M
i c h e l
M
a f f e s o l i
A
U\ lí
p O
p l A
Tradução de CLÓV1S MARQUES1
E D I T O R A R E C O R D R I O D E J A N E I R O • SÃ O P A U L O 2 0 0 4CIP-Brasil. Cat3!ogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Edilores de Livros, RJ. M affesoli, Michel,
1944-M 16 2p A parle do diabo / Michel Maffesoli; tradução de Clóvis Marques. - Rio de Janeiro: Rccord, 2004.
Tradu ção de: La pari du diable ISBN 85-01-06591-9
1. Bem e mal. 2. Pós-modernismo. 3. Civilização moderna. I. Titulo.
CDD - 111.84
0 3 - 2 0 6 6 C D U - 1 11 .8 4
Títul o origina! cm francês: LA PART DU DIAEiLE
Copyright © 2002 by Flammarion
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transm issão de partes deste livro através de quaisquer meios, s em previa autorizaç ão por escrito. Proibida a venda desta edição em Portugal c resto da Europa.
Direitos exclus ivos de publicação cm língua portuguesa para o ürasil adquiridos pela
D I S T R I B U I D O R A R E C O R D D E S ER V IÇ O S D E I M P R E N S A S.A . Rua Argentina 1 7 1 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000 que se reserva a pro priedade literária desta tradução
Impresso no Brasil I S B N 8 5 - 0 1 - 0 6 5 9 1 - 9 P E D I D O S P E L O R E E M B O L S O P O S T A L Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 2 0922-970 -v— E D IT O R A A F IL IA D A
Para Raphaêle, qu e sabe m u it o bem
qu e o qu e n ão m ata fortalece.
S
u m á r i o P r ó l o g o C a p í t u l o I P e q u e n a e p i st e m o l o g ia d o M al C a p í t u l o II O conflit o estrutural C a p í t u l o IIIVariações sobre a sombra
C a p í t u l o IV Inteireza do ser
C a p í t u l o V
"Jc suis t om bé par terre
C' est la fau te à V oltaire,
Le n ez dans le ruisseau
C' est la faute à Rousseau. "*
N ão existe nada pior que alguém q u erend o fazer o b em , esp ecialmen te o b em aos ou tros. O me sm o se aplica aos que "p en sam b em ", com sua irresistível tend ên cia a p en sar p or n o lugar dos ou tros. Encou raçad os em suas certezas, eles n ão têm espaço para dúvidas. E é claro q ue n ão ap reen d em a com p lexid ad e da vida. A coisa em si n ão teria tan ta im p ortân cia se esses d on os da verdad e, intitu lan d ose deíen. t o r e s l e g í t i m o s d a p a l a v r a , n ã o d e c r e t a s s e m o q u e a sociedade ou o indivíduo "devem ser".}
E s t e m a g i s t é r i o m o r a l — p o i s é e f e t i v a m e n t e d e m oralism o q ue se trata — é p erigoso. O fato é qu e, esqu e-ce n d o o q u e v elh a s m e m ó ri as e n s i n a r am a o s en s o co m u m
*"C a í n o c h ã o / a cu l p a é d e V o lt a ir e , / c o m o n a r i z n o r i a c h o / a cu lp a é d e R o u s s e a u . "
12
A parte do Diabo— a saber, qu e \ o infern o está^ cheio de b oas in ten ções"!—, esquecidos da saudável lucidez de um Heráclito ("brinca-deira de criança, as opiniões humanas"), os moralistas de t od as a s te n dê nc i as t ra ns fo rma m e m ve rd a de a bs o lu ta o s v alo res cu lt ura is d e u m m u n d o cu ja p ere n i da d e e st á lon g e de ser urnacerteza.
,.."£) "b em 'O com efeito, é a ju stificação últ im a d o m
essia-nismo füdáícocristão. As teorias da emancipação e o uni-v ersa li sm o mo d erno s, q ue co ns t it ue m s u as m a is re ce n te s m an ifestações, tam b ém se escoram n esse p rincípio básico. ; Poi em seu n om e q ue as diferentes in q u isições fizeram seu t ra ba lh o s ujo . Km se u no m e é q ue fo ram co m e ti do s t od os o s e t n o c í d i o s c u l t u r a i s e j u s t i f i c a d o s o s i m p e r i a l i s m o s e co n ô m i co e p o l í t i c o . mai s um a v ez , em s eu n o m e q u e se decreta o que dev e ser v ivi do e p en s ad o, co m o se de ve viver e p ensar, je qu e se d eclara tabu esta m an eira de viver ou aq u ele objeto de análise. Este u n iversalism o foi a justi-ficação de todos os colonialismos, dos etnocídios culturais q u e co n s t i t u í r am a m a r ca d a o ci d e n t a li z açã o d o m u n d o a p artir d o fim do sécu lo XIX.
U m (co n f o r m i s m o ' ca n h e s t ro , p o is já fo r a d e p r o p ó s i -t o . C o n f o r m i s m o p e r i g o s o , p o r q u e , a q u i I o c u j a e x i s -t ê n cLa _S £_j ae ga — co m p l e x i d a d e g a l o p a n t e , r e l a t i v i s m o c u l t u r a l , t r i b a l i s m o e m o c i o n a l e o u t r o s s e n t i m e n t o s d e v i n cu l a çã o , já f or a d e s i n t o n i a co m a s t e o r i a s b e m p e n s a n t e s — p o d e t o r n a r s e D e rv cr so .'O u s e j a , t o m a r c a m i -n h o s d e s v i a d o s , p e r v i a , e p o r i s t o m e s m o f u g i -n d o a o c on tro le . A s in út e is q u erel as in te le c tu ai s, po lí t ic as e d e f e s co l as n ã o p a ss am d a e xp r e s s ão d o e n cl a u s u r a m e n t o d a
Prólogo
13 intelligentsia e m s e u m u n d o q u e s e a c a b a . E l a n ã o c o n h e c e se u p r ó p r i o te m p o . Es te se v i n g a co m t o d o s o s t i -p o s d e e xce s s o s . D i sto c o n s t it u e m o s i n d í ci o s m a is m a r ca n t e s a v o l t a d o s d i fe re n t e s fa n a t is m o s e d o s m ú l ti -p l o s te r r o r is m o s , as sim c o m o a r e b e l iã o , m a i s o u m e n o s v i o l e n t a , d o s jo v e n s d o s s u b ú r b i o s, p a r a n ã o m e n ci o n a r a d e s e r çã o d e n u m e r o sa s i n s t i tu i çõ e s .,De fato, silenciosa ou ruidosa, a revolta^germina.fSi-l e n c i o s a , e revolta^germina.fSi-l a s e m a n i f e s t a n a p a s s i v i d a d e , n o r e c u o , n a i n a t i v i d a d e d o s j o v e n s . R u i d o s a , n o s pegas a u t o m o b i -lísticos, nas vaias à Marselhesa n o E st á d i o d a Fr a n ça — e xe m p lo s n ã o f alta m . C o m o n u m a n o v a secessio plebis, ta l co m o n a r etir ad a d o p o v o r o m a n o p a ra o A ve n t in o , 1já n ã o h á a d e s ã o a os ^ p r in cí p i os d e f a ch a d â x j u e d e i x a r a m d e te r q u a l q u e r v i n c u l a çã o c o m a r e a li d a d e d a v i d a . Es ta r e b e l i ã o , a o m e s m o t e m p o s o r r a t e i r a e e f i c a z , s i g n i f i c a , c o m c e r t e z a , q u e e s t á c h e g a n d o a o f i m u m c i c l o , o q u e foi in a u g u r ad o co m a co n s a g r a çã o d o b e m co m o v a lo r a b s o l u t o . L' M u i t o a n t e s d e s t a c o n s a g r a ç ã o , e m o u t r o s m o m e n t o s , e m o u t r o s l u g ar es d o m u n d o , o q u e s e l e v av a e m co n t a e ra u m p o l it e ís m o d o s v al or es , u m p o l icu l tu r a l is m o o u e n t ã o o q u e p o d e m o s ch a m a r delefeito d e com pos ição', cultu ra e p m a t é r i a p r i m a , b e m e m a l , m o r t e _ e y i d a o P e r i o d i c a m e n t e
v e r i f i c a s e u m " ( r e ) n a s c i m e n t o " d e s t e m u n d o c o m p o s t o . N a s c e m o s n o v a m e n t e p a r a u m r e a l p l u r a l . É u m p e r í o d o de m u d a basead o n a relativização d os valores. Por sinal, é a ss im q u e d e v em o s e n t e n d e r a m u d a n ça i n a u g u r a d a p e lo I lu m i n i sm o , n o a l v or ece r d a m o d e r n i d a d e : d i a n t e d e u m
14
A parte do Diabo
m u n d o e s ta n ca d o , ele s e n f a t iz a m o d i n a m i s m o e a ci r cu l a -ção d e idéias.
