• Nenhum resultado encontrado

A Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças na transição da monarquia constitucional para a républica: impacte da revolução republicana nas sociabilidades religiosas

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças na transição da monarquia constitucional para a républica: impacte da revolução republicana nas sociabilidades religiosas"

Copied!
143
0
0

Texto

(1)

FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

A IRMANDADE DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO DE CANEÇAS NA TRANSIÇÃO DA MONARQUIA CONSTITUCIONAL PARA A REPÚBLICA:

IMPACTE DA REVOLUÇÃO REPUBLICANA NAS SOCIABILIDADES RELIGIOSAS

Fátima Cristina Castelo Morgado

Mestrado em História Contemporânea

Dissertação orientada pelo Professor Doutor António Matos Ferreira Ano 2012

(2)

2

RESUMO

O presente trabalho pretende estudar o impacte do confronto religioso provocado pela implantação da República na ação desempenhada pela Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças para a salvaguarda e manutenção das sociabilidades religiosas da comunidade rural. Para o estudo de caso, analisa-se a influência dos normativos, designadamente da Lei da Separação do Estado das Igrejas, de 20 de Abril de 1911, na vitalidade da Irmandade.

Pretende-se compreender a influência da Lei no reconhecimento legal da Irmandade e no encerramento da capela de S. Pedro de Caneças e apresentar a mobilização dos confrades e habitantes da povoação na defesa do livre exercício do culto público, num momento da história nacional em que se defendia a laicização da sociedade por se considerar que o catolicismo era um do fatores responsáveis pelo atraso do povo português.

Neste contexto político e cultural, os fiéis defenderam a sua crença e as representações simbólicas associadas à mesma. A par da intervenção dos cidadãos em prol da sua religiosidade, constata-se ainda o seu envolvimento na vida política e cultural da comunidade. A religiosidade das populações corresponde à dimensão espiritual e cultural dos cidadãos e faz parte das vivências quotidianas em sociedade.

A expressão coletiva das sociabilidades religiosas, afetadas no momento de transição, ressurgiu após 1918 e prevalece até aos nossos dias. Este ressurgimento demonstra também que a separação das esferas religiosa e temporal, não constituiu a “questão religiosa”, mas o modo como a separação foi preconizada na Lei da Separação, por se considerar que a mesma concedia aos leigos poderes que eram da competência do clero, como a organização e a gestão do culto. As cultuais, como forma associativa preconizada na referida Lei, originou o confronto religioso entre os poderes temporal e religioso, durante a I República.

O decreto-lei de 22 de Fevereiro de 1918 atenuou as divergências causadas pela Lei da Separação ao atribuir às Irmandades a sustentação do culto público e reconhecer aos ministros da religião o direito de participarem nas corporações, de acordo com os princípios religiosos.

(3)

3

ABSTRACT

The present work aims to study the impact of religious confrontation provoked by the establishment of the Republic on the safekeeping and maintenance of the sociability of the rural community religious by the Caneças Brotherhood of Blessed Sacrament. For the case study, the normative influence is analyzed, namely the Law on the Separation of State from Churches, April 20, 1911, in the vitality of the Brotherhood.

The aim is to understand the influence of the Law in the legal recognition of the Brotherhood and in the closure of the St. Pedro de Caneças chapel and present the members and town inhabitants mobilization in defense of the public worship free exercise, in a moment of national history where secularization of society was defended, as Catholicism was considered one of the factors responsible for the backwardness of the people Portuguese.

In such political and cultural context, the believers defended their belief and the symbolic representations associated with it. Along with the citizens’ interventio n in favor of their religion, there was also their involvement in the political and cultural life of the community. The religiosity of the population corresponds to the cultural and spiritual dimension of the citizens and is part of everyday experiences in society.

The collective expression of religious sociability, affected at the time of the transition, rose again after 1918 and prevails up until now. This resurgence also demonstrates that the separation of the religious and temporal spheres did not constitute a "religious issue", the issue was how the separation was commanded in the Law of Separation, on the grounds that it granted powers to lay people that were taught to be within the competence of the clergy, as responsible for the organization and management of the cult. The cultuais, as an associative body advocated by the law, gave rise to a religious confrontation between the temporal and religious powers, during the First Republic.

The decree-law of February 22, 1918 attenuated the differences caused by the Law of Separation on assigning to the Brotherhoods the support of public worship and recognizing to the religion ministers the right to participate in corporations, according to the religious principles.

(4)

4 ÍNDICE GERAL RESUMO/ABSTRACT 2 AGRADECIMENTOS 5 ABREVIATURA E SIGLAS 6 INTRODUÇÃO METODOLOGIA 8 16 CAPÍTULO 1 - O AMBIENTE ECLESIÁSTICO- RELIGIOSO EM CANEÇAS

NO INÍCIO DA REPÚBLICA 23

1.1 - As Irmandades na Capela de São Pedro de Caneças 26

1.2 - O lugar e as gentes de Caneças 34

1.3 - A Paróquia de Loures e as Irmandades em 1910 no contexto do

Concelho de Loures 42

CAPÍTULO 2 - A IRMANDADE DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO E

A LEI DA SEPARAÇÃO 55

2.1 - A sua relação com o poder local e o poder eclesiástico 57

2.2 - Interrupção da liberdade de culto 71

2.3 - Constituição de uma cultual? 79

CAPÍTULO 3 - A IRMANDADE COMO REDE DE SOCIABILIDADE 89

3.1- A dimensão social da Irmandade 90

3.2 - A sua relação com o poder político local após 10 de Setembro de 1915 99

3.3 - Manifestações de sociabilidade no quotidiano 108

CONCLUSÃO 115 FONTES E BIBLIOGRAFIA 119 1.Fundos documentais 119 2. Legislação 124 3. Periódicos 126 4. Bibliografia Geral 126

5. Bibliografia - História Local 132

6. Bibliografia - Irmandades/ Confrarias 134

CRONOLOGIA 136

(5)

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador Professor Doutor António Matos Ferreira a sua disponibilidade e encorajamento no decorrer da orientação do trabalho de investigação, contributo fundamental para a reflexão do tema que me propus estudar. A sua amabilidade e saber constituíram apoios essenciais à concretização do trabalho final. Aos professores do curso de Mestrado de História Contemporânea da Faculdade de Letras de Lisboa, Professor Doutor Ernesto Castro Leal, Professor Doutor Sérgio Campos Matos e Professor Doutor António Ventura pelo incentivo manifestado para a concretização deste trabalho. Aos membros do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa pelo apoio e acolhimento revelado nos seus Seminários. Ao Professor Doutor Luís Salgado pela partilha das suas reflexões sobre o tema em estudo. À Mestre Rita Mendonça Leite pelo estímulo ao meu trabalho de pesquisa. Ao Mestre Sérgio Ribeiro Pinto pelo importante contributo e colaboração no esclarecimento das minhas reflexões durante a elaboração do texto.

Registo ainda, com amizade, o interesse e cooperação pela minha pesquisa evidenciados pela Dr.ª Teresa Ponces do Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa e Dr. Jorge Afonso do Arquivo Municipal de Loures. À Dr.ª Ana Gaspar do Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças, ao Dr. António Gouveia do Arquivo do Governo Civil de Lisboa e Miguel do Centro de Documentação Anselmo Braamcamp Freire de Loures o meu agradecimento pela disponibilização das fontes nos respectivos arquivos. Ao pe. António Tavares da Igreja Matriz de Caneças e à Guida pelo entusiasmo e receptividade em me facultarem o acesso ao acervo documental. O agradecimento à minha amiga Helena pelo encorajamento e auxílio, ao meu primo Miguel pela ajuda e disponibilidade.

À minha família por ser o meu espaço de partilha e de ânimo. Aos meus avós pelo seu carinho e ensinamentos de vida, sempre no meu coração. Aos meus sobrinhos pela sua compreensão. À minha irmã Fernanda por ser o meu porto de abrigo.

