UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
TIAGO SEVÁ PEREIRA
INFECÇÕES BACTERIANAS NO TRANSPLANTE DE FÍGADO: Característica epidemiológicas, bactérias multirresistentes e fatores de risco
BACTERIAL INFECTION AFTER LIVER TRANSPLANTATION
CAMPINAS 2015
TIAGO SEVÁ PEREIRA
INFECÇÕES BACTERIANAS NO TRANSPLANTE DE FÍGADO: Característica epidemiológicas, bactérias multirresistentes e fatores de risco
BACTERIAL INFECTION AFTER LIVER TRANSPLANTATION
Tese apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Ciências.
ORIENTADORA: PROFA. DRA. RAQUEL SILVEIRA BELLO STUCCHI
COORIENTADORA: PROFA. DRA. ILKA DE FÁTIMA SANTANA FERREIRA BOIN
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO
ALUNO TIAGO SEVÁ PEREIRA E ORIENTADO PELA PROFA. DRA. RAQUEL SILVEIRA BELLO STUCCHI.
CAMPINAS 2015
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Ciências Médicas
Maristella Soares dos Santos - CRB 8/8402
Sevá-Pereira, Tiago,
Se82i SevInfecções bacterianas no transplante de fígado : características epidemiológicas, bactérias multirresistentes e fatores de risco / Tiago Sevá Pereira. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.
SevOrientador: Raquel Silveira Bello Stucchi.
SevCoorientador: Ilka de Fátima Santana Ferreira Boin.
SevTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas.
Sev1. Transplante de fígado. 2. Cirrose hepática. 3. Infecções bacterianas. 4. Farmacorresistência bacteriana. 5. Fatores de risco. I. Stucchi, Raquel Silveira Bello,1958-. II. Boin, Ilka de Fátima Santana Ferreira,1953-. III. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Ciências Médicas. IV. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Bacterial infection after liver transplantation Palavras-chave em inglês:
Liver transplantation Liver cirrhosis Bacterial infections Drug resistance, Bacterial Risk factors
Área de concentração: Fisiopatologia Cirúrgica Titulação: Doutor em Ciências
Banca examinadora:
Raquel Silveira Bello Stucchi [Orientador] Plinio Trabasso
Ciro Garcia Montes Edson Abdala
Renato Ferreira da Silva
Data de defesa: 17-12-2015
Programa de Pós-Graduação: Ciências da Cirurgia
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO
TIAGO SEVÁ PEREIRA
ORIENTADORA: PROFA. DRA. RAQUEL SILVEIRA BELLO STUCCHI
MEMBROS: 1. PROFA. DRA. RAQUEL SILVEIRA BELLO STUCCHI 2. PROF. DR. PLINIO TRABASSO 3. PROF. DR. CIRO GARCIA MONTES 4. PROF. DR. EDSON ABDALA 5. PROF. DR. RENATO FERREIRA DA SILVA Programa de Pós-Graduação em Ciências da Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.
DEDICATÓRIA
Dedico este estudo
À minha mulher Rebecca Maunsell, pelo apoio incondicional, e também pelo exemplo profissional de competência e perseverança.
Aos meus pais Adriana Sevá Pereira e Rogério Antunes Pereira Filho, pelo exemplo pessoal e profissional que sempre nortearam minha vida.
E aos meus filhos, Luca e Felipe, por darem tanto sentido a minha vida e por me fazerem querer ser uma pessoa melhor.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Profa. Dra. Raquel Silveira Bello Stucchi por sua orientação e apoio, inicialmente como co-orientadora e depois assumindo a orientação plena deste estudo. Seu conhecimento, tranquilidade e amizade foram essenciais na a elaboração deste trabalho.
Agradeço de forma especial à Profa. Dra. Ilka de Fátima Santana Ferreira Boin, grande incentivadora do meu crescimento profissional e acadêmico. Sem seu estímulo esta tese não teria sido iniciada nem concluída. Agradeço também o exemplo de dedicação, competência e paixão pelo trabalho que faz.
Aos meus colegas da Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, pelo apoio e pela amizade durante este período, e pelo estímulo em seguir a formação acadêmica. Agradeço em especial ao Prof. Dr. Jazon Romilson de Souza Almeida, Dra. Sônia Letícia Silva Lorena e Dr. Marlone Cunha da Silva, que muitas vezes me substituíram ou assumiram funções quando precisei reduzir atividades assistenciais para me dedicar ao doutorado.
Ao Ivan Dias de Campos Júnior, por compartilhar a base de dados que serviu como ponto
de partida para este estudo.
À Dra. Simone Lopes Guedes Moreira, residente de gastroenterologia, pela disposição e interesse em ajudar na coleta de dados para elaboração desta tese.
Às enfermeiras da Unidade de Transplante Hepático Elisabete Yoko Udo e Maria de Fátima Trovato Mei, que são as principais responsáveis pelo bom funcionamento do serviço, e sempre estiveram disponíveis para ajudar nas mais diversas fases deste estudo.
À Profa. Dra. Elaine Cristina de Ataíde, pelas sugestões e por fornecer um contra-ponto cirúrgico na avaliação desta tese.
À estatística Cleide Maia, pela ajuda na análise estatística dos dados.
À Lídia Regina Carvalho Barban e à Marcia Leite Alves, da equipe de informática do HC-Unicamp, pela ajuda com levantamento dos dados relacionados ao uso de antibióticos pelos pacientes.
Ao dr. Luís Gustavo Oliveira Cardoso, coordenador do CCIH, pela disponibilidade em fornecer dados relacionados ao uso de antibióticos e às infecções hospitalares no HC.
Agradeço ainda a minha mãe Adriana Sevá Pereira pela ajuda na editoração e correção ortográfica do texto.
RESUMO
Introdução: O transplante de fígado vem sendo realizado rotineiramente como ferramenta terapêutica há quase 30 anos. A evolução clínica dos pacientes após o transplante depende de múltiplos fatores, entre os quais a presença de infecções, que é uma das complicações mais frequentes e está associada a grande parte das mortes no primeiro ano pós-transplante de fígado. Estas infecções podem estar associadas a fatores relacionados aos pacientes com cirrose hepática, especialmente em casos de insuficiência hepática avançada, que por sua vez frequentemente são acometidos por infecções bacterianas e utilizam antibióticos de amplo espectro. Ultimamente, tem-se descrito aumento importante de infecções por agentes multirresistentes (MR), cujos principais fatores de risco são as infecções adquiridas em ambiente hospitalar, uso prévio de antibióticos e infecção prévia por bactéria MR. Estes fatores de risco, ao ocorrerem em candidatos ao transplante poderiam afetar também sua evolução após o transplante.
Objetivos: Avaliar a prevalência e as características das infecções bacterianas, particularmente por agentes MR, em pacientes transplantados de fígado na Unicamp. Além disso, definir fatores de risco para infecções pós-transplante, em especial os relacionados ao paciente cirrótico em sua fase pré-transplante, e avaliar a influência das infecções na evolução clínica na mortalidade após o transplante.
Métodos: Foram avaliados retrospectivamente todos os pacientes adultos submetidos a um primeiro transplante hepático, com sobrevida ≥ 48 h, entre setembro de 2010 e agosto de 2013 no Hospital de Clínicas da Unicamp. Os desfechos estudados foram as infecções bacterianas, as infecções por bactérias MR e a sobrevida. Foram analisadas variáveis clínicas e laboratoriais dos receptores no períodos pré-transplante, intraoperatório e pós-transplante. Os fatores de risco foram avaliados por análise multivariada de regressão de Cox, e a sobrevida pelo método de Kaplan-Meier.
Resultados: Entre os 98 pacientes estudados, 51 (52%) apresentaram infecção bacteriana, dos quais 37 (72%) tiveram cultura positiva, e em 24 (47%) destes pacientes foi identificada bactéria MR. Os fatores de risco independentes para infecção bacteriana foram síndrome hepatorrenal prévia (razão de risco [HR]: 2,65; p = 0,015) e níveis de albumina sérica pré-transplante (HR: 0,65; p = 0,044). Uso profilático de norfloxacino (HR: 2,78; p = 0,033) e a relação normatizada internacional (HR: 1,69; p = 0,021) foram fatores de risco para infecções
MR. A sobrevida foi significativamente menor em pacientes que apresentaram infecção após o transplante (log-rank p < 0,001), no entanto a presença de infecção MR não foi associada a uma piora adicional da sobrevida (log-rank p = 0,712). A presença de infecção bacteriana após o transplante de fígado (HR: 4,11; p = 0,001) e o volume de transfusão de concentrado de hemácias (HR: 1,08; p = 0,02) foram fatores independentes de risco para mortalidade.
