comentários se fazem, assim, sob um lastro pequeno, mas de significativa cientificidade.

No Brasil, a tradução mais conhecida e referendada do texto Medicamina é a de Antônio da Silveira Mendonça, publicada em 1994, em uma edição bilíngue1, juntamente com a obra Remedia Amoris (Remédios para o Amor).

Também contamos no Brasil com uma tradução de 20042, atribuída, ainda que polemicamente, a Pietro Nassetti3. A obra foi lançada em uma edição de bolso, na qual constam também a Arte de Amar e Remédios para o Amor. Outra edição de bolso com essas mesmas três obras do poeta é de 2001, tradução de Dunia Marinho da Silva4. Há evidências de que se trata de uma tradução indireta, por interposição da tradução francesa de Théophile Baudement (OVIDIO, 1999)5, ainda que a edição brasileira não traga qualquer informação a respeito dessa possibilidade.

Não podemos deixar de citar a tradução de Marcelo Vieira Fernandes, em seu artigo A Poesia Didática Elegíaca e a Poesia Elegíaca Didática dos Medicamina de Ovídio, e Ovídio,

1OVÍDIO. Os Remédios do Amor e Os Cosméticos Para O Rosto da Mulher. [Trans.: Antônio da Silveira Mendonça] São Paulo: Nova Alexandria, 1994. (Remedia Amoris et Medicamina faciei feminae).

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OVÍDIO. A arte de amar. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004.

3Embora a tradução da editora Martin Claret tenha sido atribuída a Pietro Nassetti, uma análise mais aprofundada torna concludente que tal pessoa nunca de fato existiu. A tradutora Denise Bottman examinou diversas obras supostamente traduzidas pelo citado, concluindo que se tratavam de cópias de traduções já existentes, somente com a substituição de algumas palavras por outras mais populares (CARVALHO, 2014). A editora atribuiu a Nassetti traduções de Balzac, Descartes, Esopo, Maquiavel, Ovídio, Platão, Poe, Rousseau, Schopenhauer, Shakespeare, Voltaire, dentre outros. A variedade de autores e idiomas, bem como o pouco tempo entre as traduções, corroboram com a conclusão de que não se refere a uma pessoa real.

4 OVÍDIO. Arte de Amar. Tradução de Dunia Marinho da Silva. Porto Alegre: L&PM, 2001. 5

Gonçalves observa as várias semelhanças que há entre as traduções brasileira e francesa, como o nome das subseções e as inúmeras coincidências lexicais (GONÇALVES, 2017).

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10 Produtos para a Beleza Feminina: tradução poética, de 20126, na qual o autor traz uma discussão sobre o gênero em que o poema foi escrito e a escolha da métrica.

Contudo, mesmo havendo as citadas traduções, acreditamos que nosso trabalho é justificado por se tratar de uma tradução de caráter didático, acadêmico e filológico. Nosso objetivo geral não é só apresentar uma tradução, mas uma tradução anotada, em que buscamos refletir, de modo intenso – na intensidade que o nosso fôlego permite, haja vista acreditarmos ser sempre possível dizer mais –, sobre temáticas específicas presentes no texto ovidiano. Verificamos que, de uma maneira geral, existem poucos trabalhos acadêmicos no Brasil e no mundo que deêm atenção aos Medicamina. Muitas nos parecem as razões ou a problemática evidenciadora da pouca importância que se tenha atribuída à obra de um autor de reconhecida notoriedade. Reconhecemos, depois de repetidas leituras, que Medicamina se integra muito bem no conjunto da obra de um poeta que se insere de uma maneira particular com o tempo histórico em que viveu.

Vários fatores são apresentados na literatura para justificar o pouco interesse em relação à obra. Um deles está diretamente relacionado ao tamanho do texto, principalmente quando comparado com outras obras do autor. Medicamina é composto apenas de 100 versos; Ars Amatoria, uma das obras mais famosas de Ovídio, contém, somando todos os três livros, 2.330 versos; Metamorphoseon libri (As metamorfoses), totalizando seus 15 livros, tem 11.995 versos.

O tamanho da obra pode não ser um bom argumento, especialmente se lembrarmos, por exemplo, do texto Sobre a Natureza, de Parmênides, um tratado filosófico originalmente formado por cerca de 800 versos, mas dos quais somente 160 chegaram e, ainda assim, são versos muito bem referenciados. Sabemos que tantos outros poemas de poucos versos recebem destaque e se mantém como referência. Podemos citar a ode Carpe Diem, de Horácio, que com seus oito versos inspirou tantos episódios artísticos.

Outra hipótese poderia estar ligada à temática de caráter ligeiro, sem aprofundamento e sem importância social. De fato, em uma breve leitura, já nos deparamos com questões ligadas à mulher em uma sociedade desenhada pelo patriarcalismo. Existe a possibilidade de

6FERNANDES, Marcelo Vieira. A poesia didática elegíaca e a poesia elegíaca didática dos Medicamina de

Ovídio, e Ovídio, Produtos Para a Beleza Feminina: Tradução poética. Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos. Vol. 25, Nº 1/2 (2012).

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um livro dedicado ao embelezamento feminino não ter sido considerado como interessante o suficiente para ganhar importância ao longo do tempo.

Outra hipótese levantada pela literatura diz respeito ao tecnicismo da obra. Toohey (1996, p.158) opina que Medicamina, ao oferecer prescrições para cosméticos, é o poema mais técnico de Ovídio, e é também muito menos divertido do que suas demais obras, embora o autor admita que a concepção da obra em si seja brilhante, por focalizar, didaticamente, um assunto incomum à época — a beleza feminina.

Seria, então, o tecnicismo do poema motivo suficiente para que fosse “menosprezado” pela literatura? Decerto, é compreensível que versos que ensinam como se deve misturar cevada ao ovo para produzir uma pomada possam ser considerados menos interessantes do que conselhos “brincalhões” sobre a arte da conquista amorosa, tema principal dos três livros da Ars Amatoria . Sabemos que os jocosos conselhos da Ars contribuíram, sem dúvida, para o exílio de Ovídio: sua Arte de Amar é “imoral” para a época, em vários aspectos. E quanto aos Medicamina, como teriam sido recebidos pela sociedade augustana?

Estudamos com interesse todos os argumentos e, em certos momentos, concordamos com a defesa de que o texto se mostre fragmentário – considerando que muitos de seus versos tenham se perdido. Mas veremos que Medicamina guarda em seus versos as marcas de uma historicidade que deve ser ressaltada. Os Cosméticos para o Rosto da Mulher podem nos oferecer, nesse sentido, algo mais do que uma primeira leitura superficial deixaria transparecer. É necessário reconhecer o valor da obra em seu contexto de criação e iluminá-la no conjunto dos escritos de Ovídio.

Marcada pelo tom professoral, a poesia de Ovídio se insere no quadro do que a tradição clássica denominou “escrita didática”. Há, nos Medicamina, dois pontos fundamentais quando consideramos esse didatismo: o interlocutor ovidiano e o diálogo que ele mantém com outros autores e com sua própria obra. Pretendemos explorar as específicas analogias, recorrentes no texto ovidiano, que bem poderiam ser manifestos de credibilidade para o que o autor defende. Porém, sabemos que os Medicamina, pelo seu ritmo, se inserem no gênero da elegia, e tal gênero não tinha o mesmo compromisso social atribuído à épica, gênero em que, de modo geral, as poesias didáticas eram versadas. Exploraremos também as caracteríticas elegíacas da obra e essa inusitada escolha do poeta.