(6)

6 ABREVIATURAS E SIGLAS ABREVIATURAS Art. - artigo Cân. - Cânones Cf. - conferir

Cit. por - Citado por Cx. - caixa

Dir. - Direção Doc. - documento Dr. - Doutor Ed. - Edição

Et al. - et alii (e outros) Fl. - Folha Fls. - Folhas Liv. / L. - Livro Ms. - Manuscrito Nº - número N. - Nossa

Op.cit. - obra já citada P. - página Proc. - Processo S.- São S.- Secção Séc. - século Sg. - seguinte Sgg. - seguintes S.d. - sem data S.l. - sem local Sr.ª - Senhora SSº - Santíssimo Stª. - Santa Stº - Santo

U.I. - Unidade de Instalação Vol. - volume

(7)

7

SIGLAS DE FONTES MANUSCRITAS/IMPRESSAS

ADMIN - Administração dos Bens Cultuais

ACMF - Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças AGCL - Arquivo do Governo Civil de Lisboa

AJFC - Arquivo da Junta de Freguesia de Caneças AML - Arquivo Municipal de Loures

ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo AHPL - Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa AHP- Arquivo Histórico Parlamentar

ARROL - Arrolamentos dos Bens Cultuais CEDEN - Cedência de Bens

CJBC - Comissão Jurisdicional dos Bens Cultuais D.G. - Diário do Governo

DGCI - Direção Geral de Contribuições e Impostos LCORR - Livros de correspondência recebida LEGIS - Legislação

IS - Imposto Sucessório LIS - Lisboa

LOU - Loures

PROCD - Processos Disciplinares

SIGLAS DE INSTITUIÇÕES

C.M.L. - Câmara Municipal de Loures UCP - Universidade Católica Portuguesa

(8)

8

INTRODUÇÃO

As irmandades1 ou confrarias como modelo associativo surgem na Europa cristã ao ritmo do desenvolvimento societário de cada região e país. As organizações associativas assumem características próprias de acordo com o espaço em que se enquadram, o rural e o urbano, o que determina a sua composição social, ainda que a natureza da sua formação fosse idêntica. Os seus membros, os irmãos ou confrades, comprometiam-se a realizar práticas religiosas e de caridade, em favor da comunidade2.

A par das motivações que levaram os fiéis3 leigos a associarem-se (aos quais se reuniram, por vezes, elementos do clero), devemos considerar também as

1

As irmandades ou confrarias são associações de fiéis constituídas organicamente para o incremento do culto público. Estas associações regulam-se, atualmente, pelo Código de Direito Canónico de 1917 (cân.707-719), dispondo de estatutos particulares. Não podem existir sem decreto formal e não podem erigir-se senão em igrejas ou capelas públicas ou semi-públicas e costumam ter altar determinado. Cf. Irmandade. In Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa: Editorial Enciclopédia, Limitada. Vol. 14, p. 19. Confraria «consoante a definição do Prof. Marcelo Caetano, era uma associação voluntária em que se agrupavam os irmãos para um auxílio mútuo, tanto no material como no espiritual […]». Cf. Alberto Martins de Carvalho – Confraria. In Dicionário de História de

Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas, 1989. Vol. 2, p. 153. «Na perspectiva canónica, as confrarias

são associações de fiéis constituídas organicamente com o fim de exercerem obras de piedade ou caridade e de promoverem o culto público […] As confrarias cuja designação provém do étimo latino

confraternitas são também conhecidas por confraternidades, fraternidades e, principalmente,

irmandades, denominação que o código reservava às pias uniões constituídas como corpo orgânico.» Pedro Penteado – Confrarias. In Dicionário de História Religiosa de Portugal. Dir. Carlos Azevedo. Mem Martins: Círculo de Leitores SA. 2000. Vol. 1, p. 459. As confrarias medievais surgem entre os séculos XI e XIII (o seu aparecimento remonta aos collegia romanos e às guildas germânicas, de cariz pagão, cuja criação teve como intenção valorizar a sociabilidade masculina e as relações amigáveis entre os seus membros). As confrarias surgiram ligadas a movimentos associativos laicos, ocupando os leigos os seus órgãos de gestão, sem a intervenção da autoridade eclesiástica. Tal facto levou a Igreja católica a integrá-las nos mosteiros e nas paróquias, contribuindo para a cristianização das comunidades através da oração e, em simultâneo, para estreitar as relações sociais entre os leigos. Inicialmente, a ação piedosa e caritativa das irmandades, em Portugal, era controlada pelas autoridades eclesiásticas de quem dependia a aprovação dos seus estatutos ou compromissos, exceptuando as misericórdias. Cf. Pedro Penteado – Confrarias. In Dicionário de História Religiosa

de Portugal. Vol. 1, p. 459-462. Isabel dos Guimarães Sá – As Confrarias e as Misericórdias. In História dos Municípios Portugueses e do Poder Local: dos finais da Idade Média à União Europeia.

Dir. César Oliveira. S.l. Círculo de Leitores, 1996, p. 55-60. 2

Cf. Pedro Penteado – Confrarias. In Dicionário de História Religiosa de Portugal. Vol.1, p. 459-470. O agrupamento dos indivíduos realizava-se de acordo com os ofícios, sendo as relações reguladas por compromisso. Algumas mantinham a o culto e veneração do seu padroeiro. O culto do seu orago realizava-se em capelas privativas instituídas nas igrejas paroquiais ou dos institutos religiosos. O espírito de solidariedade manifestava-se também através da criação e manutenção de pequenos hospitais.

3

As associações de fiéis eretas para exercerem obras de piedade ou caridade podem denominar-se ordens terceiras, confrarias ou irmandades ou pias uniões. As ordens terceiras são associações pias que vivem de acordo com as regras cristãs de uma ordem religiosa. As Ordens Terceiras chegaram a atingir papel de destaque no século XVIII à semelhança das Misericórdias, pela ação assistencial que exerciam junto da população carenciada. Cf. As Confrarias e as Misericórdias. In História dos

(9)

9 orientações espirituais, influenciadas pela mentalidade e pela cultura que as caracteriza ou define, inseridas no contexto político-social de cada época.

As irmandades4, no seio do catolicismo, desenvolveram um importante papel religioso e social, porque contribuíram para a cristianização das populações, através da sua ação piedosa (devoção) e da caridade (amor ao próximo). Essas ações consistiam em prestar auxílio material e espiritual aos mais necessitados, como dar alimentação, ajudar em caso de doença, garantir o enterro digno e a oração para a sua salvação eterna.

As irmandades eram entidades reguladoras das relações interpessoais locais e de expressão de solidariedade social5. A solidariedade horizontal manifesta-se entre os confrades, por exemplo através dos trajes e acessórios utilizados em atos solenes que representavam a comunidade unida e fraternal através de representações simbólicas da crença. Por sua vez, estas manifestações de fraternidade simbolizavam a homogeneidade social dos confrades6. A solidariedade fraternal também se

4

A partir do Concílio Ecuménico de Trento (1545-1563) foram definidas com rigor as competências das confrarias e passou a existir a divisão entre confrarias eclesiásticas e laicas. As confrarias eclesiásticas eram criadas pela intervenção de prelados, submetendo os estatutos à autoridade do bispo e às visitações pastorais e as confrarias laicas eram criadas apenas por leigos, tendo algumas a proteção régia como as misericórdias. As competências específicas das confrarias eram definidas pela natureza da sua formação. Nas paróquias existiam, por exemplo, as confrarias do Subsino, do Santíssimo Sacramento, das Almas e de Nossa Senhora do Rosário e existiam as confrarias associadas às ordens religiosas. Entre as confrarias destacam-se as sacramentais que tinham como motivo principal o culto do Santíssimo, devendo existir em cada paróquia, segundo a determinação do Concílio de Trento. Estas confrarias deviam assegurar o viático aos doentes, o enterro digno dos fiéis, a realização da procissão do Corpus Christi e de outros atos solenes. Cf. Isabel Guimarães Sá – As Confrarias e as Misericórdias. In História dos Municípios Portugueses e do Poder Local: dos finais

da Idade Média à União Europeia, p. 55-60. O culto eucarístico, incrementado com a reforma católica

do concílio Tridentino, influenciou a expansão das confrarias do Santíssimo Sacramento, cujo modelo se inspirou na arquiconfraria no convento de Santa Maria Sopra Minerva. Modelo aprovado pelo Papa Paulo III, em 1537, promovia o culto eucarístico, zelo pelos sacrários, visita aos enfermos, acompanhamento do sagrado viático, realização da festa em honra do Santíssimo, celebração de missas por intenção dos irmãos, fomento da oração diária. Cf. João Francisco Marques – Rituais e manifestações de culto: as confrarias do Santíssimo Sacramento, a reserva eucarística e os atentados sacrílegos. In História Religiosa de Portugal. Dir. Carlos Azevedo. Mem Martins: Círculo de Leitores SA, 2000. Vol. 2, p. 568.