H o je , f r e n t e a o s e s t a tu t o s s oci ai s s u p o s t a m e n t e i m u t á -v e i s (cl a ss e s , ca t e g o r i a s s o c io p r o f i s s i o n a i s )^ a f i r m a s e a , exigên cia da m ob ilid ad g,]0 m esm o se dá p or m eio da circu
lação d e livros e jorn ais, real e virtu al, pela p roliferação d as trocas: com ércio de bens, com ércio de idéias, com ércio am o-r o s o . Já m o s t o-re i e m o u t o-r a s c io-r cu n s t â n ci a s 1 c o m o e st a t o-ro c a g e n e r a l i z a d a c o n s t i t u í a a m a r c a i n c o n f u n d í v e l d a s " r e v o -l u ç õ e s " so c ie t á r i a s . As t r ib o s u r b a n a s , cu j a i m p o r t â n c ia n i n g u é m m a i s n e g a , e m e s m o , n ã o o b s t a n t e o q u e s e co n v e n ci o n o u ch a m a r d e "cr i se ", o h e d o n i s m o d i fu s o q u e o p e r a e m n o s sa s s o ci e d a d e s , d e l im i ta m m u i t o b e m o s c o n t o r n o s d ess a p r o f u n d a m u t a çã o .
Revolução que, em seu sentido etimológico, assiste ao r e t o r n o d a q u i l o q u e j u l g á v a m o s u l t r á p a s s a d o . C o m o o b -s er v a Lé v iS tr au -s -s , " o h o m e m -s e m p r e p e n -s o u b e m a -s -s im ". P o d e r ía m o s a c re s ce n t a r q u e ta m b é m s e m p r e v iv e u m a l. E n o e n t a n t o , e m m e i o à t r á g ica b e le za d o m u n d o , ele v iv e . C o n t r a o p r o g r e s s i s m o j u d a i c o c r i s t ã o , e m p e n h a d o e m e x p l i c a r t u d o (ex-plicare, retirar as pregas), afirmase um ^ p e n s a m e n t o "p r o g r e s s iv o ", s a b e d o r ia q u e i m p l i ca t o d a s a s
maneiras de ser e pensar, a alteridade, a errância. Eis, port a n port o , a m u port a çã o p ó s m o d e m a , aq u e la q u e a ce i porta as "p r e -gas" dos arcaísm os pié-m oos inos .
T e m o s , e n t ã o , a l g o p a r ? o q u a l c h a m o a a t e n ç ã o h á a lg u m a s d é ca d a s , a lg o q u e h c je se t o r n a u m a r e a l id a d e i n c o n t o r n á v e l : j o t í l b ã I u õ n I c rf. m al so valor essen ciali É b em v e r d a d e q u e o d e s e m p r e g o r^ u i t as v ez es é e n ca r a d o c o m o
Prólogo
15
u m a d e s g r aça . M a s m u i t os j ov e n s n e m p o r is to ch e g a m a d e s e ja r u m e m p r e g o e s tá v e l. Pe lo co n t r á r i o , v ã o s e a d a p tan d o ao vaivém Trabaího:de s e m p r eg o , ] a con trato s p re-c á r i o s s e g u i d o s d e p e r í o d o s d e s e g u r o d e s e m p r e g o . R e s u m i n d o : t u d o , m e n o s u m a ca r re ir a d e e m p r e g a d o c o m salário m ín im o ou fu n cion ário dos Correios. £> trab alh o, v a le le m b r a r , e r a o i n s t r u m e n t o p r iv i le g ia d o d a a ç ã o s o b r e s i m e s m o e s o b r e o m u n d o , _ e i s t o p a r a a l c a n ç a r o
"b em ", a perfeição fu tura. O trab alh o era causa e efeito d o h o m o o e co n o m i cu s , d e u m i n d iv íd u o r ed u z id o à p ro d u ç ã o . e q u e t in h a o p r o d u t iv i s m Q _ co m o .i d e o l o g i a p o.r
e xce lê n cia . ^ . r ^
Este prometeísmo moderrjo vem sendo sucedido pela figura mais complexa de Dioniso. Hedonismo generali za-d o. Selvageria laten te. An imaliza-daza-d e seren a. Tam b ém aqu i,, f u r i o s a o u c a l m a m e n t e , m a s s e m p r e c o m o b s t i n a ç ã o , a p essoa plural se afirma.^A pessoa com p osta ("eu é um ou tro"), antagônica, contraditória. Esta inteireza dionisíaca i m p l ica o j^ m a í" C o m o a co n t e ce f r e q ü e n t e m e n t e , a m ú s i -ca, os filmes, a pintura e a coreografia evidenciam
clara-m en te esta iclara-m p licação. Coclara-m efeito, na.idp ologia d o h o m ç
oeconomicus, o fato de o ind ivídu o ter sido analisado com o pi vô ãú t(>suficien té da sociedade acabou fazend o com qu e fosse eliminada ou pelo menos postulada a superação da t o p e r l e i ç ã a Em co n t ra p a r ti d a , a r e a fi rm a çã o d a p es so a plural nu m m u n d o policultural tend e a integrar o m al com o u m elem en to en tre outros. Ele pod er ser vivido, tribalm en te — e, com isto, "homeopatizarse", tornarse mais ou me-n o s i me-n o f e me-n s i v o. C a b e su p o r q u e u m a p a r te d o s p r o b l em a s
16
A parte cio Diabod o s p rofes so res n o s c o lé gi os co n s id erad o s p rob le m á ti co s d eco rre d e s ua p ro p e ns ão a v er u m a t u rm a c o m o u m a s om a d e ind ivídu os qu e precisam ser ap erfeiçoados, e n ão com o u m g rup o co m su as d ific u ld ad e s, ma s ta mb é m c o m s u as p otencialidad es coletivas.
É i st o, p o rt an t o, o q ue e s tá e m jo g o na m ut a çã o pó s m o d e rn a . R eco n h e ce r "o q u e ca be a o d i ab o ", sa b er d arl he bom uso, para que não sufoque o corpo social. Uma sabe-d oria c uj o pe rfi l fo i a p on ta sabe-d o p o r Ma rc o A u ré li o , e n tre tan tos ou tros: "Pois irritarse con tra o q ue é eqü ivale a aban d o na r a n at ure za u ni v ersa l, n u m a p arte d a qu a l e stã o co n tidas as naturezas de cada um dos outros seres2".
C ab e po rta nt o , se m ca n on i zá l a n em t am p ou co es ti g m a t i z á l a
a priori,
r e c o n h e c e r q u e , v i v e m o s a h o r a d a anq m ia.jSeria o caso de rem em orar o lema de Rimb aud: "O poeta tornasevidente
p o r m e i o d e u m l o n g o , i m e n s o ec al cu la d o
desregramento de todos os sentidos.
Todas asformas de am or, de sofrim en to, de loucura; ele bu sca a si m esm o, esgota em si p róprio todos os ven en os, para gu ar-dar deles apenas as quintessências. Inefável tortura3..." O viden te Rimbaud tornou se um a referência acad êm ica, m as sua "dêV.assidâo" poética*contaminou muitas práticas ju-v en is , p od e nd o o s eu ec o s er o u ju-vi do no s
Lipstick traces
deixados pelos Sex Pistols e outros revoltados do rock, dahousee
d atechno.