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Nossas reflexões se inserem no seio de uma revisão crítica, recorrendo e reativando problematizações já evidenciadas por estudiosos da obra ovidiana. Nosso estudo, que envolve os aspectos linguísticos, estilísticos e textuais da obra, leva em consideração o contexto histórico, político e social em que viveu o autor.

De natureza qualitativa, esse estudo tem como fontes básicas a obra Medicamina e os estudos – ainda que pouco numerosos – já estebelecidos sobre ele.

Nossas reflexões se distribuem em quatro capítulos, afora as conclusões e as referências. Neste primeiro capítulo, que nomeamos de Introdução, problematizamos sobre a obra Medicamina, apresentando, de forma pontual, nossas questões e objetivos.

Em seguida, no segundo capítulo, apresentaremos um panorama biográfico do poeta Ovídio, dando ênfase às obras diretamente interligadas aos Medicamina, sendo elas, Arte de Amar e Remédios para o Amor. Em um terceiro momento, recorreremos às teorias da tradução para justificar nossa prória tradução e, tanto mais, para defender a importância que há em se estabelecer traduções anotadas, ainda que essas traduções pontuem um ou outro aspecto da obra.

No quarto capítulo, desenvolveremos a tradução com anotações sobre pontos específicos, dentre eles, uma reflexão sobre o principal interlocutor da obra Medicamina, as puelae a quem o poeta se dirige. Seguem a este capítulo as conclusões e as referências. Também anexamos o texto ovidiano verso a verso, seguido da nossa tradução.

2. OVÍDIO – VIDA E OBRA

Na literatura, muitas informações são dadas sobre a vida de Ovídio. É de senso comum que Publius Ovidius Naso nasceu na cidade italiana Sulmona, em 43 a. C., durante o tumultuado período de transição do governo de Júlio César, mas cresceu na estabilidade do governo de Augusto, época em que a poesia romana se desenvolveu com maior vigor. É a chamada Época de Ouro da literatura latina

Seu pai, que fazia parte da ordem equestre romana, desejava que o filho seguisse carreira política, fornecendo-lhe para isso uma educação sofisticada em Roma. Todavia,

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Ovídio ocupou somente alguns pequenos cargos, tendo atingido a posição de triumvircapitalis7 – triúnviro-capital (ROSE, 1996, p. 323)

Para desagrado de seu pai, Ovídio abandonou sua breve carreira política, com o intuito de dedicar-se às atividades literárias. Seus primeiros trabalhos foram curtas elegias, gênero consagrado em Roma por Tibulo (54 a.C – 19 a.C.) e Propércio (43a.C – 17 d.C.). Os três poetas compõem a chamada tríade elegíaca do período augustano, sendo que Ovídio foi o único dos três que se dedicou a outros gêneros além da elegia.

Seu trabalho de estreia na cena literária foi a obra Amores, composto por três livros e um total de 45 poemas elegíacos. A maioria trata do amor do poeta por Corinna, uma mulher que as evidências históricas demonstram nunca ter existido, mas talvez seja uma amálgama de várias mulheres com as quais Ovídio já se relacionou, ou, o mais provável, seja simplesmente uma personagem fictícia criada pelo poeta para ser o objeto de desejo de seu eu-elegíaco (ROSE, 1996, p. 327). Eventualmente o vate se dedica a outros temas, como na Elegia IX, do livro 3, que dedica à morte de Tibulo, seu amigo pessoal e grande fonte de inspiração. Alguns estudos linguísticos mais aprofundados dessa elegia demonstram que Ovídio emulou um pouco do estilo poético de Tibulo para compor essa homenagem (TAYLOR, 1970, p.474), demonstrando desde cedo sua versatilidade.

Sabe-se que Ovídio escreveu a tragédia Medea, provavelmente entre as edições de Amores, mas infelizmente só chegaram até nós dois versos preservados. De acordo com Rose (1996, p.337), além de Medea, muitos outros trabalhos se perderam, como a Gigantomachia, uma poesia épica sobre a batalha de deuses e gigantes, que permaneceu inconclusa, e um epitáfio para o cônsul Fábio Máximo. Esses mencionados são trabalhos escritos na sua juventude, mas a literatura cita também algumas obras perdidas que foram escritas no seu desterro: vários epigramas satíricos; dois poemas didáticos sobre astronomia e pescaria; e um poema sobre a apoteose de Augusto escrito no idioma geta, falado pelo povo que vivia em Tomos, ilha no Mar Negro, localizada na atual Romênia, onde Ovídio viveu seu exílio. Talvez esse último tenha sido a mais significante perda, pois seria interessante analisar o idioma geta pela ótica filológica, como defende Rose (1996).

Voltando às suas obras conhecidas, depois de Amores, Ovídio lançou um trabalho mais ambicioso: Heroides, uma série de cartas elegíacas em que o eu lírico são heroínas da

7 Gestor de prisioneiros.

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mitologia que escrevem para seus maridos ou amantes ausentes. Temos, pois, Penélope escrevendo para seu amado Ulisses, lamentando sua ausência por tantos anos, na Heroide I; Fedra, esposa de Teseu, escrevendo para seu sobrinho Hipólito, para confessar seu amor incestuoso, na Heroide IV; Medeia escrevendo para Jasão após ele trocá-la por Creusa na Heroide XII; dentre outras figuras mitológicas, totalizando um total de quinze. A única personagem inspirada em uma mulher real é Safo, que escreve para seu ex-amante Faon, depois dele abandoná-la. Dessas quinze, seis contam com uma carta de resposta dos amantes, mas provavelmente as respostas são obras tardias, ou podem fazer parte de um projeto inacabado ou, ainda, é possível que algumas peças tenham sido perdidas. A literatura não faz referência objetiva sobre este ponto.

As Heroides também não ganharam reconhecimento e atenção da crítica literária. Provavelmente ela ofereça pistas, enquanto produção cuja temática é falada pela voz feminina, para pensarmos sobre a desatenção dada aos Medicamina Faciei Feminae.

O gênero epistolar já era utilizado pela literatura na época augustana, porém, não da maneira com que Ovídio concebeu. Knox (2002, p. 117) supõe que Ovídio pode ter se inspirado na Elegia IV de Propércio, uma carta de Aletusa para seu amante, Lycotas, um soldado que está longe, em campanha. Contudo, a elegia de Propércio é um tipo de poema muito diferente das epístolas de Ovídio, já que Aretusa e Lycotas não tem qualquer história fora do poema, enquanto o background das personagens usadas por Ovídio nas Heroides são elementos essenciais para a sua persona (HARDIE, 2002, p.20)

Nas Heroides, encontramos características de outras formas de literatura além da elegia amorosa, como a retórica, a épica e a tragédia, constituindo uma mistura de gêneros, algo realmente inovador e original, uma vez que não havia um modelo anterior grego ou latino.

Sêneca observa que as personagens das Heroides usam técnicas da suassoriae — um exercício de retórica pelo qual se tenta persuadir alguém (KNOX, 2002, p.124). Percebemos que os ensinamentos que Ovídio recebeu de retórica, na juventude, lhe foram úteis para sua posterior produção poética.