5

Cf. Isabel Guimarães Sá – As Confrarias e as Misericórdias. In História dos Municípios Portugueses

e do Poder Local: dos finais da Idade Média à União Europeia, p. 55-60.

6

Havia irmandades que possuíam uma base associativa vertical, pois agrupavam membros de estatuto social diferenciado, como sucedeu na Irmandade do SSº Sacramento de Caneças. Os confrades eram trabalhadores, proprietários, comerciantes e o seu compromisso autorizava ainda a inscrição de ambos os sexos. Segundo Isabel Guimarães Sá, as misericórdias recrutavam membros da elite local - nobreza, clero, indivíduos de profissões liberais, mestres de oficina ou do mar e proprietários agrícolas. Os irmãos eram distinguidos pelo seu estatuto social «irmãos nobres, clero e profissões liberais» e «irmãos mecânicos» os que laboravam outras profissões. As misericórdias, a partir do século XVIII, concorriam com as irmandades, no acompanhamento dos fiéis defuntos e na realização de obras caritativas, limitando a ação das irmandades à piedade, nos lugares onde co-existiam. Cf. Isabel Guimarães Sá – As Confrarias e as Misericórdias. In História dos Municípios Portugueses e do

(10)

10 expressa pelo recrutamento dos seus membros, pelo estatuto social que ocupam através das suas ocupações profissionais.

As relações confraternais estreitavam-se por ocasião da realização das festas7 em honra do santo padroeiro ou de outras invocações ou da celebração eucarística de momentos solenes do calendário litúrgico, para celebrar o nascimento de Jesus e a sua ressurreição, como se observa nos estatutos e processos de conta de gerência da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças.

Mas, nem sempre a dinâmica das irmandades se manteve num estádio elevado, face aos condicionantes político-sociais que caracterizaram e influenciaram a sociedade, aos abusos cometidos por alguns confrades na gestão dos rendimentos, ao surgimento de associações de novas invocações que retiravam privilégios e estatuto na ação caritativa às irmandades eretas. Outras não subsistiram no tempo.

Com o dealbar da época moderna, a coroa portuguesa começa a exercer um maior controlo sobre as irmandades: sob a jurisdição régia8 passavam a considerar-se as associações, cuja criação não dependesse da autoridade eclesiástica, aprovando os estatutos das irmandades ou confrarias; os oficiais régios (provedores e funcionários do Desembargo do Paço) deveriam fiscalizar as contas das irmandades; as irmandades dependiam ainda da autorização superior para o pedido de empréstimos ou aceitação de legados pios9.

7

Para Pedro Penteado as festas confraternais «foram a melhor manifestação da identidade e da força destas associações religiosas». As confrarias demonstravam a sua devoção através da exibição da riqueza. Cf. Sensibilidades e representações religiosas: confrarias. In História Religiosa de Portugal. Vol. 2, p. 323-329.

8

Provisão de 6 de Junho de 1785. Cf. Pedro Penteado – Confrarias. In Dicionário de História

Religiosa de Portugal. Vol. 1, p. 464.

9

Na 2ª metade do séc. XVIII, as confrarias portuguesas debatiam-se com problemas vários que punham em causa a sua vitalidade, como o cumprimento das obrigações de missas e capelas instituídas, e até a sua sobrevivência: a legislação pombalina que para os legados pios condicionava a nº dos bens imóveis e as capelas vagas, revertiam em favor da coroa; a diminuição de benfeitores; o decréscimo de rendimentos, agravado com a cobrança da décima parte sobre os rendimentos das irmandades; a diminuição da entrada de confrades em algumas confrarias; a não cobrança de multas sobre empréstimos concedidos a alguns confrades; na área de Lisboa observa-se o declínio de irmandades após o terramoto de 1755; o aparecimento de novas formas de sociabilidade; a propaganda iluminista contra as festas organizadas, além da desordem pública, também era repudiada pelos gastos e falta de assiduidade no trabalho; alguns consideravam que a ação caritativa estimulava a mendicidade. Cf. Pedro Penteado – Sensibilidades e representações religiosas: Confrarias. In História

Religiosa de Portugal. Vol. 2, p. 323-329. No entanto, se algumas irmandades desapareciam outras

surgiam com novas invocações, confrontadas com o quadro político-social desenhado por novas matrizes ideológicas de sociedade que na sua transformação implicavam conflitos ideológicos em relação à ordem social estabelecida, como ao nível da natureza, atribuições e composição social das irmandades, onde os seus membros desenvolviam elos de ligação, a partir do elemento comum que os unia – a crença no catolicismo. Era necessário criar respostas, desenvolver ações que não pusessem em causa o propósito fundamental da existência dessas corporações.

(11)

11 Após a mudança política em Portugal operada com a revolução liberal, a autoridade da coroa sobre as irmandades continuou a ser exercida através da fiscalização das suas contas e pela orientação, em parte, na aplicação dos seus rendimentos em ações de beneficência sugeridas pelo poder político10.

Todavia, o novo regime político ocasionou no seu seio confrontos ideológicos entre os próprios liberais11 (vintistas e cartistas), sem menosprezar o conflito fratricida que opôs forças liberais e absolutistas, entre 1832-1834. Com o liberalismo, a relação entre o Estado e a Igreja conheceu também momentos de tensão. A expulsão das congregações religiosas masculinas12, como já acontecera no reinado de D. José I com as leis de 3 de Setembro de 1759 e 28 de Agosto de 1767 ou, no séc. XIV, com o beneplácito régio decretado por D. Pedro I, em 136113.

10

Cf. Decreto de 16 de Maio de 1832, nº 23 (Implantação do sistema administrativo) -Disponível em: www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1799; Decreto-lei de 18 de Julho de 1835 (organização

Administrativa) - Disponível em: www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1803; Decreto de 31 de Dezembro de 1836 (Código Administrativo Português) -Disponível em:

www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1814; Carta de Lei de 29 de Outubro de 1840 (alterou e revogou partes do Código Administrativo de 1836) -Disponível em: www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1819; Decreto de 18 de Março de 1842 (Código Administrativo) -Disponível em:

www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1823; Código Civil de 1867, aprovado por Carta de lei em 26 de Junho de 1867 -Disponível em: www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1839; Código Administrativo, aprovado por Decreto de 21 de Julho de 1870 - Disponível em:

www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1126; Código Administrativo de 1878, aprovado por Carta de Lei de 5 de Maio de 1878 -Disponível em: www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1127; Código

Administrativo Português de 1886, aprovado por Decreto de 17 de Julho de 1886 – Disponível em: www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1176; Nova Reforma Administrativa de 1892, aprovado por Lei de 6 de Agosto de 1892 - Disponível em: www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1178; Código Administrativo de 1894, aprovado por Decreto de 2 de Março de 1894 - Disponível em:

www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1180; Código Administrativo de 1900, aprovado em 21 de Junho de 1900, publicado no D.G. nº 158, de 25 de Junho de 1900 -Disponível em

www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1860. 11

O liberalismo monárquico-constitucional legitimava os poderes do rei, assegurava a soberania do Rei e o direito de sucessão; defendia a soberania popular mas os direitos políticos não eram para todos. Não havia igualdade política nem social, e o interesse público estava subordinado ao interesse social, segundo a perspetiva democrática ou radical. O liberalismo defendia a liberdade nos planos político, social, económico, cultural e religioso, mas o confronto dar-se-á entre os liberais quanto ao papel atribuído ao Rei. A matriz ideológica do liberalismo assentava na defesa da democracia liberal, do capitalismo industrial, da ascensão da burguesia, da liberdade de expressão e pensamento, do individualismo, do nacionalismo e do anticlericalismo e secularização da sociedade. Cf. Maria de Fátima Bonifácio – A Monarquia Constitucional (1807-1910). Alfragide: Texto Editores, Ldª, 2010. Mas o modelo de Estado dos liberais também pressupunha uma religião oficial, a católica romana, expressa nas Constituições e na Carta Constitucional, «a religião católica era a religião do reino, e se esse reino era definido como a associação política de todos os cidadãos portugueses, então o catolicismo seria também, necessariamente, a religião de todos os portugueses.» Cf. Rita Mendonça Leite – Representações do protestantismo na sociedade portuguesa contemporânea: da exclusão à

liberdade de culto (1852 -1911). Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa – UCP, 2009, p. 23.

