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Traduzindo, uma vez mais, obras clássicas

3. A POSSIBILIDADE DA TRADUÇÃO

3.1 Traduzindo, uma vez mais, obras clássicas

Vivemos numa época em que as traduções se sobressaem, seja em jornais, revistas, artigos da internet, legendas de filmes ou séries, livros científicos ou romances. Em um mundo cada vez mais globalizado, a tradução se faz extremamente importante para a difusão do conhecimento e da informação. Mas, por que alguns estudiosos se dedicam à tradução de obras clássicas?

Antes de intentar responder a esta pergunta, parece-nos apropriado contemplar outra questão pertinente: por que ler, ainda, os clássicos? Ítalo Calvino (1993) se interessa por essas questões, não sem antes refletir sobre o estatuto de “clássico” recebido por uma obra:

Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás se si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). (CALVINO, 1993, p. 11)

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A definição leva em conta a maturação do tempo, dando importância às marcas culturais de sociedades anteriores à nossa, que podem ser observadas por meio da leitura dos clássicos. Odisseus, por exemplo, é um herói que faz parte da cultura grega clássica, mas a Odisseia não diz respeito somente aos gregos: as aventuras do herói passaram a ganhar uma gama de significados diferentes com o passar do tempo e ao transpassar culturas distintas; significados esses que não estavam necessariamente implícitos no texto grego. Assim também o clássico deixou seu legado por onde passou, como fonte de estudo e inspiração. O clássico “serve para entender quem somos e aonde chegamos” (CALVINO, 1993, p. 16). E esse legado é renovado a cada nova geração de leitores. Para o autor, essa característica marcante do clássico também se aplica aos modernos, do que depreendemos que estes livros já podem ter começado a deixar suas impressões em seus próprios tempos.

Calvino não restringe o valor do clássico somente ao seu impacto dentro do coletivo; ele igualmente atesta o significado pessoal do clássico:

O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele (CALVINO, 1993, p. 13)

O clássico tem a capacidade de estabelecer uma conexão pessoal com quem o lê (CALVINO, p.13). Não é todo clássico que funciona com todos, apreciar ou não determinada obra é, afinal, uma questão de gosto. Mas quando a afinidade afloresce, o clássico pode se tornar até mesmo um elemento definidor de quem essa pessoa é. Ainda que não se concorde com tudo o que o clássico diz, o próprio contraste pessoal com ele é um signo de definição pessoal. O clássico é aquilo ao qual não se pode ficar indiferente.

Quanto à pergunta por que ler os clássicos, Calvino defende que eles não devem ser lidos “por que ‘servem’ para qualquer coisa” (1993, p. 16). O autor não reduz a importância da literatura ao pragmatismo moderno. A resposta dada é simples e óbvia, mas não reducionista: “A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos.” (CALVINO, 1993, p. 16). Assim dito, só pode entender plenamente a importância de se ler os clássicos aquele que se dispõe a fazê-lo.

Rónai (1975, p. 115), afirma que as obras se tornam clássicas por terem exercido um forte impacto na sensibilidade de seus contemporâneos, o que está de acordo com aquilo

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defendido por Calvino, ao afirmar que mesmo um livro moderno já pode ser considerado um clássico. Para que nós, em nosso próprio tempo, experimentemos impacto semelhante, é preciso que a obra esteja escrita em uma linguagem que seja identificada como nossa. Esse é um dos motivos para que cada geração se empenhe em traduzir novamente os clássicos em sua própria língua. Fazer com que revivam e não sejam ignorados no meio de tantas outras obras que surgem todos os anos. E, como a língua está em movimento constante, sendo suas relações de sentido ressignificadas ao longo do tempo, seguindo o contexto sócio, histórico e cultural, é necessário que as traduções dos clássicos sejam sempre atualizadas, para melhor suprir as necessidades dos leitores contemporâneos. Algumas merecem, de acordo com nosso ponto de vista, “pequenas anotações” que permitam ao leitor inteirar-se de sentidos de um enunciado que só podem ser compreendidos com a explicitação de um termo, por exemplo.

Tomemos um texto lido por nós recentemente e conversas que tivemos com tradutores de um texto de Michel Bréal intitulado “O Mito de Édipo”. Em certo momento, afirma Bréal (1886, p. 167 – itálico do autor) “Qui n'a entendu dire à nos paysans que la lune rousse brûle les bourgeons?” (“Quem não ouviu nossos camponeses dizerem que a lua vermelha queima os brotos”?) Os tradutores assumiram a postura de explicitar o significado de “lune rousse” e abriram a seguinte nota de rodapé: “lune rousse: lunação que se segue à Páscoa e à qual se atribuem geadas danosas aos brotos” (JUNIOR, LIMA (Orgs.), 2020, p. 127 – no prelo).

Os tradutores poderiam renunciar à explicação e considerar que os leitores compreenderiam do que se tratava. Um outro bom exemplo podemos ver na tradução da Eneida realizada por Odorico Mendes (2008/1854). O tradutor procede a uma tradução em versos, com notas de rodapé desenhadas por uma acuidade filológica, em cujo esforço contempla uma série de revelamentos – de ordem histórica e mitológica – que poderia parecer obscura aos leitores.