Aí estão o excesso, o demonismo e as variadas efer v escê nci as d e d i feren te s orde ns , a firm a nd o q u e D i on is o é efetivamente o "rei clandestino" da época. No limiar do século XXI, a história secreta do século XX transformase
Prólogo
17
em d estin o m an ifesto. Eu d iria q u e a "crian ça etern a", rui;/ d o s a , cr u e l , g e n e r o s a, n ã o co n f o r m i s t a e q u e r e n a s ce n ã o é m a is u m a q u e st ão d e id a d e , m a s u m a a t it u d e , u m e st ad o d e e sp í r it o , u m "s i t u a c io n i s m o " q u e s e g e n e r a l iz a a o s p o u co s n o co n j u n t o d as g er a çõ e s. T e r í am o s aí u m a m í s ti ca d a v i o l ê n ci a , t a l c o m o d e s c r i t a p o r G . S o r e l e m o u t r o c o n t e x t o ? T a l v e z . E s p e c i a l -m e n t e n a -m e d id a e -m q u e u n e o s q u e co -m p a rt il h a -m seu s m i s t é r i o s , o s q u e c o m u n g a m o s m e s m o s m i t o s . O q u e é c e r t o é a r e v i v e s c ê n c i a d e u m a e r ó t i c a s o c i a l , d e u m a o r g i á st ica d i fu s a o u — p a r a e m p r e g a r te r m o s m a i s a ca d ê -m i co s — o re t o r n o d a
libido sent iend i,
a li b i d o d o s e n t i r , e i st o n ã o p o d e se r a p r e e n d i d o a t r a v é s d a s ca t e g o r i a s p r ó prias àlibido sciendi,
p r e o c u p a d a a p e n a s c o m o s a b e r a b s t r a t o , o u àli b id o d o m i n a nd i ,
p a r a a j j u a l só i m p o r ta a ^ p o l í t i ca , o p o d e r , co i s a s, e n f i m , i n v e n t a d a s p e l o s "m o r t o s v i v o s " q u e tê m a p r e t e n s ã o d e p e n s a r o u g e r ir o m u n d o . Po r i st o é q u e a p r o b l e m á t i ca d a i n t e g r a ç ã o p o r m e i o d e u m a "e d u ca çã o c i d a d ã ", ou s ej a, p o r u m s ab e r so b r e as i n s t i t u i ç õ e s e o s p o d e r e s e s t a b e l e c i d o s , é u m e n g o d o , s ó p o d e n d o p r o d u z i r m a is fr u s t r açã o . I m p õ e s e , a s s i m , u m r e d i m e n s i o n a m e n t o t e ó r i c o . S ó ^po d e m o s e n t e n d e r b e m u m a é p o c a s e n t i n d o s eu s od o res ., jI
Q s h u m p r e s so çi a is .e in s ü n t i v o s s ã o m a is e l o q ü e n t e s a se u í r e sp e i t o d o q u e m u i t o s t r a t a d o s er u d i t o s. N e le s e xp r i m e m i se os afetos, as pa ixões, as cren ças q u e a pe rm eiam :.É assimq u e se m a n i f e st a m o s s o n h o s m a is d e sv ai ra d o s co m q u e ela joga ou d os qu ais vem a ser jogu ete. É assim q u e p od em os e n t e n d e r q u e a " p a r t e d e s t r u i d o r a " , a d o e x c e s s o o u d a
18
A parte do Diabo
»e f er v e scê n c ia , é e xa t a m e n t e o q u e s e m p r e a n t e ci p a u m a n o v a h a rm o n i a . M a s só p o d e r em o s co m p r e en d e r b e m o i m p a ct o d essa r e v i v e s c ê n c i a s e t i v e r m o s p o r e l a a l g u m a a p e t ê n c i a . N ã o a d e s ã o , m a s c o m p r e e n s ã o , e m s e u s e n t i d o s o c i o l ó g i c o . A a n á l is e n ã o p r e ci s a n e c e s s a r ia m e n t e se r cr í t ica . T a m b é m é possível "sen tirse em sin ton ia", vale dizer, cap tar, sentir, j u s t a m e n t e , a ca r g a a f ir m a t iv a q u e m o v e u m a é p o ca . H o u v e q u e m z o m b a s se d a id é i a, m a s in s i s to n a n e ce s s id a d e d e f o r m u l ar u m "p e n s a m e n t o d o v e n t r e ". A fin a l d e co n t a s , é lá q u e es tá a v i d a , co m t u d o o u , às ve ze s, co n t r a t u d o . T e -m o s d e s ab e r c o -m o d e s cr e vê l a. A d i ss id ê n ci a d i ss e m i n a s e . N ã o p o d e m o s l i m i t a rn o s a julgála pelos parâmetros políticos. Ela não se reconhece neles.xN ão é p ossível avaliar, a p artir da id eologia e con ô m i c a ,u m d e se jo .d e . "c o n s u m a ç ã o ", o d e s ej o d e d e sp e r d i çar ou q u eim ar as coisas e os afetos, q u e se gen eraliza cad a v e z m a i s / É aí q u e a a rr o g â n c i a d o s b e m p e n s a n t e s ch e g a a seu lim ite. Eles têm a seu lad o a im p ren sa oficial, aqu ela m e s m a q u e n o s p r i m e ir o s so b r e ss alto s d o s a n o s 6 0 er a q u a -l if ica d a d e " ó r g ã o d e t o d o s o s p o d e r e s ". Ó rgão d e t odas as im po tên cia s se ria m a is ap r o p r i a d o n o m o m e n t o a tu a l , d e t a l m a n e i ra o s p r o t a g o n i s ta s d e e n t ã o t o r n a r a m s e g e st or es d e u m m u n d o m o r n o e se m c ri a çã o . A i m p r en s a o ficia l é ca d a v e z m e n o s l id a p e la s g e ra çõ e s j ov e n s , q u e p r e fe r e m a h o r i z o n t a li d a d e d a I n t e r n e t , c o m se u s f o ro s d e d i s cu s s ão e outras busca? de encontros, :ajam sexuais, filosóficos ou religiosos.Prólogo
19
certificad os de con form id ad e, q ue cuid a da assepsia da so ciedad e e d o saber, torn ou se ab strato d em ais. A ab sten ção é a ú n ica resp osta d evolvida a tod os esses d irigen tes. Insis^ timos: a energia juvenil deixou de ter como objeto a rei-vin d icação, o p rojeto , a história. Ela se m an ifesta e se esgota*, no instante — festas, solidariedade na urgência — e não precisa de um a trad u ção p olítica ab strata. Daí a abs ten ção em m assa, a n ão in scrição n as listas eleitorais e ou tras
for-m as de ind iferentisfor-m o. Foi o que chafor-m ei de
A
transfigura-ção do político.
Tornase, então, uma imperiosa exigência intelectua l p ensar o sensível em tod as as suas m an ifestações. Ign oran do os "cães de gu ard a"; tem os de envered ar pelos cam in h os arriscados escolhidos pela socialidade de base. Não pode-m o s , c o pode-m e f e i t o , l i pode-m i t a rn o s à
via rccta,
b a l i z a d a p e l o racionalismo moderno; o que é preciso, pelo contrár io, é con struir u m a razão mais rica, aberta ao p arad oxo e, p or-tan to, cap az de p ensar a polissemia que acab am os d e abor d a r. Para co m p r e en d er os f en ô m e n o s j o c i a i s e m a ç ã o n o s dias de h oje, é necessário m u d ar de p erspectiva; n ão m ais criticar, explicar, mas _compreender,_admitir. Sem nos de t er m o s n o v a m e n t e n o m e s m o p o n t o , a lé m d a srepresenta-ções,
filosóficas e políticas, cuja saturação é evidente, épreciso
apresentar
f e n o m e n o l o g ica m e n t e o q u e a c o n t e ce .Sugerir a
m atéria prim a*
deste enigma qu e é o m al. N ão porm eio de um estetismo b arato, m as para cap tu rar a inteire-z a d o s f e n ô m e n o s q u e e s t ã o e m p r i m e i r o p l a n o n a c e n a
20
A parte do Diabo
social. Ainda qu e seu n om e seja variável — Estad o, In d iví duo, Deus, Contrato etc. —, nunca faltarão advogado s de Deus.
Opportet haereses esse,
é p r e c i s o q u e h a j a a l g u n s advogados do diabo4.Co m o verem os, a questão é delicada. Talvez p or isto o p e n s a m e n t o d o m a l t e n h a s id o p o r m u i t o t em p o a fa s ta d o ou con fin ad o à arte, à poesia ou a algu ns au tores mald itos. Malditos em sua época. Pois se evocarmos Schopenhau er, Nietzsche, Baudelaire, Rimbaud, Simmel ou M. Weber (to dos con testad os em sua época), qu em se hav erá d e lembrar do nome de seus detratores? Cabe supor que a arrogância dos m estres-escolas e outros escribas bem -pen san tes de h oje m ereça a mesm a sorte. N ão demorará p ara qu e se ju n te ao ossário das realidades.
E s t e l i v r o p r e t e n d e a p o n t a r m u i t o p r e c i s a m e n t e u m a tendência de fundo da vida pós-moderna: a ligação o rgâ n ica entre o bem e o ma l, entr e o trágico e a ju bilação. Por u m s u r p r e e n d e n t e p a r a d o x o , é a c e i t a n d o o m a l , e m s u a s d i f e r e n t e s m o d u l a ç õ e s , q u e p o d e m o s a l c a n ç a r u m a c e r t a alegria de viver. O
am or fati
n i e t z s c h i a n o t r a n s f o r m a n d o s e e m u m " a m o r d o m u n d o " p e l o q u e e l e é . A m o r d a n e -, cessid ad e em p iricam en te vivido e qu e será p reciso-, p or istomesmo, tratar de pensar.
A vida em p írica, qu e deve ser nossa d errad eira referên cia, "sab e" tud o isto perfeitam ente. N ada h á d e original nas p áginas qu e se seguem : estas idéias estão em tod as as m en tes. Mas é preciso ter a coragem de formulá-las. Nada de original no que vem das origens. É talvez o que Heidegger pretendia destacar ao observar a proximidade, em gr ego,
Prólogo
21
e n t r e a d o r e a li n g u a g e m (A lg o, L o go s ). À m i n h a m a n e i r a / eu d iria q u e a d oi d a "p alavra p erd ida" in cita a dar a p ala' v r a à d o r r e e n c o n t r a d a , e , d e s s e m o d o , a ( r e ) t o r n a r a u m h u m a n i s m o in t eg ra l. A q u e le q u e sa b e re c o n h e c e r o q u e é d o d i ab o .