12

A Lei de 28 de Maio de 1834 de Joaquim António de Aguiar. 13

O beneplácito régio foi também estabelecido nas Ordenações Afonsinas e utilizado por D. João I e D. Afonso V. D. João II aboliu o beneplácito mas restabeleceu-o em 1495, ordenando que ao Desembargador do Paço competia o conhecimento dos rescritos (resposta do papa sobre assuntos teológicos, com valor de bula) que precisassem de ajuda do «braço secular», assim como «a resolução

(12)

12 Ainda durante a guerra civil, é decretada a extinção dos dízimos14 por Mouzinho da Silveira15, implicando problemas no sustento aos conventos, mosteiros, catedrais, Seminários, bispos e párocos. Por exemplo, para o sustento dos párocos é estabelecida a côngrua paroquial que provinha de um imposto paroquial. O clero e demais agentes religiosos passam a ser controlados pelo regime liberal. As questões relacionadas com as Congregações Religiosas, a dependência do poder político do poder da Santa Sé e o antijesuítismo, expressas durante o século XVIII, mantêm-se no século XIX com críticas à influência do clero na sociedade. A afirmação do poder temporal da esfera do religioso, resultou na subordinação deste último ao poder político16.

Ao longo da 2ª metade do século XIX, surge e afirma-se progressivamente uma propaganda ideológica favorável a uma laicização acentuada por uma progressiva desconfessionalização da sociedade, patente já aquando do debate sobre o casamento civil (1868)17. Associada a um novo modelo de sociedade, defende-se a liberdade de cultos, a abolição da religião oficial do Estado, a reforma constitucional, o ensino laico, o antijesuítismo e o anticlericalismo. Outro exemplo elucidativo é o que ocorreu com a realização das Conferências de Casino18, em que os oradores se referiam às transformações política, social, cultural e moral da sociedade. A

de quaisquer dúvidas que aparecessem sobre a execução dos rescritos […]». D. Manuel II confirmou a determinação e seu filho D. João III também. D. João V alargou o Beneplácito a todas as Bulas, Despachos, Breves, Graças do Papa ou dos seus tribunais e ministros. No reinado de D. José I o direito régio manteve-se. Mesmo depois das relações interrompidas com a Santa Sé entre 1760 e 1770, D. Maria I alarga o direito régio até às pastorais ou mandados dos bispos. Durante o liberalismo, o beneplácito foi mantido pelas Constituições de 1822 e 1838 e pela Carta Constitucional de 1826. Cf. Maria Antonieta Soares Azevedo – Beneplácito régio. In Dicionário de História de Portugal. Dir. Joel Serrão. Vol. 1, p. 328-329. A superintendência do poder civil liberal sobre a esfera do religioso, no que concerne às irmandades e ao clero nacional, manteve-se através das determinações dos códigos administrativos e de leis especiais que foram publicadas. Por exemplo, o Decreto de 16 de Maio de 1832, nº 23, em relação clero consignou no seu artigo 45º, ponto 7º: «Vigiar o procedimento no exercício da autoridade temporal e espiritual do clero, tanto regular como secular: cuidando sobretudo em que não usurpem o poder civil, nem exijam maiores elementos do que os que lhe forem taxados». In Decreto de 16 de Maio de 1832 [Em linha] Nº 23. Implantação do sistema administrativo. Universidade Nova de Lisboa. Disponível em: www.fd.unl.pt/Anexos/investigacao/1799 PDF. 14

Cf. Nuno Gonçalo Monteiro – A sociedade local e os seus protagonistas. In História dos Municípios

Portugueses e do Poder Local: dos finais da Idade Média à União Europeia. Dir. César Oliveira. S. l.

Círculo de Leitores, 1996, p. 29-55. 15

Decreto de 30 de Julho de 1832. 16

A religião católica é a religião oficial do Estado liberal. O Estado português é um Estado confessional, associando-se à Monarquia o Catolicismo e o Clericalismo, o que legitimava o controlo do poder político sobre a esfera do religioso, pretendendo afastar assim a influência da Santa Sé em assuntos do reino.

17

Samuel Rodrigues – A polémica sobre o casamento civil (1865-1867). Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987.

18

(13)

13 estagnação económica, social e cultural de Portugal era associada à influência perniciosa do clero na sociedade portuguesa19.

Nomeadamente, o discurso republicano, para desacreditar a monarquia, usou também a intercessão do clero sobre os governantes. Este discurso estende-se à República implantada em 1910: a luta contra a monarquia significava também lutar contra o clero (e também contra a doutrina católica como ocorreu no concelho de Loures, patente nos periódicos da época). O anticlericalismo e o combate à monarquia eram os principais motores da propaganda republicana, como se observa pela leitura dos jornais de Loures20.

A nova recomposição social, cultural e mental, pensada pelos defensores da República, pôs em causa duas mundividências - as visões do mundo e de Deus, pelo que a “questão religiosa” surge devido ao «confronto e concorrência de mentalidades e de projectos societários»21. A origem da vida e do mundo era influenciada pela explicação teológica, satisfazendo as necessidades espirituais que se colocavam às pessoas. Esta visão do mundo entrará, de alguma forma em confronto com o modelo cultural22 preconizado pela República que defendia o materialismo e de certa forma o agnosticismo, sem negar a existência de Deus.

O sentimento religioso católico, após a instauração da República, abalado na sua exteriorização, vai prevalecer através da união dos católicos23, de acordo com os

19

Cf. Fernando Catroga – O Estado laico. In Viva a República: 1910-2010. Junho 2010, p. 120. 20

Cf. Anexo XXXII. 21

António Matos Ferreira – A Centralidade da “Questão Religiosa” na mudança de Regime Político. In Viva a República: 1910-2010. Junho 2010, p. 133.

22

O movimento republicano «estava convicto de que a sociedade portuguesa só atingiria um novo consenso quando o tempo económico e o tempo político estivessem em sintonia com um tempo cultural […] o advento dessa sociedade só seria possível quando, previamente, o poder político deixasse de impor uma religião oficial e respeitasse o princípio da liberdade de consciência […]», para que tal se verificasse era necessária a «separação das Igrejas do Estado». Cf. Fernando Catroga – O Estado laico. In Viva a República: 1910-2010. Junho 2010, p. 121.

23

Mudanças que se faziam sentir em toda a Europa, o que levou a Igreja católica a procurar novas ações de evangelização para diminuir o impacte da descristianização. Uma das reações ultramontanas foi a proclamação do dogma da Imaculada Conceição da Virgem Maria, em 1854, pelo papa Pio IX (1846-1878), embora D. João IV tivesse consagrado o Reino de Portugal e os seus domínios ultramarinos a N. Sr.ª Imaculada Conceição, em 25 de Março de 1646, na festa da Anunciação (cf. Cónego Thomas de Saint Laurent – A Virgem Maria: padroeira e rainha de Portugal. Porto: Livraria Civilização Editora, 1996). O Papa procurava unir os crentes através da devoção a N. Sr.ª. No entanto, o beneplácito foi somente dado após a aprovação das Cortes, o que mereceu o descontentamento de setores católicos portugueses, uma vez que a devoção a N. Sr.ª da Conceição datava do séc. XVII. Alguns liberais consideravam que esta determinação do papado era uma subordinação da Igreja Nacional ao poder episcopal romano. Por outro lado, o culto mariano em Portugal remontava à Idade Média, desde a afirmação da nacionalidade com as conquistas de D. Afonso Henriques. Outra foi a

(14)

14 espaços onde estavam integrados, ainda que a comunhão dos valores cristãos e a celebração de rituais tivessem sido condicionados pelos acontecimentos políticos.