Conclusões: As infecções bacterianas após o transplante hepático estão associadas a maior mortalidade, e os fatores de risco para infecções são a presença de síndrome hepatorrenal e níveis baixos de albumina antes do transplante. O uso profilático de norfloxacino pode aumentar o risco para infecção MR após o transplante.
PALAVRAS-CHAVE: fígado-transplante, cirrose hepática, infecções bacterianas, farmacorresistência bacteriana, fatores de risco.
ABSTRACT
Background: Infection is a frequent and severe complication of liver transplantation. However, widespread antibiotic use and frequent hospitalizations have led to the emergence of
multidrug-resistant (MDR) bacteria that affects cirrhotic patients and may complicate
post-transplantation care.
Methods: We retrospectively reviewed all adults who underwent their first liver transplantation, and survived for ≥ 48 h, at a single Brazilian center (September 2010–August 2013). The study outcomes included bacterial infection, MDR infection, complications, and
outcomes. Patients were followed for ≥1 year, until death, or until re-transplantation. We used
the Kaplan-Meier method to evaluate survival and multivariate Cox regression analysis to identify infection risk factors.
Results: Among 98 patients, bacterial infections were detected in 51 (52%) patients. Thirty-seven (72%) patients had positive cultures, and 24 (47%) patients had MDR infections. The risk factors for infection were previous hepatorenal syndrome (hazard ratio [HR]: 2.65; p = 0.015) and low transplantation albumin levels (HR: 0.65; p = 0.044). Higher pre-transplantation international normalization ratio (HR: 1.69; p = 0.021) and prophylactic use of norfloxacin (HR: 2.78; p = 0.033) were risk factors for MDR infection. Significantly lower survival was associated with bacterial infection (log-rank p < 0.001), although MDR infection did not further affect survival (log-rank p = 0.712). Infection (HR: 4.11; p = 0.001) and larger red blood cell transfusions (HR: 1.08; p = 0.02) were independent mortality risk factors.
Conclusions: Bacterial infections after liver transplantation are affected by pre-transplantation status, and are associated with mortality. Long-term norfloxacin prophylaxis can increase the risk of MDR infection.
KEY WORDS: liver transplantation, bacterial drug resistance, liver cirrhosis, bacterial infection, risk factors.
LISTA DE TABELAS
Tabela Título da tabela página
Tabela 1 Características dos 98 pacientes antes do transplante de fígado 32
Tabela 2 Frequências de complicações prévias, internações e uso de antibióticos antes do transplante de fígado
33
Tabela 3 Dados do período intraoperatório 35
Tabela 4 Dados do período pós-transplante 36
Tabela 5 Pacientes com infecções bacterianas após o transplante 37
Tabela 6 Bactérias isoladas em culturas durante episódios de infecção 38
Tabela 7 Análise de variáveis associadas a infecção por enterobactérias ESBL e por Acinetobacter baumannii
39
Tabela 8 Tipo de infecção após o transplante de fígado 39
Tabela 9 Resumo dos fatores de risco para infecção após o transplante de fígado 41
Tabela 10 Resumo dos fatores de risco para infecção MR após o transplante de
fígado
43
Tabela 11 Tempo e causa de óbito durante o seguimento 44
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico Título dos gráficos página
Gráfico 1 Comparação de valores de MELD em pacientes com e sem infecção bacteriana (n=98)
34
Gráfico 2 Curva de sobrevida (Kaplan-Meier) para pacientes com e sem infecção bacteriana (n=98)
45
Gráfico 3 Curva de sobrevida (Kaplan-Meier) para pacientes com infecção multirresistente e com infecção não multirresistente (n=51)
LISTA DE ABREVIATURAS
ATB Antibiótico
BGN Bacilos Gram-negativos
CGP Cocos Gram-positivos
CHC Carcinoma hepatocelular
DIS Descontaminação intestinal seletiva
DP Desvio padrão
ESBL Betalactamase de espectro estendido (extended-spectrum beta-lactamases)
EUA Estados Unidos da América
HC Hospital de Clínicas
HIV Vírus da imunodeficiência adquirida
HR Razão de risco (hazard ratio)
IBL Inibidores de betalactamase
IC95% Intervalo de confiança de 95 por cento
K Potássio
KPC Klebsiella pneumoniae carbapenemase
MELD Modelo para doença hepática terminal (Model for End-Stage Liver Disease)
MR Multirresistente
Na Sódio
p Valor de probabilidade
PBE Peritonite bacteriana espontânea
PFC Plasma fresco congelado
RNI Relação normatizada internacional
SAMR Staphylococcus aureus meticilina-resistente
Tx Transplante
U Unidades
UTI Unidade de terapia intensiva
VHB Vírus da hepatite B
VHC Vírus da hepatite C
VRE Enterococcus resistentes a vancomicina (vancomycin-resistant enterococci)
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ... 16 2 OBJETIVOS ... 21 2.1 Objetivo geral ... 21 2.2 Objetivos específicos ... 21 3 METODOLOGIA ... 22 3.1 População de estudo ... 22 3.1.1 Critérios de inclusão ... 22 3.1.2 Critérios de exclusão ... 23 3.2 Variáveis ... 233.2.1 Variáveis analisadas no período pré-transplante hepático ... 23
3.2.2 Variáveis analisadas relacionadas ao transplante de fígado ... 25
3.2.3 Variáveis analisadas no período pós-transplante hepático ... 25
3.3 Protocolo do transplante hepático ... 26
3.3.1 Avaliação pré-transplante imediata ... 26
3.3.2 Antimicrobianos ... 26
3.3.3 Imunossupressão ... 27
3.4 Definições ... 27
3.4.1 Insuficiência renal ... 27
3.4.2 Infecções ... 28
3.4.3 Antibióticos de amplo espectro ... 29
3.5 Análise estatística ... 29
4 RESULTADOS ... 31
4.1 Dados descritivos ... 31
4.2.1 Fatores de risco para infecções bacterianas ... 40
4.2.2 Fatores de risco para infecções bacterianas multirresistentes. ... 42
4.3 Relação de sobrevida com infecções e outros fatores de risco ... 44
5 DISCUSSÃO ... 48
6 CONCLUSÃO ... 54
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 55
8 ANEXOS ... 67
1. INTRODUÇÃO 16
1 INTRODUÇÃO
O transplante ortotópico de fígado consiste na retirada de um fígado doente e sua substituição, na mesma localização anatômica, por um fígado, ou parte dele, saudável, procedente de um doador vivo ou cadáver.
O primeiro transplante hepático em humanos foi realizado pelo Dr. Thomas Starzl, em 1963, na universidade do Colorado nos Estados Unidos da América (EUA) (1). Entretanto, durante os 20 anos seguintes, o procedimento foi considerado experimental e restrito a poucos centros no mundo. Neste período, houve grande desenvolvimento das técnicas cirúrgicas, da preservação do órgão e, no final da década de 1970 e início de 1980, iniciou-se o uso da ciclosporina A, um inibidor da calcineurina, como droga imunossupressora. Este último fato elevou a taxa de sobrevida após o transplante hepático, que era de 30% com imunossupressão com azatioprina, corticosteróides e globulina antilinfocítica policlonal, para mais de 70% (2). Com isso, em 1983, uma conferência do National Institutes of Health, nos EUA, passou a aceitar o transplante de fígado como uma opção terapêutica efetiva para doenças hepáticas avançadas (3). Desde então, o número de transplantes hepáticos cresceu progressivamente para mais de 11.000 ao ano, totalizando mais de 200.000 transplantes realizados somente nos EUA (4) e na Europa (5,6) até 2012.
No Brasil, o primeiro transplante de fígado foi realizado com sucesso em 1985 na cidade de São Paulo (7). Segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, o número de transplantes hepáticos vem crescendo no Brasil, que já é o segundo país no mundo em números absolutos, com 1755 transplantes hepáticos realizados no ano de 2014 (8).
Hoje o transplante hepático é considerado o tratamento de escolha para doenças hepáticas avançadas agudas ou crônicas, para carcinoma hepatocelular, e para algumas doenças metabólicas que não sejam curáveis com outros tratamentos e que ponham em risco a vida ou causem piora da qualidade de vida do paciente (9).
