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GOMES A Condição Urbana

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Academic year: 2021

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O urbano tem sido objeto de interesse por parte dos geógrafos desde, pelo menos, os primeiros anos do século XX, consoante as profundas transformações, em curso, verificadas tanto no espaço urbano quanto na rede urbana. Tratava-se de registrar e interpretar aqueles impactos que o capitalismo industrial produziu nas velhas cidades européias e nas novas cidades americanas. O interesse foi crescente e marcado, como em outras áreas de interesse por parte dos geógrafos, pela adoção de muitas matrizes teórico-metodológicas que caracte-rizaram a geografia e as ciências sociais em geral. Uma perspectiva determinista foi incor-porada aos estudos da cidade. A influência da Escola de Chicago, de Robert Park, foi, e ainda é, muito grande. Um viés calcado no positi-vismo lógico, com seus modelos hipotético-dedutivos, marcou os estudos geográficos sobre o urbano. A análise crítica, fundada nas semi-nais contribuições de Henri Lefébvre, iria ampliar o interesse dos geógrafos sobre o urbano: os trabalhos de David Harvey e Edward Soja são expressões de grande cali-bre dessa influência.

Recentemente ainda, a partir de meados dos anos 70, os geógrafos incorporaram, em suas análises sobre o urbano, uma perspectiva que inclui as práticas socioespaciais e seus significados, envolvendo crenças, valores e intersubjetividades diversas, admitindo a coe-xistência de múltiplas espacialidades cons-1 ruídas, percebidas e vivenciadas por uma sllCÍl'dadc gue é fragmentada, estando longe de

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Do Autor:

Geografia e Modernidade

Paulo Cesar da Costa Gomes

-A CONDIÇ-AO URB-AN-A

ENSAIOS DE GEOPOlÍTICA

DA CIDADE

IB

BERTRAND BRASIL

(5)

Copyright © 2001 Paulo Cesar da Costa Gomes

Capa: Rodrigo Rodrigues

2002

Impresso no Brasil Printed in Brazil

CJP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FO'ITE SJ'IDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ

G616c Gomes, Paulo Cesar da Costa

A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade 1 Paulo Cesar da Costa Gomes. -Rio de Janeiro: Bcrtrand Brasil, 2002

304p.

Inclui bibliografia ISBN 85-286-0956-1

1. Espaço urbano - Rio de Janeiro (RJ). 2. Espaço urbano- Paris (França). 3. Geopolítica. L Título.

02-0406

Todos os direitos reservados pela:

EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.

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CDD-307.76 CDU-316.334 56

Tel.: (0xx21) 2585-2070- Fax: (0xx2l) 2585-2087

Não ·é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quais-quer me tos, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Atendemos pelo Reembolso Postal.

Apresentação 7

Introdução

11

SUMÁR

I

O

Primeira Parte

DUAS MATRIZES TERRITORIAIS:

NOMOESPAÇO E GENOESPAÇO

I.

O nomoespaço 31

Os espaços contratuais: Exemplos e dinâmicas 40

11.

O genoespaço 60

Quando a idéia da diferença funda um espaço

66

Ill. Os modelos políticos: Que lugares para a cidadania

moderna? O Estado, a Nação e os Estados-nações 81

IV

.

Os modelos sociológicos: Os espaços da civilização

ou territórios das culturas

102

V. Os limites metodológicos dos modelos de

nomoespaço e geuoespaço 113

O recurso às matrizes como modo de operação analítico

121

Segunda Parte

A APLICAÇÃO DAS MATRIZES AOS CASOS

VI. Cidadania e espaço público: O que a geografia

tem

a dizer?

129

Um olhar geográfico sobre o debate da cidadania moderna

141

A importância da dimensão física: Os espaços públicos 159

(6)

VII. O espaço público e as manifestações do recuo da cidadania 169

VIII.

IX.

A atual dinâmica do espaço público 176 A apropriação privada dos espaços comuns 176 A progressão das identidades ten-itoriais 180 O emuralhamento da vida social J 82

O crescimento das ilhas utópicas 186 O recuo da cidadania 188

Rio-Paris-Rio: Ida e volta com escalas 192 A ida: Das praias aos bulcvares ou dos arrastões

aos casseurs 192

As escalas ou como cada local mobiliza elementos de alcance diverso na compreensão de sua dinâmica 206 A volta: Uma territorialidade na praia 216

O futebol e sua dimensão estética: Entre a geopolítica da bola e a geopolítica dos torcedores 231

O f~tebol como metáfora de uma disputa territorial 234 A c1dade como metáfora do futebol 242

X. Viva o Quebec livre! Os paradoxos de uma democracia 252

Do tradicional ao moderno: Mudanças na escala territorial da identidade 255

O pós-moderno: Um novo contexto na Juta pela soberania? 262

Democracia e território: As lições do Canadá 265 Versões e contraversões: As diferentes leituras da diversidade socioterritorial 273

Os paradoxos de uma democracia 282 Últimas notas 287

Bibliografia citada 294

APRESENTAÇÃO

O que pode haver de comum entre ir à praia ou ao jogo de futebol, no Rio de Janeiro, as manifestações estudantis que ocorrem no Boulevard Beaumarchais, em Paris, ou a luta pela independência da Província do Quebec, no Canadá? O que poderia relacionar estes eventos com a discussão sobre a c ida-dania? O que estes assuntos, aparentemente tão díspares, podem conter de geográfico?

Nosso grande desafio é demonstrar que estes fenômenos, habitualmente tratados por especialistas de áreas muito diver-sas (cientistas políticos, historiadores, antropólogos, sociólo -gos etc.), possuem um componente comum e essencial: uma dinâmica espacial. Mais especificamente queremos trazer à tona um elemento que nos parece estrutural nestes fenômenos: a disputa territorial. Se lograrmos êxito nesta demonstração, teremos que concordar que, daqui por diante, estes temas merecem figurar na agenda da geografia.

Durante muito tempo predominou, e ainda hoje persiste, a idéia de que a geografia estaria fadada a produzir longos inven-tários descritivos de lugares -quando bem-feita, a obra geo-gráfica se confundia com um exercício de erudição; quando malfeita, o resultado se avizinhava à pura banalidade. Hoje, cada vez mais conscientemente, a geografia toma para si ares-ponsabilidade de produzir uma verdadeira interpretação dos fenômenos, por meio de uma inovadora análise espacial. Isto

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implica manter-se fiel ao compromisso de exprimir primor-dialmente a importância e o alcance da dimensão espacial nos fenômenos que ela estuda. Duas principais conseqüências deri-vam daí. Em primeiro lugar, a ordem espacial dos objetos e das práticas sociais passa a ser o elemento central desta análise, ou seja, a trama relaciona! das localizações

é

um dos elementos-chave na compreensão dos fenômenos. Em segundo lugar, esta ordem espacial, além de ser uma das condições básicas para a existência das práticas, é também concebida, simultaneamente, como portadora de sentidos, ou seja, esta análise espacial pode produzir uma interpretação original desses fenômenos.

Convém insistir no fato de que, por tratar-se de uma inter-pretação, alguns elementos e aspectos serão mais valorizados do que outros neste trabalho e, dessa forma, uma leitura sui

generis acena para a possibilidade de um verdadeiro diálogo interdisciplinar, mantendo-se, todavia, a identidade do olhar geográfico. Assim, reafirmamos aqui a intenção de somar, e não a de substituir. Em outras palavras, os princípios de coe-rência e lógica na dispersão das coisas sobre o espaço podem trazer à luz um novo ângulo para a compreensão de certas dinâ-micas sociais e constituem a contribuição propriamente geo-gráfica na análise dos fenômenos que habitualmente são estu-dados por áreas disciplinares vizinhas.

