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No início deste trabalho, nos propusemos a investigar as causas que levaram o poema Medicamina Faciei Femineae a ter recebido um certo desprezo pelos estudos literários. Ao final da pesquisa, constatamos alguns fatores específicos que contribuíram para o desinteresse sofrido pela obra. Analisemos esses fatores.

Uma causa a ser relatada é o caráter fragmentário do texto. Sabemos que uma parte da obra se perdeu, informação que se confirma pelo final abrupto do poema, sem que haja um fecho. Encontramos também a possibilidade de igualmente uma parte que ficaria entre o proêmio e o restante do poema ter se perdido, o que pode ser inferido pela mudança de tom e do vocativo, primeiramente na segunda pessoa do plural, depois na segunda pessoa do singular, além das diferenças de versões encontradas em manuscritos antigos. Embora não acreditemos nessa hipótese específica, também não achamos por bem descartá-la por completo. Se mais da metade do poema se perdeu, e dois versos na introdução chegaram até nós corrompidos, não é impossível que mais trechos tenham se extraviado com o tempo.

Podemos dizer que o proêmio é, indiscutivelmente, a parte mais interessante da obra. Nele, observamos características perceptíveis nas outras elegias didáticas ovidianas, com destaque para referências a Virgílio, também encontradas na Arte de Amar. Há, do mesmo modo, digressões, excursões inspiradas por outros assuntos que não necessariamente o cultus da beleza em si, como aconselhamentos contra o uso de magia e ensinamentos sobre a preservação do caráter: os painéis ilustrativos usados no subgênero da poesia didática, que servem para elucidar o assunto tratado e tornar o texto mais interessante ao leitor. Pois, ainda que o poema em si seja uma elegia, com caracteríticas elegíacas típicas (escrita em dísticos elegíacos, topoi elegíaco, alusões à épica com adaptações de seus temas, vocabulário típico) também é um poema didático, igualmente com atributos didáticos (objetivo instrucional – ainda que paródico – , um instrutor que se dirige diretamente aos seus discípulos, painéis ilustrativos, possivelmente um número de versos originalmente maior do que 400). E é no proêmio que a tensão entre o elegíaco e o didático pode ser mais sentida. Não que tais classificações sejam necessariamente excludentes, afinal, o didático não é, por si, um gênero. Mas também não podemos negar que não era comum que se escrevesse o didático por meio

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da elegia, nem que o assunto em si, cosméticos para as mulheres, não estava entre aqueles considerados significativos para um poema didático sério.

Achamos interessante, nesse aspecto, mencionar que, enquanto as outras poesias didáticas de Ovídio estão repletas de alusões mitológicas, que em muito embelezam e enriquecem suas obras, a única referência a uma deusa em todos os Medicamina se dá em seu proêmio. É, em suma, a metade mais poética, e até mesmo mais elegíaca, do poema.

Quanto à segunda metade do texto, dedicada ao ensinamento dos cosméticos, tem um estilo seco e impessoal. Ovídio preferiu ser mais detalhista do que poético, mais técnico do que sedutor. Não estamos dizendo que não há poeticidade nesta parte da obra, já que podemos observar, em um ponto ou outro, uma ou outra metáfora, embora escondida e quase imperceptível, como já apontamos em nossa análise. Talvez Ovídio tenha sido o mais poético que o tema escolhido lhe permitia ser. A tarefa pode ter se mostrado mais árdua do que o poeta imaginara quando empreendeu o mister. Desse modo, acreditamos que o tecnicismo possa, sim, ter contribuído para o pequeno valor dado à obra e para que poucos lamentem os versos perdidos. Mesmo se pensarmos nas poesias didáticas épicas usuais, o uso de menções mitológicas costuma a ser abundante, o que não ocorre de forma alguma no receituário dos Medicamina.

Toda essa ênfase aos detalhes técnicos nos leva a outra questão ainda não encerrada: deve o receituário ensinado ser levados a sério ou todo o poema é só uma brincadeira elegíaca, uma paródia dos poemas didáticos de Virgílio?

Alguns estudiosos (eg. GREEN, 1979, JOHNSON, 2016, WATSON, 2001) asseguram que não há motivos para crer que as receitas de cosméticos não sejam verdadeiras. Green (1979, p. 391) sugestiona que Ovídio intencionava, de fato, escrever um livrinho didático prático. Watson (2001, p. 143) propõe que a primeira motivação de Ovídio não era necessariamente escrever um trabalho que servisse às mulheres, mas impôr a si mesmo um desafio: colocar em versos elegíacos um material técnico altamente complicado. Assim, ele escreveria para uma audiência mais ampla dentro da aristocracia romana, que apreciaria seu esforço em tal desafio. Seja como for, se escrito para, de fato, aconselhar as mulheres, ou como um incitamento, uma vaidade do poeta, não podemos negar a natureza sóbria ao menos do receituário.