A épica e a tragédia são perceptíveis pela própria temática das Heroides: como já afirmamos, Ovídio não cria personagens novas, ele toma cada uma delas de uma obra representativa já consagrada na literatura greco-romana, em épicos ou tragédias: a carta de

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Dido para Eneias remete especificamente aos monólogos da rainha fenícia presentes no “Canto IV” da Eneida; Penélope entrega sua carta para seu próprio marido que está disfarçado, conforme vimos no “Canto XIX” da Odisseia.

Porém, embora as retome diretamente da literatura, Ovídio faz uma releitura dessas mulheres, abrindo os caracteres para novas possibilidades interpretativas. Aí encontramos outro diferencial do poeta: mais do que simplesmente descrevê-las, Ovídio dá voz a essas mulheres. Sentimos suas angústias, frustrações, amores, ódios, paixões. O discurso epistolar em primeira pessoa é uma ferramenta para Ovídio penetrar na humanidade intensa dessas personagens, antes somente narradas por uma ótica distante. Esta ênfase inédita à natureza feminina é vista em outros trabalhos do autor, especialmente naquele que é alvo de nosso estudo: os Medicamina.

Precisamos fazer aqui uma breve colocação: sabemos que, dentro do contexto utilizado, a expressão que destacamos anteriormente – “dá voz” – não pode ser compreendida em seu sentido literal. Isso se dá não somente por estarmos tratando de personagens fictícias da cultura, e não mulheres reais (com exceção de Safo). Mas é, no mínimo, temerário afirmarmos que Heroides foi escrita sob uma perspectiva feminina, visto que é uma obra de um homem, não de uma mulher. Logo, não são vozes femininas o que lemos, mas, sim, o ponto de vista de um homem (ou eu-lírico que busca se identificar com as personagen femininas) que narra conforme o que ele próprio considera que seja a ótica feminina; não é algo autêntico, mas sim o que um homem supõe que uma mulher pensa8.

Entretanto, também não acreditamos que era intenção de Ovídio menosprezar as mulheres, apoderando-se de sua voz. Pelo contrário, numa sociedade patriarcal como a romana, em que era tão difícil uma mulher ser ouvida, julgamos que o poeta intencionava, de fato, evidenciar as nuances da feminilidade, mesmo que seu papel de homem não lhe permitisse fazê-lo de fato. Posto isso, não podemos equipar a narração “feminina” das Heroides com obras verdadeiramente escritas por mulheres. Um bom exemplo de escrita feminina clássica autêntica é a obra de Safo, uma célebre poetiza grega, da qual infelizmente só nos chegou um poema completo, e vários fragmentos de outros poemas. Nas mãos de Ovídio, Safo virou uma personagem que destina uma carta a Fáon, por quem era apaixonada e

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Não entramos, de modo aprofundado, neste ponto tão peculiar “dessas vozes”. Mas, parece ser uma questão que pode ser bem explorada em outras pesquisas.

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foi repelida, tendo, conforme a lenda, se suicidado por causa da sua recusa. Não há indícios de que esse acontecimento tenha realmente ocorrido. Na narração ovidiana, Safo é caracterizada como uma heroína ardentemente apaixonada, o que, provavelmente, pouco condiz com a pessoa real. Vale salientar que a Safo ovidiana é um eu-lírico que não parece se enquadrar em um modelo de escrita feminina.

Contudo, não podemos esquecer que recaem algumas suspeitas sobre a autenticidade da epístola de Safo para Faon, principalmente por causa da historicidade de Safo, em oposição às caracteríticas das outras personagens das Heroides, e também por esta carta não figurar nos manuscritos mais antigos da obra (VANSAN, 2016. p. 118). Não entraremos em detalhes quanto estas controvérsias relativas à autenticidade da obra, mas registraremos aqui a hipótese de Ovídio não ter sido audacioso ao ponto de apropriar-se da voz de uma mulher que realmente existiu.

Depois das Heroides, Ovídio apresenta seu trabalho mais ousado, a Ars Amatoria9, ou Ars Amandi — A Arte de Amar —, considerado um verdadeiro manual para a conquista amorosa. Bem humorado e extremamente licencioso, pode ter sido sua perdição. Acredita-se que essa obra tenha sido uma das causas do seu desterro imposto por Augusto, devido à moralidade imposta pela política do imperador. Logo após a Ars Amatoria, o poeta escreveu Remedia Amoris – Os Remédios para o Amor10, em que ensina os meios de se curar dos males causados pelas paixões que terminaram mal. Essas obras, juntamente com Medicamina Faciei Femineae, compõem a chamada erotodidáxis de Ovídio, ou seja, um conjunto de poemas didáticos cuja temática é o amor, e no qual o poeta assume a posição de magister (professor). Nesse sentido, a erotodídaxis é um acontecimento literário no qual o poeta cria um eu-lírico ou uma persona que assume o papel de praeceptor amoris (“preceptor do amor”). Etimologicamente temos, grosso modo: eros – palavra relacionada ao amor ou paixão; didática – palavra relacionada ao ensino. Pela sua relação intrínseca com a obra Medicamina, trataremos melhor da Ars e dos Remedia na próxima subsecção.

Após Remedia, começa a chamada segunda fase de Ovídio, com um poema muito diferente de tudo que ele já havia escrito antes: Metamorphoseon libri (Metamorfoses). Metamorfoses é uma obra composta por 15 livros que narram as mudanças do mundo desde

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Denominamo-la, também, apenas por Ars.

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seu início até à época contemporânea de Ovídio: ab origine mundi/ad mea...tempora11 (Met.I, 3-4). O poeta, desta vez, opta pelos hexâmetros datílicos, o metro associado à épica, demonstrando a grandiosidade com a qual encarava sua obra. Porém, pela temática, Metamorfoses não deve ser considerado um épico da mesma forma que a Eneida; enquanto esta narra a história de um herói e as guerras travadas por ele para a fundação de Roma, aquela conta vários mitos gregos e romanos diferentes, emaranhados por um tema em comum: as transfigurações, ou metamorfoses. Não há um personagem principal: os próprios mitos são os protagonistas das Metamorfoses.

Ovídio mistura mitologia com história, terminando sua obra com a apoteose de Júlio César: a deusa Vênus queria transformá-lo em uma estrela, mas seu espírito ardente transforma-se em um cometa. Como é comum às obras de Ovídio, ele finaliza seu poema glorificando o imperador Augusto, afirmando que César (Júlio César) olha para baixo e percebe que os feitos do seu filho (Augusto) são ainda maiores do que os seus próprios. Esse elogio, porém, não foi grandiloquente o bastante para poupar o poeta de seu fatídico destino: o imperador o envia para o exílio em 8 d.C., por motivos até hoje não tão bem esclarecidos.

Antes do exílio, Ovídio começou a escrever Fasti (Os Fastos), um calendário romano poético em versos elegíacos. Acredita-se que este trabalho foi, em parte, inspirado por Phaenomena (Fenômenos), livro do poeta alexandrino Arato, que trata de fenômenos astronômicos e meterológicos. Essa obra foi muito lida na época, tendo sido traduzida para o latim por Cícero, Germânico e até mesmo pelo próprio Ovídio. Outra forte influência apontada para os Fastos foi o poema Aetia, de Calímaco (PRANGER, 2006, p. 8). Ovídio planejou originalmente escrever 12 livros dos Fastos, mas somente seis foram concluídos, provavelmente por causa de seu desterro12.