Com a implantação da República, as irmandades sentiram dificuldades em assegurar o seu dinamismo e, no caso português, a situação política vivida, condicionou fortemente a ação pastoral do clero e dos fiéis. As redes de sociabilidade religiosa, unidas pela piedade e caridade, estabelecidas no seio das irmandades foram abaladas porque as associações cultuais não se constituíram e algumas das igrejas foram encerradas ao culto público. Para Luís Salgado de Matos «As paróquias sem cultual eram mais de 90% do total nacional. Nelas, o culto prosseguiu sem qualquer problema.24» No concelho de Loures, por não ser ter constituído associação cultual nas igrejas de Loures, Stº. Antão e S. Julião do Tojal, Póvoa de Santo Adrião, Frielas, Odivelas e Caneças, os lugares de culto foram encerrados25. Em Caneças, o culto teria sido mantido, a julgar pela documentação consultada, exceptuando-se outras manifestações de religiosidade popular, como as procissões.

Considerando o contexto político e social referenciado pretende-se com este trabalho de pesquisa analisar as sociabilidades religiosas, tendo como referência um estudo de caso, a Irmandade do Santíssimo Sacramento em Caneças. No momento de transição política na sociedade portuguesa da Monarquia Constitucional para a República, pretende-se estudar o impacte da revolução republicana nas sociabilidades religiosas católicas.

O presente trabalho apresenta a Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças, enquadrando-a no espaço geográfico e no ambiente religioso e político que caracterizava o concelho de Loures de então.

De seguida, analisa-se a preponderância das medidas de política religiosa. Designadamente, a influência Lei da Separação do Estado das Igrejas no exercício do

convocação do I Concílio do Vaticano em 1869, cujos decretos condenavam o materialismo e o ateísmo e declarou a infabilidade do papa, anteriormente publicara, em 8 de Dezembro de 1864, os documentos Quanta Cura e Syllabus, onde expressava a incompatibilidade entre a religião católica e o liberalismo, no que se referia à espoliação dos direitos da Igreja este sentido não foi incluído no contexto. Todavia, os documentos Syllabus e a declaração da infabilidade papal causaram mal-estar mesmo nos países católicos, porque alguns católicos entendiam que se tratava de ingerência de Roma nos assuntos da Igreja nacional. Pio IX considerava que a Igreja era o caminho para a regeneração dos valores espirituais da sociedade. Cf. Manuel Clemente - Portugal e os Portugueses. 2ª ed. Lisboa: Assírio e Alvim, 2009.

24

Cf. Luís Salgado de Matos – A separação do Estado e da Igreja. Alfragide: Publicações D. Quixote, 2011, p. 219.

25

ACMF/ Arquivo/CJBC/ INVEN/ 016 – Rol das igrejas encerradas por distrito pela aplicação da Lei da Separação, 1914, cx. 667.

(15)

15 culto público e dinâmica da Irmandade do SSº Sacramento de Caneças, com referências às Irmandades da Paróquia de Loures e de outras paróquias.

Em virtude de o novo regime ter como intenção substituir as Irmandades por associações cultuais, cujos preceitos organizativos eram impostos pelo poder político, pretende-se estudar a ação da Irmandade e analisar o seu papel enquanto fator de organização autónoma das autoridades política e eclesiástica, numa época de conflito político e religioso. Para tal, procede-se ao estudo do comportamento dos mesários e confrades face aos condicionalismos políticos que determinavam a harmonização do seu compromisso, ao abrigo do artigo 17º do decreto da Separação de 20 de Abril de 1911. Facto esse que transformaria a Irmandade em associação cultual, contrariando as orientações da hierarquia eclesiástica.

De acordo com os papéis religioso, económico, cultural e social da Irmandade, estuda-se a composição e funcionamento da Irmandade do Santíssimo Sacramento para a compreensão da interacção da associação na vida da comunidade, nas dimensões religiosa e social.

É também motivo de reflexão o modo como os membros da Irmandade articulavam a relação entre “ser-se católico e ser cidadão”, a afirmação social e política dos confrades e a natureza e o grau das influências políticas dos veraneantes ou de novos moradores, oriundos principalmente da Capital, nas sociabilidades religiosas e no ambiente social e político da localidade.

Por fim, analisa-se o impacte da presença e organização da Irmandade, particularmente, no momento da reabertura da capela de S. Pedro ao culto público, em 29 de Junho de 1918, e as ações subsequentes que culminaram na aprovação dos estatutos da Irmandade em 29 de Setembro de 1921, e na entrega formal da capela pela Junta de Freguesia de Caneças.

Este trabalho de pesquisa pretende ser um contributo para o conhecimento da história e sociabilidades religiosas ao nível local, contextualizado em acontecimentos que marcaram (e marcam) a nossa história nacional. O estudo da história local é essencial para a compreensão da história de um país nas suas diversas dimensões.

A cultura de um povo alicerçada em vivências sagradas ou profanas é o pulsar da identidade das comunidades, é a partilha de usos e costumes que conferem ao indivíduo o sentido de pertença pelas relações sociais que se estabelecem.

(16)

16

METODOLOGIA

O trabalho apresenta-se em três capítulos que se subdividem em três subcapítulos cada um, cujo objetivo visa compreender o papel da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças, no contexto social, político e religioso, no período de transição entre o final da Monarquia Constitucional e a implantação da República, no concelho de Loures.

Partindo de um estudo de caso, procura-se enquadrar os acontecimentos vividos pela Irmandade, enquanto organização social e religiosa, em alguns acontecimentos ocorridos nas paróquias do concelho de Loures.

No primeiro capítulo, para o estudo do ambiente eclesiástico-religioso em Caneças no início da República, apresenta-se um breve historial das Irmandades da capela de São Pedro com o objetivo de identificar as instituições, a sua natureza, as suas atribuições, as relações confraternais, as formas de sociabilidade fomentadas pela Irmandade e a sua influência na vida económica, social e cultural da comunidade, a partir da sua dimensão religiosa. O objetivo é enquadrar a Irmandade no espaço comunitário onde se insere, considerando depois a sua reação aos normativos republicanos, os quais vão influenciar o ambiente religioso em Caneças.

De seguida, caracteriza-se o espaço geográfico de Caneças, a evolução administrativa do povoado, atendendo à sua ligação à freguesia de Loures. Neste ponto, explanam-se as atividades económicas das suas gentes para a compreensão da influência da Irmandade no desenvolvimento económico da povoação e da possível rede de sociabilidade que se desenvolve entre os confrades e entre estes e os restantes habitantes.

No último subcapítulo, apresenta-se a paróquia de Loures, enquanto lugar inserido no concelho de Loures, à qual Caneças pertencia, próximos da capital. Procura-se enquadrar a vida religiosa e as sociabilidades da paróquia de Loures, partindo da identificação das Irmandades existentes e da sua ação, referindo também os ambientes noutras paróquias do concelho, no período em estudo.

Esta reflexão pretende compreender a dimensão religiosa, económica, social e cultural da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças, no contexto da paróquia de Loures. Apurar-se a problemática causada pela Lei da Separação (decreto de 20 de Abril de 1911) em torno das cultuais, retirou vitalidade às Irmandades da paróquia de Loures e também à devoção religiosa dos crentes que não

(17)

17 podiam manifestar a sua crença através do exercício público do culto, face ao encerramento dos templos.

No segundo capítulo, aborda-se a relação da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças com o poder local e o poder eclesiástico, tendo como ponto de partida para essa abordagem as medidas republicanas, nomeadamente o decreto da Separação do Estado das Igrejas. No tratamento deste tema, o ano de 1912 é a referência para a reflexão e análise dos condicionalismos causados pela legislação republicana e sua aplicação na dinâmica da Irmandade.

O decreto da Separação coloca, de alguma forma, as irmandades numa situação ambígua, perante as determinações da lei emanada do poder civil e as decisões da autoridade eclesiástica. Neste contexto, a Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças age de forma a conciliar os seus interesses de liberdade de culto, mas na linha das orientações da Santa Sé e do Patriarcado.

As ocorrências envolvendo a Irmandade do SSº Sacramento de Caneças, enquadram-se nos acontecimentos nacionais, quanto à questão religiosa sobre a legitimidade da autoridade civil em limitar a gestão do culto. Além da verba indicada a despender com o culto público, a lei determina que a manutenção e organização do culto dependiam da constituição de cultual, o que retirava à Igreja o seu principal múnus.