N o t a s d o P r ó l o g o
1. S obre o nom adism o, Record, 2001.
2. Marco Aurélio, "Pensées" II, 16, in Les Stoicicns, Gallimard, La Pléiade, p. 1150.
3. Rimbaud (A.), Lettie à Demeny. Cf. Lefrcre (JJ)/ A. Rimbaud,
Fayard, 2001, p. 270 e p. 263. Cf. tam b cm M arcus (G .), Lipstick Tiaces. Un e histoire secrète du vin gt ièm e siècle, ed. Allia, Paris, 1998.
4. Sobre a razão ab erta, cf. Maffesoli (M.), Éloge de la raison sensible, Grasset, 1996.
C a p í t u l o I
"Nicht' raus, son dem durch."
C. G. Ju n gO Es p í r i t o a n i m a l
U m a r e f le xã o p a ra to d o s e p a ra n i n g u é m ? É n o m í n i m o d e licado, em n ossa trad ição cultural, m ostrar de que m aneiras o mal nos persegue, em suas diversas modulações: agres-sivid ade, violê n cia, sofrim en to, d isfun ção, p ecad o — a lis-ta p od eria p rosseguir infin ilis-tam en te. E isto lis-tan to ind ividu al q u an to coletivamen te.^ N ão há qu em n ão seja afetad o, e são p o u c o s o s q u e q u e r e m c o n h e c e r o s e f e i t o s d e s e m e l h a n t e realid ad e Pois o q ue é, é. A som b ra faz p arte desta b an alid a alid e b á s i c a . E l e m e n t o alid e b a s e e m n u m e r o s o s m i t o s , o n i -p resen te em n ossos con tos e lend as, ob sedan te nos sistemas f ilo só fi co s, ela é t am b é m u m a p e d ra n o c a m i n h o d a d o u -trina religiosa, pelo menos no Ocidente.
É por isto que me dirijo aos espíritos esclarecidos. Aos q u e n ã o t ê m m e d o d e u m a l u c i d e z r e v i g o r a n t e p a r a u s o
28
A parte do Diabo
ind ividu al e social. De fato, está n a h ora d e sup erar a p ro ,
xr b l e m á t ica d o h d m e m r e al iz a á o e m s u a to t a li d a d e , d a s o ci e ^ d a d é p e r fe it i.S Ü in d a q u e co m o i d eal, c o m o t e n s ã o , co m p ' p rojeto. Pois é esta a m elh or m an eira d e p rov ocar a reali
d a d e q u e se t ra t o u d e n e ga r, co m o u m r e t o r n o d o .q u e foi recalcado. No fim das contas, reconhecer que a impe rfei > çã o também é u m e le m e n t o e st ru t u ra n te d o d a d o m u n d a -n o , t al ve z u m â -n g u l o p a r ti cu l a rm e -n t e p e r t i-n e -n t e d e a t aq u e dos fen ôm en os sociais. Especialm en te se aceitarm os a h i-p ótese do "sen tim en to trágico" da vida, o qu e i-p arece cada vez mais evid ente.
Aceitem os o desafio desta visão, aind a q u e de m an eira m etodológica. Com o alavanca op eracional, para m elho r en t e n d e r t o d a s e s s a s a t i t u d e s p r e s e n t e í s t a s e m e s m o h e d o -nistas, esta mística corporativista ou ainda este poderoso relativismo, tod as ten d ên cias qu e, de m an eira difusa, con t a m i n a m a v id a co r r en t e .
Perspectiva metodológica — caberia talvez dizer epis
tem ológica — qu e enfatiza o p aroxism o, a caricatu ra, a for
m a com o cap acidad e de pôr em palavras o q u e é vivid o. Da
mesma maneira, Julien Freund, analisando o conflito, ine-ren te a toda sociedad e hu m an a, falava de u m a "situação ex-cepcional”, não no que tinha de factual, mas por servir de revelad or. E ele esp ecificava, po r sinal, q u e ciclicam en te esta situ ação retorn a com tod a a força1. É possível, p or algum tem p o, m ascarar seus efeitos, apagar seus asp ectos m ais fla s: gran tes, ma s ela estará sem p re lá, en trin ch eirad a, p ron ta a ressurgir, n os ato s privados e nas ações pú blicas. Daí o in te-resse m etod ológico da análise do conflito.
Pequena epistemologia do mal
29
T e r m o a l g o g e n é r i co m a s f o r t e m e n t e e v o c a t i v o , o_co n f li to p o d e , p o r t a n t o , "i n d i ca r n o s o ca m i n h o " , o ri e n t a r o p e n s a m e n t o p a ra es te n ã o d i to h u m a n o , e st a co i sa te r -r í v e l c u j o c a -r á t e -r f u n d a d o -r a h i s t ó -r i a e s t á s e m p -r e r e le m b r a n d o :a v id a e a m o r te e s tã o i n t n n s e ç a m e n t e li -g a d a s. \ • f v ■ ' C o n s t a t a s e u m a v o l t a d o m a i co m t o d a a f o r ça . Re fi ro m e àJf ace ^ o b scu r a d e n o ss a n a t u r e z a . A q u e la m e s m a q u e a cu l t u r a p o d e e m p a r te d o m e s ti ca r, m a s q u e co n t in u a a a n i m a r n o s s o s d e se jo s, n o s s o s m e d o s , n o s s o s s e n t i m e n t o s , em suma, todos os afetos. Esta volta com toda a força tal-v e z s e j a a q u i l o m e s m o a q u e n o s r e f e r i m o s h á a l g u m a s décadas, de m an eira bastan te incerta, com o "ájcrisè". Fan' 1 J ... j. <*4r tasrna q u e assom b ra a con sciên cia d os d irigentes da socie . d a d e , e q u e n a d a m a i s f a z a l é m d e e x p r e s s a r o q u e e l e s h a v i a m n e g a d o , m a s q u e c o n t i n u a v a e x i s t i n d o n a q u e l a m e m ó r i a im e m o r i al q u e é o i n c o n s ci e n t e co l e t iv o . A a t u a -l id a d e m a i s r e ce n t e n ã o s e m o s t ro u p r o p r i a m e n t e a v ar a e m m a t ér ia d e f e n ô m e n o s a t e r ro r iz a n t e s : d a q u e d a d a s T o rr es Gêmeas ao terrorismo biotóxico, passando pela exace rba ção de am eaças tan to m ais angu stiantes po r serem difusas, ^ a v o l t a d o m a l es tá n a o r d e m d o d i a .Podemos encarar esta crise de forma pessimista, quer d i ze r, c o m d e s co n f i a n ç a , o u e n t ã o e m p i r ica m e n t e , co m o a l g o q u e e s t á a í , q u e p r e c i s a m o s a b s o r v e r e , p o r t a n t o , com o possível fator de revivescência. Pod em os tam b ém nos q u estionar sobre a espan tosa pu lsão qu e leva os Estad os, as Igrejas, as regiões, as cidades, as instituições religiosas e fi-l o s ó fi ca s a c o m e m o r a r , a ce fi-l e b r a r , ' ^ i n y p j ça L a s j a r .i g e n s .1
30
A parte do Diabo
A n a m n e s e d o s m i t o s f u n d a d o r e s , ce le b r a çõ e s d e d ife r e n t es natu rezas para a ju bilação coletiva!
Acon tece qu e a idéia básica d os jubileus — e n este sen->' tido a Cabala n os forn ece u m esclarecim en to dos ma is ins tru tivos — con siste em restabelecer cada coisa a seu estado primitivo2. É uma lei social das mais conhecidas: todas as
^ ...- - - V - - , . .
" coisas tend em a perd er vitalidad e. Esvai-se a lem br an ça da e f e r v e s c ê n c i a f u n d a d o r a . O c h o q u e a m o r o s o t r a n s f o r m a -se em tédio con ju ga l, a energia rev olucionária vira partido p o l ít i co i n s t i t u c i o n a l , o d i n a m i sm o ju v e n i l d o i n í ci o in v e r t e - s e e m r e p e t i t i v i d a d e m o n ó t o n a . A t é m e s m o a i n t u i ç ã o cr i a d o r a d e u m p e n s a m e n t o in o v a d o r t e n d e a t o r n a r -s e s is t e m a e m p a l h a d o , c o m seu s d o g m a s e s eu s cã e s d e g u ar d a em zelosa vigilância da rigidez dou trinária. As histórias h u m a n a s f o r n e c e m n u m e r o s o s e x e m p l o s n e s t e s e n t i d o . P o r isto é que o ju bileu lança m ão da lem bra n ça das origens.