Voltando aos temas citados no início, como já o dissemos, o que há neles de constante, segundo o ponto de vista defendido aqui, é uma central valorização do papel da espacialidade no seio destes eventos e da capacidade que a análise desta dimen-são pode trazer para a compreensão de certas manifestações e características destes movimentos sociais. Assim, a questão do regionalismo ou do nacionalismo do Quebec é examinada sob a ótica dos desafios e dos impasses que uma identidade territorial pode criar quando se associa a um discurso que pretende obter legitimidade a partir da idéia de democracia ou de consulta popular. O futebol é visto como uma atividade que tira sua força

8

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da estetização do processo de luta e de domínio territorial e,

como tal, tende a se transformar em um veículo de referência para outras arenas de luta, fora do controle imposto pelas regras

que o limitam dentro do campo. Igualmente, a freqüência às praias do Rio de Janeiro e os recentes movimentos dos arrastões

são examinados como fenômenos territoriais, ou seja, como fru-tos de uma classificação das pessoas a partir do espaço que con-quistam e ocupam, ou ainda, pelas referências ao espaço de onde elas procedem. Assim, é-nos permitido aproximar esta dinâmica carioca de uma outra, esta parisiense, que também classifica e distingue os sujeitos pela sua procedência e delimita práticas diferenciadas sobre um espaço de luta, como no caso dos casseurs I infiltrados nas passeatas estudantis dos bule vares

da capital francesa. Finalmente, prosseguindo na apresentação do raciocínio que guia este livro, a cidadania é aqui concebida como algo que se traduz no cotidiano e nas ações mais habituais do cenário da vida pública, ou seja, onde há vida pública há dis -cussão e conflitos, que, de uma forma ou de outra, traduzem-se em uma disputa tenitorial. Dentro desta perspectiva, cidadania e democracia não podem ser pensadas sem refletirmos sobre a noção de espaço público e sobre as dinâmicas sociais que aí se desenvolvem.

Esperamos que os leitores se sintam interpelados e seduzi-dos a prosseguir a leitura após esta primeira e breve enunciação dos nossos propósitos. Para cada um destes exemplos, d edica-mos um capítulo, em que tentamos construir um quadro de ele-mentos que justificam a centralidade da dinâmica territorial. Escolhemos a forma de ensaio para trabalhar estes casos como uma estratégia para tornar a leitura mais agradável e dar auto no-mia ao leitor, que poderá optar livremente sobre a ordem ou

1 A tradução literal para esta expressão é "quebradores" e se aplica aos jovens pro~e­ nientes dos subúrbios parienses que promoveram um ceno número de saques às loJaS por ocasião das grandes manifestações estudantis ocorridas nos anos 90.

(8)

escolha dos capítulos a serem lidos. Eles são, no entanto, prece -didos por uma necessária discussão teórica geral em que figuram as matrize~_ epistemológicas desta reflexão e que dão o funda-mental suporte metodológico e analítico ao que se segue. Esperamos também que o prazer vivido ao longo da pesquisa que nos levou a estas "pequenas descobertas" esteja fielmente retratado nesta narrativa, para poder ser compartilhado com nos-sos eventuais leitores.2

2 Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq e, por meio de bolsas de Iniciação Ctentffica: permitiu que alunos de graduação em geogralia desenvolvessem alguns dos temas aqUJ apresentados em seus trdbalhos de monografia. O autor também estende os agradecimentos a todos os seus colegas professores do Dcpto. de Geografia da UFRJ

e aos alunos da Graduação e da Pôs-Graduação em Geografia da mesma instituição, asstm como aos alunos c professores da Universidade de La Rochelle, pelas renovadas

e instigantes discussões realizadas durante os cursos e seminários.

1

o

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INTRODUÇÃO

Três noções básicas estruturam toda a reflexão contida neste livro: teJTitório, política e cidade. Evitaremos a tentadora velei -datl.c de buscar nestas noções um sentido único, estabelecido de uma vez por todas, de forma definitiva. O interesse que nos move aqui é muito mais o de percorrer alguns dos temerádos acessos que podem existir entre elas ou, ainda de forma mais precisa, a tentativa é a de valodzar as zonas de sombreamento que existem na superposição e na interseção destas três noções. Aliás, esta intenção já está sinteticamente contida no título escolhido. A expressão "condição urbana" era utilizada na época do Império Romano para distinguir um estatuto próprio adquirido por um ce11o adensamento populacional, dotado de formas estritamente relacionadas à organização urbana: Jari, templos, e a orientação dos arruamentos, seguindo o cardo e o decumanus. Indissociável destas formas era a estrutura de poder, e as cidades constituíam simultaneamente sua sede, sua representação e a condição para o seu exercício. A concepção romana do poder o associava neces -sariamente a uma extensão física, um território, sobre a qual ele se organizava e se exprimia. A herança grega da polis, simult a-neamente forma física e fonna de organização social, foi, neste sentido, inteiramente reatualizada. Acrescentemos a isto o fato de que a divisão espa~ial é uma daSToiTiiãS maiSãntigas gue cõnheéemos de classificar as coisas, não apenas por seus atrib u-tc>s ou valores singulares, mas sobretudo por sua localização.

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Sem a pretensão de estabelecer uma definição acabada, um certo número de precisões parece ser necessário no uso da idéia de território, visto o seu largo emprego na geografia. Entende-mos aqui por territorializar o movimento de um agente titular no ato de presidir a lógica da distribuição de objetos sobre uma dada superfície e de, simultaneamente, controlar as dinâmicas que afetam as práticas sociais que aí terão lugar. O território é, pois, neste sentido, parte de urna extensão física do espaço, mobilizada como elemento decisivo no estabelecimento de um poder. Ele é assim uma parcela de um terreno utilizada como forma de expressão e exercício do controle sobre outrem. Por meio deste controle é possível a imposição das regras de acesso, de circulação e a normatização de usos, de atitudes e comporta-mentos sobre este espaço. Este controle do território é a expres

-são de um poder, ou seja, ele é aquilo que está em jogo em gran-de parte das disputas sociais, aí incluídas aquelas que disputam um direito à cidade. Finalmente, a territorialidade é vista aqui como o conjunto de estratégias, de ações, utilizadas para

estabe-lecer este poder, mantê-lo e reforçá-lo)

Por isso, ao contrário de muitos geógrafos, não acredita-mos que a noção de território se confunda com qualquer dimensão emotiva ou de identidade, pois estas já seriam parte de uma estratégia de tomada de controle.4 Tampouco, asseme-lhamos tout court a noção de território à idéia de apropriação, pois esta última pode ser construída a partir de múltiplos

veícu-los, imaginário, sentimentos, posse, propriedade, uso, sem que

3 Somos inteiramente tributários das reflexões sobre o tema desenvolvidas por Sack, R. The Human territoriality: lts cheory and history, Cambridge University Press, Cambridge, 1986.

4 Esta visão do território como definido pelo sentimento de identidade é uma das mais utilizadas pela geografia. Ver, por exemplo, Bailly, A. & Ferras, R. Éléments

d'épistémologie de la géograpl1ie, Armand Colin, Paris, 1997; e Raffestin, C. Por uma

geograjia do poder, Ed. Ática, São Paulo, 1993.

12

ftl]\

nenhum deles signifique sempre o exercício efetivo de um con-trole sobre os objetos e as práticas sociais que aí ocorrem.