É no exílio que Ovídio escreve Tristia, uma série de cinco livros em tom de lamúria, em que o poeta lamenta seu exílio e implora por perdão a Augusto, sem obter sucesso. Embora tenha sido alvo de críticas negativas pelos literatos ao longo dos anos, por se tratar de um trabalho de temática única e caráter excessivamente suplicante, Tristia vem despertando um maior interesse atualmente. A obra representa uma nova faceta da elegia latina: o poeta

11 “das origens do mundo/até os meus dias” – tradução nossa.

12 Ovídio afirma, em Tristia, que escreveu 12 livros dos Fasti, mas não há indícios dos outros seis. Talvez estejam entre os poemas que o poeta queimou quando deixava Roma, conforme ele afirma ter feito em Tristia. (ROSE, 1994, p.336).

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não canta mais o sentimento erótico e a dor que a falta de sua puella amada lhe causa, mas sim a dor do desterro e a saudade de sua querida Urbs — Roma.

Igualmente no exílio, Ovídio produziu as Epistolae ex Ponto, trabalho que segue o mesmo tom de Tristia, mas dessa vez o poeta indica destinatários específicos para suas cartas elegíacas.

Ovídio também escreveu Haliêutica, um poema didático escrito nos anos finais de Ovídio, do qual nos restam 130 versos, que trata sobre a arte da pesca no Mar Negro, apesar de abordar mais os tipos de peixe do que a técnica em si. A obra permaneceu inacabada, não sabemos se por Ovídio ter se desinteressado pelo tema ou se por ter morrido antes de terminá-la. Há também hipóteses de que não sejam verdadeiramente versos escritos por Ovídio, uma polêmica de autoria nunca categoricamente esclarecida (CLAASSEN, 2008; DUCKWORTH, 1966).

Não podemos deixar de citar Ibis, poema que trata de uma grande maldição, uma série de insultos contra uma pessoa que somente é chamada pelo codinome “Ibis”, sendo sua verdadeira identidade desconhecida; o nome Ibis foi retirado de um poema de Calímaco.

Ovídio sabia que possuía inimigos em Roma que contribuíram para seu exílio, mas, nomeá-los, além de ser descortês, ou até mesmo ilegal (ROSE, 1996, p. 334), talvez pudesse lhe trazer mais infortúnios. De acordo com Housman (HOUSMAN apud ROSE, 1996, p. 334), o mais provável é que “Ibis” não se refira a alguém específico, mas seja somente uma manifestação do desgosto geral do poeta por todos, incluindo por ele mesmo, já que admite, repetidamente, ter sua parcela de culpa na sentença.

Quanto ao seu desterro, o poeta assume, em Tristia, que as causas foram carmen et error – um poema e um erro:

Perdiderint cum me duo crimina, carmen et error, alterius facti culpa silenda mihi:

nam non sum tanti, renouem ut tua uulnera, Caesar, quem nimio plus est indoluisse semel.

Altera pars superest, qua turpi carmine factus arguor obsceni doctor adulterii.

(Tristia, II, 207-212) ,

Embora dois crimes tenham me arruinado, um poema e um erro, devo silenciar sobre o último:

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19 não sou merecedor de reabrir suas feridas, ó César;

Basta você ter sido ferido uma vez.

A outra parte é excessiva, a acusação sobre um poema indecente pelo qual tornei-me mestre de obsceno adultério13

, Os motivos têm sido demasiadamente debatidos, sem que se chegue a uma conclusão definitiva. A carmen é associada a Ars Amatoria, seguindo as próprias palavras do poeta, no livro II de Tristia. A política de Augusto pretendia resgatar a moralidade pública romana, incluindo leis que faziam do adultério uma ofensa civil, encorajando assim o casamento e a vida familiar. Sendo A Arte de Amar uma obra de caráter bastante libidinoso, transgressor às politicas do império, é provável que Augusto tenha visto nisso motivo real para punir Ovídio por ousar escrever uma obra que incentivasse condutas impudicas.

O erro ao qual Ovídio remete é mais difícil de ser inferido, pois ele nunca explicita qual a natureza desse erro. Como vimos na citação acima, o poeta diz que pode falar sobre um (o poema), mas não sobre o outro (o erro). Há várias teorias sobre o erro ao qual Ovídio se refere. Existe a possibilidade de que envolva alguma conexão com Júlia, a Jovem, neta do Imperador, que pode ter sido uma intriga sexual (esconder que ela cometia adultério), ou uma questão política (THIBAULT, 1964; ROSE, 1996; CLAASSEN, 2008). Já Ellis sugere que foi um erro religioso, a violação dos mistérios sagrados de Ísis ou das celebrações da Bona Dea (ELLIS apud CLAASSEN, 2008). As suposições mais aceitas atualmente são as que implicam argumentos políticos, conjecturando-se que Ovídio pode até mesmo ter frequentado círculos políticas de oposição. (THIBAULT, 1964, ROSE, 1996; CLAASSEN, 2008).

Ovídio é, assim como o foi posteriormente o poeta Sêneca na época de Nero, o primeiro poeta a ter dedicado várias obras (Tristia, Ibis, Epistolae ex Ponto) à temática do exílio (FRIGHETTO, 2019). Nelas, deplorava seu castigo e rogava insistentemente por um perdão que nunca recebera. Nem mesmo Tibério, sucessor de Augusto, escuta o lamento do poeta, cuja condição de relegado se mantém até sua morte. Em tamanha dor, morre o poeta, na cidade de Tomos, por volta de 17-18 da nossa era, amargurando, por volta de nove anos, seu angustioso desterro.

13As traduções dos trechos citados em nosso estudo são de nossa inteira responsabilidade. Faremos referência numérica apenas ao final de cada verso citado em latim. Imediatamente aos versos latinos, seguem nossas traduções, elaboradas de um modo mais livre, sem obediência à metrificação latina.

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Um fato curioso relacionado a Ovídio ocorreu no ano de 2017 da nossa era. O conselho da cidade de Roma revogou o decreto de exílio de Ovídio, mais de dois mil anos depois, em um gesto simbólico, alegando que é direito fundamental do artista expressar-se livremente, sem sofrer censura. E assim Ovídio foi devidamente homenageado, sendo considerado um dos maiores poetas da humanidade.

2.1. Arte de Amar – Remédios para o Amor – Cosméticos para a face da mulher

Como mostramos anteriormente, os Medicamina fazem parte da chamada erotodidáxis do poeta, assim como Ars Amatoria e Remedia Amoris, obras mais conhecidas e estudadas. Levantaremos um perfil conteudístico dessas duas obras (com foco especial para a Ars Amatoria) e sua aliança com os Medicamina, referenciando, delas, versos específicos que interessam diretamente às nossas reflexões14.

Ao denominar a erotodidáxis de Ovídio como poesia didática, cabe-nos uma explicação do que exatamente expressa esse termo. De acordo com Toohney (1996, p.2), a principal característica da poesia didática é seu caráter de instrução. Para um poema ser considerado didático, deve visar instruir sobre um tema concreto, seja a natureza, a agricultura, a astronomia, a matemática, a moral, assuntos religiosos, dentre outros. A voz do instrutor deve ser reconhecidamente uma só, o que diferencia a poesia didática de um diálogo. Também é necessário que o emissor se dirija diretamente a um discípulo ou mais discípulos, que pode ou não ser denominado expressamente no poema.

Geralmente a poesia didática possui um caráter sério, embora existam paródias. Toohey (1996, p.2) também menciona como traço específico o uso de painéis ilustrativos: pausas na preceituação para narração de contos ou fábulas, baseados em temas mitológicos, que fazem uma exposição relevante do tema da narrativa didática.