Com base nos pressupostos enunciados, as vivências religiosas em Caneças são equacionadas a partir das relações estabelecidas com o poder local, para se observar a influência do poder local sobre a Irmandade, no que respeita à sua atividade, e sobre os católicos, resultado da aplicação da Lei da Separação.

A relação da Irmandade do Santíssimo Sacramento com o poder local e o poder eclesiástico, abordado no primeiro subcapítulo, permite articular essa informação no tratamento dos dois subcapítulos subsequentes, tendo por base a lei da Separação.

A Lei da Separação foi causadora de mal-estar por entendimentos diferentes quanto à sua natureza e aplicação e, possivelmente, também por compreensões contraditórias e pouco esclarecidas do seu conteúdo, que se alargavam a outros diplomas. A partir da Lei da Separação, analisa-se o seu efeito na interrupção do exercício do culto na capela de S. Pedro e na dissolução da Irmandade do Santíssimo Sacramento.

(18)

18 A pesquisa de informação em diferentes fontes permitiu verificar que a informação produzida pelos diferentes protagonistas (confrades da Irmandade, padre capelão João Ramos do Rosário, pároco de Loures Joaquim José Pombo, administração do Concelho, Governo Civil, Comissão de Administração dos Bens Eclesiásticos do Concelho de Loures e Junta de Paróquia de Loures) não correspondia ao mesmo entendimento quanto à interpretação da referida Lei, o que condicionou o funcionamento da Irmandade e o entendimento sobre a liberdade de culto.

A questão da aprovação dos estatutos da Irmandade, harmonizados ao abrigo da nova legislação, foi o principal embate para os anos que se viveram entre 1912 e 1921, protagonizados pela Irmandade para o seu reconhecimento legal e a manutenção da capela aberta ao culto, em oposição às autoridades político-administrativas do Concelho.

O conhecimento do ambiente religioso vivido em Caneças, na paróquia de Loures e noutras paróquias do concelho de Loures, à luz da visão republicana, é-nos dado pelos periódicos de Loures. Nos jornais são emitidas opiniões e relatados acontecimentos, de forma irónica, no âmbito da vida religiosa e sociabilidades religiosas (Irmandades e Ordem Terceira de São Francisco de Loures), que mostram a animosidade pelo clero, mas também pelas manifestações de piedade e de caridade das populações.

O último subcapítulo trata a questão da constituição de um agrupamento cultual em Caneças, ao abrigo do artigo 19º da Lei da Separação, para compreender até que ponto, mais uma vez, diferentes interpretações da Lei pela autoridade competente, condicionou a atividade da Irmandade e implicou que a capela continuasse encerrada.

Depois da análise de alguns artigos da Lei da Separação e da observação das repercussões dos mesmos na vitalidade da Irmandade do Santíssimo Sacramento, o terceiro capítulo apresenta a irmandade como rede de sociabilidade.

O primeiro subcapítulo aborda a dimensão social da Irmandade, tendo em conta a sua composição social para se perceber até que ponto os seus membros geraram a dinâmica da Irmandade ou dos seus irmãos na vida religiosa, social, cultural, económica e política, no período de transição política em estudo.

(19)

19 Pretende-se ainda abordar o papel de alguns cidadãos na vida política e cultural local, no sentido de se aprofundar o seu papel enquanto elite que se reorganizou em termos cívicos, no momento em que a Irmandade deixou de exercer esse papel. Embora os membros da Irmandade não estivessem afastados da vida política, como se verifica em 25 de Dezembro de 1922 numa declaração conjunta dos membros da Junta de Freguesia de Caneças (irmãos e mesários da Irmandade) e da Irmandade do Santíssimo Sacramento.

O segundo subcapítulo estuda a relação da Irmandade com o poder político, após a criação da freguesia de Caneças, em 10 de Setembro de 1915. No contexto das mudanças políticas que se foram observando ao nível da política nacional, designadamente, a influência das medidas legislativas (como o Decreto nº 3856/1918, D.G. I série. Nº 24, de 22 de Fevereiro de 1918) do Governo sidonista na Irmandade. Alterações que se traduziram na reabertura da capela ao culto e na aprovação legal da Irmandade do Santíssimo Sacramento.

O terceiro subcapítulo refere-se às manifestações das sociabilidades quotidianas em Caneças (as festas, as procissões, as feiras, o acompanhamento de defuntos nos enterros) para se percepcionar as redes de sociabilidade que se construíram ou prevaleceram no momento de transição política, as quais se desintegram com o encerramento da capela ao culto. Em termos das vivências religiosas em comunidade, articular a influência do fecho da capela e do não reconhecimento legal da Irmandade no quotidiano da povoação.

Na conclusão do trabalho sublinha-se o papel da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças, enquanto rede de sociabilidade, no período em estudo, perante o impacte dos normativos publicados. Se bem que as redes de sociabilidade tenham sofrido um interregno, os fiéis não perderam a sua devoção. As manifestações das tradições religiosas perduraram até aos nossos dias. A Irmandade enquanto organização foi afetada, mas não o sentimento religioso dos crentes.

A cronologia enquadra os acontecimentos da vida local e nacional com a indicação de normativos jurídicos.

O anexo documental deste trabalho encontra-se organizado por ordem cronológica, à excepção da reprodução de algumas figuras. A maioria é cópia dos documentos originais. As figuras, incluídas no anexo documental, têm como objetivo

(20)

20 enquadrar os acontecimentos no espaço e divulgar aspetos das vivências religiosas da época.

Na pesquisa da documentação uma das dificuldades prendeu-se com a falta de referências específicas ao tema em estudo “Irmandades”, em alguns arquivos, e o espólio documental da Irmandade ser constituído, apenas, por três livros, desconhecendo-se o paradeiro dos restantes livros. Em relação à documentação produzida pela Irmandade do Santíssimo Sacramento, somente, se registam a existência dos livros presentes no Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa: Livro nº 1 dos acórdãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças (atas de 1763 a 1825, mas com hiatos temporais significativos nos finais do séc. XVIII e durante o séc. XIX); Livro de deliberações da Irmandade de São Pedro de Caneças (atas de 1903 a 30 de Junho de 1912 sobre aprovação das contas e orçamentos, eleição de mesas administrativas, excepto das mesas eleitas em 28 de Janeiro e 1 Julho de 1912); Livro das contas da Irmandade de S. Pedro (mapas das contas do ano económico de 1902-1903 ao ano 1911-1912; o último mapa refere-se a 30 de Junho de 1912).

Por simpatia, uma pessoa da terra trouxe ao meu conhecimento cópias de cinco documentos originais, referentes ao pagamento da côngrua paroquial (ano 1890 -1891) e recibos do pagamento da quota anual de um irmão da Irmandade do Santíssimo Sacramento (1870, 1885, 1887, 1891).

Registo ainda as fontes orais que são mencionadas que fornecem informações que ajudam a compreender as vivências locais, apesar da impossibilidade em serem corroboradas pela documentação escrita.

Para a reunião de informação, a consulta de documentos foi realizada em diversos locais, tais como: Arquivo Municipal de Loures, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa, Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças, Arquivo da Igreja de S. Pedro de Caneças, Arquivo da Junta de Freguesia de Caneças, Arquivo Histórico Parlamentar, Arquivo do Governo Civil de Lisboa e Centro de Documentação Anselmo Braamcamp Freire de Loures.

Para a compreensão do papel religioso, social, económico da Irmandade foram fundamentais os livros da Irmandade, no Arquivo Histórico do Patriarcado, a partir dos quais a pesquisa foi orientada para outras fontes documentais noutros arquivos.

(21)

21 Destaco os processos de contas de gerência no Arquivo Nacional da Torre Tombo. Estes processos constituem um auxílio fundamental para a construção das vivências religiosas na comunidade de Caneças e a percepção do estabelecimento de redes de sociabilidade.

Os fundos do Arquivo Municipal de Loures contribuíram para a recolha de informação, no âmbito da história local. A documentação proporcionou cruzar informações entre os fundos documentais da Administração do Concelho, Câmara Municipal de Loures, Governo Civil de Lisboa, Junta da Paróquia de Loures e elementos do Arquivo da Junta de Freguesia de Caneças. Os documentos apresentam-se essenciais para a compreensão das sociabilidades religiosas no concelho de Loures no momento de transição política da monarquia constitucional para a república.