Queremos dizer que a idéia de território traduz, ao m-esmo tempo, uma classificação que exclui e inclui; um exercício de gestão que é objeto de mecanismos de controle e de subversão; e uma qualificação do espaço que cria valores diferenciais, rede-finindo uma morfologia de cunho socioespacial. Estes pares-exclusão/inclusão, submissão/subversão, e valorização/desvalo-rização- criam tensões e resultam em lutas territoriais que alme-jam modificar seus limites, sua dinâmica, suas regras ou seus valores. Por isso, chamamos este fenômeno de geopolítica, ou seja, lutas que têm como objeto de disputa a busca pela afirma-ção de ufi.fiJÕderque étãmbérn a luta por um território.-A

esco-111ãdã._dênominãção "geopolítica urbana" se fez pelõ" fato de que esta luta se constrói dentro de um quadro restrito, ou melhor, a partir de uma certa estrutura que associa pessoas a uma forma física específica, a cidade. Estas pessoas, movidas por diferentes anseios e expectativas, estão reunidas sobre este terreno comum da cidade e aí desenvolvem relações orientadas e organizadas tenitorialmente. Como nos ensina Arendt, "a política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politica-mente para certas coisas em comum, essenciais num caos abso-luto, ou a partir do caos absoluto das diferenças".s A cidade exprime com eloqüência, em sua forma física e em sua dinâmi-ca, urna das modalidades fundamentais de "organização" destas diferenças; poderíamos mesmo dizer que esta é uma de suas condições fundadoras. Voltaremos à questão da definição de cidade; antes, entretanto, vejamos rapidamente dois exemplos.

Recentemente, em um documentário televisivo sobre os problemas dos direitos civis dos negros nos EUA, foram mos-tradas cenas e entrevistas que faziam alusão à violência que

s Arendt, Hannah. O que é política?, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1998, p. 21.

(10)

caracterizou as lutas raciais ocorridas na cidade de Chicago no final dos anos 50. O discurso dessa apresentação fazia apelo a

expressões diretamente inspiradas na imagem da guerra. Assim, palavras como invasão, ocupação, terra de ninguém, conquistas, avanços, zona limítrofe etc. foram utilizadas como material narrativo adequado para caracterizar esse movimento. O objeto central da discussão eram as lutas pelos direitos dos negros norte-americanos na cidade de Chicago, mas a forma da apresentação, ao valorizar a idéia de uma guerra, chamava indiretamente a atenção para um dos elementos estruturantes do evento: a disputa territorial. Havia estratégias espaciais de lado a lado: das organizações negras, cotizando-se para adqui-rir casas em bairros brancos; dos brancos, organizando barrei-ras físicas legais e manifestações para impedir o livre acesso dos negros a determinadas áreas. O problema dos negros na cidade de Chicago era em grande parte o do confinamento espacial no gueto, no qual eles deveriam permanecer margina-lizados do resto da cidade, assim como o eram da ordem social hegemônica. Na evolução dos acontecimentos, o conhecido

gueto negro extrapolou seus lirrútes, conquistou direito à cida-de, e uma nova geografia surgiu deste movimento. O poder público, representado sobretudo pela prefeitura, organizou pla-nos de deslocamento e assentamento das populações, contro-lou preços, e o setor sul da cidade passou a ser objeto de gran-des intervenções, após os incêndios e as depredações que lem-bravam claramente manobras de guerra.6

Atualmente, no Rio de Janeiro, com freqüência podemos ler nas manchetes dos jornais que a polícia "ocupou", "inva -diu" ou "fez um cerco"

à

favela. Este vocabulário nos revela

6 O confronto étnico/territorial na cidade de Chicago já havia inspirado, no primeiro quarto do século XX, a escola de sociologia urbana, conhecida como Escola de

Chitago, corrente pioneira em valorizar a idéia de disputa tetTitorial entre diferentes comunidades, muito embora a concepção de território ainda fosse largamente tributá-ria dos modelos ecológicos e, portanto, carregada de fortes tintas naturalizantes.

11,

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In los lx~stante interessantes. Ele nos indica que se trata de uma

·.tttt:t~ão de guerra entre territórios, por meio da qual se afirma 'l:tramcnte que estes espaços estariam submetidos a forças ltl'p.cmônicas diferentes: de um lado, a sociedade "legalmente" 'onslituída; de outro, um território controlado "informalmen-lt>" pela força ou pelo prestigio de grupos marginais. O fato rciL:vante aqui

é

apresentarmos esses relatos fazendo apelo a um raciocínio que se nutre da imagem de uma oposição entre dois territórios mutuamente excludentes, embora, em princ

i-pio, ambos

façamp;:rt~

e

-~on~tituam

aquilo que denominamos a cidade do Rio de Janeiro. Esta dualidade não existe apenas no discurso dos meios de comunicação; ela se manifesta como uma experiência vivida no cotidiano dos moradores e se traduz de várias formas) Uma delas se revela na expressão "favela-dos" e "moradores do asfalto". A pavimentação age aqui como símbolo da demarcação de territórios diferentes, e a fronteira l'ísica pretende delimitar formas diferentes de comportamentos espacial e social. Dessa maneira, a exclusão social deixa de ser apenas um estatuto abstrato; ela ganha a forma de um território. Estes dois exemplos poderiam ser multiplicados infinita-mente na demonstração do ponto de vista que será aqui susten-tado: a cidade é também, sem dúvida, um fenômeno de origem político-espacial, e a manifestação deste caráter se revela em sua dinâmica territorial.8 Em outros termos, a ordem espacial 7 Outra forma discursiva largamente utilizada para se referir às pessoas que habitam a favela é a denominação de "comunidade". De fato, esta categoria, que, à primeira vista, pode parecer simpática, pois confere um estatuto de grupo organizado e "harmô-nico" a estas pessoas, na verdade, age como um reforço da idéia de exclusão. na medi-da em que diferencia estas "comunidades" de uma sociedade urbana global que forma a cidade. A este respeito, ver também Souza, Marcelo L. O desafio metropolitano. Bertr.J.nd Brasil, Rio de Janeiro, 2000, p. 62.

8 Em seu ensaio sobre a cidade, Max Weber (La ville, ed. Aubier Montaignc, Paris. 1982), afirmava que o conceito de cidade é próprio da civilização ocidental, pois é fruto da simultaneidade histórica das regulamentações próprias a uma economia urba-na, associadas à afirmação de uma autoridade político-administrativa que reunia, em um mesmo território e sob uma mesma gestão, uma população sujeita às mesmas regras. A cidade para ele é, pois, ao mesmo tempo um fato econômico e uma relação polftica.

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da cidade, isto é, sua disposição física unida à sua dinâmica

sociocomportamental, são os elementos fundadores da

condi-ção urbana. A tal ponto isto é importante, que, ao procurarmos

uma definição para o fato urbano, podemos nos perder deta-lhando critérios que podem parecer para cada situação mais ou menos apropriados, mas não possuem a capacidade de abran-gência. Os autores que se debruçaram sobre este problema ten-dem a matizar sempre seus critérios e a admitir, por fim, que

nenhum deles é suficientemente capaz de recobrir o essencial

na idéia de cidade.9 O critério demográfico está entre os mais

freqüentes; entretanto, facilmente compreendemos que a sim-ples densidade de população não pode ser responsável pelo aparecimento da cidade. Além disso, ainda que saibamos que o

gradiente de densidade da ocupação populacional do espaço

varie enormemente, os limites que estabelecem os umbrais do

fenômeno urbano são obrigatoriamente arbitrários. lO

Em uma publicação multidisciplinar que pretende fazer um balanço dos estudos sobre a cidade e o urbano, o artigo

referente à contribuição dos geógrafos demonstra a perenidade

O papel precursor desta obra já foi, aliás, reconhecido por inúmeros comcntadores que se debruçaram sobre o mesmo tema. Ver, por exemplo, Cardoso, Fernando Henrique.

Autoritarismo e democratização, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1975, e McCrone, D. & Elliot, B. The Cily: Patterns ofdomiJtaliOil and conflicr. The McMillan Press, Londres, 1982. Para mais detalhes sobre as relações entre cidade e política no pensamento weberiano, consultar Bruhns, H. "La ville bourgeoise ct l'émergence du capitalisme moderne" in Lepetit, B e Topalov (di r.), La vi/le des sciences sociafes, Bel in, Paris. 2001, pp. 47-78.