O hexâmetro datílico é o metro mais usual para o verso didático, possivelmente por ser mais flexível para argumentação necessária na exposição do tema. O disco elegíaco, por seu

14

Apresentaremos estes trechos no original em latim, com suas respectivas traduções em português. Todas as traduções latinas desta sessão foram realizadas por nós.

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próprio formato, força que a sentença termine no pentâmetro que segue o hexâmetro, dificultando que a explanação se alongue por mais do que o par de versos dísticos.15

Em relação ao tamanho, Toohey (1996, p.3) acredita que os poemas didáticos eram, originalmente, escritos em livros individuais, com aproximadamente 800 versos, e certamente, não menos do que 400.

Quanto à questão do gênero, os antigos não conceituavam a poesia didática como um gênero em si. Quintiliano, no Institutio Oratoria, classifica os poemas ditos didáticos juntamente com os épicos mitológicos, os poemas pastoris e a epopeia, todos dentro do gênero da épica, principlamente pelo metro utilizado. Boa parte dos teóricos tende atualmente a classificar a poesia didática como subgênero da épica convencional. Toohey (1996, p.4) aponta que o estilo da poesia didática apresenta certa elasticidade, apresentando como exemploo mito de Orfeu e Eurídice que está no presente nas Geórgicas de Virgílio com características da narrativa épica, servindo de painel ilustrativo. Outro ponto levantado pelo autor sobre essa elasticidade é o nível de intenção educativa dos poetas:

Um ponto final sobre esse assunto da elasticidade: a variedade genérica da poesia didática é combinada com a variedade de níveis de intenção. Isso deveria ser óbvio quanto justapomos Hesíodo, Arato e Ovídio. Esses autores visaram diferentes níveis de ‘profundidade’. Hesíodo é ‘profundo’, Arato pode ser gracejador, Ovídio é paródico. A poesia didática, colocando assim, é tão variada em seus objetivos quanto a narrativa épica (Toohey, Peter p. 7)

Pelos parâmetros de Toohey, assim como o próprio autor atesta, a erotodidáxis de Ovídio pode ser considerada como poesia didática, pois há caráter de instrução, um preceptor único se direcionando aos seus discípulos, painéis ilustrativos, com divagações mitológicas sobre o tema e, de maneira geral, os poemas contém mais de 400 versos, com exceção dos Medicamina, sendo que esse, como colocamos, se encontra incompleto.

15 Cabe aqui uma breve descrição da métrica clássica. No latim e no grego, a métrica é contada pela quantidade de sílabas breves e longas, sendo o conjunto de sílabas chamado de pé métrico. O hexâmetro datílico é um verso formado por seis pés: os quatro primeiros são pés dátilos (formado por uma sílaba longa e duas breves (¯˘˘), mas permitia-se a substituição do pé dátilo pelo espondeu (duas sílabas longas ¯¯). O quinto pé é tradicionalmente um dátilo, e o sexto pé pode ser um traqueu (uma sílaba longa e uma breve ¯˘) ou um espondeu (¯¯).

Já o dístico elegíaco é constituído por um par de versos: um hexâmetro seguido de um pentâmetro. Este último é formado por dois dátilos (¯˘˘¯˘˘) , que podem ser substituídos por espondeus (¯¯ ¯¯) , seguidos por uma sílaba longa (¯), chamada de meio pé, seguida por sua vez por dois dátilos (¯˘˘¯˘˘) e com o fechamento do verso em outro meio pé (¯). Embora pareça ter seis pés, o pentâmetro possui somente cinco, pois há um meio pé na metade do verso e um meio pé no final.

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Um ponto crucial em que a erotodidáxisdifere dos parâmetros da poesia didática é no metro, pois todo o ciclo foi escrito em dísticos elegíacos, enquanto os poetas didáticos compunham seus trabalhos em hexâmetros datílicos16. Assim sendo, ainda que possamos chamar esses poemas de didáticos, não podemos incluí-los em um subgênero da épica, mas sim na elegia, pela métrica. São, por assim dizer, elegias de cunho didático.

As elegias latinas se caracterizam por serem poemas amorosos de tamanho pequeno. Além disso, podemos dizer que a elegia se opõe à épica. De acordo com Ongaro (2009, p.32), elegistas frequentemente começam seu trabalho com uma recusatio, uma recusa a escrever um poema épico. A autora dá como exemplo a elegia 3.3 de Propércio, em que ele sonha estar no Monte Helicon, o mesmo que teria inspirado Hesíodo a compor a Teogonia, mas Apolo aparece e muda a inspiração do poeta, que por isso escreve elegias ao invés de um texto épico. Essa recusa dos elegistas pode revelar uma marca política, pois existe a forte possibilidade de que Mecena pressionasse os poetas a escrever épicas sobre temas que agradassem Augusto.

O próprio Ovídio usa o recurso da recusatio, na sua obra Amores:

Arma gravi numero violenta que bella parabam edere, materia conveniente modis. Par erat inferior versus — risisse Cupido Diciturat que unum surripuisse pedem.

(Amores I. 1-4)

As armas e violentas guerras em versos graves preparei-me para cantar, assunto conveniente ao metro.

O verso de baixo fazia par – Cupido riu e diz-se que roubou um pé.

O primeiro verso inicia com Arma, mesma palavra que abre a Eneida, de modo a fazer uma comparação intencional com a consagrada epopeia de Virgílio. Essa também é uma característica que opõe a elegia à épica: a elegia frequentemente se apropria da terminologia épica e militar, mas transformando-a em um contexto elegíaco.

Em seguida, Ovídio afirma que os versos eram iguais, de mesmo tamanho, ou seja, eram hexâmetros datílicos, com seis pés datílicos. Porém, Cupido riu e roubou um pé do verso, formando um pentâmetro, verso de cinco pés. Assim é formada a estrutura do dístico

16 Assim como também Fasti é um poema de cunho didático escrito em dísticos elegíacos, mas não nos aprofundaremos nesse, por não ser objeto de nossa pesquisa.

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elegíaco: um hexâmetro seguido de um pentâmetro. Da mesma forma que em Propércio, a recusatio de Ovídio é justificada por inspiração divina, dessa vez por causa do deus Cupido. Falando em Cupido, qual deus poderia infringir a regra métrica e oferecer a Ovídio a estrutura para expor conteúdos tão leves, demarcados pelo humor e, senão o deus que brinca com o desejo dos homens?

Ao escrever elegias instrucionais que ensinavam sobre o amor e a conquista, o vate descaracteriza o subgênero da poesia didática, brincando com a seriedade de outros poemas didáticos, e, ao mesmo tempo, escrevendo seus conselhos sem que estes precisassem ser levados a sério, afinal, esses compunham uma elegia, não uma épica. Assim sendo, devemos ter em mente, ao ler esses trabalhos, que a erotodidáxis do vate não tem um caráter verdadeiramente educativo, podendo ser vista como uma paródia.

Comecemos a analisar a Arte de Amar. A Ars Amatoria consiste em uma série de três livros, dos quais o primeiro e o segundo dedicam-se a ensinar aos homens como conquistar e manter a mulher desejada. Sendo sua obra uma ars, ou seja, uma técnica, cabe ao poeta ser um magister amoris, um verdadeiro mestre na habilidade de amar. Ovídio não pede auxílio às musas ou aos deuses em seu poema, e sim se situa como o próprio preceptor do Amor:

Aeacidae Chiron, ego sum praeceptor Amoris: saevus uter que puer, natus uterque dea.