A indicação do transplante depende da avaliação de gravidade da doença hepática, que, se for feita de maneira subjetiva, pode levar a dificuldade de interpretação e de comparação de resultados entre diferentes serviços médicos, sendo por isso interessante o uso de classificações universalmente aceitas para se definir doença hepática avançada. Classicamente, o método mais usado para se estabelecer a gravidade da cirrose é a classificação de Child-Pugh (10,11) na qual se atribuem pontos para cada um dos cinco parâmetros a seguir: ascite, grau de encefalopatia
1. INTRODUÇÃO 17
hepática, dosagem sérica de bilirrubina e de albumina, e determinação do tempo de protrombina, sendo que este último parâmetro foi atualizado pela relação normatizada internacional (RNI) (9). Por esta classificação, a disfunção hepática da cirrose pode ser expressa pelas categorias A (leve), B (moderada) e C (avançada), ou pelo valor final de pontos (de 5 a 15).
Mais recentemente, outro modelo matemático, denominado MELD (Model for End-Stage
Liver Disease), inicialmente desenvolvido para prever mortalidade em pacientes submetidos a
tratamento para hipertensão portal (12), foi modificado e vem sendo usado para determinar sobrevida de pacientes com cirrose e como indicação de transplante hepático (13-15). Este modelo é baseado em três parâmetros laboratoriais (RNI, bilirrubina sérica e creatinina sérica)
segundo a equação: 9,57 x Loge (creatinina mg/dL) + 3,78 x Loge (bilirrubina mg/dL) + 11,2 x
Loge (RNI) + 6,43. Neste método, a doença hepática é considerada mais avançada quanto maior
o resultado numérico final. A pontuação do MELD vem sendo utilizada há vários anos na maior parte dos países, e desde 2006 no Brasil, como o critério de gravidade para a alocação de órgãos para transplante de fígado.
O transplante de fígado não é, contudo, o ponto final no tratamento destes pacientes. A evolução clínica após o transplante depende de múltiplos fatores, como o aparecimento de complicações cirúrgicas, rejeição, infecções oportunistas e recidiva da doença inicial. Entre estas, as infecções são particularmente importantes, já que representam a complicação mais frequente (16-20), e uma das principais causas de morte após o transplante, como pode ser exemplificado pela análise retrospectiva das 321 autópsias realizadas em receptores de transplantes de fígado na Universidade de Pittsburgh entre 1982 e 1997 (21). Este estudo mostrou que as infecções foram responsáveis por 64% dos óbitos (48% de infecções bacterianas, 22% por fungos e 12% virais, alguns com mais de um tipo de infecção), dois terços dos quais ocorreram nos primeiros 100 dias após a cirurgia.
Na década de 1980, até 83% dos transplantados de fígado apresentavam infecções, que estavam relacionadas principalmente a fatores do período perioperatório (17). Nos anos seguintes, com o refinamento da técnica cirúrgica e com os progressos na terapia de imunossupressão, na profilaxia antimicrobiana e no controle de hemostasia, viu-se uma diminuição das complicações infecciosas para 49% a 60% (18-20). Dados mais recentes mostram, no entanto, estabilização destas taxas. Na última década, um estudo realizado no Hospital Clìnic de Barcelona, com análise de 81 transplantes consecutivos realizados entre 2000 e 2001 (22), mostrou incidência de infecções de 64% no primeiro ano após o transplante, com
1. INTRODUÇÃO 18
mortalidade total de 13,6%, sendo que as infecções foram a causa principal do óbito em 8 de 11 casos. Em outra publicação mais recente, com 277 transplantes hepáticos realizados de janeiro de 1999 a dezembro de 2008, a incidência de infecção bacteriana, fúngica e por citomegalovírus nos primeiros 90 dias do transplante foi de 16,7%, 3,3% e 42,3%, respectivamente, e a mortalidade aos 90 dias pós-transplante foi significativamente superior nos pacientes que apresentaram infecção (14,9% vs. 3,6%, p=0,003) (23). Grande parte dos dados encontrados em literatura confirma essa tendência, mostrando infecções como causa principal ou associada em 52% a 89% das mortes no período pós-transplante de fígado (17,19,21,24,25).
As bactérias são os principais agentes causadores de infecção após o transplante de fígado, com incidências variando de 35% a 70%, sendo que maioria delas ocorre precocemente (até um a três meses) após a cirurgia e parecem estar associadas a fatores do período perioperatório e a características do receptor antes do transplante (17,26-31). Mais recentemente, as infecções bacterianas têm gerado preocupação adicional, visto que vários centros transplantadores têm relatado aumento da incidência de bactérias multirresistentes (MR), que chegam a causar 20% a 62% das infecções após o transplante de fígado (32-38). Ainda é controverso se este aumento apenas reflete o avanço geral das infecções por cepas MR em pacientes hospitalizados, ou se pode ser consequência de fatores relacionados à doença hepática prévia ao transplante, já que a cirrose hepática é um fator de risco conhecido para infecção, e a colonização prévia do paciente com bactérias MR pode aumentar o risco de infecções pelos mesmos agentes após o transplante (39).
A cirrose hepática é a maior indicação de transplantes de fígado no Brasil e no mundo, seja pela própria insuficiência hepática, ou por complicações da hipertensão portal e associação com carcinoma hepatocelular. Sabe-se que pacientes com cirrose hepática têm prevalência de infecção bacteriana muito superior à população em geral, sendo maior quanto mais avançada for a doença (40,41). Publicações realizadas nas últimas décadas mostram que 25% a 47% dos portadores de cirrose hepática têm infecções durante uma hospitalização, contra apenas 6% dos não cirróticos (42-46). As infecções mais frequentemente descritas nestes pacientes são peritonite bacteriana espontânea (PBE), infecções do trato urinário e do trato respiratório (42,45,47), e os fatores associados a maior risco de infecção são o grau de insuficiência hepática, hemorragia digestiva varicosa, nível baixo de proteínas em líquido ascítico, peritonite bacteriana espontânea prévia e hospitalização (40,48). A elevada incidência de complicações infecciosas associada à cirrose hepática é explicada pela coexistência de múltiplos fatores predisponentes que incluem alterações na resposta imune, mudança da flora bacteriana
1. INTRODUÇÃO 19
intestinal e na permeabilidade da barreira mucosa, além de fatores iatrogênicos (45,47). Adicionalmente, a capacidade de eliminação de microrganismos circulantes está comprometida pela existência de vasos colaterais portossistêmicos que permitem o escape das bactérias da fagocitose pelo sistema reticuloendotelial hepático, constituído pelas células de Kupffer e células endoteliais sinusoidais, cuja atividade está, por outro lado, diminuída na cirrose. Tudo isso favorece maior duração das bacteremias e o desenvolvimento de infecções por via hematogênica.
Além de a infecção ser mais frequente nos pacientes com doença mais avançada (45), ela também pode ser a causa de descompensações clínicas da cirrose e levar a maior mortalidade (49,50). Estudos recentes mostram que as infecções bacterianas são o principal fator de piora da insuficiência hepática e de comprometimento de outros órgãos no paciente cirrótico, situação conhecida como insuficiência hepática aguda em crônica (acute-on-chronic liver failure) (50,51), fazendo com que esses pacientes tenham pontuação de MELD mais elevada e, portanto, maior chance de receberem um transplante. De fato, alguns autores publicaram recentemente que pacientes com infecções prévias, especialmente a PBE, apresentavam valores mais altos de MELD e Child-Pugh (52,53) no momento do transplante hepático e tinham maior probabilidade de morte por sepse após o transplante, apesar de não ter sido demostrada diferença na mortalidade geral (52,54).