9 Esta constatação é quase uma regra para todos aqueles autores que se confrontaram com o problema da generalização do fenômeno urbano, seja em sua extensão espacial, seja na história ou em ambas as dimensões, como, por exemplo, Bairoeh, Paul. De

Jéricho à Mexico. Vifles er économie dans l'histoire, Gallimard, Paris, 1985; Beaujeu Garnicr, J. Géographie urbaine, Armand Colin, Paris, 1980; Mumford, Lewis The Ciry in llisrory, Harcourt Brace & Co, Orlando, 1961; Bnwdcl, Fernand. Civilisarion maté -rielfe. économie et capiralisme, XV•-XVIII• siecle (capítulo "Les Villes"), Armand Colin, Paris, 1967; Duby. Gcorges, (dir.) Hi.stoire de la France urbaine, Seuil, Paris, 1 985; Roncayolo Mareei. La vii/e et ses terriroires, Gallimard, Paris, 1990, entre outros. lll Ver a este respeito a idéia de contimmm exposta em Catter, Harold. Study oj urban

gmgmphy. Arnold, Londres, 1973.

I G ,llflf\.

dl! uma tripla orientação que marca este campo da pesquisa na

grografia francesa.Jl Em primeiro plano, os trabalhos sobre a ridade foram concebidos como a descrição da morfologia de ruas e atividades, e esta orientação esteve sempre presente, seja nas grandes monografias urbanas, seja nos estudos mais sistemáticos que tendiam a concluir por uma tipologia da forma urbana. A segunda grande tendência é aquela que parte de um sistema de aglomerações, ou seja, concebe o fato

urba-no como um conjunto de cidades, e estas são vistas como ele-mentos de um território. Este segundo tipo de abordagem teve

como grande marco inicial o trabalho de Christaller sobre as

localidades centrais. Atualmente, ainda que os modelos sejam outros, como no caso de Pumain, que busca inspiração na teo-ria da auto-organização, continua-se a se procurar explicar e

mensurar a geometria do processo de urbanização e suas

prin-cipais inflexões, sendo a cidade tomada como unidade dentro de um processo mais geral, que é o verdadeiro objeto destas

pesquisas.12 Finalmente, uma terceira grande linha de

orienta-ção das pesquisas foi aquela de analizar a organização interna

das cidades. Este tipo de abordagem tem raízes antigas na geo-grafia e sofreu fortes influências, primeiro, do modelo

funcio-nalista e, em seguida, da escola de Chicago e das correntes da economia espacial de cunho neoclássico. Mais tarde, estes estudos agregaram também uma preocupação marxista e

desenvolveram a idéia de produção do espaço e de divisão ter-ritorial do trabalho urbano. Os fenômenos investigados, no

entanto, têm uma certa recorrência; dizem respeito à

segrega-t1 Lussault, Michel. « La ville des géographes » in Paquot, T. & Lussault M. Body -Gendrot (dir.) La vil/e et l'urbainl'état des savoirs, La Découverte, Paris, 2000, pp. 21-35.

12 A adoção de um modelo fundado na teoria da auto-organização é apresentada e jus -tificada pela própria Pumain como estudo da interdependência entre as cidades, ~m um breve artigo, "Le devenir des villt!S ella mod~lisation" Íl! Michaud, Yves (dtr.)

L'Université de ww;les savoirs. qu'est-ce que lasociété, Odile Jacob, Paris, 2000, pp.

l81·92.

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ção espacial, à funcionalidade ou à qualificação das diferentes pattes da cidade, e o que se procura fundamentalmente é inter-pretar o processo de organização e diferenciação do espaço no interior da cidade de forma mais ou menos classificatória.l3

Este quadro esboçado para a geografia urbana francesa bem poderia ser aplicado ao Brasil, e, tanto em um caso como no outro, só muito recentemente a geografia vem se mostrando mais sensível nestes estudos urbanos às representações institu-cionais no espaço aos verdadeiros sistemas de valores e qua-dros de referência que se exprimem por meio de imaginários complexos e diferenciados que têm uma importância funda-mental na definição da vivência urbana e de sua dimensão espacial. O que se pode concluir desta breve descrição é que só muito recentemente a tentação de tomar a morfologia como uma referência objetiva e a finalidade classificatória têm sido abandonadas pelos geógrafos.l4 As formas urbanas ganham assim outras dimensões, já não sendo associadas de maneira unívoca a uma atividade ou função. O comportamento, dinâ-mico e mutável, dos atores sociais é considerado de forma rele-vante, e surge

tod~ ga~a

de problemas e de

~~qualifica­

ções do espaço, estranhas ao modelo das tip?logias tradicio-nais. Este tipo de abordagem obriga também os geógrafos a uma colaboração mais estreita com profissionais de outras

dis-ciplinas que também vêm estudando o fenômeno urbano:

arquitetos, sociólogos, antroprólogos e historiadores.

13 Uma exceção dentro deste quadro foi o hvm de Clava!, Paul. La logique des villes, Litec, Paris, 1982, em que a cidade é concebida como o lugar de maximização das inte-rações sociais.

14 Uma contribuição decisiva neste sentido tem sido dada nos últimos anos pela assim

chamada "nova geografia cultural", e dois exemplos significativos destas novas orien-tações dos trabalhos sobre o urbano são Cosgrove, D. Tlle pal/adian /andscape: Environmentaltransformations and its cultural representatiollS and renais~·ance ltaly,

Leiccster University Press, Leicester, 1992, e Duncan, J. "The city as a text: The poli te of Jandscape interpretation", in The Kandian Kingdom, Cambridge Uoiversity Press, Cambridgc, 1990.

18

)1f1J\

A <:idade não pode, pois, ser concebida como uma forma

qtw ~t· produz simplesmente pela contigüidade das moradias ou JWitl ~in1ples adensamento de população; ela é, antes de

qual-qtlct rllis;l, um tipo de associação entre as pessoas, associação

t'"'"

que é uma forma física e um conteúdo.l5 Muitas vezes,

qtt.ltHio C\Ludamos a cidade parece que nos referimos a uma

evi-dl'tK·ia que se apresenta direta e inteiramente formada diante dos

11ossos oll1os. Trabalhamos com critérios de densidade ou com h111i les administrativos, como se estes não fossem passíveis de

st·r submelidos a uma análise lógica que, em última instância, ptldcria nos conduzir a questionar a idéia do que é uma cidade.

Por isso, cometemos freqüentemente o equívoco de

consi-derar o fato urbano sob o ângulo único de uma morfologia. A

l'volução urbana é concebida como a transformação ou a

pro-gressão simples da forma urbana, e assim nos oferecemos o

conforto de trabalhar com uma categolia descontextualizada e trans-histórica. Ao assim fazê-lo, perdemos em contrapartida a

capacidade de compreender o conteúdo desta morfologia ou,

em outras palavras, escapa-nos a idéia mesmo de vida urbana. Freqüentemente, falamos de formas que parecem perma-nentes no tempo: de praças, por exemplo, espaços abertos entre o casaria, espaços estes que podem ser encontrados desde a Antigüidade até os dias atuais. Ao assim procedermos, esta-mos abdicando da análise que nos mostraria a verdadeira dia-lética entre espaço e sociedade. Para insistir no mesmo exem-plo, basta ver que uma mesma cidade contemporânea dispõe de diversas praças, nem todas apresentando as mesmas

dinâmi-cas sociais ou o mesmo conteúdo. A cidade é uma forma necessária a um certo gênero de associação humana, e suas mudanças morfológicas são condições para que esta

associa-15 Ninguém melhor do que Milton Santos exprime a importância desta relação para a

compreensão dos processos estudados pela geografia. Ver, por exemplo, A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoçüo, Hucitec, São Paulo, 1996.

(13)

ção se transforme. Assim, uma análise geográfica do espaço urbano deve imperativamente ser nutrida da disposição loca-cional dos objetos espaciais confrontados com o comporta-mento social que aí tem lugar.

