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Após o ano de 1912, a vida religiosa dos moradores de Caneças foi condicionada pelo encerramento da capela ao culto.

A Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças, em assembleia geral de confrades de 10 de Dezembro de 1911, redigiu a ata165 em que os presentes admitiram a reforma dos estatutos, os quais deviam ser apresentados em nova reunião para a respetiva aprovação. Os confrades decidiram, por unanimidade, «continuar com o culto e beneficência em harmonia e conforme o artigo trinta e oito da lei da separação»166. Na declaração167, os mesários obrigavam-se a reformular os estatutos «nos prazos, que ulteriormente» lhes fossem indicados e «a empregar no serviço do culto» quantia que não excedesse «a terça parte dos seus rendimentos totais e dois terços da quantia que tem dispendido com o mesmo em média nos últimos cinco anos». A Irmandade podia apresentar os estatutos ulteriormente e, assim, evitava a sua extinção e o encerramento da capela ao culto, e agia conforme as orientações do Patriarcado ao harmonizar os estatutos ao abrigo do art. 38º da Lei da Separação.

A Igreja Católica considerava que a reformulação dos estatutos, ao abrigo do artigo 38º, não implicava a formação de cultual168:

«[…] em obediência às Instruções e determinações comunicadas pela Santa Sé, reformarem os seus Estatutos de harmonia com prescrito no artigo 38º e

165

Portaria de 18 de Novembro de 1911,do Ministério da Justiça, publicada no D.G. nº 271, de 20 de Novembro de 1911. O diploma instruía as irmandades a entregarem a ata da assembleia geral em que os irmãos se comprometiam a reformar os estatutos ao abrigo do decreto da Separação e a declaração em que os mesários anunciavam que o orçamento seria organizado e apresentado «dentro dos limites do artigo 38º», do mesmo decreto, bem como a apresentação dos estatutos reformados «no prazo que ulteriormente for designado». A portaria prorrogava o prazo para a apresentação dos estatutos das irmandades que não os reformassem até 31 de Dezembro de 1911, caso não cumprissem o preceituado nos artigos 39º e 169º da Lei da Separação. Evitava a extinção das irmandades.

166

Cópia da ata autenticada da Confraria do Santíssimo Sacramento de Caneças para resolver sobre a continuação com o culto e beneficência, de 10 de Dezembro de 1911 (AGCL – Confraria do

Santíssimo Sacramento de Caneças. Processo nº 1353, cx 51). Cf. Anexo XV.

167

Declaração dos mesários da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças, de 10 de Dezembro de 1911 (AHPL – Livro de deliberações da Irmandade, fl. 14. U.I. 1885). A declaração faz também parte do processo remetido ao Administrador do Concelho de Loures, em 25 de Junho de 1912, que, por sua vez o enviou ao Governo Civil de Lisboa em 31 de Agosto de 1912 (AGCL – Confraria do

Santíssimo Sacramento de Caneças. Processo nº 1353, cx 51). Cf. Anexo XVI.

168

Também as Irmandades do Santíssimo Sacramento e das Almas de Loures apresentaram ao Patriarcado cópia das atas com o mesmo conteúdo, datadas de 24 de Dezembro de 1911, como mencionámos no capítulo anterior (AHPL – Vários documentos sobre cultuais. U.I. 2332).

58 não com o que se mostra consignado nos artigos 17 e seguintes do decreto de 20 de Abril. »169

A hierarquia católica aconselhava também os párocos170 a não promoverem a constituição das associações «dentro das bases fixadas pelo decreto de 20 de Abril de 1911»171, e a não reconhecerem a natureza das corporações cultuais.

O aparecimento de cultuais verificou-se por todo o país172, excepto nos distritos da Horta, Funchal e Ponta Delgada173, embora não constituíssem a maioria de associações de fiéis. Toda a questão em torno das cultuais caracteriza-se pela dependência dos assuntos da esfera espiritual, incluindo o próprio clero, da sociedade civil. O clero não podia intervir nas corporações e na organização e gestão do culto, ficava subordinado às decisões dos leigos em matérias da sua competência.

Por outro lado, as receitas que promoviam o sustento do culto, como as doações e legados em testamentos foram proibidos; caso se observassem essas situações e não fossem reclamadas pelos sucessores, os bens revertiam para a Junta de Paróquia que os aplicaria em ações de beneficência e assistência174.

O ambiente de instabilidade social, em parte fruto da questão política e religiosa, não impediu que a associação de fiéis em Caneças, a Irmandade do Santíssimo Sacramento, agisse na salvaguarda do culto em relação à sua manutenção. Considero que, pelas fontes consultadas, não foram ações mitigadas pelo ideário republicano, as pessoas mobilizaram-se independentemente das suas preferências políticas, distinguindo o espiritual do político.