Mesmo na ausência de infecções, a cirrose hepática está associada a translocação bacteriana, fenômeno pelo qual bactérias entéricas viáveis atravessam o epitélio mucoso e a lâmina própria, alcançando gânglios linfáticos mesentéricos e a corrente sanguínea (55). Fatores que levam a uma maior incidência de translocação bacteriana na cirrose são o aumento da flora aeróbia negativa no jejuno e da permeabilidade intestinal. Pois isso, os bacilos Gram-negativos (BGN) de origem entérica são as bactérias responsáveis pela maior parte das infecções comunitárias e das PBE. Em 2001, um estudo mostrou que, no momento do transplante, até 30% dos pacientes apresentaram evidências de translocação bacteriana, contra apenas 8% em pacientes sem cirrose submetidos a outras cirurgias abdominais, e a frequência de translocação foi maior nos pacientes com maior gravidade da cirrose (56). Neste mesmo estudo, pacientes que faziam uso profilático de norfloxacino apresentavam taxas baixas de translocação bacteriana, semelhantes às dos controles não cirróticos. Essa profilaxia, conhecida como descontaminação intestinal seletiva (DIS), tem como objetivo diminuir a concentração dos BGN entéricos, mantendo a flora bacterina anaeróbica protetora, e com isso reduzir o risco de translocação e consequentemente o risco de infecções nestes pacientes. Há mais de duas
1. INTRODUÇÃO 20
décadas, já foi demonstrado que a DIS é bastante efetiva na prevenção de PBE (57,58), e por isso vem sendo indicada pelos consensos internacionais (59,60). Porém, devido ao risco de seleção de agentes MR, sua indicação usualmente é restrita aos cirróticos com maior risco de infecções, como pacientes com hemorragia digestiva alta, pacientes com cirrose mais avançada e baixa concentração de proteína no líquido ascítico, ou após um primeiro episódio de PBE (40). Nesses indivíduos, o uso profilático de norfloxacino leva à diminuição da incidência de infecções e de síndrome hepatorrenal, e à melhora da sobrevida (61). Seu uso, no entanto, vem sendo associado a uma mudança no padrão epidemiológico das infecções na cirrose, inicialmente com relatos de maior proporção de infecções por cocos Gram-positivos (CGP) e de seleção de BGN resistentes às quinolonas (45,62), e, mais recentemente, com evidências de aumento de infecções por bactérias MR (63-65).
Na última década, vários estudos têm indicado um aumento na prevalência de infecções MR em portadores de cirrose (63,65-67). Na maior parte destes estudos, a presença de bactérias MR foi associada a infecções adquiridas dentro do ambiente hospitalar, a infecção prévia por bactéria MR, ao uso prévio de antibióticos de amplo espectro e a DIS. Em estudo que avaliou infecções em cirrose em um centro de referência de Barcelona entre 2005 e 2007 e entre 2010 e 2011, os achados mais relevante foram que bactérias MR foram responsáveis por 35% das infecções hospitalares, contra apenas 4% das comunitárias, e entre as infecções hospitalares houve uma taxa de resolução de apenas 40% com o tratamento empírico habitualmente recomendado (63). As infecções MR também foram associadas a maior número de complicações, maior risco de sepse e menor sobrevida (63,68). Estes dados geraram propostas de mudança nos protocolos de tratamento de infecções em pacientes com cirrose, sugerindo a indicação empírica e precoce de antibióticos com ação contra agentes MR de acordo com fatores de risco e com a flora bacteriana de cada hospital (40,48). No entanto, considerando-se que esses pacientes mais graves e com mais fatores de risco para infecções MR também são os com maior probabilidade de serem transplantados (33,53), existe uma preocupação de que esta mudança no padrão epidemiológico das infecções e o uso de antibióticos de espectro cada vez mais amplo possa afetar e complicar a evolução desses pacientes após o transplante de fígado (59).
Com isso, consideramos necessário um estudo das características atuais e regionais das infecções após o transplante hepático, com especial interesse na influência de fatores prévios ao transplante de fígado tanto nas infecções bacterianas em geral como nas infecções por agentes MR.
2. OBJETIVOS 21
2 OBJETIVOS
2.1 Objetivo geral
Avaliar frequência e características de infecções bacterianas gerais e por agentes multirresistentes entre receptores de transplante de fígado e definir fatores de risco.
2.2 Objetivos específicos
Verificar:
• Frequência de infecções bacterianas no geral e causadas por agentes multirresistentes em receptores de transplante de fígado.
• Características com relação a agente, localização e momento das infecções. • Fatores de risco para o aparecimento de infecções bacterianas em geral e por
bactérias multirresistentes após o transplante, particularmente os relacionados às complicações do paciente cirrótico na fase pré-transplante.
• Influência das infecções bacterianas em geral e por bactérias multirresistentes na sobrevida após o transplante.
3. METODOLOGIA 22
3 METODOLOGIA
Trata-se de um estudo longitudinal de coorte retrospectivo de pacientes adultos consecutivamente submetidos a transplante de fígado entre 1º de setembro de 2010 e 30 de agosto de 2013 na Unidade de Transplante Hepático do Hospital de Clínicas (HC) da Universidade da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp em 25 de setembro de 2014 (parecer nº 806.228 – anexo 1).
Os dados clínicos foram coletados de um banco de dados preenchido prospectivamente nos ambulatórios da Unidade de Transplante Hepático do Gastrocentro da Unicamp, onde os pacientes são atendidos, e referendados pelos prontuários médicos dos mesmos. Os exames laboratoriais utilizados neste estudo foram realizados pelo Laboratório de Patologia Clínica do HC – Unicamp, conforme rotina do serviço, e foram consultados pelos prontuários eletrônicos de registro deste laboratório (ficha de coleta de dados – apêndice 1).
Os dados relacionados ao uso de antibióticos antes e depois do transplante foram coletados junto ao setor de informática do HC - Unicamp com base no sistema de dispensação de medicamentos da farmácia do hospital. Nos pacientes com histórico de internações em outras instituições, foi feito contato com os hospitais para revisão dos prontuários locais.
Os pacientes foram seguidos até o óbito, o retransplante, ou até o último paciente incluído no estudo completar um ano de seguimento (a data final de seguimento foi o dia da consulta seguinte ao mês de agosto, com conclusão do estudo em dezembro de 2014).
3.1 População de estudo
Foram avaliados os registros de todos os transplantes hepáticos realizados neste serviço de 1º de setembro de 2010 a 30 de agosto de 2013, dos quais foram incluídos pacientes que preencheram os critérios abaixo.
3.1.1 Critérios de inclusão
• Pacientes adultos, submetidos a um primeiro transplante ortotópico eletivo de doador cadáver por doença hepática crônica.
3. METODOLOGIA 23
3.1.2 Critérios de exclusão
• Paciente submetidos a outros tipos de transplante hepático que não o transplante ortotópico de doador cadáver eletivo (transplante de urgência, transplante de mais de um órgão ou transplante de fígado reduzido). • Pacientes submetidos previamente a outro transplante de órgão sólido. • Pacientes < 18 anos no momento do transplante.
• Pacientes infectados pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) ou com qualquer outra imunossupressão prévia ao transplante.
• Pacientes com menos de 48 horas de sobrevida após o transplante.
• Pacientes submetidos a transplante por doenças metabólicas ou neoplásica sem
comprometimento hepático (Polineuropatia Amiloidótica Familiar, Oxalúria primária, tumor neuroendócrino em fígado sem doença parenquimatosa).
3.2 Variáveis
As variáveis analisadas incluíram dados do receptor nos períodos pré e pós-transplante, que estão descritos a seguir:
3.2.1 Variáveis analisadas no período pré-transplante hepático
• Idade (anos). • Gênero (M/F).
• Etiologia da doença hepática: (hepatite C crônica, hepatite B crônica, álcool, doença vascular, outras).
• Presença de carcinoma hepatocelular (CHC). • Presença de diabetes melito.
3. METODOLOGIA 24
• Infecções prévias (definidas abaixo).
• Presença de complicações prévias da cirrose hepática, incluindo ascite, encefalopatia hepática e síndrome hepatorrenal.
• Colonização por Staphylococcus aureus em culturas (Swab anal, nasal e orofaringe coletados ambulatorialmente nos 6 meses prévios ao transplante). • Uso de profilático de antibiótico (tempo de uso, tipo do antibiótico).
• Uso prévio de antibióticos com objetivo terapêutico nos últimos 6 meses (tempo de uso, tipo do antibiótico).
• Hospitalizações prévias nos últimos 3 meses antes do transplante (número, tempo de hospitalização e tempo desde a última alta).
• Cálculo das pontuações de MELD e Child-Pugh no momento do transplante. • Exames laboratoriais nas últimas 24h antes do transplante:
o Bilirrubina sérica total e direta (mg/dL) o Albumina sérica (g/dL)
o Hemograma completo
o RNI e atividade de Protrombina (%) o Sódio sérico (mEq/L)
o Potássio sérico (mEq/L) o Uréia sérica (mg/dL) o Creatinina sérica (mg/dL) o Exame de urina tipo I
o Culturas de orofaringe, nasofaringe e anal o Hemoculturas
o Urocultura
3. METODOLOGIA 25
3.2.2 Variáveis analisadas relacionadas ao transplante de fígado
• Tempo de isquemia fria (min). • Tempo cirúrgico total (min).