Se este é o caso, o caminho mais apropriado parece ser o de reconhecer, para cada situação estudada na evolução urba-na, os fatores que historicamente geraram estas unidades físi-cas e sociais.l6 Polis, urbes, burgo, cidade e metrópole são diferentes denominações para diferentes coisas. Parecidas entre si, por vezes somos tentados a ver nessa evolução a sim-ples progressão dessa forma de adensamento. Erramos. Cada tipo de associação criou na história formas físicas e comporta-mentos distintos. Ao tecermos um mesmo fio lógico, estamos de fato diminuindo a coerência que a dinâmica deste aden sa-mento possuía a cada momento.l7 Isto não quer dizer que não existam analogias e relações evolutivas entre elas, mas estas só podem ser estabelecidas

à

medida que vislumbrarmos a intera

-ção necessária que existe, a cada momento histórico, entre a morfologia urbana e o conteúdo comportamentaJ.I8

Não é, pois, fortuito o fato de que diversos sistemas de com-portamento tenham raízes etimológicas que remetem às deno-núnações que caracterizaram, em momentos diferentes, a forma urbana: cidadania, civilidade, polidez, cortesia, urbanidade.

16 Há muitas rcfcrencias bibliográficas que recobrem este tema, entre as mais conheci· das e utilizadas aqui estão, entre outras: Bairoch, P. De Jéricho à Mexico. Villes et éco·

nomie dans l'histoire, Gallimard. Paris, 1985; Benevolo, L. História da cidade, Perspectiva, São Paulo, 1983; Harouel, Jean-Louis. História do urbanismo, Papirus, São Paulo, 1990; Lavedan, P. Hístoire de /'urbanisme, Paris, 1926; Mumford, Lewis.

Tfze City in His10ry, Harcourt Brace & Co, Orlando, 1961.

17 Um exemplo atual: os tempos pós-modernos inspiram, pela concepção de mosaicos, de pequenas narrativas, a idéia frequentemente utilizada de "aglomeração", que tende a substituir a expressão grande cidade.

IB Mais uma vez, Milton Santos foi um dos pioneiros a demonstrar o ritmo diferente

das transformações nas formas físicas, em função mesmo da resistência material delas em relação às transformações de conteúdo. Ver, por exemplo, Espaço e método,

Nobel, São Paulo, 1985.

20

;ú1f\

h tas denominações correspondem a conjuntos comportamen-l.lls :1ssociados a idéias que se desenvolveram a partir de

dife-lt'tlll's concepções da cidade. Tudo muda, a forma física, sua

t•-,t r111 ura, seus valores, sua dinâmica, também as práticas

'•t ll'Íil is, os usos, a estrutura de poder e prestígio social etc. O que

pnmanece? A relação dialética entre território e política, erigi-da em um ideal de um determinado desenho físico e de uma

dada arquitetura social. Utopia ·política, utopia urbana; estas

i1nagens sempre se confundiram. Produto de sonhos de

perfei-\ao confrontados com a realidade dialética entre organização política e dinâmica territorial, a história nos legou diferentes

simulacros reunidos nesta entidade particular chamada cidade. Em um dos livros de G. Balandier há um capítulo intitulado

"o poder em algum lugar."l9 Nesse texto o autor enfatiza a 11ccessidade de reconhecer na dinâmica do poder mais do que a "des~rição, a identificação e a classificação das formas

políti-cas; o estudo das funções, dos 'personagens', das práticas e das representações; a interpretação das formas de controle social e dos conflitos; a relação do poder com o parentesco, com a estra-tificação social, com a religião e com o direito". Infelizmente, as formas simbólicas do imaginário político preconizadas como renovadoras do estudo sobre a natureza do poder, mais uma vez, tocam apenas tangencialmente o território, embora o autor

admita que "a relação com a terra é tão valorizada, que o poder

é indissociável de um território, de um espaço político". Acredi-tamos, modestamente, que a geografia tem condições de de-monstrar que as práticas e representações do poder têm uma incontornável dimensão espacial e que as formas de controle social e do direito se situam em uma posição de dependência direta em relação às disposições territoriais. Esta é a tarefa que nos damos aqui, o desafio ao qual nos lançamos agora.

19 Balandier, G. O contorno: Poder e modernidade, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1997.

(14)

PRIMEIRA

PARTE

Duas matrizes

territoriais:

(15)

1 imtaríamos de introduzir este tema com uma discussão

Jlll 11m. parece básica para a definição do alcance e das possi-ltllitl.tlks de um campo de pesquisas propriamente geográfico:

" 111)'111' da reflexão espacial, suas propriedades, sua importân -' 11 1' Mia colaboração dentro do domínio das ciências sociais.

1 llltlils vezes, temos lido, em textos de origens diversas, a de-lj'llill,;iio de "condições geográficas", sendo utilizada para des -' ll ver os elementos morfológicos e ambientai:> de uma certa

llll';l. Dentro deste quadro, estas "condições" são vistas como

, ,plit.:ativas, quando não determinantes, de certos aspectos so-l lil is. Parece, assim, que a geografia pode contribuir apenas

1 lllll a descrição do quadro físico no qual são estudados os ll'ltômenos sociais e que a única relação possível entre esses dumínios

é

aquela que estabelece uma relação simplista de cklcrminação entre eles.2o

Paralelamente, nos propósitos gerais dos geógrafos, perce-l1emos uma pretensão muito diversa, que é a de demonstrar, por L"xcmplo, como o espaço constitui um elemento ativo na organi-/ação social, ou seja, que ele é de forma simultânea agente e

!U Um dos últimos exemplos é o livro de Landes, David S. Tl!e wealth and poverty oj

nations. Why some are so rirh and some so poor, W. W. Norton & Co., New York, 1998, que aliás recebeu de Souza, Marcelo L. um comentário crítico a propósito des -sas teses um pouco simplificadoras sobre as "condições geográficas", Rev. Turit6rio, ll. 8,1998,pp.l05-9.

(16)

paciente nessa dinâmica. Desse descompasso, podemos tirar duas hipóteses. A primeira diria respeito ao problema de comunicação ou de diálogo entre a geografia e as demais ciên-cias sociais, no qual as responsabilidades são divididas, ou seja, os geógrafos não conseguem, em sua maior parte,

desper-tar o interesse dos colegas de outros domínios sobre os temas

realmente discutidos pela geografia contemporânea;21 a

segun-da hipótese é a de que estes outros campos disciplinares ainda não conseguiram atentar para a importante contribuição de uma verdadeira análise espacial na compreensão dos

proble-mas sociais.22

Nenhuma das duas parece inteiramente satisfatória. Sem fazer do espaço uma categoria central dos seus estudos, a antropologia, por exemplo, tem, já ao longo de muitos anos, valorizado esse ângulo como tendo uma dimensão

fundamen-tal na compreensão de certos processos sociais. Um dos

exem-plos mais eloqüentes é o de Claude Lévi-Strauss, que, ao estu-dar os sistemas de parentesco ou a estrutura social de algumas

sociedades concretas, mostrou que a composição espacial não

corresponde simplesmente à imagem de uma sociedade, seu reflexo rebatido sobre o plano da extensão, mas também que

essa composição é produtora de sistemas sociais, uma de suas causas. Mas parece que Lévi-Strauss não é um grande leitor da bibliografia geográfica, e, infelizmente, os geógrafos

tampou-21 Um exemplo eloqüente é o de Pierre Bourdieu, que, a despeito do seu exemplar estu-do sobre a casa Kabilia ("La maison ou le monde renversé" in Esquisse d'une théorie de la pratique, Seuil, Paris, [1972], 2000), em que demonstra a impo11ância estrutural

da dimensão espacial no quadro da vida social, manifestou-se frontalmente contra a

manutenção da geografia nos currículos escolares sob a argumentação de que esta nunca havia demonstrado seu possível estatuto científico.