P o r t a n t o p o d e m o s i n t e r p r e t a r a p u l s ã o j u b i l a r d e q u e t r a t a m o s , p a r a a l é m d e s e u a s p e c t o i n s t i t u c i o n a l , c o m o o t r a b a l h o d o i n c o n s c ie n t e c o le t iv o v o l t a d o p a r a d a r fo r ça e vigor àquilo que cria o ser coletivo original. Cabe reme m orar , a este respeito, a d escrição qu e E. Du rk h eim faz, em ^
Les Formes clémentaires de la
vJereligieuse,
das festas"corr ob or ie" d as tribos austrálianas. Dispersas pelo territó rio, envolvidas em suas ocupações habituais, essas tribos s ã o p e r i o d i c a m e n t e m o v id a ? p o r u m i n s t i n t o m is t er io s o e e n t r a m e m "e s t a d o d e co n g r e g a ç ã o ". Ta i s fe st a s d ã o l u g ar a vários excessos, chocantes para a moral. No entan to, é n e ss es m o m e n t o s d e efe r v e scê n ci a q u e a co m u n i d a d e r a ti fica o s e n t i m e n t o q u e t em d<2 si m esm a. Tod as as festas de
Pequena epistemologia do mal
31
inversão, as reun iões festivas de qu e no s falam os historia dores, têm o m esm o espírito: falam nos da força da an om ia. Elas l e m b r a m o p o d e r d o s a fe to s, d o s s e n t id o s o u d e u m a cu l tu r a q u e a ci v il iz a çã o a in d a n ã o d o m e s t ico u c o m p l e t a -m e n t e .
É nesta p erspectiva, aqui ind icad a alusivam ente, q u e p o d e m o s f a la r d e u m a
pequena epistemologia do mal.
Saber esotérico para uso de uns poucos, na medida em que des creve as forças pr ofu nd as que an im am cada um e a vida da s o cie d a d e e m seu c o n ju n t o . L o n g e e s t a m o s d a a m b i çã o d a f i l o s o f i a d o I l u m i n i s m o e d e s e u d e s e m p e n h o p r o -m e t é i c o . M a s p e r t o d e u -m s a b e r " d i o n i s í a c o " , u -m s a b e r enraizado. Algo a que m e referi, no devido m om en to, com o u m " c o n h e c i m e n t o o r d i n á r i o " ( 1 9 8 5 ) , p r ó x i m o d a " a l m a d o a r b u s t o "(bush soul
de que faia C. G. Jung). Próximo t a m b é m d e ssa "g r a m á t ic a p a r d a " q u e e n c o n t r a m o s n o p e n sa m en to esp an h ol. Por ma is p arad oxal qu e pareça, trata-se d e u mespídt o natu ral
le m b r a n d o q u e a t eo r ia , n o s e n t id o mais etim ológ ico, e essencialm ente con tem p lativa Ela faz o elogio d o qu e é. U m s a b e r b e l o o u i n ú t i l , i n d i f e r e n t e à a ç ã o s o b r e o m u n d o , m a s e m p e n h a d o em r e co n h e ce r — c o m o in d ica o ló g i co P . F ey e r a b en d — qu e "t u d o é b o m ", a t é m e s m o o m a l , m e s m o a d is fu n ç ã o , m e s m o o q u e é c o n s id e r a d o p e c a d o , m e s m o o c o n t r a d i t ó r i o . D acoincidentia oppo
sitorum
q u e d e s e m b o c a n a "d o u t a i g n o r â n c ia " d e N i co la u d e C u s a a o " co n t r a d i to r i a l " cu ja p e r t in ê n c ia f oi d e m o n s t r a d a p o r S . L u p a s c o , t r a t a - s e d e u m a t e n s ã o f u n d a d o r a , s e m p r e r e n o v a d a , e qu = n ã o p o d e r e so lv e r s e n u m a s ín t e-32
A parte do Diabo
se o u e m o u t r a s fo r m a s d e u n i fo r m i d a d e o u u n i v e r s a l is m o . T a m p o u c o s er ia o c a s o d e sa b er p a r a p o d e r . Se r ia m a i s d e u m s a be r in c o r p o r a d o . Q u e r d iz er , u m s a be r q u e , n o c o t i d i a n o , l o c a l m e n t e , d á ê n f a s e à f a l t a , a o v á c u o , à e x p e
-riêricia qu e apresenta n ão u m a
eficiência
e x t e r n a, m as u m aeficácia
inter n a. Saber do corpo, ind ivid u al e coletivo, n o qual felicidade e infelicidade, jubilação e desampa ro es t ã o i n t i m a m e n t e l ig a d o s. Sa b er d o se m - t r ia g e m , q u e n ã o p a s s a n e c e s s a r i a m e n t e p e l a c o n s c i e n t i z a ç ã o o u a v e r b a l i z a çã o , m a s g a r a n t i n d o a lo n g o p r a z o a p e r d u r a ç ão o b s t i n a da da vida. Ainda q u e a ela in tegra nd o seu op osto: a mor te e suas diferentes manifestações cotidianas.E bem verdade qu e existe aí um pa rad oxo. Mas n ão será exatamente assim que podemos resistir a longo prazo ao asp ecto totalizant e, logo totalitário, da "von ta d e de saber3"? V o n t a d e u n i d i m e n s i on a l q u e t en d e a t r a n s fo r m a r u m va lor esp ecífico cm valor absoluto.. Von tad e castra d ora , n o
indivíduo, dessa zona sombria que também é sua. É efeti v a m e n t e o q u e e n c o n t r a m o s n e s s e p a r a d i g m a q u e v e m a s e r a g í r i a e m s u a s d i f e r e n t e s m o d u l a ç õ e s , i n v e r t e n d o a o r d e m d a s p a la v ra s e e m p e n h a d o em e xp r i m i r u m m u n d o d i f e r e n t e d a q u e l e q u e a o r d e m e s t a b e l e c i d a p r e t e n d e i m p or 4. A p oét ica da gíria, com o a de qu alq u er líng u a secreta, r e m e t e a u m a e s p é ci e d e
sabedoria dem oníaca
q u e e n f a t iz a a inteireza d o ser, aind a qu e em seus aspectos m en os atra en tes. Afinal, os h u m ore s, em suas diversas secreções, tam bé m são necessários ao equ ilíbrio corporal, gar an tind o seu bom fu n cion am en to. N ão seria possível dizer o m esm o a respei to do corpo social?Pequena epistemologia do mal
33
É interessa nte observar qu e de São Pa ulo a Sant o Agos tin h o, d os filósofos do Ilum inism o às diversas íeorizações h e g e l ia n o -m a r x i st a s , o u n i v e r sa l is m o ju d a i co -c r is t ã o p r ó p r i o d a t r a d i ç ã o oci d e n t a l, t e m -s e e m p e n h a d o f u r i o s a m e n t e e m t e o riz a r , e m t e n t a r p ô r e m p r á t i ca o b e m . D a "C i d a d e d e D e u s " à s o c i e d a d e p e r f e i t a , v a m o s e n c o n t r a r a m e s m a ten são : m obilizar as energias individu ais e sociais para con
cretizar u m rem ate, u m a parú sia que elimin asse a pa rte obs cu r a d o h u m a n o . \ N ã o m e n o s i n t e re s sa n t e ê o b se r va r q u e da Inq u isição aos d iferentes
gulags
,' p a s s a n d o p o r t o d o s os etnocídios e colon ialismo s recentes, sem elhan te utop ia não se realizou sem d an os.1De ta n to qu erer edu car a natu reza, c h e g a m o s a o s e s t r a g o s e c o n ô m i c o s d e q u e c o m e ç a m o s a n o s c o n s c ie n t i z a r . Ç o m d e m a s ia d a fr e q ü ê n c ia a co l o n i z a ç ã o , o i m p e r i a l i s m o , o c o m u n i s m o e o s d i v e r s o s m o n o -teísmos d e am bições expan sionistas são an alisad os em seus excessos — o racismo colonialista, o stalinismo, a Inquisi ção, a destruição das culturas originais, a imposiç ão das religiões ocidentais pelos missionários. No entanto, esses "d e s v io s " co n s t i t u e m a co n s u m a ç ã o l ó g ic a e in e lu t á v e l d e u m a v i sã o u n i v er s a lis t a d o m u n d o . , A p a r t ir d o m o m e n t o em qu e o O cid en te repr esenta "a civilização”, 6 legítimp q u e ela seja imposta em detrimento das culturas nativas ; se o co m u n i s m o r e p r es en t a u m Es ta d o m e l h o r , p o d e e d e v e ser instau rad o p or m eio da violência. E isto inclu i os integris-m os atuais, qu e de certa forintegris-m a respond eintegris-m, exacerban d o sua d i f e r e n ç a , à t e n t a ç ã o s e m p r e h e g e m ô n i c a d a d e m o c r a c i a . D a m e s m a f o r m a , a m e d i c i n a o c i d e n t a l , e n c a s t e l a d a n a certeza d e qu e o p rogresso científico d eve ser cap az d e ven34