• Técnica de reconstrução venosa (piggyback ou convencional). • Tipo de anastomose biliar (colédoco-colédoco ou colédoco-jejunal). • Transfusão de hemoderivados durante a cirurgia: número de unidades de
concentrado de hemácias, plasma fresco congelado (PFC) e plaquetas, além do uso de bomba de recuperação celular de sangue (cell-saver).
• Tempo e tipo de profilaxia antimicrobiana utilizada.
3.2.3 Variáveis analisadas no período pós-transplante hepático
• Diagnóstico de infecção bacteriana durante todo seguimento após o transplante.
• Culturas de sangue, urina, líquidos e secreções coletadas durante todo seguimento após o transplante.
• Tempo de internação em unidade de terapia intensiva (UTI) e de internação hospitalar (dias).
• Desenvolvimento de hemoperitônio com necessidade de abordagem cirúrgica. • Complicações vasculares ou biliares (com respectivos tratamentos).
• Tipo de imunossupressão inicial.
• Ocorrência de rejeição de enxerto e seu tratamento. • Necessidade de nova cirurgia.
3. METODOLOGIA 26
• Óbitos ocorridos durante o estudo (dias após o transplante e suas causas principais).
• Exames laboratoriais 24h após o transplante (os mesmos do pré-transplante).
3.3 Protocolo do transplante hepático
3.3.1 Avaliação pré-transplante imediata
Os pacientes chamados para transplante foram submetidos a avaliação clínica, sempre por um hepatologista clínico (TSP ou JRSA) que também realizou ultrassom abdominal e punção de líquido ascítico ou pleural caso houvesse ascite ou derrame pleural. Os pacientes também foram submetidos a radiografia de tórax e seios da face, eletrocardiograma e exames laboratoriais a saber:
No sangue: gasometria arterial, hemoculturas (2 amostras), bilirrubina total e frações, albumina, RNI, sódio, potássio, uréia, creatinina, hemograma, glicemia, colesterol e triglicérides, alfa-fetoproteína.
Na Urina: exame de urina tipo 1, urocultura.
3.3.2 Antimicrobianos
O protocolo de transplante neste período incluiu a administração endovenosa de antibiótico (ampicilina + sulbactan) iniciando-se durante o procedimento cirúrgico, por dois a cinco dias de pós-operatório. Se o paciente já estivesse em uso de antibióticos, tivesse diagnóstico de infecção, ou em caso de informação de doador com cultura positiva, outras opções de antibióticos poderiam ser utilizadas conforme avaliação clínica. O uso destes antibióticos poderia ser prolongado conforme avaliação clínica ou em casos de necessidade precoce de nova cirurgia.
Em todos os pacientes, assim que fosse possível a administração oral de drogas, era iniciada a profilaxia para Pneumocystis jirovecii, com sulfametoxazol-trimetropim 800-160 mg ao dia por 6 meses. Foi realizada profilaxia com fluconazol (200 mg/dia por 4 semanas) somente em transplantes com tempo cirúrgico maior que 9 horas, com necessidade reposição de mais de 4 unidades de concentrados de hemácias ou nos casos de transplante por hepatite fulminante.
3. METODOLOGIA 27
3.3.3 Imunossupressão
A imunossupressão foi feita com corticosteróide associado a uma droga inibidora da calcineurina (tacrolimus ou ciclosporina A) e micofenolato sódico na dose de 720 a 1480 mg/dia. O corticosteróide era administrado na forma de metilprednisolona 500 mg imediatamente antes da laparotomia e 500 mg na fase anepática, seguido de doses diárias que se iniciavam com 200 mg no primeiro dia, 100 mg no segundo e redução progressiva até 20 mg de prednisona com manutenção desta dose até o 30º dia, 15mg até o 60º dia, 10mg até o 90º dia pós-operatório e retirada do medicamento com exceção dos portadores de doença auto-imune.
O inibidor da calcineurina era iniciado por via oral assim que possível, em geral no primeiro ou segundo dia após o transplante. Preferencialmente utilizou-se o tacrolimus na dose inicial de 0,1 mg/kg/dia, dividido em duas doses diárias procurando-se alcançar níveis entre 8-12 ng/ml nos primeiros seis meses. Nos casos de pacientes com diabetes, foi usada a ciclosporina A na dose de 4-8 mg/kg/dia em duas doses diárias procurando-se alcançar níveis entre 200-400 ng/ml nos primeiros três meses, 150-300 ng/ml até o sexto mês.
O diagnóstico de rejeição aguda do enxerto foi baseado no exame anatomo-patológico do fragmento obtido por biópsia hepática, segundo os critérios do National Institute of Diabetes
and Digestive and Kidney Diseases (69). A biópsia era realizada na suspeita clínica ou
laboratorial de rejeição. Pacientes com rejeição leve eram tratados com ajuste da dose de imunossupressores. Em caso de rejeição moderada ou grave, os pacientes recebiam tratamento com metilprednisolona em bolus endovenoso de 1g a cada 24 horas, por 3 dias, com instalação de profilaxia com fluconazol, ganciclovir e antibiótico por um período de 5 dias.
3.4 Definições
3.4.1 Insuficiência renal
Neste estudo, insuficiência renal foi definida por níveis de creatinina sérica maiores ou iguais a 1,5 mg/dL. Este nível de corte foi escolhido com base nos parâmetros estabelecidos para a síndrome hepatorrenal (70).
Síndrome hepatorrenal foi definida conforme os critérios do International Ascitis Club
3. METODOLOGIA 28
3.4.2 Infecções
Infecção de corrente sanguínea foi definida como a identificação de uma bactéria
patogênica em uma ou mais hemoculturas, ou a identificação de bactéria contaminante de pele em pelo menos duas hemoculturas, associada a sinais e sintomas de infeção (febre, calafrios, hipotensão) não relacionados a outros focos infecciosos (71,72).
Peritonite bacteriana espontânea e empiema bacteriano espontâneo foram
diagnosticados por contagem de células com mais 250 neutrófilos polimorfonucleares por
milímetro cúbico (mm3) de líquido ascítico e pleural, respectivamente, independente da cultura.
Em todos os casos foram afastadas causas locais de infecção secundária, conforme recomendações de consenso internacionais (60,73).
Infecção do trato urinário foi diagnosticada por meio de exame de urina detectando
leucocitúria (mais de 10 leucócitos por campo) com urocultura positiva ou leucócitos em grande quantidade ou incontáveis em pacientes com sinais clínicos de infecção, sem outro foco identificado (45,72,74).
Infecções respiratórias foram definidas por exame radiológico de tórax com novo
infiltrado ou progressão de infiltrado pulmonar persistente, consolidação ou cavitação, associado a pelo menos dois dos sinais e sintomas (febre > 38ºC sem outra causa; inicio ou piora da tosse, dispnéia ou taquipnéia; presença de escarro purulento, mudança do aspecto da secreção, aumento da secreção ou aumento da necessidade de aspiração de secreção; ausculta pulmonar com estertores ou sopro brônquico; hemoptise; dor pleurítica; piora nas trocas gasosas ou nos parâmetros ventilatórios), ou em paciente com um dos sinais e sintomas acima, associado a hemocultura positiva, cultura positiva de líquido pleural ou cultura positiva de lavado broncoalveolar (71,72).
O diagnóstico de outras infecções, como colangite, celulite ou infecção de ferida cirúrgica, foi feito de acordo com critérios convencionais (45,71,72,74).
Infecções prováveis foram consideradas na presença de febre associada à leucocitose
durante mais de um dia, sem foco infeccioso claramente definido, em que o julgamento clínico no momento indicasse antibioticoterapia (45).
Choque séptico foi definido pela presença de sepse (infecção definida ou suspeita com
pelo menos dois do seguintes critérios: temperatura > 38ºC ou < 36ºC; taquicardia com frequência cardíaca > 90 bpm; frequência respiratória > 20/min ou pCO2 < 32 mmHg;
3. METODOLOGIA 29
hemograma com leucócitos < 4000/mm3 ou > 12000/mm3 ou formas imaturas > 10%) associado
a hipotensão arterial (pressão arterial sistólica < 90 mmHg) refratária a expansão plasmática, desde que não houvesse outra causa para o choque (75-78).