22 De fato, esse não é o caso de muitos cientistas sociais de grande renome, entre eles Fernand Braudel, Michel Foucault, Henri Lefebvre, Artthony Giddens, entre outros,

para quem a dimensão espacial teve sempre uma importância primordial na compreen-são elos processos sociais. Infelizmente, na valorização de suas obras tem prevalecido

a apreciação de outros aspectos, e a centralidade da análise espacial nas ciências

sociais ainda não se nutre de muitos seguidores.

2 G

,1\Jlfl.

.._

tlt p,llt't t'lll inclinados à leitura dos textos antropológicos, e

'1111'1 p• '~'I v eis pontes ficaram mais ou menos desertas. I 111 11111 outro livro consagrado à antropologia, parte-se de

til li 1 lt ""l' d~.: Gcorges Perec, para se chegar a propósitos muito

p11• llllll:o. dos que aqui estamos definindo como um campo de 111 ·'itll~a~ geográfico:

Mudar o lugar de uma praça é mudar na cidade ou mudar de

t'rdade'! E o que é uma cidade? Lugar de uma coisa, lugares de nlisas em um conjunto que as contém, lugar de um conjunto, lugares destes conjuntos; relações entre as coisas, entre lugares

das coisas, entre os conjuntos que os contêm; lugares de pessoas, rl'lações de pessoas com as coisas, com os lugares das coisas.

eutrc elas, entre seus lugares, com os conjuntos que os contêm, representações destes lugares, destes conjuntos e de suas

rela-çoes etc.23

Ao que parece, essas complexas interações entre lugares,

ruisas, pessoas e comportamentos só podem ser analisadas se IIJ<tntivermos em sua base uma visão dialética, em suas mais v;triadas combinações, ou seja, evitando-se tomá-las como se

\'stivessem simplesmente dispostas em um círculo de determi-IJaÇões.24 A tarefa não é simples.

Na famosa querela que opunha os marxistas "althuss e-ri<mos" aos "historicistas", um elemento fundamental da con-trovérsia era o estatuto de independência do espaço.2s Para os assim chamados historicistas, o espaço é uma "instância" onto-lógica, no mesmo patamar do capital e do trabalho, ou seja, a

~· Paul-Lévy, F. & Segaud. M. Anthropologie de /'espace, collection Alors, Centre Gcorges Pompidou, Paris, 1983, p. 19.

1~ Notemos o paralelismo desses propósitos com aqueles defendidos por Santos,

~ilton como definidores de um campo de pesquisas geográfico, em A 11atureza do espaço. Técnica e tempo. razüo e emoçüo, Hucitec, São Paulo, 1996.

25 Os termos desse debate são muito bem apresentados por Gottdicncr, Mark, A produ· çcio do espaço urbano, Edusp, São Paulo, 1993.

(17)

forma espacial é parte do processo de reprodução social. Para

Lefebvre. por exemplo, há um espaço de consumo. mas há

simultaneamente um consumo do espaço, ou seja, o espaço também

é

propriamente um objeto de consumo. As relações socioespaciais estão presentes no modo de produção e o espa-ço atua, simultaneamente, como produtor e como produto, como relação e como objeto.26 Esta posição é contrária àquela,

exemplificada por M. Castells, que concebe o espaço como

uma unidade específica onde atua a articulação geral das ins-tâncias (econômica, política e ideológica), ou seja, onde a

forma espacial, neste caso o urbano,

é

um subsistema

comprá-ticas análogas às do sistema estrutural; ele é assim uma unida-de particular onde se reproduz a força de trabalho.27

A repercussão desse debate na geografia não foi tão grande,

muito embora devamos admitir que a obra de Lefebvre tenha sido muito bem recebida por parte de alguns geógrafos que nela

encontraram efetivamente a afirmação da independência de um campo analítico para o espaço e, p01tanto, um estatuto episte-mológico novo para a geografia. No geral, no entanto, a dia léti-ca na geografia parece ter tido um emprego quase sempre

bas-tante limitado.

Ela foi utilizada como uma simples extensão das catego-rias tradicionais do discurso marxista elevadas a parâmetros essenciais: lutas de classe/segregação espacial, acumulação de

capital/divisão territorial do trabalho, produção do espaço/ reprodução social. A dialética foi ainda mais amplamente

re-clamada na idéia de um espaço geográfico, fruto da relação

en-tre natureza e sociedade. No caso dessa imagem, no entanto, essas categorias foram comumente tomadas como dados,

coi-sas, e não como construções históricas, e fatalmente se costu-.

26 Lefebvre, H. Laproduction de I' espace, Anlhropos, Paris, 1975.

21 Para uma apreciação crítica desse debate fundada sobre um estudo de caso ver, por

exemplo, Santos, Carlos Nelson F. Movimenros soriais urbanos no Rio de Janeiro, Zahar ed., Rio de Janeiro, 1981.

28

)lf1J\

111 t\'H cair na armadilha de um espaço sobredeterminado so-l I tltlll'llh.!, ou para simplificar, a cada modo de produção cor-' L pnndl'ria um espaço-tipo.

< 'ntamcnte, essa concepção

é

mais um sintoma da doença

• 111p111sta que existe latente na geografia, e que, de vez em

quan-tln. dl'llagra um novo surto de febre morfológica, impondo seus

t .p11s111Údicos acessos de razão classificatória.28 A despeito

tl

ll

.

l

n,

u dialética pode nos ajudar a compreender conceitos que .t t•xprimcm por meio de jogos de oposições e confrontos, tais

1 tlllll • os de moderno e tradicional, de novo e velho, de público e Jlllvauo, de relações contratuais e relações contextuais e, sobre-ltltl( 1, de forma e conteúdo.

É

dentro dessa perspectiva que tentaremos trabalhar aqui,

''"piorando as possibilidades desses jogos de confronto. Ao lado d.ts categorias já consagradas, propomos duas outras, que. acre-dilamos, são formas propriamente geográficas de pensar o espa-\'O em relação direta com a sociedade, e, por isso, chamamo-nas de matrizes. Nesse sentido, o significado de matriz

é

aquele dado pela matemática, de um quadro de relações entre n colunas e p

linhas. Podemos, todavia, acrescentar que uma segunda

signifi-cação vem se somar à primeira, esta de ordem técnica, como de uma forma que serve para reproduzir uma certa marca sobre um objeto submetido à sua ação. Acreditamos assim que as caracte-rísticas contidas nessas duas matrizes constituem marcas durá-veis, profundas e distintas de conceber e de viver o espaço, e resultam em modelos igualmente distintos de refletir sobre a

dimensão política do espaço; por conseguinte, de escrever uma

geografia política. Pretendemos, assim, criar as condições para 28 Groethuysen nota com propriedade que esse comportamento classiftcatório é caro à época de nascimento do "gênio burguês" e sua obsessão pelos museus, coleçôes, jar-dins botânicos e zoológicos; todo um momento de valorização da nomenclatura que procura reunir parte da dispersão em um pequeno mundo construído e ordenado. A geografia moderna é filha desse momento, e por isso, talvez, um dos grandes projetos que mobilizou grandes nomes foi o de escrever uma geografia universal, espécie de catálogo de toda a diversidade contida no mundo. Groethuysen, B. Philosophie de la révolutionjrançaise, Gallimard, Paris, 1956.

(18)

um diálogo explícito com outros domínios das ciências sociais que trabalharam o mesmo campo da política sob outros ângulos preferenciais: a antropologia, a história, a sociologia e, propria -mente, a ciência política.

Para dar início a essa reflexão, suponhamos, por um ins -tante, que haja apenas esses dois modelos fundamentais e excludentes de relação entre um grupo de pessoas e o território onde vivem: o nomoespaço e o genoespaço.

30

)lflJ\.