Enquanto cidadãos (homens e mulheres de Caneças) procuraram defender a sua liberdade de consciência e de culto, anunciada no artigo 1º da polémica Lei da Separação, através de representações apresentadas às autoridades superiores em

169

AHPL – Provisões, Portarias: correspondência oficial durante a residência do Sr. Patriarca em

Santarém: de 3 de Fevereiro de 1912 a 21 de Outubro de 1916, fl. 26 verso. U.I. 174.

170

Orientações dirigidas aos párocos sobre cultuais para que dêem informações sobre corporações cultuais (AHPL – Vários documentos sobre cultuais, fl. 2. U.I. 2332).

171

Orientações escritas transmitidas às Irmandades, aos párocos e às Juntas de Paróquia. As Irmandades deviam lavrar o seu protesto em como eram corporações eclesiásticas a quem competia a guarda e administração dos bens móveis e imobiliários destinados ao exercício do culto, conforme os seus estatutos. Também as Juntas de Paróquia deviam reafirmar a sua legitimidade, enquanto Fábricas da Igreja, para a guarda e administração de bens e alfaias destinadas ao culto (AHPL – Vários

documentos sobre cultuais, fl. 2. U.I. 2332).

172

Maria Lúcia Brito Moura – A «Guerra Religiosa» na I República. 2ª ed. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa - UCP, 2010, p. 288.

173

Op.cit. p. 288. 174

Artigo 29º da Lei da Separação de 20 de Abril de 1911, publicada no D.G. nº 92, de 21de Abril de 1911.

59 favor da manutenção da capela para o exercício do culto público e do reconhecimento da existência legal da Irmandade do Santíssimo.

Considerava um Edital175 da Comissão Concelhia de Administração dos Bens Eclesiásticos de Loures, de 15 de Novembro de 1914, que não existia espírito religioso no Concelho que mostrasse a «necessidade da conservação destes templos com todos os seus objetos de culto». A Comissão Concelhia, ao declarar que o povo não professava a religião católica, condicionou a prática religiosa em relação à utilização dos objetos de culto, aos espaços de culto e à administração de bens imobiliários que contribuíam para sustentar as despesas.

O Edital informava que «todas as igrejas, capelas e ermidas do concelho de Loures», à excepção da igreja de Santa Iria d’Azóia, se encontravam encerradas há três anos, pelo que propunha a venda, em hasta pública, de inúmeros bens imobiliários, mobiliários e objetos de culto, ressalvando os de valor artístico ou histórico. Justificavam também a venda pelas reclamações contra o mau estado dos edifícios e das alfaias de culto e dos furtos de que eram alvo. A venda dos bens, por arrematação, da paróquia de Loures176 sucedeu, principalmente, nos anos 20 do século XX, de acordo com as anotações constantes no processo de arrolamento.

Quanto à informação sobre o encerramento de todas as igrejas e ermidas, à excepção da Igreja de Santa Iria d’Azóia177, esta contraria o que já referimos sobre a situação da capela de São Pedro de Caneças que, em 1911, se encontrava aberta ao culto como outras Igrejas do Concelho, inclusive a Matriz de Loures.

Esclarece ainda o Edital, que até à data da emissão do referido documento, não se tinham registado reclamações ou pedidos para a reabertura de qualquer das igrejas e capelas do concelho de Loures. A comprovar pela documentação em estudo, esta consideração não corresponde à verdade dos factos e tomemos como exemplo as ocorrências na capela de Caneças. A Irmandade será dissolvida e a capela encerrada ao culto público, após as petições.

De acordo com os pressupostos anteriores, constata-se que o relacionamento com os poderes locais não foi fácil, designadamente, com a Comissão Concelhia de

175

Edital de 15 de Novembro de 1914, assinado pelo Presidente da Comissão João Raimundo Alves. (ACMF/ CJBC/LIS/LOU/CEDEN/001. Processo nº 2782, Fl. 29). Quatro de Outubro. Lisboa. Nº 131. (22 de Novembro de 1914) 3. Cf. Anexo XLVII.

176

ACMF/ARQUIVO/CJBC/LIS/LOU/006. 177

Embora o Regedor tenha comunicado ao Administrador do Concelho que na freguesia não existia associação religiosa, mas que outrora existiu uma Irmandade na ermida, em 3 de Setembro de 1912 (AML – Administração do Concelho de Loures - Correspondência recebida, ano 1912).