(Ars Amatoria I, versos 17-18) Assim como Quíron foi do Eácida, eu sou o preceptor do Amor

Cada um menino feroz, cada um nascido de uma deusa.

Neste trecho, Ovídio compara-se a Quíron, filho de Saturno, sábio centauro que foi preceptor de Aquiles, este chamado aqui de Eácida, por ser neto de Éaco. Da mesma forma também Ovídio é o mestre, o preceptor do Amor (praeceptor Amoris), que, embora seja um deus, é “uma criança dócil, que se deixa levar” – descrição que o poeta dá a Cupido no mesmo livro. É interessante notar a recorrência aos seres mitológicos, e à mitologia de modo geral, para dar força aos seus ensinamentos, que podemos entender como o uso dos painéis ilustrativos típicos da poesia didática que mencionamos anteriormente.

Quanto aos seus ensinamentos propriamente ditos, são exemplares estes versos, extraídos do primeiro livro:

Munditie placeant; fuscentur corpora Campo, sit bene conueniens et sine labe toga.

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24 Lingula ne rigeat, careant rubigine dentes,

Nec uagus in laxa pes tibi pellenatet; nec male deformet rigidos tonsura capillos; sit coma, sit tuta barba resecta manu; et nihil emineant et sint sine sordibus ungues,

(Ars Amatoria I.513–19) Agradem com elegância; que os corpos sejam bronzeados no Campo,

estejam bem arrumados e com uma toga sem falhas,

que as correias dos teus calçados não estejam rígidas, nem as fivelas

[enferrujadas, nem os teus pés bambos em couro alargado;

nem os cabelos cortados de um modo que te deforme; seja o cabelo, seja a barba cortados por mão calejada; e as unhas não sejam longas e estejam livre de sujeira, Et lacrimae prosunt: lacrimis adamanta movebis: Fac madidas videat, si potes, illa genas.

Si lacrimae (neque enim veniunt in tempore semper) Deficient, uncta lumina tange manu

(Ars Amatoria I. 660 - 4) E as lágrimas comovem: moverás as mais duras com lágrimas;

Faça que veja as bochechas molhadas, se puderes, Se as lágrimas (que nem sempre vêm no tempo certo) Faltarem, molha tua mão e põe nos olhos

No primeiro trecho, observamos o poeta aconselhando sobre os tratos com a aparência e higiene, marcas de elegância para o agrado: manter os corpos sempre bronzeados, com vestimentas bem alinhadas, calçados sempre bem cuidados, cabelos e barba sempre bem ajustados, unhas limpas e bem cuidadas.

Já no segundo trecho, acumulam-se conselhos ingeniosos para os homens. Comover uma mulher – inclusive as mais duras ou difíceis – com lágrimas falsas, que, caso o homem não consiga verter, pode fingir molhando os olhos. É um exemplo de como Ovídio estimula o uso de artimanhas, expediente constante em toda a Ars: Nec timide promitte: trahunt promissa puellas (Ars Amat. I.631) – Não seja tímido com o que promete: as promessas atraem as moças.

Ovídio, em certos momentos, incentiva a traição do homem, inclusive, reconhecendo que há uma espécie “maligna”, um certo tipo de mulher, que é, também “enganadora”:

Ludite, si sapitis, solas impune puellas: Hac magis est una fraude tuenda fides.

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25 Fallite fallentes: ex magna parte profanum

Sunt genus: in laqueos quos posuere, cadant. (Ars Amatoria I. 643 -6)

Ludibriem sem remorso, se sábios, as mulheres desacompanhadas: Esta é a única traição que deve ser mais mantida do que a fidelidade. Enganem as enganadoras: em grande parte são uma maligna espécie: nas armadilhas que fazem, que caiam.

A leitura do trecho acima, considerando o conjunto da obra ovidiana, não parece condizer com o pensamento de um autor que, como já dissemos anteriormente, parece preocupar-se em revelar a sensibilidade feminina (nas Heroides) ou em ensinar às mulheres o cultus do embelezamento, como no texto que é de nosso interesse, Medicamina. Contudo, devemos considerar, em primeira instância, que a Arte de Amar é dedicada a ensinar aos homens, não às mulheres. Posto isto, cabe-nos perguntar como as mulheres são retratadas nessa obra dedicada ao público masculino. Pelo trecho acima, podemos entender que são vistas como seres ardilosos, malignos, que merecem ser enganadas, pois está evidentemente na natureza feminina a arte da enganação. Esta, porém, é só uma das várias facetas da mulher que Ovídio nos apresenta. Também não podemos omitir que Ovídio busca justificar a postura dos homens aconselhados. Ou, ainda mais, e em larga medida, considerar que o poeta era um boêmio, acostumado com a vida noturna e libertina oferecida pelas tabernas romanas.

Até mesmo nos versos expostos anteriormente (versos 660-4), podemos depreender uma visão das mulheres, ainda que este trecho consista em um conselho para os homens: afinal, que tipo de pessoa se deixaria enganar por um truque aparentemente banal, como era aquele do fingimento das lágrimas? Uma mulher precisaria ser bastante ingênua a ponto de se deixar ludibriar por essa artimanha? Ou é o reverso aí posto? E os homens podem, de igual modo, fazer uso do mesmo estratagema da mulher que, em lágrimas, comovem os homens de corações mais brandos?

Sem pudor, os homens podem e devem olhar para as mulheres, pois “a mulher elegante vai aos célebres jogos” para ser percebida, desejada:

Ut redit itque frequens longum formica per agmen, Granifero solitum cum vehit ore cibum, Aut ut apes saltusque suos et olentia nactae Pascua per flores et thyma summa volant, Sic ruit ad celebres cultissima femina ludos: Copia iudicium saepe morata meum est.

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26 Spectatum veniunt, veniunt spectentur ut ipsae:

Ille locus casti damna pudoris habet. (Ars Amatoria I. v. 93 -100)

Assim como frequentemente a formiga volta para a longa fila, transportando com a boca o grão que é seu alimento,

ou como as abelhas, tendo encontrado suas florestas e os aromáticos pastos, voam pelas flores e sobre o tomilho,

assim a mulher elegante vai aos célebres jogos:

muitas vezes a quantidade delas atrasou minha escolha. Vêm para ver, e também vêm para serem vistas:

esse lugar traz perigos ao pudor casto.

Comparadas às formigas e abelhas, insetos que vivem em colônias numerosas, numa alusão à quantidade de mulheres que vão aos teatros, as “cultissima femina” se “ajuntam” em um lugar que traz “perigos ao pudor casto”. O teatro é um dos espaços onde homens e mulheres podem buscar atrativos além dos próprios jogos17. As analogias se arrastam da formiga à abelha: essas, voando sobre flores e ervas para colher o pólen; aquelas, em filas, para recolher os grãos de seu provimento. A metáfora da caça e da presa é constante no texto ovidiano.

A palavra usada para se referir à grande quantidade de mulheres é copia, que também pode significar tropa, uma referência ao exército, como se elas estivessem “indo à guerra” com suas armas usuais: a beleza e elegância. Vemos, aqui, uma típica referência que a elegia faz ao estilo épico, brincando com a terminologia militar. Enquanto a épica faz narrativas sobre guerras e seus heróis, a elegia trata de “soldados e batalhas do amor”; no caso desses versos da Ars, as “tropas” e a “guerra” fazem parte dos jogos de sedução.