>4
parte do Diabo
ce r to d a s a s d o e n ç a s e t o d o s o s s o fr i m e n t o s , c o n d u z i n e v i t a v e l m e n t e à s m o r t e s c a u s a d a s p e l o s p r ó p r i o s e f e i t o s d o s t r a t a m e n t o s : q u i m i o t e r a p i a p a r a o c â n c er , q u e a t a ca t a n t o o c o r a ç ã o q u a n t o a s c é l u l a s d o e n t e s , i n f e c ç õ e s h o s p i t a l a r es q u e a fe t a m u m q u a r t o d o s d o e n t e s i n t e r n a d o s , p a ra n ã o fa la r d as d e p e n d ê n c ia s m e d i ca m e n t o s a s .É cont ra a "violên cia totalitária" deste u niversalismo q u e v e m r e s s u r g i n d o o q u e d e n o m i n e i s a b e d o r i a d e m o n í a c a . ; Sabedoria incorporada,^ mais vivida que pensada, que é es sen cialm en te rclativLsta. Vale dizer: qu e r elacion a tod os os elementos constitutivos da natureza, inclusive os mais sel vagens. Sob o impulso dessas culturas consideradas bárba ras, qu e ju lgáv am os m arginalizad as, são mu itas as técnicas do corpo, os sincretismos filosóficos e religiosos que tra tam de em bar alha r os cód igos raciona listas: os da teod icéia cristã, de um a vida social p rog ram ad a e sem r iscos. E a v ol ta dos orientes míticos! Cabe mencionar, é claro, a onda c r e s c e n t e — p a r a l e l a m e n t e à s m e d i c i n a s o c i d e n t a i s t r a d i c i o n a i s m a i s a l t e r n a t i v a s ( h o m e o p a t i a , f i t o t e r a p i a ) — d a s t é cn i ca s d e t r a t a m e n t o s o r ie n t a is — a cu p u n t u r a ,
shiatsu
— assim com o das técn icas de m ed itação, das artes m arciais e outras maneiras de organizar a vida, o espaço.D e u m a f o r m a p a r o x í s t i c a , e n c o n t r a m o s u m a p o s t u r a d e resistência com o esta na bru xaria, consistind o — de acor d o c o m u r n a a n á lis e d e j u n g — e m a l te ra r a o r d e m d as let ra s, p a r a "d e r r u b a r a o r d e m d i v in a , c o m o b je t i v o s d ia b ó l ico s , e estab elece: em seu lugar um a d esord em in fern al". Esta "d e fo r m a ç ã o m á g ica d a s p a b ^ a s ” é p a r a d i g m á t ica . Po d e ser e n c o n t r a r á , c o m o i n d i q v - í . , n a g í r i a d a b a n d i d a g e m e d a
Pequena epistemologia do mal
35m a r g i n a l i d a d e , m a s t a m b é m e m t o d a s a s t é c n i c a s d o
New
Age
e o u t r o s d i s c u r s o s d i s s o c i a d o s d a o r d e m e c o n ô m i c aestabelecida . Da astrologia às m ed icinas p aralelas, con sta t a m o s a m e s m a p r e o c u p a ç ã o p o p u l a r : e n c o n t r a r u m a o r d em intern a, qu e tem seu p rópr io rigor, mas qu e se baseia n a i n t e r a ç ã o p e r m a n e n t e d o m a t e r i a l c o m o i m a t e r i a l 5 .
Correspondências, analogias, metáforas: são muitos os i n s t r u m e n t o s q u e , u t i l i z a d o s n e s t e s e n t i d o , i n s i s t e m n a sinergia, na com p lexid ad e dessa estrutura h olística q u e vem a ser o in d i v íd u o "l ig a d o " a o ou t r o h u m a n o , a o o u t r o a n i m a l , a o o u t r o n a t u r a l . M a s a s s i m c o m o o . u n i v e r s a l i s m o
a b s t r a t o r e p o u s a v a
na'
rejeição da morte —■como no
e ncantamento de São Paulo: "Morte, onde está tua vitória?” — , t a m b é m i a a c e i t a ç ã o d a " p a r t e m a l d i t a ” r e m e t e a u m a
outra tática frente à finitu d e, a da integra ção h om eo p át ica d o m a l. O r e c o n h e c i m e n t o d a im p e r m a n ê n c ia d e to d a s as coisas é, assim, u m a form a de se estar seguro da per d u ração , a longo prazo, do todo...,
Esta tática é cotidiana, e se a bruxaria,
stricto sensu,
éexcep cion al, são m uitas as crenças que, sem se d eclararem c o m o t a l , c o m p a r t i l h a m a m e s m a l ó g i c a . , O p s i c o d e l i s m o s ó é u m a c u l tu r a m e n o r p a r a a qu e le s q u e a in d a s e ju lg a m em p osição d e dirigir a socied ad e. Na realidad e, ele está em tod a parte. Um ind icad or disto é a mú sica; que, com o "fato /. social to ta l", con stitu i um bo m resu m o desta seiyagerizj.ção. da vida. Os ídolcs dos jovens, solistas ou grupos musicais, e x p r i m e m , u n s m a i s o u t r o s m e n o s , u m d e m o n i s m o a m biente. Reencenando os transes arcaicos, eles ritualizam a m o r t e , m o s t r a n d o s e u a s p e c t o i n e v i t á v e l e , t a l v e z , s u a
36
A parte do Diabo
f e c u n d i d a d e . P o u co i m p o r t a , n e s se s f e n ô m e n o s d e e xce s -s o , o p r o m e t e í -s m o d e u m i n d i v í d u o e d e u m a -s o c i e d a d e "plenos", positivos. Prevalece, em contrapartida, uma en-cen ação, às vezes aterrorizante, do q ue é a m or te q ue insis t e m e m m i n i m i z a r . Entend e-se melhor, nessas cond ições, p o r q u e a s
raves,
q u e n o f i m d a s c o n t a s c e r t a m e n t e n ã o oferecem m ais tóxicos que as boates, e, de qu alqu er m an ei ra, fazem m u ito m en os m ortos que as saídas d as festas de sábado à noite, tenham parecido tão.perigosas aos p olíti-cos^Nelas o transe, os "produtos", a violência são integra dos à festa e n ão d eixados n a p orta.Uma postura existencial desse tipo é, no fim das con tas, tradicional. Em todas as culturas pré-modernas, mas t a m b é m e m t o d o s os m i t o s h u m a n o s , e n c o n t r a m o s o cic lo da morte e da vida. Analisando a "morte africana", o an tro p ólogo L.-V. Tho m as chega a enxergar nela um fator de e q u i l í b r i o e s t r u t u r a l . E x a c e r b a n d o a m o r t e , r e p r e s e n t a n do-a por mímica, o que se faz é desdramatizá-la, torná-la familiar. É certamente um processo idêntico que testemu n h am os nas histerias mu sicais contem p orân eas.-Os ritm os . t e c h n o , a s s ín c o p e s d o r a p , a o m e s m o t e m p o q u e e m b a r a lh am os cód igos dos discursos racionais, exigem u m a vitali d ade qu e mergu lha p rofun d am ente suas raízes n os "vácuos" . d a i n t e i r e z a h u m a n a . A v i t a l i d a d e d e s t a t e r r a e m q u e "estamos aí". Desta terra de que somos feitos e que faz de n ós o qu e somos. É isto a sabed oria d em on íaca, qu e, no fim d a s co n t a s , v a le t a n t o q u a n t o q u a l q u e r o u t r a .
Co m o estamos faland o de pr ofun didad e, trata-se de uma in tu ição, ou seja, n ão de um olhar extern o e abstrato, mas
Pequena epistemologia do mal
37
d e u m a
visão do int erior.