Infecções por bactérias MR foram definidas como aquelas causadas por: BGN
(Klebsiella pneumoniae, Escherichia coli e outras enterobactérias) resistentes a pelo menos um antibiótico carbapenêmico ou simultaneamente a cefalosporinas de 3ª geração, aminoglicosídeos e fluoroquinolonas; enterobactérias produtoras de betalactamase de espectro estendido (ESBL); Staphylococcus aureus meticilina-resistente (SAMR); Acinetobacter
baumannii resistente a pelo menos três drogas entre ampicilina/sulbactam, cefalosporinas
anti-pseudomonas, imipenem/meropenem, aminoglicosídeos e fluoroquinolonas; Pseudomonas
aeruginosa resistente a pelo menos três drogas entre penicilinas anti-pseudomonas,
cefalosporinas anti-pseudomonas, imipenem/meropenem, aminoglicosídeos e
fluoroquinolonas; e Enterococcus resistentes a vancomicina (VRE) (79-81).
3.4.3 Antibióticos de amplo espectro
Foram considerados antibiótico de amplo espectro quaisquer antibióticos com ação simultânea contra agentes Gram-positivos e Gram-negativos, como, por exemplo, as penicilinas de amplo espectro (amoxicilina e ampicilina) associadas ou não a inibidores de betalactamase (amoxicilina/clavulanato, ampicilina/sulbactan e piperacilina/tazobactan), cefalosporinas de terceira e quarta gerações, antibióticos carbapenêmicos e quinolonas de amplo espectro (levofloxacino, ciprofloxacino e moxifloxacino).
3.5 Análise estatística
Inicialmente, para análise de variáveis contínuas, utilizou-se estatística descritiva, optando-se por apresentar a mediana e valores mínimos e máximos, visto que a grande maioria das variáveis não apresentavam uma distribuição normal. A comparação destas variáveis entre 2 grupos foi realizada pelo teste não paramétrico de Mann-Whitney. Variáveis categóricas foram apresentadas em tabelas de frequência absoluta e relativa, e a comparação de proporções foi feita com o teste Qui-quadrado ou teste exato de Fisher, quando necessário.
Foram realizadas análises separadamente para 3 desfechos de interesse: infecção bacteriana após o transplante, infecção MR após o transplante e sobrevida. Para cada um deles, foram calculados os dias do transplante até o desfecho. Os pacientes que não apresentaram o
3. METODOLOGIA 30
evento foram classificados como “censurados”. Os casos censurados tiveram o tempo contado até a última data registrada no estudo (82).
Para identificar fatores de risco associados ao tempo até os desfechos, foi utilizada a análise de regressão de Cox univariada e multivariada. As variáveis com valor de p ≤ 0,1 na avaliação univariada foram introduzidas no modelo multivariado empregando-se o processo passo-a-passo (stepwise) de seleção de variáveis. Os resultados dessa análise foram expressos em valor de razão de risco (HR – hazard ratio) em comparação à variável de referência, com os intervalos de confiança de 95% (IC95%) (82,83).
Para avaliar especificamente a influência das infecções bacterianas em geral e das infecções MR na sobrevida após o transplante, foram elaboradas curvas de sobrevivência de Kaplan-Meier usando-se como ponto inicial o transplante e como evento final a morte. O teste
log-rank foi aplicado para testar se as curvas de sobrevivência diferiam entre grupos com e sem
cada variável (83).
O nível de significância adotado para os testes estatísticos foi 5%.
As análises estatísticas foram feitas com os programas SPSS (versão 20.0; SPSS, Inc., Chicago, IL) e SAS (Statistical Analysis System, versão 9.4; SAS institute Inc., Cary, NC, USA).
4. RESULTADOS 31
4 RESULTADOS
Os dados coletados do estudo estão descritos em sua totalidade no apêndice 2.
4.1 Dados descritivos
Durante o tempo de estudo foram realizados 135 transplantes, dos quais 98 preencheram os critérios de inclusão do estudo. Os motivos de exclusão dos outros 37 pacientes foram: óbito antes de 48 horas (n=16), retransplante (n=14), transplantes de urgência por insuficiência hepática aguda grave (n=5), paciente menor de 18 anos de idade (n=1) e transplante por tumor neuroendócrino sem doença hepática crônica (n=1).
Entre os 98 pacientes estudados eram 80 homens e 18 mulheres, com idade média de 52,8 ± 9,7 anos (18 a 72 anos, mediana = 54 anos). Vírus da hepatite C (VHC) estava presente em 43 (44%) pacientes e álcool em 37 (38%) pacientes. As características epidemiológicas, clínicas e laboratoriais desses pacientes estão resumidas nas tabelas 1 e 2.
4. RESULTADOS 32
Tabela 1. Características dos 98 pacientes antes do transplante de fígado N= 98 Idade (anos) 54 (18-72) Gênero (masculino) 80 (82%) Child-Pugh (A/B/C) 27 (28%)/ 27 (28%)/ 44 (44%) MELD (pontos) 19 (7-46) Albumina sérica (g/dL) 3,2 (1,6-5,1)
Bilirrubina sérica total (mg/dL) 3,1 (0,4-42,2)
Creatinina sérica (mg/dL) 1,0 (0,4-6,4)
RNI 1,6 (1-6,1)
Na sérico (mEq/L) 138 (117-148)
Etiologia da doença hepática VHC Álcool Álcool+ VHC Outras 32 (33%) 26 (26%) 11 (11%) 29 (30%) Diabetes melito 27 (28%)
MELD: “Model for End-Stage Liver Disease”; RNI: razão normatizada internacional; VHC: vírus da hepatite C. Variáveis contínuas apresentadas como mediana (mínimo-máximo); variáveis categóricas apresentadas como número (porcentagem).
Em relação às complicações clínicas da cirrose antes do transplante, 65 (66%) pacientes já haviam tido ascite, 36 (37%) tiveram encefalopatia hepática, e 47 (48%) eram portadores de CHC.
4. RESULTADOS 33
Tabela 2. Frequências de complicações prévias, internações e uso de antibióticos antes do transplante de fígado
N= 98
Carcinoma hepatocelular 47 (48%)
Ascite prévia 65 (66%)
Encefalopatia hepática 36 (37%)
Síndrome hepatorrenal 8 (8%)
Internação prévia ao transplante 20 (20%)
Internado no momento do transplante 24 (24%)
Infecção bacteriana <6 meses pré-Tx 37 (38%)
PBE <6 meses pré-Tx 17 (17%)
Infecção MR <6 meses pré-Tx 7 (7%)
ATB amplo espectro <6 meses pré-Tx 40 (41%)
Cefalosporina Penicilina+IBL Carbapenêmico Quinolona 24 22 13 9 Vancomicina <6 meses pré-Tx 7 (7%)
DIS longo prazo 25 (25%)
Uso de antibiótico no momento do Tx DIS
ATB amplo espectro
19 (19%) 13 (13%) ATB profilático intraoperatório
Ampi-sulbactam Outro
75 (77%) 23 (23%)
Tx: transplante; PBE: peritonite bacteriana espontânea; MR: multirresistente; ATB: antibiótico; IBL: inibidores de betalactamase; DIS: descontaminação intestinal seletiva.
Variáveis apresentadas como número (porcentagem).
Trinta e sete pacientes (38%) haviam tido diagnóstico de infecção nos últimos 6 meses antes do transplante, e estes pacientes foram transplantados com pontuação de MELD significativamente mais elevada (mediana = 25) do que os pacientes sem infecção prévia (mediana = 15), como pode ser visto no gráfico 1. Quarenta (41%) pacientes haviam feito uso recente de antibióticos de amplo espectro. Sete pacientes também haviam recebido Vancomicina nos 6 meses anteriores ao transplante, todos eles incluídos no grupo de
4. RESULTADOS 34
antibióticos de amplo espectro pois fizeram uso concomitante de carbapenêmicos. Entre os 25 (25%) pacientes que fizeram DIS com norfloxacino por longo prazo, seis vinham recebendo antibiótico de amplo espectro no momento em que foram chamados para o transplante.