Vêm para ver, e também vêm para serem vistas: esse lugar traz perigos ao pudor casto. Nestes versos, o teatro é um espaço de manifestação libidinosa de mão dupla, o que confere aos seus espectadores (homens e mulheres) o mesmo desejo: homens também estariam lá para serem vistos. Mas caberia a eles, pelas palavras do Livro I da Ars manterem confiança e executarem suas investidas:

Prima tuae menti veniat fiducia, cunctas Posse capi; capies, tu modo tende plagas. Vere prius volucres taceant, aestate cicadae, Maenalius lepori det sua terga canis, Femina quam iuveni blande temptata repugnet:

17 Em excelente pesquisa, Ana Lucia Santos Coelho (2014) destaca de que maneira os espaços públicos são favoráveis ao encontro de amores.

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27 Haec quoque, quam poteris credere nolle, volet.

Utque viro furtiva venus, sic grata puellae: Vir male dissimulat: tectius illa cupit.

(Ars Amatoria I. v. 269-76) Primeiramente, que venha a confiança ao teu espírito, a todas

podes capturar; tu só precisas estender as redes.

Na primavera, primeiramente os pássaros se calarão, no verão, as cigarras, Que o cão de Menalau dê suas costas à lebre,

Antes que uma mulher rejeite as investidas amáveis de um jovem: Ela mesma, ainda que não possas acreditar, quererá.

Assim como um amor furtivo é agradável ao homem, também o é à menina: O homem dissimula mal: já ela deseja secretamente.

Por esses versos, podemos constatar que, ao homem, não é difícil conquistar uma mulher, pois ela quer ser conquistada pelo amor furtivo, haja vista que “Antes que uma mulher rejeite as investidas amáveis de um jovem: ela mesma [...] quererá”. Que venha ao homem “a confiança” ao “espírito”, que estenda suas redes, pois a mulher, ela mesma, já “deseja secretamente”.

Ainda nestes versos, as metáforas servem para enfatizar o encorajamento do cotejo, pois será mais fácil os pássaros e as cigarras pararem de cantar do que a mulher rejeitar um jovem que a corteja; será mais fácil os cães de Menalau (Menalau nos parece ser uma menção a uma montanha na Arcádia, lugar conhecido por haver cães de caça de excelente raça) desistirem de caçar lebres do que uma mulher rejeitar os galanteios de um homem. Trata-se da persistência enquanto arma infalível.

Eis que surge, em variados modos, a mulher libidinosa:

Conveniat maribus, nequam nos ante rogemus, Femina iam partes victa rogantis agat. Mollibus in pratis admugit femina tauro: Femina cornipedi semper adhinnit equo. Parcior in nobis nec tam furiosa libido: Legitimum finem flamma virilis habet.

(Ars Amatoria I. v. 277 - 82) É conveniente ao homem pedir, e, se não pedirmos antes,

a mulher já conquistada tomará o papel de pedir. Nos prados suaves, é a fêmea que muge para o touro:

é sempre a fêmea que relincha para o cavalo de cascos duros. Mais moderada e menos furiosa é a libido para nós:

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Em uma comparação que parece pouco lisonjeira – mas que é útil ao propósito do poeta –, Ovídio relaciona a mulher às vacas, que chamam o touro para o acasalamento por meio de mugidos, e às éguas, que igualmente atraem os machos de sua espécie. Podemos concluir que, se as relações humanas fossem guiadas somente pelos instintos naturais, caberia à mulher atrair o homem, mas, por convenções sociais, convém ao homem tomar a iniciativa na conquista amorosa.

Por essa passagem, podemos entender que a mulher esconde melhor suas intenções, mas, paradoxalmente, sente um desejo muito mais intenso. A paixão do homem é menor e mais regrada do que a feminina. Consoante Edwards (2006, p.43), o termo usado para denominar essa paixão masculina, flamma virilis, representa uma forma de desejo controlado, que pode queimar sem excessos, e, assim, sem incorrer num tipo de devaneio – a furiosa libido – representativo do apetite feminino incontrolável. O termo furioso, segundo o autor, incorre em um estado de espírito em que a pessoa é considerada surda, muda e indigna de confiança, perdendo seu status de ser social. Então, enquanto a chama masculina queima sobre controle do homem, a feminina incendeia a mulher por completo. A paixão masculina admite um limite imposto pela lei, pelo o que é legítimo, enquanto a feminina é absolutamente incontrolável.

Ovídio leva essa perspectiva da loucura até as últimas consequências: primeiramente, o vate narra dois mitos que envolvem incesto. O de Bíblis, que se apaixonou por seu irmão gêmeo; e o de Mirra, que, tomada pelo desejo, enganou o próprio pai para que este a possuísse. O incesto, proibido pelas leis dos homens e dos deuses, é um exemplo de até que ponto pode chegar a furiosa libido feminina, essa paixão desenfreada que não aceita regras. O poeta vai além, narrando também o mito de Parsífae, que se apaixonou por um touro e mandou fazer uma vaca de madeira para que pudesse copular com o animal. O exemplo dá a entender que o desejo sexual feminino é absolutamente desmedido, e, por conseguinte, “a mulher já conquistada tomará o papel de pedir”, caso o homem não o faça antes.

Ovídio cita vários outros exemplos míticos de mulheres que sucumbiram à loucura, cometendo até mesmo assassinatos, como o de Agamenon, morto pela esposa Clitemnestra. Ou, ainda, exemplos de homens que fizeram ou sofreram atrocidades supostamente por causa de maquinações femininas: é o caso de Fênix, que teve seus olhos arrancados pelo pai

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Amintor, por ter sido falsamente acusado de seduzir a concubina do pai. A libido desmedida confunde-se, nesse sentido, à luxúria, de modo que o poeta conclui:

Omnia feminea sunt ista libidine mota; Acrior est nostra, plusque furoris habet. Ergo age, ne dubita cunctas sperare puellas; Vix erit e multis, quae neget, una, tibi.

(Ars Amatoria I, v. 341-44) Todas essas coisas foram movidas pela luxúria feminina

Esta é mais forte do que em nós, e mais furiosa. Portanto, aja, não hesites em esperar um monte de meninas Dentre muitas, dificilmente haverá uma que te recusará.

Andreasen (1967, p. 48) brinca com esta passagem, colocando que, depois de tantos exemplos de acontecimentos horripilantes decorrentes da libido feminina, o conselho correto não seria ergo age – portanto, aja -, mas sim ergo fuge! – portanto, fuja! De fato, nos parece estranho que o preceptor aconselhe os homens a irem atrás da conquista feminina, sendo a paixão da mulher tão instável e incontrolável, com consequências de tal maneira devastadoras; fuja seria uma recomendação muito mais adequada. Porém, contrariando as expectativas, Ovídio não só recomenda que o conquistador entre em ação, como também preconiza que poucas mulheres lhe resistirão, exatamente por causa do desejo imenso que sentem. Elas seriam presas fáceis, por natureza própria.

Alguns versos depois dos que citamos acima, o preceptor vai além, chegando a prescrever o uso da força por parte do homem, justificando que as mulheres gostam e ficam felizes com esta situação:

Quis sapiens blandis non misceat oscula verbis? Illa licet non det, non data sume tamen. Pugnabit primo fortassis, et 'improbe' dicet: Pugnando vinci se tamen illa volet. Tantum ne noceant teneris male rapta labellis, Neve queri possit dura fuisse, cave.