In t u içã o q u e p o d e m o s a p r o x im a r d e s sa "g r a n d e z a n e g a t i v a " d e q u e fa l av a K a n t , e q u e n ã o é u m a n e g a ç ã o d a g r a n d e z a 6 . P o d e m o s e n c o n t r a r d i v e r s a s expressões dessa id éia: a efervescência, a a n om ia d e Durk-h e i m o u G u y a u , a "p a r t e m a l d i t a " d e Ba t a i lle o u o "i n s t a n te obscuro" de Bloch são com o exemp los afirm an d o, sempr e e m a i s u m a v ez , q u e a v id a n ã o p o d e se r r e d u z i d a à u t i l id a - : d e . A p r o x im i d a d e d o e x ce s so é u m a p r á t i ca r e c o r r e n t e n a s h i s t ó r i a s h u m a n a s . H á m o m e n t o s e m q u e e s t e f i o v e r m e lho fica menos evidente. Em outros, pelo contrário, ele se a fir m a c o m fo r ça . Se u r e n a s c i m e n t o e m n o s s o s d ia s já n ã o d á m a r g e m a d ú v id a s, p e l o m e n o s p a r a o s q u e d ã o a t e n ç ã o aos fatos. É o sinal de uma idéia-força que não podemos mais ignorar.E i m p o r t a n t e i n si st ir n e s t e p o n t o , já q u e p a r e c e tã o d i f í c i l a c e i t a r q u e p o s s a h a v e r u m a f o r m a d e g r a n d e z a n a n e g a t i v i d a d e . N o r m a l m e n t e , a ú n i c a p e r f e i ç ã o a d m i t i d a é a das alturas. O céu da divind ad e. Ora, p od e acon te cer que esta ten são para o alto n ão corre sp ond a à p rá tica social. Daí a necessid ad e de descer às pr ofu nd ezas da vid a. De vincular-se a esvincular-se abismo negro, o da_anirnalidade_que dorme em ca d a u m ,jJa ,g;u d d ad § tam bém , do p.razet &d.o,4esej.P/ coisas q u e n ã o d e ix a m d e fa s cin a r , m a s q u e c o s t u m a m ser co m -p a r t i m e n t a d a s , e s ã o t o le r a d a s a -p e n a s n a s o b r a s d e f icçã o . A c o n t e c e , p a ra o m e l h o r o u p a r a o p i o r , q u e e st e
espíri
Vto animal
v o l t o u a o p r i m e i r o p l a n o d a c e n a s o c i a l . N ã o , c o m o já e x p l iq u e i, n u m a s im p le s r e g r es sã o , m a s d e a c o r d o c o m u m a a t i t u d e d e " r e g r e d i ê n c i a " , a d a i m p l i c a ç ã o q u e in t e g r a o a r ca i co , o p r i m i t iv o , o a n i m a l n o h u m a n o , e s e m38
A parte cio Diabo
"superar" tudo isto. "Regresso", "ingresso", pouco impor t a o t e r m o q u e p o d e s er e m p r e g a d o ; b a st a i n s is ti r n o fa t o d e que seja p ossível penetrar, en trar (
ingresso
) n a inteireza d a n a t u r e z a h u m a n a s e m r e je it a r -l h e es ta o u a q u e la p a r t e . É i s t o o "e s p í r i t o d a s fe r as " q u e en c o n t r a m o s n o p e n s a m e n to fou rierista, é isto aultima ratio
dos sentid os, d o sensível q u e n ã o p r o j e t a s u a c o m p l e t a r e a l i z a ç ã o e m h i p o t é t i c o s a m a n h ã s 7 .^ O m e d o d a a n i m a l id a d e é a b a se d a p e r s p e ct iv a u n i-versalista. Ele é o p on to d e partida, inta ng ível, de tod os os ' m ora listas. Basta ou vir ou ler as etern as catilin ária s dos cro
nistas, jor n alistas, p olíticos e observad ores sociais de tod os os tipos para aplicar-lhes o que Marx dizia dos burgueses: "Eles n ão têm m ora l mas se servem da m or al." E o qu e aco n t e ce c o m a a n á l i s e s ob r e es ses n o v o s m o n s t r o s q u e v ê m a ser os "jov en s das cida d es". Mon stros m od elad os, na reali d a d e , e s p e c i a l m e n t e p e l o s j o r n a l i s t a s e o s p o l í t i c o s , a o s q u a is r e s p o n d e m o q u e d e s e ja m o u vir , so b r e tu d o q u a n d o c it a m Bin L a d e n c o m o s eu h e r ó i. Se m e l h a n t e u t il iz a ç ã o d a qu eixa é lan cin an te, obsessiva. Pode ser comp arad a, tratan -: d o-se da coisa sexual, à dos diretores d e con sciên cia na s escolas católicas, p rojetan d o seus fan tasm as sobre seus "d i r i g i d o s ” , p e r s e g u i n d o o p e c a d o o n d e e x i s t e m a p e n a s i n o c e n t e s p r a z e re s s ex u a is . O m e s m o t r a t a n d o - se d e u m ce r t o ^ pan -sexualism o freud iano, para o qual a cu ra an alítica co n
siste em ' esvaziar a lixeira ' de tod os os resíd u os som br ios, p rópr ios d3s fantasias hui/ .anas. Caberia fazer a gen ealogia d a q u i lo a q u e M. Fo u ca u i i se r e fe r e c o m o a " v o n t a d e d e sa b er 7 característica d a trad ição ocid ent al, para p erceber qu e
Pequena epistemologia do mal
39
através de d iferen tes figuras ela se lim ita a repetir u m a o b s e s s ã o c o n s t a n t e : o m e d o d a s o m b r a .
E s t a o b s e s s ã o i n a u g u r a - s e n o a t o f u n d a d o r b í b l i c o : "Deu s sepa rou a luz das trevas8." É p recisam en te o qu e vai servir de base à dualidade estrutural que será encontrada, t e o r i c a m e n t e e d e p o i s p r a t i ca m e n t e , n a cu lp a b i lid a d e cr is tã, e mais adiante, por sua vez, na "separação" hegeliana ou na cisão (
Spaltung)
freudiana. Esta recusa da inteireza d o ser perm ite, na trad ição em qu estão, elim ina r o trágico d a c o n d i ç ã o h u m a n a . F u g a d i a n t e d a m o r t e , n e g a ç ã o d a m o r t e c o m o f o n t e d a e xi s tê n c ia 9.Pa ra r e t o m a r a d i s t in ç ã o q u e p r o p u s e n t r e
drama
etrá-gico,
esta fuga consiste em "dramatizar" a morte, ou seja, e n c o n t r a r - lh e u m a s o l u ç ã o : o p a r a ís o o u a s o cie d a d e p e r feita. A partir daí, em suas diversas modulações (pecado, alienação, a n arq u ia), a m orte d eixa de ser essencial, já qu e é possível "superá-la".Nem por isto teria cabimento apressar-se a descartar a ação que deve ser empreendida sobre o mal. Faz part e da c o n s c iê n c i a h u m a n a n e g o ci a r c o m ele . H á u m a d is t in ç ã o , q u e e n c o n t r a m o s n o p e n s a m e n t o gr ego , q u e n o s p o d e a ju dar n este se n tid o 10. De um lad o o
pecado,
s o b r e o q u a l(
p od em os agir, qu e po d em os evitar de diversas m aneiras. Do o u t r o , a "p o l u i çã o ”, q u e é a u t o m á t ic a , t ã o im p i ed o s a q u a n to o m icró bio d esta ou d aqu ela doen ça, e, com o tal, trãgi-: cam en te incon tor n áv el. Eu diria qu e "tem os de ag ü en tar". U m é p o n t u a l , a o u t r a é " e s t r u t u r a l " . O r e c o n h e c i m e n t o d e s se a s p e c t o es t r u t u r a l p o d e in d u z i r u m a s a b ed o r i a c o t i d iana da necessid ad e. Esta cond u zind o a u m a p ostura exis40
A parte do Diabo
t e n c i a l q u e i n t e g ra o d e s a m p a ro p a ra a l c a n ç a r u m e q u i l í b ri o m a is co m p le t o , m a i s c o m p l e xo , o d o " co n t ra d i t o ri a l ", d e u m a l óg ica q u e n ã o fu n c io n a e m re la ç ã o à s u p e ra çã o d o mal: a síntese, a perfeição, mas repousando na tensão, ja m ais term in ad a, qu e faz da im per feição, da p arte sombria, u m elem en to essencial de toda vida ind ividu al ou coletiva.
A
ENERGIA DOS SENTIMENTOSN u n ca se dirá o su ficiente a respeito de qu an to a separa ção d ivina entre trevas e luz marcou p rofun d am ente a con sciên c i a o c i d e n t a l . To d a a t e m á t i c a d a e m a n c i p a ç ã o m o d e r n a repousa nesta separação. O universalismo da filosofia do Iluminísmo e sua mais recente manifestação, a “lengajen-ga^ moralista_cqntenipçirânea, derivam diretamente dela. A dialética matizada característica do pensamento grego, en tre o pecado, factual e p orta n to sup erável, e a "po lu ição", estrutu ral e inelu tável, ficou esquecid a.
É a partir deste corte radical que se elabora o conflito metafísico entre o bem e o mal. Para o cristianismo, reli gioso ou laico, não existe mais equilíbrio entre essas duas entidades. Na teoria agostiniana, o mal não tem realidade e m si, n ã o p a s sa n d o d e u m a " p r iv a çã o d o b e m "
(privatio
boní).É
a partir d esta neg ação q u e são elaborad as as teoriasfau stiana s qu e levaram à socied ad e asséptica qu e h oje tran s forma o "risco zero" em ideal absoluto.,
Mas se esta n ega ção é teórica (talvez fosse m elh or d izer intelectual), pouco impacto tem na sabedoria popular,
de-Pequena epistemologia do mal
41
m o n í a ca , q u e, ela sim , co n t i n u a r e c o n h e c en d o c o m o e q u i valentes essas du as entid ad es, bem e m al. Em p iricam ente, o diabo, em suas diversas manifestações cotidianas, atra vés de suas expressões no trágico corrente, tem uma exis tên cia real. Os efeitos de sua ação são inegáv eis. Em bor a eu só o ind iqu e aqui de form a alusiva, os con tos e lend as qu e n u t r e m o u a s so m b r a m a in f â n cia , e c o n t i n u a m a p e r seg u ir o i n c o n s c i e n t e c o l e t i v o , e n c e n a m f a d a s e b r u x a s , b o n s e m aus, bo n zin h os e m alvad os. Assim se explica igu alm en te ^ o espetacular sucesso de Harry Potter e certos Halloween, formas modernas da antiga veneração dos espíritos.