Gráfico 1. Comparação de valores de MELD em pacientes com e sem infecção bacteriana (n=98)
(MELD: Model for End-Stage Liver Disease)
A técnica cirúrgica do transplante hepático utilizada na maior parte dos pacientes foi a de
piggyback, com anastomose biliar colédoco-colédoco, e a maioria deles recebeu tacrolimus
como droga imunossupressora inicial. Os dados relativos ao momento cirúrgico estão na tabela 3.
4. RESULTADOS 35
Tabela 3. Dados do período intraoperatório
N= 98
Tempo cirúrgico total (minutos) 360 (180-540)
Tempo de isquemia fria (minutos) 442 (160-870)
Concentrados de hemácias transfundidas 5 (0-22)
Unidades de PFC transfundidas 15 (0-50)
Unidades de plaquetas transfundidas 3 (0-28)
Técnica do transplante Piggyback Convencional 90 (92%) 8 (8%) Anastomose biliar Colédoco-colédoco Bílio-digestiva 96 (98%) 2 (2%) Imunossupressor inicial Ciclosporina A Tacrolimus 13 (13%) 77 (79%)
PFC: plasma fresco congelado.
Variáveis contínuas apresentadas como mediana (mínimo-máximo); variáveis categóricas apresentadas como número (porcentagem).
Durante o tempo do estudo, 37 (38%) pacientes faleceram, e oito (8%) necessitaram de retransplante. Entre os 53 pacientes restantes, a mediana de seguimento foi de 1026 (456 – 1561) dias, e nenhum paciente perdeu seguimento durante o tempo de estudo. Os tempos de internação e frequência de complicações após o transplante estão detalhados na tabela 4.
4. RESULTADOS 36
Tabela 4. Dados do período pós-transplante
N=98
Tempo de internação em UTI (dias) 9 (2-140)
Tempo de hospitalização total (dias) 14 (2-140)
Seguimento (dias) 551 (2-1561) Hemoperitônio 7 (7%) Infecções bacterianas 51 (52%) Complicação vascular 9 (9%) Complicação biliar Estenose Fístula 4 (4%) 6 (6%) Rejeição do enxerto Leve Moderada ou grave 4 (4%) 8 (8%) Necessidade de retransplante 8 (8%)
UTI: unidade de terapia intensiva.
Variáveis contínuas apresentadas como mediana (mínimo-máximo); variáveis categóricas apresentadas como número (porcentagem).
4.2 Infecções bacterianas após o transplante
Cinquenta e um (52%) pacientes apresentaram infecção bacteriana, com o primeiro episódio diagnosticado com mediana de 10 (0-120) dias após o transplante, sendo que em 37 (72%) deles, a primeira infecção se deu na mesma internação do transplante.
Em 37 pacientes, as infecções tiveram cultura positiva, e em 24 deles houve crescimento de pelo menos uma bactéria MR, com mediana de 15 (0-127) dias. A infecção por agente MR ocorreu na mesma internação do transplante em 18 (75%) dos 24 pacientes (Tabela 5).
4. RESULTADOS 37
Tabela 5. Pacientes com infecções bacterianas após o transplante N= 51
Pacientes com cultura positivas 37 (72%)
Hemocultura 25 (49%)
Urocultura 18 (35%)
Cultura de líquidos 11(22%)
Cultura de secreções 7 (14%)
Infecção na internação do Tx 37 (72%)
Pacientes com infecções MR 24 (47%)
Infecção MR na internação do Tx 18 (35%)
Tx: transplante; MR: multirresistente.
Variáveis categóricas apresentadas como número (porcentagem).
Sessenta e sete bactérias foram identificadas em culturas (Tabela 6). Das 50 Gram-negativas, 27 (54%) eram MR. As enterobactérias ESBL (principalmente Klebsiella
pneumoniae) foram o grupo de agentes MR mais prevalentes neste estudo, seguido pelo Acinetobacter baumannii. Em análise comparativa, infecções por enterobactérias ESBL e por Acinetobacter baumannii não tiveram qualquer associação com infecções prévias ou uso de
diferentes antibióticos antes do transplante (Tabela 7).
Entre os 17 Gram-positivos, apenas quatro eram MR. Três pacientes tiveram infecção por SAMR, dois dos quais faziam parte do grupo de 12 pacientes com colonização prévia pelo mesmo agente.
4. RESULTADOS 38
Tabela 6. Bactérias isoladas em culturas durante episódios de infecção
Bactérias total MR
Gram-negativas 50 27
Escherichia coli 12
Escherichia coli ESBL 4
Klebsiella pneumoniae 13 Klebsiella ESBL 9 KPC 2 Enterobacter spp. 8 Enterobacter ESBL 2 Acinetobacter baumannii 8 8 Pseudomonas aeruginosa 6 Pseudomonas MR 1 Proteus spp. 1 Serratia marcescens 1 Pantoea agglomerans 1 1 Gram-positivas 17 4 Staphylococcus aureus 4 SAMR 3
Staphylococcus coagulase negativa 5
Enterococcus faecium 5
VRE 1
Enterococcus faecalis 1
Corynebacterium 2
ESBL: produtor de betalactamase de espectro estendido; KPC: Klebsiella pneumoniae carbapenemase; MR: multirresistente; SAMR: Staphylococcus aureus meticilina-resistente; VRE: Enterococcus resistente a vancomicina.
4. RESULTADOS 39
Tabela 7. Análise de variáveis associadas a infecção por enterobactérias ESBL e por Acinetobacter baumannii
Enterobactérias ESBL Acinetobacter baumannii
total (n=98) sem infecção (n=85) infecção (n=13) p sem infecção (n=90) infecção (n=8) p Infecções bacterianas pré-Tx 37 (38%) 33 (39%) 4 (31%) 0,76 33 (37%) 4 (50%) 0,47 Infecções MR pré-Tx 7 (7%) 6 (7%) 1 (8%) 1,00 7 (8%) 0 (0%) 1,00 DIS prévia 25 (25%) 21 (25%) 4 (31%) 0,73 23 (26%) 2 (25%) 1,00
ATB amplo espectro pré-Tx 40 (41%) 35 (41%) 5 (38%) 1,00 37 (41%) 3 (37%) 1,00 ATB beta-lactâmico pré-Tx 34 (35%) 29 (34%) 5 (38%) 0,76 31 (34%) 3 (37%) 1,00
Cefalosporina pré-Tx 24 (24%) 21 (25%) 3 (23%) 1,00 22 (24%) 2 (25%) 1,00
Penicilina+IBL pré-Tx 22 (22%) 17 (20%) 5 (38%) 0,16 20 (22%) 2 (25%) 1,00
ATB carbapenêmico pré-Tx 13 (13%) 12 (14%) 1 (8%) 1,00 12 (13%) 1 (12%) 1,00 ESBL: produtor de betalactamase de espectro estendido; Tx: Transplante; MR: multirresistente; DIS: descontaminação intestinal seletiva; ATB: antibiótico; IBL: inibidores de betalactamase.
variáveis apresentadas como número (porcentagem).
Foram detectados 81 episódios de infecção bacteriana, dos quais 73 foram demonstrados por achados clínicos, laboratoriais e radiológicos, ou por culturas positivas. Oito episódios foram considerados prováveis por apresentar febre associada à leucocitose sem foco infeccioso definido, porém foi instaurado tratamento com antibióticos de amplo espectro (tabela 8).
Tabela 8. Tipo de infecção diagnosticada após o transplante de fígado N=81
Infecções de corrente sanguínea 20 (25%)
Infecções do trato urinário 19 (23%)
Infecções respiratórias 17 (21%)
Infecções abdominais 9 (11%)
Colangites 4 (5%)
Infecções de pele/ferida cirúrgica 4 (5%)
4. RESULTADOS 40
4.2.1 Fatores de risco para infecções bacterianas
Foram analisadas as variáveis do período pré-transplante, do transplante e do transplante imediato, comparando-se pacientes que tiveram infecção bacteriana no período pós-operatório com pacientes sem infecção após o transplante. Os resultados comparativos e a análise univariada estão na tabela 9.
A análise comparativa entre os grupos de pacientes com (n=51) e sem (n=47) infecção bacteriana mostrou diferença significativa entre as seguintes variáveis: níveis de albumina sérica pré-transplante (mediana 3,0 g/L vs. 3,4 g/L; p=0,015), presença de síndrome hepatorrenal (16% vs. 2%; p=0,032), níveis de creatinina 24h após o transplante (mediana 1,3 mg/dL vs. 1,0 mg/dL, p=0,016), tempo de internação na UTI (mediana 12 vs. 6 dias; p < 0,0001) e tempo de internação hospitalar após o transplante (mediana 21 vs. 10 dias; p < 0,0001).