60 Administração dos Bens Eclesiásticos de Loures e administração do Concelho178 e com alguns republicanos que assumiram posições anticlericais e anticatólicas, como as ameaças proferidas contra o capelão João Ramos do Rosário da capela de Caneças e os párocos de Bucelas, Fanhões e Loures.

Mas, é preciso ter em consideração que, em Caneças, também havia republicanos católicos que não se constrangeram em agir em prol do seu credo, participavam na vida da Irmandade do Santíssimo Sacramento, subscreveram as petições e participavam na vida política local. Ser republicano podia significar ser católico ou não, da mesma forma que ser partidário da monarquia não correspondia, necessariamente, professar o catolicismo.

Manifestações pró-república aconteciam no concelho de Loures e em Caneças, como a moção179 de apoio ao Governo e ao Partido Republicano Português, aprovada por um grupo de republicanos de Caneças, por ocasião da preparação da eleição de uma comissão local partidária que contribuísse para o «desenvolvimento e progresso da localidade». Em Caneças, teve ainda lugar uma conferência patriótica180, em 29 de novembro de 1914, presidida por Herculano Moreira Feyo (secretário da Câmara Municipal de Loures), em que o orador proferiu o discurso sobre «Verdadeiros e falsos patriotas» para abordar a questão I Guerra Mundial. Nessa abordagem, considerou os opositores à participação no conflito apoiantes da monarquia, designando-os de «falsos patriotas», enquanto os republicanos eram os

178

O republicano João Raymundo Alves exerceu as funções de taquígrafo da Câmara dos Deputados (ainda no tempo da monarquia) e, posteriormente a de Oficial do Registo Civil. Cidadão que se mostrou favorável à causa republicana em artigos de opinião nos jornais Lápis e Penna (surge em 1907, propriedade Raymundo Alves & Companhia) e A Economia (criado em 17 de janeiro de 1908). Após 1912, as suas mensagens tiveram voz em O Cinco de Outubro e Quatro de Outubro, de cujo periódico será proprietário. Exerceu os cargos de Administrador do Concelho de Loures e de Presidente da Comissão Concelhia de Administração dos Bens Eclesiásticos de Loures. Durante as suas administrações no Concelho de Loures, ocorreram os conflitos mais significativos com os fiéis de Caneças, ao nível de contradições da informação declarada. Ao compararmos a informação com as de outras fontes, observa-se que revela parcialidade de pareceres, quanto à situação da Irmandade do Santíssimo Sacramento e da capela. O padre João Ramos do Rosário chega a acusar o Administrador de ser o causador das ameaças que sofreu. A presença dos democráticos no funcionalismo estatal, associações, clubes, centros escolares, e grupos secretos (Formiga Branca) fomentou o «centralismo burocrático, subalternizando a dinâmica de partido em relação à dinâmica do estado» o que contribuiu para o desenvolvimento de «um partido de cartel» ao serviço «das companhias públicas e das sociedades económicas e financeiras». Cf. Ernesto Castro Leal – Partidos e Programas: o campo

partidário republicano português (1910-1926). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra,

2008, p. 46-47. 179

Quatro de Outubro. Lisboa. Nº 64 (6 de Julho de 1913) 1.

180

Quatro de Outubro. Lisboa. Nº 132 (de 29 de Novembro de 1914) 1; Quatro de Outubro. Lisboa.

Nº 133 (de 13 de Dezembro de 1914) 3. A Conferência realizou-se a pedido da Comissão Municipal Republicana do concelho de Loures e ocorreu numa sala cedida por António Raimundo Martins, comerciante em Caneças e membro da subcomissão republicana paroquial de Caneças.

61 «verdadeiros patriotas». Para alguns republicanos, aqueles que defendessem opiniões divergentes de um determinado grupo eram associados à causa monárquica. No que se referiu à Lei da Separação, o conferencista comparou o autor da mesma a Marquês de Pombal, de forma elogiosa.

No entanto, estes acontecimentos não podem ser tomados como exemplos de apoio ou de repúdio ao poder instituído, pelos cidadãos da pequena comunidade. Estas ações permitem conhecer comportamentos e, consequentemente, as dinâmicas sociais que se foram estabelecendo face aos condicionalismos que foram surgindo no contexto político-religioso, enquadrando os católicos e confrades da Irmandade a sua ação na sociedade.

Os mesários da Irmandade não contestavam o poder político instituído. Na petição de 27 de Janeiro de 1913, remetida à Direcção Geral dos Negócios Eclesiásticos, afirmaram que eram «todos cidadãos pacíficos alheios a política e sempre respeitadores dos mandados da autoridade legitimamente […]»181.