Ainda no caso de Odorico, criou-se, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP), o Projeto "Odorico Mendes", cujo objetivo foi somar esforços para resgatar as traduções de Odorico e preparar para elas, também, edições comentadas. Lembramos que a a linguagem de Odorico Mendes, na sua tradução, é marcada por estruturas complexas e um vocabulário arcaizante que necessitaram ser atualizados:

Assim, procurou-se facilitar o acesso a um texto complexo não somente pelas alusões mitológicas e históricas, já presentes no original, mas sobretudo por escolha lexical preciosa e estrutura sintática amiúde incomum,

48 de feição muitas vezes arcaizante e com recurso ao neologismo. Além da modernização da ortografia do texto português (escrito no século XIX), a equipe elaborou um grande número de notas de rodapé, para esclarecer as dificuldades que o texto oferece até mesmo ao leitor especializado.20

A tradução de Odorico Mendes é, pelo que percebemos, um clássico que interessa à comunidade acadêmica e a um leitor especializado. Os clássicos romanos e gregos recebem novas traduções constantemente. Não se trata, grosso modo, de eleger uma ou outra como a tradução perfeita, mas de traduções vinculadas a objetivos de grupos, editoras, interesses acadêmicos, dentre outros.

Poderíamos retomar muitos outros exemplos em nossa explanação, mas se preferimos nos deter em Michel Breal e Odorico Mendes foi pelo fato de eles estarem presentes em nossas conversas atuais.

Quanto ao leitor de um texto, ele pode eleger a tradução literária seja pelo gosto do texto, pela forma como ele se apresenta ou pelos comentários que dele são feitos. E, de modo geral, a “crítica literária” terá um peso grande nessa escolha, pois ela elege, através de cuidadosos critérios – como se espera – uma tradução, dentre as que têm mediante de si, que lhe parece a mais pertinente, a mais poética ou que mantenha de modo mais aproximado as intenções ou ideias do autor.

É nesse sentido que nossa tradução dos Medicamina não pretende ultrapassar suas antecessoras, mas sim apontar que outros caminhos podem ser percorridos para acolher as ideias expostas no texto. Como já foi dito, objetivamos uma tradução didática, explícita e acadêmica, elucidando certos pontos do texto por meio de comentários. Não se trata, assim, de uma tradução perfeita, porém, adequada, dentro de um universo de possibilidades.

Também devemos considerar que, atualmente, são poucos os que conseguem ler os clássicos antigos em latim, uma vez que não é mais uma língua estudada nas escolas do Brasil. Mesmo nas universidades, sua oferta é cada vez mais reduzida. Sendo assim, defendemos que somos responsáveis por oportunizar ao público – especializado ou não – um contato mais íntimo com os clássicos da literatura romana, ainda que não dominem a língua de origem. Defendemos que um “clássico” exerce uma influência específica na esfera do particular, ao mesmo tempo em que deixa marcas na memória coletiva, de maneira atemporal.

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Não podemos privar, portanto, o leitor contemporâneio de tal privilégio. Por isso, aqueles que dominam uma língua antiga devem, na medida do possível, ajudar a propagar as obras que foram escritas nessa língua. Normalmente somos iniciados na leitura de clássicos antigos por meio de traduções, e, não raramente, até mesmo por adaptações de caráter mais juvenil das obras, pois, mesmo quando rarefeitas de estilo, guardavam um resquício de algo vivaz e encantador, que nos impeliu a ir além. Poucos foram aqueles que leram a Odisseia primeiramente em grego antigo, ou tiveram sua leitura inicial da Eneida em latim. Mas a leitura dessas obras traduzidas foi um grande incentivo para muitos os que procuraram posteriormente o estudo e aprendizado de uma língua clássica.

Em suma, precisamos traduzir constantemente os clássicos, tanto os que ainda não possuem tradução como aqueles que já foram, algum dia, traduzidos. Dessa forma, buscamos evitar que trabalhos importantes caiam no esquecimento universal. Procuramos fornecer meios para que estas obras sejam conhecidas por todos os que desejarem lê-las, contribuindo para o enriquecimento cultural de nossa sociedade.

Quanto a nossa tradução em específico, Chesterman e Williams (2002, p.7) definem tradução com comentário, ou tradução anotada, como uma forma de pesquisa instrospectiva e retrospectiva, onde o pesquisador traduz um texto e, ao mesmo tempo, escreve um comentário. Este comentário pode incluir alguma discussão sobre a tarefa de traduzir, uma análise do texto fonte, como o contexto em que foi escrito, ou uma justificativa para a solução dada a algum problema específico da tradução.

No contexto acadêmico brasileiro, são encontrados diversos trabalhos intitulados de “tradução comentada”, “tradução anotada”, ou ainda, “tradução comentada e anotada”, sem que haja uma diferenciação específica de forma ou função no conteúdo desses trabalhos (ZAVAGLIA et Al, 2015, p.333). No geral, pode-se dizer que há comentários contextuais que dizem respeito a tudo que contemple a obra em tradução e o autor; comentários tradutórios que tratam do próprio processo de tradução; e críticos que dizem respeito à fundamentação teórica e às análises feitas durante a tradução (ZAVAGLIA et Al, 2015, p.350).

Em nosso trabalho, apresentaremos anotações de diversas naturezas, tanto contextuais, quanto linguísticas. Pretendemos trazer não só uma tradução dos Medicamina, mas comentários – ainda que pontuais – que desvelem a feitura textual da obra.

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