A documentação presente no Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças foi crucial para investigar e compreender os procedimentos da Irmandade, após as determinações do decreto separatista, e sua relação com o poder político local e central: o processo de arrolamento de bens da Irmandade (17 de Junho de 1911), as questões que levaram ao encerramento da capela, à dissolução da Irmandade e aos processos de reabertura da capela e reconhecimento legal da Irmandade.

No Arquivo do Governo Civil de Lisboa, consultei o processo da Irmandade que resultou na aprovação do alvará de 29 de Setembro de 1921, o qual contém os projetos de estatutos de 1912 e 1921.

O Arquivo Histórico Parlamentar permitiu a consulta do processo de criação da freguesia de Caneças e do caderno de recenseamento de eleitores da assembleia da freguesia de Loures. O caderno do recenseamento eleitoral possibilitou investigar as profissões de alguns dos cidadãos que fizeram parte da Irmandade e observar a participação dos cidadãos recenseados de Caneças, na primeira eleição de deputados para a assembleia parlamentar, em 28 de Maio de 1911.

Para a bibliografia de carácter geral, recorri à Biblioteca Nacional e à Biblioteca da Faculdade de Letras.

O Centro de Documentação Anselmo Braamcamp Freire permitiu a consulta de periódicos sobre o concelho de Loures, fonte documental importante utilizada

(22)

22 neste trabalho. No seu espólio, o Centro reserva livros antigos sobre Loures e reproduções digitais de lugares e pormenores do quotidiano.

Para o esclarecimento de alguns aspectos dos ambientes religioso, social, político, económico e cultural, vividos no concelho de Loures, distingo as obras de Joaquim José da Silva Mendes Leal – Admirável igreja matriz de Loures. Edição do autor, de 1909; e do padre Álvaro Proença – Subsídios para a história do concelho de Loures. Lisboa, 1940.Vol. 1. Estas obras podem ser consultadas no Centro acima referido.

O texto do trabalho foi escrito seguindo o acordo ortográfico. Na transcrição de documentos, a pontuação foi mantida mas a ortografia foi atualizada. Também as indicações bibliográficas em notas de rodapé, em cada capítulo, quando surgem pela primeira vez aparecem completas, e apresentam-se de modo abreviado nas restantes.

(23)

23

Capítulo 1

O AMBIENTE ECLESIÁSTICO-RELIGIOSO EM CANEÇAS NO INÍCIO DA REPÚBLICA

A relação Estado-Igreja, vivida com a implantação da República, determinada pelo propósito da separação26 das esferas temporal e religiosa e consignada nos diplomas legais, trouxe à discussão a problemática “questão religiosa” associada à “questão política”, influenciando os ambientes de então.

No contexto legislativo do regime republicano, o ambiente eclesiástico e religioso em Caneças foram determinados pela interpretação e aplicação da Lei da Separação do Estado das Igrejas e legislação subsequente, pois condicionou as vivências religiosas perante o encerramento da capela ao culto e a dissolução da Irmandade do Santíssimo Sacramento.

A Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças viu-se confrontada com a posição da administração concelhia que considerou, e informou a Comissão de Administração dos Bens Eclesiásticos do Concelho de Loures, de que a corporação não tinha harmonizado os estatutos, de acordo com as determinações no decreto de 20 de Abril de 1911. Como a Irmandade não se constituiu como associação cultual implicou o encerramento da capela ao culto.

As posições assumidas pelos órgãos políticos e administrativos (Câmara Municipal e Administração do Concelho) e pela comunidade, caracterizaram-se por divergências e contradições várias. A extinção da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças e o encerramento da capela de S. Pedro ao culto público resultaram da informação produzida pelos órgãos concelhios (Administração do Concelho e Comissão dos Bens Eclesiásticos do Concelho de Loures), sem atender à veracidade das situações.

Além destes factos, a Irmandade viu os seus bens imobiliários arrolados em 17 de Junho de 1911, os domínios de foro direto e as propriedades Quinta das Lages e Fonte da Verdelha, ulteriormente confiscadas.

No contexto político da implantação republicana de então, os habitantes de Caneças, o padre capelão da capela de São Pedro, a Irmandade do Santíssimo

26

Cf. Sérgio Pinto – Separação religiosa como modernidade: decreto-lei de 20 de Abril de 1911 e

(24)

24 Sacramento e a paróquia de Loures viveram a questão religiosa com a intensidade própria dos momentos que caracterizaram o início do República.

Localmente, a ação dos que defendiam a manutenção da capela ao culto, e ao mesmo tempo reivindicavam a legalidade da constituição da Irmandade do Santíssimo Sacramento, protestaram contra a posse administrativa dos bens imobiliários da Irmandade27. Mas, nenhuma das situações foi atendida favoravelmente pelo poder administrativo e político.

A questão da expropriação dos bens das corporações e das Igrejas, pelo Estado republicano, foi também motivo de forte contestação por todo país e nos debates parlamentares, principalmente o confisco dos passais dos párocos e de outros imóveis, muitos deles deixados em doação como legados pios e outros adquiridos pela Igreja. A Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças tentou fazer valer os seus direitos, mas sem obter o efeito pretendido.

A consulta da documentação da Administração do Concelho e a do Patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, referente à correspondência com os párocos do concelho de Loures, mostra que a expropriação de bens foi um assunto delicado e controverso entre as partes envolvidas, gerando na hierarquia eclesiástica e nos párocos o sentimento de incompreensão e injustiça face à apropriação desses bens pelo Estado28. O pároco de Loures Joaquim José Pombo29 também mostrou o seu desagrado pela expropriação da residência paroquial por considerar ter sido:

27

Leia-se sobre o direito de posse de bens pela Igreja o discurso do padre Casimiro Rodrigues de Sá, na sessão da Câmara dos Deputados, em 29 de Junho de 1914, lembrando que, somente em dois momentos da História de Portugal, se tinha procedido à confiscação de bens eclesiásticos: no período pombalino (leis de 3 de Setembro de 1759 e de 28 de Agosto de 1767) e no governo liberal do príncipe D. Pedro (decreto de 18 de Agosto de 1834 de Joaquim António de Aguiar). Cf. Sérgio Pinto – Separação religiosa como modernidade: decreto-lei de 20 de Abril de 1911 e modelos alternativos, p. 211-240. Como refere Casimiro de Sá no seu discurso, em caso da extinção das corporações religiosas, os bens na sua posse eram «[…] destinados para a manutenção doutros estabelecimentos de piedade ou instrução, e para a sustentação do culto e do clero […] salvo a aplicação dada aos bens no acto da fundação ou doação […]». Cit. por Sérgio Pinto – Separação religiosa como modernidade:

decreto-lei de 20 de Abril de 1911 e modelos alternativos, p. 236.

28

Ao pároco de Bucelas foi comunicado pelo senhor Patriarca que tinha sido solicitado ao governador Civil as medidas necessárias para não ser retirada a residência paroquial (AHPL – Livro 2º do Registo

da Correspondência Oficial de Sua Eminência o Senhor D. António I com os Vigários e Párocos,

1910-1913. U.I. 112). 29

Pároco colado da paróquia de Loures, nomeado em 12 de Janeiro de 1887 (AML – Livro de registo

de juramentos e autos de posse de párocos de Loures (1869-1887). Padre pensionista do Estado

republicano que em carta ao Vigário-Geral do Patriarcado afirmou que não contribuiu para a «reforma ou uniformização dos estatutos de qualquer das irmandades existentes na freguesia» de Loures. (AHPL – Carta de 12 de Janeiro de 1912. In Vários documentos sobre cultuais. U.I. 2332).

(25)

25 «[…] injustamente apreendida em fins de 1912, pela autoridade administrativa do concelho de Loures, a residência paroquial que me era concedida na lei da separação das igrejas do Estado, tenho a honra de rogar a V. Ex.ª se digne ordenar que pela Comissão executiva da referida lei me seja restituída a dita residência como é de justiça.30»

Perante as diferentes questões, foram protagonistas, simultaneamente, os confrades e moradores de Caneças, o padre capelão31 e o pároco de Loures na defesa da sua liberdade culto32, no que respeitou às manifestações exteriores de crença - prática de sacramentos, procissões e formas de caridade, expressões do religioso, do social e da cultura de uma comunidade.