I

- O

nomoespaço

N.t

p1

imcira forma, essa relação da sociedade com o espa -1" p11·ssupõc a existência de indivíduos, ou seja, unidades

11111\lllllllaS, com variadas gamas e níveis de expectativas, inte

-" ,,, ... , pmpostas e práticas sociais. As diferenças entre esses 111rllvld11os são, em princípio, infinitas, e os únicos fundamen -,,,., ,., 1111lll1S são a consciência da diversidade e a crença de que

1 11 ,•,nciação dessas diferenças pode ser a estratégia mais ade -q11.1d.1 para se ter êxito na realização de seus interesses, tanto ll'llll'll:s que são gerais quanto os particulares a cada um. Para

, ''"segui-lo,

é

necessário que se estabeleçam bases formais

lfl",sa associação, contratos que limitem, coíbam e punam

cer-111~ ar itudes em nome do equilíbrio do conjunto. Ao mesmo

,

,

.,,,po,

essa associação deve garantir, resguardar e proteger

dl'lerminados direitos e liberdades que constituem os maiores

lll'ncfícios supostos nessa cooperação.

A forma de traçar um limite entre o condenável e o d esejá-vl'l-entre o que deve ser objeto de coerção e a garantia dos

di-tl'itos-é a criação de um código de normas para regular, de

lnrma estável, geral e lógica, a dinâmica social. Daqui por

diante, chamaremos simplesmente esse conjunto de regras de

lei. A palavra latina para direito é jus, o mesmo radical que de-' i vou em justiça, aplicação objetiva de normas sociais preve

n-tivas e punitivas feitas em nome do bem comum. A diferença

entre o que é legal e o que é justo constitui matéria de amplo debate nas ciências jurídicas, mas o direito ou a lei, dentro de

(19)

..

um sistema social fundado na lógica, sempre tem como princi-pal justificativa para sua existência e seu exercício o princípio de justiça.

Como se trata de uma associação entre indivíduos, com variados graus de investimento e interesses, com uma variada capacidade de julgamento e de adesão a esse conjunto, a lei pretende ser a garantia dos limites da liberdade comportamen-tal dentro de um espectro de atitudes possíveis e plausíveis ao conjunto das pessoas.

Compattilhamos da crença de que essa forma de sociedade

tem como elemento fundamental de regulação e de

ordenamen-to a disposição espacial, ou seja, a lei se exprime pela forma como as coisas estão organizadas e distlibuídas no território segundo uma coerência formal que é lógica e deve atender aos preceitos estabelecidos pela idéia geral, e um tanto quanto vaga, de equilíbrio entre o bem comum e as liberdades individuais.29 Esses limites entre os princípios gerais coercitivos que devem se justificar pela idéia de bem comum e o domínio da liberdade individual são um dos temas recorrentes entre os teórico~ que se debruçaram sobre a justiça social no seio dos Estados modernos. Para Jean-Jacques Rousseau, a lei é a expressão de uma unanimidade consensual, estabelecida e justificada pela racio-nalidade, que pode ser resumida na fórmula da ''vontade geral". Assim, para ele, "a obediência à lei prescrita por nós mesmos é Iiberdade".30 Para Hobbes, a tensão entre a dimensão humana, natural, e a cidadã, nascida de um pacto social, só pode ser paci-ficada pela aceitação de alguns princípios fundamentais de obe-diência: "A obediência e a liberdade são contrários rígidos."3l

29 Maquiavel já propunha a concepção do território como um fator essencial na dura-bilidade da lei.

JO Rousseau, Jean-Jacques, Discours sur /'origine et les fondeme/1/s de l'inegalité parmi les hommes, Gallimard, Paris (1755), 1964, p. 365.

31 Mannet, Pierre. "Thomas Hobbes" in Dicionário das obras poUticas, Chatelet, F.;

Duhamel, O.; Pisier, E. (org.), Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1993, p. 497. 32

)lJ1f\

1\~sitn, a liberdade é tanto maior quanto for a ausência de obs-l.tt tdos c entraves para realizarmos nossa vontade.

Mais recentemente, Isaiah Berlin, ao examinar as perspecti-\ us desses autores, desenvolveu uma concepção que opõe dois tlpns de Liberdade. Uma liberdade negativa, definida pela sim-pll-s ausência de obstáculos, e uma liberdade positiva, estabele-t ltl:i pela disponibilidade de meios para realizarmos certas

11\tll.'S, sendo esta disponibilidade a condição primeira para uma

Vl'tdadeira autonomia.32 Ele reagiu assim contra os regimes ;HtloritáJios, que confundem muito facilmente a vontade geral

1 tllll

a

vontade indivjdual, posição rousseauniana, e

simultanea-tllt'ntc contra a justificativa do absolutismo hobbesiano. Sua cri-ltra se estende da mesma maneira contra o excessivo

laissez-foire liberal que, de Locke a Stuart Mill, na Inglaterra, e de < 'nnstant a Tocqueville, na França, pretende que possa existir ullla efetiva liberdade quando sabemos que os meios disponí-wis para o seu exercício não são de forma alguma distribuídos 'I'Ualmente.33

O

fato fundamental para nós nessa discussão é que as dife-ll'ntes compreensões do estatuto desejável para a liberdade ciL·I"inem limites diversos de esferas de poder e de autonomia l'tltre o Estado e os indivíduos, e que estas esferas correspon-dem a limites físicos, espaciais e comportamentais entre um domínio público e um domínio privado.

'-'Essa idéia de liberdade positiva, em grande parte, tem justificado a chamada

polfti-L"H da discrimina,·ão posiriva nos EUA, pois, na medida em que a liberdade de um grupo foi violada por outro, este último tem o direito de receber dos responsáveis por

essa violação um ressarcimento que recolocará o primeiw grupo novamente em pos

i-o;ilo de conquistar uma autonomia.

11 Para maiores esclarecimentos e detalhes sobre esse ponto, sugerimos a leitura do

livro de Berlin, Isaiah, F ou r essays onliberty, Oxford University Press, Oxford, 1969,

especialmente o capftulo III, "Duas concepções da liberdade". Para um ponto de vista crítico, ver também: Miller, David, Liberty, Oxford University Press, Oxford, 1991 .

(20)

A lei, como convenção que é, pressupõe limites físicos para seu vigor e extensão, extensão esta que é também

coinci-dente com os limites da efetividade do poder que as

promul-gou: "O território [um dos três elementos constitutivos do Estado moderno] torna-se o limite da validade espacial do

direito do Estado, no sentido em que as normas jurídicas ema-nadas do poder soberano valem apenas dentro de determiema-nadas

fronteiras."34 Assim, a instituição da lei diferencia espaços à

medida que exclui aqueles que não são por ela atingidos; então, cria e formaliza territórios de inclusão e de exclusão social. No

interior do tenitório no qual se aplica, no entanto, ela é equâni-me; em outras palavras, o espaço sobre o qual se projeta a lei é composto de equivalências, ou seja, ainda que materialmente

diferente, esse espaço deve ser visto, sob o ponto de vista do

direito, como o terreno abstrato de uma isonomia.

Nós estamos acostumados a entender lei e direito no sentido dos

dez mandamentos, enquanto mandamentos e proibições, cujo único sentido consiste em que eles exigem obediência e que

dei-xamos cair no esquecimento, com facilidade, o caráter espacial

original da lei. Toda lei cria, antes de mais nada, um espaço onde ela vale, e esse espaço é o mundo onde podemos mover-nos em

liberdade. O que está fora desse espaço está sem lei e, falando

com exatidão, sem mundo; no sentido do convívio humano, é

um deserto.35

Uma conseqüência direta disso é que os limites desse terri-tório são precisos, tanto globalmente como nas diversas hierar-quias em que se subdividem a administração e a gestão dessas

34 Bobbio, Norberto. Estado, governo, sociedade: Para uma teoria geral da polftica,

Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992, p. 94.