Por este motivo consideravam não haver razão que levasse ao encerramento da capela, tanto mais que a Irmandade e o capelão tinham apresentado as declarações previstas na lei, e reformulado os estatutos os quais foram aprovados em assembleia geral de 1 de Junho de 1912182. O compromisso da Irmandade encontrava-se «há meses» no Governo Civil de Lisboa «a fim de ser aprovado»183. Estatutos184 que tinham sido remetidos ao Administrador do Concelho em 25 de Junho de 1912185 e, por este, ao Governo Civil em 31 de Agosto de 1912186.

Como referimos, a mesa da Irmandade, na declaração de 1911, comprometeu-se a apresentar os orçamentos e contas nos prazos legais e a despender no serviço de culto a quantia que não excedesse a terça parte dos seus rendimentos totais e dois terços da quantia despendida nos últimos cinco anos, conforme o artigo

181

Petição dos mesários e confrades da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças, de 27 de Janeiro de 1913, face ao encerramento da capela de S. Pedro e à inexistência de aprovação dos seus estatutos (ACFM/CJBC/LIS/LOU/CEDEN/001). Cf. Anexo XXIV. D. António Mendes Belo, Patriarca de Lisboa, defendia a necessidade das forças católicas unirem esforços, na defesa do interesse da religião católica, desenvolvendo ações religiosas e sociais (Carta de D. António ao Secretário de Estado Cardeal de Sua Santidade, 30 de Junho de 1913. AHPL – Provisões, Portarias:

correspondência oficial durante a residência do Sr. Patriarca em Santarém: de 3 de Fevereiro de 1912 a 21 de Outubro de 1916. Carta nº 16. U.I. 174).

182

Cf. Anexo XVII. 183

Petição de 13 de Janeiro de 1913 dos mesários e confrades da Irmandade do SSº de Caneças (ACFM/CJBC/LIS/LOU/CEDEN/001. Fls. 3-5). 184 Cf. Anexo XVIII. 185 Cf. Anexo XIX. 186 Cf. Anexo XXI.

62 38º da Lei da Separação. Além de garantirem o culto, continuavam a dedicar-se ao socorro de irmãos em necessidade. As receitas para isso provinham, maioritariamente, das quotas de irmãos e de esmolas voluntárias, como já referimos. Declaração que também foi remetida ao Patriarcado A Irmandade ao tomar esta posição, correspondia às orientações do Patriarcado, que considerava «lamentável» a existência das:

«associações cultuais, como ficam sendo as Irmandades regidas por estatutos aprovados em conformidade com o artigo 17º e seguintes do decreto da Separação; associações anti-canónicas, condenadas e reprovadas na sapientíssima Encíclica Iamdudum in Lusitania de 24 de Maio de 1911 […]»187

.

Pretendia-se que fosse «respeitada a hierarquia e fiquem ressalvados os direitos espirituais dos párocos»188. O que estava em causa era a organização e a gestão do culto, o qual devia estar sob a dependência da hierarquia (prelados e/ou párocos) e não dos leigos, «ressalvando os legítimos direitos dos párocos, quanto à presidência e direção do mesmo culto, ao ensino religioso e, geralmente, em tudo o que pertence à esfera espiritual»189.

A ação da Irmandade para a manutenção do culto na capela tornar-se-á infrutífera, como se verá. A problemática envolverá a transformação da Irmandade

187

Carta de D. António Mendes Belo ao Sr. Cardeal de Estado de Sua Santidade, no seguimento da mensagem da Representação das Irmandades do Santíssimo da cidade de Lisboa, e Ofício-Circular do Patriarca, de 20 de Agosto de 1913 (Carta nº 50, de 1 de Dezembro de 1913. AHPL – Provisões,

Portarias: correspondência oficial durante a residência do Sr. Patriarca em Santarém: de 3 de Fevereiro de 1912 a 21 de Outubro de 1916. U.I.174). A encíclica Iamdudum in Lusitania do Papa

Pio X, publicada em 24 de Maio de 1911, criticava a Lei republicana, no que se referia à religião; apoiava a Pastoral Coletiva dos Bispos portugueses em defesa da religião e da Igreja católica e da união dos católicos (divulgada pelos padres a partir de 1911, em que se condenava a legislação republicana em matéria religiosa, a perseguição de que a religião estava a ser alvo em termos de poder espiritual); criticava o afastamento dos Bispos do Porto e de Beja (D. António Barroso e D. Sebastião Leite de Vasconcelos); considerava que o decreto espoliava à Igreja os seus bens materiais; criticava as associações cultuais porque o objetivo era afastar o clero da organização do culto e a intervenção do Estado na esfera eclesiástica; criticava a ruptura pretendida com a Santa Sé, no que respeitava ao exercício da sua autoridade sobre matérias religiosas em Portugal. Cf. Vitor Neto - O Estado, a Igreja

e a Sociedade em Portugal (1822-1911), p. 278-285.