E m p a r t e , o s m i t o s r e p o u s a m n o q u e p o d e r í a m o s c h a m ar de p arad igma do Ha d es. É claro qu e em d iferen tes cu l turas este pa rad igm a se expressará sob d iferentes n om es. A realidade, sim, é intangível. Há um lugar subterrâneo, uma d e id a d e d a s p r o f u n d e z as . É u m lu g ar o u u m d e u s q u e t e m a ver com o fim da vida, mas é também um lugar ou uma entidad e qu e se man ifesta n o p róprio decu rso da existência. A s d e s g r a ç a s e s e p a r a ç õ e s , o s r o m p i m e n t o s , d e s a m o r e s , d o e n ç a s e a ci d e n t e s — e m s u m a , t o d o o t r á g i co c o t id i a n o — têm a ver com este tóp ico infernal.;
A d escida ao infern o é, inclusive, u m m om en to essen--' • ciai de qu alqu era n iciação. Iniciações religiosas ou p rofanas
stricto sensu,
ou a longa iniciação que é toda existência h u m a n a . O c o n f r o n t o c o m o m u n d o s u b t e r r â n e o é m e s m o e n ca r a d o co m o u m m o m e n t o n e ce ss ár io p ar a o q u e é considerado um "ser-mais" em devir. As expressões popu la re s "H á m a l es q u e v ê m p a ra b e m ", "O m u n d o t e m lu g ar p a r a t u d o " e t c . n ã o s e e n g a n a m a o e s t a b e l e c e r e m u m a• s i n e r g i a e n t r e t o d o s o s c o m p o n e n t e s d o d a d o m u n d a n o . T r a t a - s e e n t ã o , p a r a r e t o m a r u m a i m p o r t a n t e p r o p o s i ç ã o de Gilbert Dur and , desse "trajeto a nt rop ológico” qu e repou sa p r e cis a m e n t e n o a co r d o t en s io n a l, n u m a h a r m o n i a co n flituosa en tre o in stin to an im al e as lim itações ob jetiv as 11, sejam na tu rais, cultu rais ou sociais.
Existe neste saber incorp orad o, o da sabedoria p opu lar, uma bela lucidez revigorante. Podemos inclusive nos per guntar se, a longo prazo, não é precisamente esta l ucidez qu e g aran te a resistência, a du ração, a solid ez da vida. Ela "sa be -’' qu e, além ou a qu ém das p etições de p rin cíp io dos p r o t a g o n i s t a s d o
sbitus quo,
a lé m o u a q u é m d a s b o a s i n t e n ç õ e s r e f o r m i s t a s o u r e v o l u c i o n á r i a s , d a s d e c l a r a ç õ e s p o l í t i c a s o u m o r a i s d e t e r m i n a n d o o s p r i n c í p i o s d o b e m , sempr e será n ecessário com p or, negociar, "ag ü en tar " as d u ras realidades que, de sua parte, têm uma relação apenas d istante com o bem . A lógica do "d ever ser" (M. Web er), a das "almas boas" de todas as tendências, é encarada sob m u itos aspectos com o perigosa. Pois este m al n egad o, este m al d ialeticam en te superável nã o pod e d eixar de ressurgir de outra form a, d escontrolad o, sorrateiramente, de m aneira perversa, invertida. O "trajeto antropológico", o d os con tos e das lendas, da vida de todos os dias, é, por sua vez, m a i s e q u i l i b r a d o , s á b i o , h u m a n o , n a m e d i d a e m q u e d á direito de cida d an ia ao qu e é, e nã o ao qu e "d everia ser".E s t e e q u í l í b r i o n a d a t e m d e u n a n i m i s t a : e l e é c o n flituoso, em 'tensão oer^iari -nte, um equilíbrio enraizado. N a v e r d a d e e l e r e c o n h e c e — p a r a r e t o m a r u m a t e m á t i c a - pa scaliana — ou e o ?nio e " oes^ estão in tim am en te liga
Pequena epístetnologia do mal
43
d o s, e q u e s e u m d e ss es p ó l o s é d e m a s ia d a m e n t e a c e n t u a do, o outro só pode ressurgir. Seja como for, não deixa de ser i m p r e s s io n a n t e q u e e sta m it o lo g ia c o n t e m p o r â n e a q u e é a p u b li cid a d e n ã o s e t e n h a e n g a n a d o e n c e n a n d o a p ele, a e p i d e r m e , o s h u m o r e s e m t o d a s as su a s d i fe r e n t es m o d u la çõ es . O m e s m o a c o n t e c e c o m a p r o d u çã o m u s ica l, c i n e matográfica, fotográfica, que não teme ilustrar, epifanizar a parte obscura da natureza humana. É considerável a de-fasagcm entre o intelectualismo dos moralistas e a criação m u ltifor m e qu e se limita a tradu zir o que é vivid o por cada um . De u m lado, a abstração das boas in tenções, ga ra n tin do, como se sabe, a pavimentação dos infernos verdadei r os; d o o u t r o , o e n r a iz a m e n t o n o h ú m u s d o h u m a n o . Esta ú lt im a t e n d ê n c ia é m a i s p e r t in e n t e , m a is co n g r u e n t e c o m o espírito da época, logo, mais prospectiva. Seja como for, ela não traduz mais um ideal celeste, uraniano, apo líneo, mas u m a p reocu p ação h olística que faz d o corpo, d a sensi b il id a d e , d o s a fe t o s u m a p a r te in c o n t o r n á v e l d e ca d a u m e d o corp o social em sua totalid ad e.
Talvez seja esta a verdadeira encarnação do espírit o, aquela que sabe que uma planta precisa de raízes para ele var-se em d ireção ao céu. Trata-se de um a d essas idéias de t al m o d o b a n a i s q u e v a m o s en c o n t r á -la s , co m o t o d a e s t r u t u r a a n t r o p o l ó g i c a , a o m e s m o t e m p o n o s m i t o s m a i s s u b l i m e s e n o s l u g a r e s - c o m u n s m a i s c o r r i q u e i r o s . E n t r e o
arqu étip o e o estereótipo há apenas u m passo, qu e p od e ser dado com facilidade.
S ã o m u i t o s o s m i t o l o g e m a s q u e e x p r i m e m e s t a " c o n s tante". Ma obra negra de alquimia, é a fase de dissolução.
44
A parte do Diabo
N a l it er a t u r a , é a p e r e g r i n a ç ã o p r o p o s t a p o r D a n t e e m s u a obra magistral. Sem esquecer o logos spermaticos, a razão seminal de uma certa filosofia grega, ou ainda a fó rmula esotérica "vitriolum": visita interiora terrae rectificando
inv enies occultum lapidem veram m edicinam . É d epo is de
p e n e t r a r n o in t e r io r d a Te rr a q u e v a m o s e n c o n t r a r a p e d r a e sco n d i d a , v er d a d e ir o m e d i ca m e n t o . N e m m e s m o a t r a d i ção cristã ignora esta descida. Tem os, assim, a "ke n os e", ou s e j a , o r e b a i x a m e n t o d e D e u s n a e n c a r n a ç ã o e n a p a i x ã o do Cristo, que vai ele mesmo ao inferno antes de voltar a subir ao céu.
P o d e r í a m o s e n u m e r a r a qu i m u i t a s fo r m u l a çõ e s q u e e x pr essam esta du pla p olarid ad e'2. Talvez fosse o caso de d i zer "multipolaridade", tão claro parece que, ao con trário d e u m m o n o t e í sm o t r a n s ce n d e n t e — o d o c h efe , d o c ér e b r o , d o u r a n i a n o — , o s I n fe r n o s p r o p i ci a m u m p o li t eí s m o d e valores qu e se relativizam un s aos ou tros. Tem os, assim, o " s a c r u m " , n a b a s e d a c o l u n a v e r t e b r a l , e m n u m e r o s a s práticas orientais. Ou ainda o baixo-ventre, "Hara" entre os jap oneses, que garante a estabilidad e do corpo e p erm i t e u r n a c e n t r a ç ã o p o r b a i x o . ; P a r a t o d o s e s s e s t ó p i c o s , a t r a n s c e n d ê n c i a é d i f u s a , " t r a n s c e n d ê n c i a i m a n e n t e " . A o contrário das religiões monoteístas, nas quais Deus está a c i m a e a l é m d o h o m e m ( t r a n s c e n d e n t e ) , a s r e l i g i õ e s p oliteístas, as filosofias orienta is e o qu e eu ch a m o d e cu l t u ra p ó s -m o d e r n a co n s id e r a m q u e e xi st e em n ó s u m a p a r t e d e d e id a d e , q u e n ã o e st á a lé m d o h u m a n o , m a s fa z p a r t e d a n a t u r e z a h u m a n a — d a m e s m a f o r m a q u e o m a l , p o r