Em relação à piedade popular dos católicos de Caneças, o pároco de Loures, Joaquim José Pombo, considerou «na sua maneira são católicos» e, por isso, eram necessárias condições «a fim de poderem continuar […] os seus deveres religiosos»33.

30

Ofício do pároco de Loures de 26 de Fevereiro de 1918 ao Ministro da Justiça. (ACMF – Processo

CJBC/LIS/LOU/ADMIN/076). O seu pedido foi indeferido pela Comissão Central da Execução da Lei da Separação porque ao pároco tinham concedido o aumento da pensão, por não utilizar a residência paroquial.

31

Padre capelão João Ramos do Rosário «exerceu ordens» de 1903 a 1912, conforme indicam as contas de gerência da Irmandade do Santíssimo Sacramento (ANTT), isto é, realizou funções sacramentais.

32

Segundo um artigo do jornal Quatro de Outubro, assinado por Frei António, um pseudónimo, intitulado A Missa: «Algumas pessoas, umas ingénuas, outras ainda fanatizadas pelos padres reacionários, e, portanto, pela igreja, porque entendem, pela sua ingenuidade ou fanatismo religioso, que só na igreja é que se encontra remédio para todos os males e achaques, lamentam-se de não poderem ouvir missa, pelo facto de algumas das igrejas estarem fechadas.

Ouvir missa dizem; ver missa, ou ver o padre fazer momices no altar, direi eu. […] As orações que o padre lê no missal e que constituem a missa, qualquer pessoa temente a Deus as podem ler ou rezar em casa.» In Quatro de Outubro. Lisboa. Nº 64 (6 de Julho de 1913) 1.

33

Ofício do pároco de Loures Joaquim José Pombo, datado 23 de Agosto de 1914, remetido ao

Ministro da Justiça, que o enviou à Comissão Central de Execução da Lei da Separação (ACMF –

(26)

26

1.1-AS IRMANDADES NA CAPELA DE SÃO PEDRO DE CANEÇAS

A capela de São Pedro34 era a igreja e, portanto, o lugar de culto que, modesta na sua decoração35 e construção, constitui um testemunho importante da vida religiosa das gentes de Caneças, sendo a sua edificação anterior ao séc. XVIII. Na capela constituíram-se duas Irmandades: a Irmandade do Apóstolo São Pedro36 e a Irmandade do Santíssimo Sacramento37, constatando-se que a confraria sacramental

34

ANTT – Memórias paroquiais: dicionário geográfico. Vol. XXI, 12 de Maio de 1758, fl. 1255. Cf. Anexo I.

35

A capela tem um púlpito simples com baldaquino, decorado com palmas e rosas pintadas a ouro, símbolos cristãos relacionados com a paixão e a ressurreição de Cristo, as palmas, e as rosas possivelmente com o culto mariano. A base do púlpito é de mármore, enquanto os outros elementos são de madeira com as decorações descritas. A nave principal tem um painel de azulejo azul e branco a revestir as paredes, com motivos naturalistas e aves. O baptistério é um espaço pequeno com a devida pia batismal encerrada por portas de ferro. A capela tem coro. A disposição de algumas das imagens não correspondem à sua posição inicial e algumas das imagens não são as originais.

36

Conforme indica a provisão de D. João V de 22 de Novembro de 1745, dada ao Juiz e mais irmãos da Irmandade de São Pedro de Caneças, autorizando o aforamento de casas legadas por Francisco Valentim para cumprimento de duas missas rezadas anualmente (ANTT – Provisão Régia in Chancelaria de D. João V (Comuns B-C). Livro nº 112, fls. 43 verso). A Irmandade era

administradora da capela instituída por João Francisco Valentim em 27 de Agosto de 1720 (AML –

Autos de Contas, capela de João Francisco, de 04-09-1756 a 08-03-1912). Por este documento,

podemos considerar a possibilidade da Irmandade de S. Pedro de Caneças se ter constituído no séc. XVII, tomando também como referência a obra de Joaquim José da Silva Mendes Leal – Admirável

igreja matriz de Loures. Lisboa: ed. do autor, 1909. O autor, na p. 333 do livro supracitado, menciona

a existência de uma «tábua de 1672, existente na sacristia» da Igreja Matriz, segundo a qual se realizava uma festividade no dia 29 de Junho, em Caneças, dia festivo de S. Pedro. Por Provisão régia de 20 de Abril de 1762, passada em 4 de Fevereiro de 1763, foi aprovado novo compromisso à Irmandade do Apóstolo S. Pedro de Caneças, cujos irmãos tinham recebido da autoridade episcopal autorização para terem sacrário pelo que eram responsáveis pelo culto do Santíssimo Sacramento (ANTT – Desembargo do Paço - repartição da Corte, Estremadura e Ilhas, maço 2080, doc. 48. Cf. Anexo V). No entanto, de acordo com o pedido ao rei D. José para mercê de uma feira franca, em 1759 (Cf. Anexo III), este foi feito pelos mordomos do Santíssimo Sacramento, cuja Irmandade teve compromisso aprovado em 7 de Fevereiro de 1762. Em 21 de Junho de 1762 foi passada a provisão de aprovação do compromisso (ANTT – Desembargo do Paço - repartição da Corte, Estremadura e Ilhas, maço 2079, cx 1918, doc. 7. Cf. Anexo IV). Possivelmente, alguns dos irmãos prestavam auxílio nas duas Irmandades.

37

Provisão Régia de D. José I de 7 de Fevereiro de 1762 autorizou a criação da nova confraria, aprovando o compromisso de oito capítulos. Segundo o teor do documento, a Irmandade funcionava sem «regime». O Procurador da Coroa achava que não se devia confirmar o primeiro parágrafo do capítulo segundo por não distinguirem «pessoas, ou famílias»; considerou também que não devia assistir às mesas administrativas padre «[…] pois estes actos eram livres, e independentes deles […]; que a confraria «[…] era, e seria sempre sujeita a jurisdição real […]»; e que nenhum clérigo, mesmo que fosse irmão, devia fazer parte das mesas administrativas. O parecer do Procurador considerava que após os seus considerandos não havia dúvidas quanto à aprovação do compromisso. No entanto, o compromisso foi aprovado, com a autorização dos clérigos puderem fazer parte das mesas, «[…] em razão do clericato, cuja nobre qualidade os não faz menos dignos daqueles empregos.» (ANTT – Desembargo do Paço - repartição da Corte, Estremadura e Ilhas. Maço 2079, cx 1918, doc. 7). Cf. Anexo IV. A Irmandade do SSº, em 1759, antes da confirmação régia do seu compromisso, solicitara a provisão para a criação de uma feira franca. Anteriormente à aprovação do compromisso da Irmandade, a administração do SSº Sacramento era uma das preocupações dos fiéis. De acordo com a resposta ao inquérito do pe. Teotónio José de Brito Barros da paróquia de Loures ao arcebispo da Lacedemónia D. José Dantas Barbosa, o terramoto de 1755 destruiu a ermida, pelo que andavam a

Referências

Documentos relacionados

O esforço se desdobra em ações de alcance das projeções estabelecidas pelo MEC para o índice de desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) Dentre os 10

Declaro que fiz a correção linguística de Português da dissertação de Romualdo Portella Neto, intitulada A Percepção dos Gestores sobre a Gestão de Resíduos da Suinocultura:

Acrescenta que “a ‘fonte do direito’ é o próprio direito em sua passagem de um estado de fluidez e invisibilidade subterrânea ao estado de segurança e clareza” (Montoro, 2016,

patula inibe a multiplicação do DENV-3 nas células, (Figura 4), além disso, nas análises microscópicas não foi observado efeito citotóxico do extrato sobre as

- essumêm relevância no contexto da rede de espaços verdes públicos de recreio infantil e sénior: dada a sua proximidade à habitação, oferecem um acesso

“A cultura organizacional que mais eficaz e eficientemente cria os comportamentos necessários para a criação de valor superior para os compradores e assim,

Este estudo tem o intuito de apresentar resultados de um inquérito epidemiológico sobre o traumatismo dento- alveolar em crianças e adolescentes de uma Organização Não