188

Carta de D. António Mendes Belo ao Sr. Cardeal de Estado de Sua Santidade, no seguimento da mensagem da Representação das Irmandades do Santíssimo da cidade e Lisboa e Ofício-Circular do Patriarca, de 20 de Agosto de 1913. (Carta nº 50, de 1 de Dezembro de 1913. AHPL – Provisões,

Portarias: correspondência oficial durante a residência do Sr. Patriarca em Santarém: de 3 de Fevereiro de 1912 a 21 de Outubro de 1916. U.I. 174).

189

Idem. Segundo a carta coletiva dos Bispos Portugueses, de 15 de Março de 1913, «O Papa, com a plenitude do poder, governa superiormente toda a Igreja, o Bispo governa a diocese; o pároco administra espiritualmente a paróquia. O pároco exerce, ou qualquer sacerdote, exerce o seu múnus na dependência do Bispo, assim como o Bispo o exerce na dependência do Papa.» (ACMF – CJBC- LEGIS- 045 - Carta dos Bispos, p. 22). Cf. Anexo XXV.

63 em associação cultual ao abrigo do artigo 17º da Lei da Separação. Transformação que não é aceite pela associação que declara a reformulação do seu compromisso ao abrigo do artigo 38º, seguindo as orientações do Patriarcado. Posteriormente, ao abrigo do artigo 19º da mesma Lei, solicita autorização para a constituição do agrupamento cultual transitório, com o apoio do pároco de Loures Joaquim José Pombo.

Neste contexto político-religioso, os fiéis e habitantes de Caneças, como nos são apresentados os signatários das petições, solicitam a reabertura da capela de São Pedro ao culto. A população tenta agir, fazendo valer os direitos de manifestar a liberdade de crença, perante um regime republicano defensor dos princípios da liberdade, da igualdade, e do direito à segurança e propriedade. Essa liberdade deveria ter como desiderato manter as suas vivências religiosas, em comunidade, sem as condicionantes da interpretação de uma lei que abriu caminhos a atos de intolerância e subjugou, neste caso, as manifestações de fé seculares.

De um momento para o outro, os costumes, a tradição era como que “coagida” a dar lugar a uma nova ordem cultural e moral, em que os princípios da liberdade e da tolerância eram entendidos como vontades de um novo regime que definia o caminho que cada um devia tomar, mas sujeita a interpretações locais que aumentavam as inimizades e situações de confronto.

Em Caneças, a “questão religiosa” fez-se sentir quanto ao entendimento sobre a separação dos poderes temporal e espiritual e a intervenção do poder político sobre o poder eclesiástico e, simultaneamente, sobre as vivências religiosas e a liberdade de escolha dos cidadãos, a partir das interpretações às leis vigentes190. O ambiente religioso vivido no Concelho foi influenciado pelo encerramento das Igrejas ao culto, as perseguições e violência191 usadas contra os párocos do Concelho, a venda de bens em hasta pública e a dissolução de algumas das Irmandades, como se referiu no anterior capítulo.

190

Cf. João Seabra - O Estado e a Igreja em Portugal no início do século XX: a Lei da Separação de

1911. Cascais: Principia Editora, Lda. 2009, p. 97.

191

O Governador Civil de Lisboa indagou sobre o autor da expulsão dos padres e o papel dos regedores e do administrador perante os incidentes, solicitando em 14 de Julho de 1912, ao Administrador do Concelho de Loures esclarecimentos pela expulsão dos párocos de Loures, Fanhões e Bucelas. Este último preso pelo «povo da freguesia de Bucelas», por suspeita de conspiração. O Governador Civil emitiu o seguinte despacho: «não é admissível que cada qual tome para si atribuições que exclusivamente às autoridades constituídas pertencem […]» (AML – Administração do Concelho - Correspondência recebida, ano de 1912).

64 Neste sentido, os leigos agiram na proteção da sua liberdade religiosa, daí o seu papel nesta pequena comunidade onde procuraram mover-se perante uma interpretação “excessiva da lei” e as inúmeras contradições, face aos documentos remetidos para as autoridades competentes e que pareciam não chegar ao destino. A instabilidade vivida e sentida motivou a defesa dos valores cristãos em que acreditavam.

A Irmandade do Santíssimo Sacramento de Caneças atuou na salvaguarda da