Entre as variáveis do período pré-transplante e intraoperatório, identificados na análise univariada os seguintes fatores preditivos de infecção bacteriana pós-transplante (tabela 9): baixo nível de albumina pré-transplante, presença de síndrome hepatorrenal e número de concentrados de hemácias transfundidos no período intraoperatório. Pontuação nas classificações de Child-Pugh e MELD tiveram valor de p < 0,1, por isso também foram incluídas na análise multivariada.
4. RESULTADOS 41
Tabela 9. Resumo dos fatores de risco para infecção após o transplante de fígado
Infecção bacteriana Análise univariada
total (n=98) não (n=47) sim (n=51) p HR (IC95%) p Variáveis pré-transplantes Idade (anos) 54 (18-72) 53 (23-67) 55 (18-72) 0,11 1,019 0,987 - 1,052 0,252 Gênero (masculino) 80 (82%) 39 (83%) 41 (80%) 0,74 0,861 0,431 - 1,719 0,671 Child-Pugh (classe) A B C 27 (28%) 27 (28%) 44 (44%) 16 (34%) 12 (26%) 19 (40%) 11 (22%) 15 (29%) 25 (49%) 0,074 1,291 0,921 - 1,808 0,138 Child-Pugh (pontos) 9 (5-14) 7 (5-14) 9 (5-14) 0,091 1,086 0,985 - 1,198 0,098 MELD (pontos) 19 (7-46) 17 (7-44) 22 (7-46) 0,15 1,026 0,996 - 1,058 0,095 CHC 47 (48%) 25 (53%) 22 (43%) 0,32 0,700 0,402 - 1,221 0,209 Encefalopatia hepática 36 (37%) 14 (30%) 22 (43%) 0,17 1,549 0,889 - 2,698 0,122 Ascite 65 (66%) 27 (57%) 38 (74%) 0,074 1,654 0,881 - 3,106 0,118 Síndrome hepatorrenal 9 (9%) 1 (2%) 8 (16%) 0,032a 3,126 1,444 - 6,766 0,004b Albumina sérica pré-Tx (g/L) 3,2 (1,6-5,1) 3,4 (1,6-5,1) 3 (1,7-4,7) 0,015a 0,577 0,383 - 0,867 0,008b Bilirrubina total pré-Tx (mg/dL) 3,1 (0,4-42,2) 2,7 (0,4-42,2) 4,2(0,5-32,4) 0,17 1,015 0,986 - 1,046 0,311 RNI pré-Tx 1,6 (1-6,1) 1,5 (1-6,1) 1,8(1-4,3) 0,26 1,132 0,854 - 1,500 0,388 Creatinina sérica pré-Tx (mg/dL) 1,0 (0,5-6,4) 1,0 (0,5-4,1) 1,1 (0,6-6,4) 0,1 1,208 0,938 - 1,556 0,144 Na sérico pré-Tx(mEq/L) 138 (117-148) 139 (117-146) 138(120-148) 0,31 0,967 0,918 - 1,020 0,216 Infecções bacterianas pré-Tx 37 (38%) 18 (38%) 19 (38%) 0,92 1,018 0,577 - 1,797 0,951 PBE pré-Tx 17 (17%) 7 (15%) 10 (20%) 0,54 1,431 0,716 - 2,857 0,310 Infecções bacterianas MR pré-Tx 7 (7%) 3 (6%) 4 (8%) 1,0 1,120 0,403 - 3,112 0,828 ATB beta-lactâmico pré-Tx 34 (35%) 17 (36%) 17 (33%) 0,77 0,911 0,509 - 1,631 0,754 DIS prévia 25 (25%) 13 (28%) 12 (23%) 0,64 0,919 0,481 - 1,756 0,788 DIS no momento do Tx 19 (19%) 10 (21%) 9 (18%) 0,65 0,890 0,433 - 1,830 0,752 ATB de amplo espectro no Tx 13 (13%) 6 (13%) 7 (14%) 0,89 1,068 0,474 - 2,406 0,874
Variáveis do transplante
Concentrados de hemácias (U) 5 (0-22) 4 (0-22) 6 (0-20) 0,063 1,07 1,12 - 1,131 0,018b
PFC (U) 15 (0-50) 14 (2-28) 16 (0-50) 0,28 1,025 0,995 - 1,057 0,105 Concentrados de plaquetas (U) 3 (0-28) 2 (0-28) 3 (0-24) 0,12 0,999 0,965 - 1,034 0,947 Tempo de isquemia fria (min) 442 (160-870) 435 (160-870) 450 (270-870) 0,45 1,001 0,999 - 1,003 0,447 Tempo de cirurgia (min) 360 (180-540) 360 (210-450) 360 (180-540) 0,93 1,002 0,998 - 1,007 0,367
Variáveis pós-transplante Bilirrubina total 24h (mg/dL) 3,1 (0,3-15,3) 2,6 (0,3-15,3) 3,4 (0,3-14) 0,051 1,069 0,991 - 1,153 0,083 RNI 24h 1,7 (1,2-10,4) 1,7 (1,3-10,4) 1,9 (1,2-2,9) 0,90a 1,144 0,787 - 1,664 0,481 Creatinina sérica 24h (mg/dL) 1,2 (0,5-4,8) 1 (0,5-3,4) 1,3 (0,5-4,8) 0,016a 1,442 1,08 - 1,925 0,013b Nasérico 24h (mEq/L) 147 (133-161) 146 (133-161) 148 (139-157) 0,15 1,053 0,994 - 1,116 0,078 Plaquetas 24h (x1000 U/L) 51 (14-250) 50 (14-118) 55 (25-250) 0,1 1,010 1,001 - 1,021 0,029b
Tempo de internação (dias) 14 (2-140) 10 (2-32) 21 (4-140) <0,001a 1,017 1,009 - 1,025 <0,001b
Tempo de UTI (dias) 9 (2-140) 6 (2-30) 12 (2-140) <0,001a 1,015 1,007 - 1,024 <0,001b
HR: razão de risco; MR: multirresistente; MELD: model for end-stage liver disease; Tx: Transplante; RNI: relação normatizada internacional; UTI: unidade de terapia intensiva; CHC: carcinoma hepatocelular; PBE: peritonite bacteriana espontânea; ATB: antibiótico; DIS: descontaminação intestinal seletiva.
Variáveis contínuas apresentadas como mediana (mínimo-máximo); variáveis categóricas apresentadas como número (porcentagem).
4. RESULTADOS 42
A análise multivariada de regressão de Cox revelou que a presença de síndrome hepatorrenal antes do transplante (HR: 2,65; IC95%: 1,21-5,80; p=0,015) e níveis pré-transplante de albumina sérica mais baixos (HR: 0,65; IC95%: 0,43-0,99; p=0,044) foram fatores de risco independentes para o desenvolvimento de infecção bacteriana após o transplante de fígado.
4.2.2 Fatores de risco para infecções bacterianas multirresistentes.
Entre os 51 pacientes com infecção bacteriana, foram analisadas as variáveis do período pré-transplante, do transplante e do pós-transplante imediato, comparando-se pacientes com infecção MR no período pós-operatório e pacientes com infecção não-MR. Os resultados comparativos e a análise univariada estão na tabela 10.
O grupo de pacientes com infecção por bactérias MR foi significativamente diferente do grupo com infecção não-MR em relação às variáveis: classificação C de Child-Pugh (63% vs. 37%; p=0,016), pontuação do MELD (mediana 23 vs. 15; p=0,023), valor de RNI pré-transplante (mediana 1,8 vs. 1,5; p=0,031), níveis de bilirrubinas pré-pré-transplante (mediana 135 vs. 139 mEq/L; p=0,033), além de tempo de hospitalização (mediana 26 vs. 15 dias; p=0,014) e tempo de internação na UTI (mediana 18 vs. 10 dias; p=0,017).
Na tabela 10 também podemos ver o resultado da análise univariada, que identificou a classificação C de Child-Pugh, pontuação mais elevada do MELD, níveis maiores de RNI pré-transplante, unidade de PFC transfundidas no intraoperatório, PBE prévia e uso de descontaminação intestinal seletiva até o momento do transplante como fatores preditivos de infecção bacteriana MR.