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E quanto ao proêmio? Ali temos um Ovídio mais autêntico, um escritor livre para criar sem as amarras impostas pelo tecnicismo do tema. O Ovídio pré-exílio é um poeta brincalhão. As menções às Geórgicas, de modo a parodiar a obra, são uma amostra, ainda um tanto quanto tímida, desse Ovídio. O leitor desatento pode até mesmo deixar passar esse sentido jocoso, acreditando que tais alusões se fazem para elevar o assunto de sua própria obra, o cultus do embelezamento. Até mesmo se consideramos os versos que vêm a seguir. Pois, se a obra parece tratar-se de mais um ensinamento sobre sedução, pelo cultivo da beleza, algumas linhas depois o poeta dá lugar a conselhos moralistas, exaltando os bons costumes e a integridade, o mos maiorum romano. Tais recomendações talvez se façam necessárias em decorrência do público alvo evidenciado na obra. Afinal, a quais mulheres os Medicamina se destinam?

Inicialmente, são as puellae invocadas pelo poeta, as mulheres jovens, às vezes cortesãs. Todavia, o vate não se limita a esse público, estendendo-se à mulheres de todos os estratos sociais, como as nupta, mulheres casadas, e mencionando que até mesmo as virgens podem fazer uso do cultus.Todas as mulheres, sem exceções, são contempladas com os ensinamentos de Ovídio nesse poema: o vate não as diferencia, o que pode representar um perigo para a época.

Os romanos naturalmente relacionavam o cultus à impuditicia, ou falta de pudor. Daí, o perigo de se entender que Ovídio estava ensinando condutas imorais para as mulheres casadas, as matronae romanas, ofendendo o imperador Augusto. Por isso, uma apologia à moral se faz necessária, mesmo manifestando uma atmosfera mais sóbria em um poema que tem um tema considerado como trivial. O cultus deixa de ser motivo de imoralidade, pois não é usado necessariamente para atrair o outro, mas para agradar a si mesmo. Nos versos corrompidos, há uma sugestão à caça de amores, mas somente depois que o cultus é aplicado para o próprio agrado. O rosto da mulher ficará mais replandecescente do que um espelho, ensina o praeceptor em suas receitas, e é exatamente à admiração pelo espelho que seus ensinamentos se destinam. Não se trata de se produzir para agradar outro, mas sim se cuidar para agradar a si mesmas, um louvor instigante à autoestima feminina, diferentemente da Arte de Amar III, que ensina à mulher especificamente a arte da sedução. Porém, haveria necessidade de tantas justificativas, tratando-se o poema de uma elegia, e não uma épica? Pode ser que tais justificativas se tratem também de uma brincadeira... ou talvez o poeta tenha

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sentido necessidade de fornecer ao menos alguns conselhos valorosos em sua obra, que, afinal, é uma poesia didática. E ele não queria se arriscar completamente ensinando aquilo que ia contra à política augustana.

Como mencionamos anteriormente, não há meios de precisar exatamente o ano em que os Medicamina foram escritos, só podemos ter certeza de que são de antes da Arte de Amar III, por nela terem sido citados. Após estudarmos a obra, nos parece que esta antecedeu toda a erotodidáxis do praeceptor, como propõe Toohey (1996, p. 158). Os Cosméticos têm caracteríticas de um trabalho de transição.

A primeira incursão de Ovídio na poesia didática pode ser considerada a tradução de Phoenomena, de Arauto, a qual sabemos que data de antes de 2 a.C., e foi escrita em hexâmetros datílicos. Provavelmente foi um experimento de Ovídio em um subgênero literário considerado difícil pelos escritores da época, no qual ele poderia testar suas habilidades poéticas, assim como o fez Cícero com o mesmo texto (TOOHEY, 1996, p.157).

Considerando essa possibilidade, ao iniciar a escrita de Medicamina, o vate ainda pendia entre um estilo mais técnico, fruto de seus estudos sobre a épica, ou especificamente,o subgênero didático e sua práxis, pela tradução de Arauto; e uma escrita mais ousada e irreverente, a qual sentimos como completamente desenvolvida na Arte de Amar. Isso explicaria o tom oscilante dos Cosméticos, e também contribui para que a obra tenha sofrido um incontestável desinteresse, afinal, embora seja um poema de Ovídio, encontramos somente alguns traços do caracterítico estilo do praeceptor, ainda em fase inicial.

Não podemos, muito menos almejamos, afirmar com certeza qual desses fatores pesou mais para o quase esquecimento desse texto: se o tecnicismo exarcebado, beirando ao ponto de monótono; o tema trivial; a dedicação às mulheres, sem diferenciá-las em suas diferentes camadas sociais numa sociedade patriarcalista e que, por ordem de autoridade, se pretendia moralista; o caráter fragmentário, evidenciados pelos muitos versos perdidos; ou o estilo oscilante. Acreditamos que todos esses elementos foram, em conjunto, em maior ou menor grau, responsáveis pela indiferença.

Ovídio foi um dos maiores poetas da humanidade, seu legado é indiscutível, afirmação que encontra consonância entre pesquisadores e admiradores da literatura clássica no mundo todo. Em meio a tantas obras fantásticas e inesquecíveis, talvez seja normal que um poema um pouco menos brilhante do poeta tenha sido deixado de lado. Não obstante, com todos os

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seus problemas e seus mistérios insolúveis, a leitura de Medicamina Faciei Femineae interessa ao leitor de Ovídio, que dela pode recolher traços culturais e valores que compuseram o mundo romano, valores esses que podem ser perfeitamente aplicáveis na sociedade atual.

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