(Ars Amatoria I, v. 663-68) Que sábio não mistura palavras gentis com beijos?

É lícito, mesmo que ela não os devolva, não deixe de roubá-los Primeiro, talvez ela lute, e diga: 'rude':

Lutando, no entanto, ela desejará ser vencida.

Somente tenha cuidado para não machucar seus tenros lábios

[desastradamente Tome cuidado para que ela não possa se queixar da dureza.

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Ovídio incentiva o discípulo a avançar e superar a resistência da puella, pois, ainda que ela lute e o insulte, “ela desejará ser vencida”. Todavia, é sábio o homem gentil, que mistura aos beijos roubados palavras dóceis. O roubo é “lícito”, é permitido, ainda que a mulher lute, mas é uma permissão mediante a atitude certa: sem força ou agressão, haja vista o vate acentuar “Somente tenha cuidado para não machucar seus tenros lábios desastradamente/Tome cuidado para que ela não possa se queixar da dureza”.

A ousadia em medida certa é bem vinda, contudo, o poeta parece ambíguo nos ensinamentos, como se observa na sequência dos versos:

Oscula qui sumpsit, si non et cetera sumet,

Haec quoque, quae data sunt, perdere dignus erit. Quantum defuerat pleno post oscula voto?

Ei mihi, rusticitas, non pudor ille fuit. Vim licet appelles: grata est vis ista puellis: Quod iuvat, invitae saepe dedisse volunt. Quaecumque est Veneris subita violata rapina, Gaudet, et inprobitas muneris instar habet. At quae cum posset cogi, non tacta recessit, Ut simulet vultu gaudia, tristis erit.

(Ars Amatoria I, v. 669-78) Aquele que pegar os beijos, e não pegar as demais coisas,

Estas que também são dadas, será digno de perdê-las. Após os beijos, quão longe estará tudo o que desejas? Ai de mim, isto foi rusticidade, não pudor.

Que uses a força é permitido: a força é agradável às mulheres: isso as agrada, elas desejam dar com relutância.

Aquela que foi violada por um súbito furto de Vênus se apraz, e a insolência é como um presente

Mas aquela que poderia ser forçada, porém saiu intocada, Embora simule alegria no rosto, estará triste.

Esses versos são, em certa medida, dissonantes no que parecem ensinar, mas, retomando-os no contexto dos versos anteriormente citados, a “força” não parece significar “agir de modo forçado sem um consentimento implícito da presa”. Não supomos que o vate deixe a entender que as mulheres apreciam ser sexualmente forçadas, o que não condiz com a idéia de “arte”, “culto” ou “ofício” da própria obra Arte de Amar. Com efeito, se há indícios de que houvesse estupro, crime cotidianamente visto na época ovidiana, este (estupro) não era aceito pela sociedade romana.

Canela (2012, p.23), por exemplo, sustenta que o estupro na sociedade romana gerava repulsa social e era crime a ser punido. Se era de gravidade extrema quando a vítima fosse

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uma mulher casada ou uma virgem destinada ao matrimônio, também era considerado um crime à integridade da vítima se fosse cometido contra qualquer cidadão romano livre, mulher ou homem. A autora afirma haver poucas fontes jurídicas relativas ao stuprum per vim (estupro pela força), mas há fortes indícios de que tal crime passou a ser especialmente condenado no final da República e início do Principado de Augusto, passando a ser considerado dentro da categoria mais ampla de crimen vis (crime de força, ou crime de violência).

Considerando o exposto, parece controverso que Ovídio incentive tal comportamento entre seus leitores, ainda que faça uso dos vocábulos vim (força) e rapina18 (roubo, furto e, também, por relação metafórica, “estupro”). O termo rapina é frequentemente ligado a um roubo agressivo e violento, sem permissão da vítima; daí, significando também “estupro violento” (CANELA, 2012, p. 69).

Podemos, assim, assumir que Ovídio estaria meramente se referindo a um jogo inicial de sedução, em que cabe ao homem tomar a iniciativa e à mulher fingir resistência, e não à violência sexual propriamente dita. Mas, se adotarmos tal ponto de vista, precisamos admitir que há uma certa desproporcionalidade nos atos sugeridos pelo preceptor, pois tomar a iniciativa na conquista é bem diferente de forçar alguém contra a vontade. Devemos então levar em consideração o tipo de humor ovidiano, pelo qual o poeta está sempre exagerando as situações, de modo a torná-las divertidas para seu público-alvo? O mesmo preceptor, oferecedor de conselhos em que o homem se coloca na posição daquele que finge dor e sofrimento através do enganoso choro não parece ser o mesmo que aconselha que o homem use de força.

Seria esse um exemplo em que Ovídio preconiza atitudes desproporcionais para fins de comicidade, apesar de nós, leitores de hoje, não consideramos achar qualquer graça na situação? O humor se perdeu com o tempo: agora, a ideia de forçar uma mulher, que Ovídio trata de maneira cômica, se tornou uma piada de mau gosto, felizmente. Mas encontramos indício de que o conselho não deve ser levado ao pé da letra, mediante o que se sugere:

Si tamen a precibus tumidos accedere fastus Senseris, incepto parce referque pedem.

(Ars Amatoria I. v.715-16)

18 A palavra “rapina” guarda parte de seu radical da palavra “rapto”, cujo significado pode ser “tomar à força”, ou “tomar de modo violento”.

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Se, porém, sentes que o orgulho desdenhoso responde suas preces, para logo e bata em retirada.

Ou seja, primeiramente Ovídio aconselha o homem a ir adiante, mesmo que encontre resistência. Depois, recomenda que pare se seus pedidos forem negados com sinais de orgulho, de desdém pela mulher. Como já colocamos, tais exageros e contradições fazem parte das caracteríticas humorísticas do poema. Já próximo da conclusão do poema, o preceptor diz:

Finiturus eram, sed sunt diversa puellis

Pectora: mille animos excipe mille modis.

(Ars Amatoria I. v. 755-56) Terminarei aqui, mas são diversos os corações

das meninas: conquiste mil almas por mil meios!

Assim dito, as mulheres são muito diferentes entre si, não havendo métodos fáceis para conquistá-las, pois cada uma demandará uma maneira diferente, “mil meios”, devendo a estratégia ser adaptada ao individual.

Passemos agora aos remédios que o vate receita para curar o amor. Remedia Amoris está intimamente vinculada à Ars Amatoria: enquanto uma ensina a arte de seduzir e conquistar, a outra ensinará como se remediar dos problemas que o amor traz. Ovídio sabe que os leitores verão essa nova obra com desconfiança, afinal, como poderia o preceptor do Amor instruir a se livrar dos males do Amor? Recorre, já nos primeiros versos, ao filho de Vênus:

Legerat huius Amor titulum nomenque libelli: 'Bella mihi, video, bella parantur' ait. 'Parce tuum vatem sceleris damnare, Cupido, Tradita qui toties te duce signa tuli.

(Remedia Amoris, 1- 4) O Amor lera o nome e o título deste livrinho

e afirma ‘Guerras para mim, vejo, guerras são preparadas. Abstém-te de condenar teu vate de crime, Cupido,

Eu, que tantas vezes portei o estandarte entregue sob teu comando.

Ovídio pede para não ser condenado por Cupido, haja vista seu livro tratar sobre a cura de relações amorosas frustradas. Se Cupido é, na mitologia, responsável por acender o amor e

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