35 Arendt, H. O que é a política?, op. cit., p. 123.

h 1111~ A~. arcas de fronteiras não têm transição; são linhas ela-" ' 1 dl'tllarc..:ad<~s com precisão e rigor.36 Heráclito comparava " ' "" ltlt~·ao das muralhas urbanas ao estabelecimento das leis

11 llllll'l:bia como processos correlatos à criação de uma

ld 11h· I Jma polis definia-se assim, para ele, como a fronteira

.t,,

,

t1111ms c de suas leis.

A lei é a circunvalação-fronteira produzida e feita por um homem, dl'lllro da qual nasce então o espaço da verdadeira coisa política,

1•11de muitos se movem livremente. Por isso, Platão invoca Zeus,

t 1 protetor das fronteiras e dos marcos, antes de pôr mãos à obra e JIHimulgar suas leis para uma cidade recém-fundada.37

lpwlmente, o exemplo romano, que formalizou a idéia do dtll'tlo e da lei, é, também nesse caso, bastante eloqüente e, t.l'}'.lllldo Moatti,

a história romana começa sob o reino da obsessão dos confins

( ... ).Delimitar, marcar seu território: tal é a dinâmica da

funda-~ão da cidade- e de toda cidade. Tal é igualmente o da conquis-ta: a de terras e sua organização, a redistribuição da propriedade,

acompanham-se de uma divisão do solo e de uma delimitação das parcelas, necessitando de instrumentos de medida iguais e precisos e, sob o Império, é pela organização defensiva das fron-teiras que se encontram garantidas a integridade e segurança do Império. Centuriation e limitatio, pomerium e limes, eis aí as

.16 São conhecidos os diversos estratagemas (transporte dentro de cestos. disfarces etc.) ulilizados pelos romanos para transpor as muralhas da cidade e, assim liberados das leis e das penas, podiam dar livre curso a ações que eram condenadas dentro dos limi-lcs da ~idade, sem prejuízo dos ideais da dignidade e da virtude, sempre tão valoriza-dos na cidade. Neste exemplo é muito clara a estrita coincidência entre os limites fis i-cos e os limites da transgressão que marcam esta idéia de nomoespaço. Ver a esse res-peito, Veyne, Paul, "L'Empire romain" in llisiOire de la vie privée, Ariês, P. & Duby,

G. (dir.), Seuil, Paris, !999, I'Oll, pp 17-214.

37 Arcndt, Hannah. O que é a política?, op. cit., p. 1!4.

(21)

formas romanas de organização do território. A propriedade pri-vada, a cidade e o Império devem estar circunscritos e rigorosa-mente definidos.38

Vemos nessa descrição como a delimitação espacial é so li-dária e está associada à organização social. Poderíamos mesmo dizer que essa "obsessão" de delimitar, denominar, classificar,

em suma, ordenar o território, é uma condição fundadora do fenômeno social. Quando comparamos o comentário acima

com a observação de um outro historiador, especialista da Idade Média - segundo o qual, "os limites feudais desespera-ram durante muito tempo os medievistas. Eles os viam tão mutáveis, tão complexos, tão imprecisos, que se recusavam mesmo a descrevê-los e a desenhá-los" -, percebemos a rele-vância desse processo de delimitação e classificação normati-va do território como definidora de uma dinâmica própria e singular que estamos chamando aqui de nomoespaço.39

Percebemos também quanto essa relação pode se apresentar de forma diferente e resultar em outras dinâmicas quando este processo não tem o mesmo curso, como é o caso majoritário na organização da sociedade medieval.

As pessoas que transitam por esse espaço normatizado,

entretanto, nem sempre são objeto da mesma lei que rege o

conjunto associativo, ou seja, há maneiras também

regulamen-tares de distinguir os compromissos formais, as normas que regem os direitos e os deveres, de indivíduos diferentemente

associados ao espaço. Em Roma, por exemplo, distinguia-se o

jus civitatis, direito composto de normas referentes apenas

àqueles que detinham a cidadania, ou o direito à cidade, do jus gentium ou jus peregrini, concernente aos homens livres

não-JB Moatti, Claude. Archives et panage de la terre dans /e monde romain, École Françaisc de Rome, Paris, 1993, p. 3.

39 Guenée, Bernard. << Des limites féodales aux frontieres polítiques ''• in Nora, Pierre (di r.) Les /ieu.x de mémoire, Gallimard, Paris, 1997, pp. 1.103-46.

3G

.

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\

1 ulndãos que também habitavam ou transitavam pelos domí-llllls do Império.

Segundo essa compreensão, o direito à cidade é próprio a

1 mla povo e denota o domínio de um certo grupo sobre um ter-• 110rio onde ele desfruta de privilégios e direitos superiores aos

doqucles que não têm compromisso com a reprodução das

rela-\'t)l.lS formais e da manutenção do controle social sobre esse ter-1 i tório. Da mesma forma, o acesso de elementos estranhos à associação fundada nesse espaço é também objeto de regula-llle!ltações e coerção, tudo isso sob a perspectiva da

preserva-\':lo do bem comum dos membros privilegiados, signatários do

ronlrato social original e emanados das leis que regem esse

lerritório.

Dentro dessa maneira de se relacionar com o espaço, é

m:cessário constatar que cada unidade territorial interior, ou

subdivisão do conjunto global, corresponde a competências, l'unções e esferas bem-delimitadas com atributos e práticas

diferentes. O espaço é hierarquizado, assim como os poderes

que sobre ele são exercidos. Sua estrutura é complexa, assim

como o são as disposições formais (da lei) que o regem e

con-trolam sua dinâmica. A esse tipo de relação social com o

terri-tório demos o nome de nomoespaço, ou seja, uma extensão

física, limitada, instituída e regida pela lei. Trata-se de um

espaço definido por uma associação de indivíduos, unidos

pelos laços de solidariedade de interesses comuns e próprios, e

pela aceitação e aplicação de certos princípios logicamente justificados.

Idealmente, esse espaço define um limite de adesão

volun-tária. Nesse sentido, trata-se hipoteticamente de um espaço inclusivo, pois para todos aqueles que se propuserem a obede-cer à ordem é, em princípio, garantido o acesso em igualdade de situação com os outros. Na prática, essa adesão se faz segundo os interesses daqueles que controlam a associação e

(22)

pode variar em função dos diferentes contextos dos momentos. Mais uma vez, embora o direito de acesso seja livre, ele deve sempre estar submetido à idéia do bem comum das pessoas que compõem essa associação ou a controlam.

Um bom exemplo disso nos é dado pelos procedimentos que levavam à concessão da cidadania, que datam dos primór-dios das cidades gregas na Antigüidade, especialmente em Atenas. Antes de conceder direitos políticos a alguém que não tivesse nascido de outros cidadãos da

polis,

esse indivíduo deveria passar por di versos processos que demonstrariam sua capacidade e empenho em renunciar aos costumes de sua área de origem e simultaneamente demonstrar, conhecer, respeitar e defender as leis que regiam a ordem daquela polis.40 Nesse caso, em particular, a naturalização era um processo muito difícil e raro, embora fosse sempre citada como uma possibili-dade.4I Assim, fazer parte dessa associação, desse espaço, sig-nifica aceitar suas regras, endossar os contratos que unem os indivíduos e, conseqüentemente, preservar os limites da lei, limites territoriais e sociais. Significa também renunciar a

to-das as outras formas de regulação do comportamento que

entrem em conflito com o código de conduta estabelecido

nesses domínios. Até hoje, na maioria das sociedades

contem-porâneas, as cerimônias de outorga da cidadania seguem o rito

que prevê a assinatura de um contrato de adesão e um

juramen-to, pronunciado solenemente, diante de uma autoridade jurídi-ca, juramento este que implica fidelidade e aceitação das

con-dições normativas do país ao qual está sendo demandado o

direito à cidadania.

Além de ser aberta a novas adesões, essas sociedades se

40 Ver, por exemplo, Baslez, Marie F. L'étrallger dans la Grêce Antique, Les Bclles Lettres. Paris, 1984.

41 H a via duas definições de estrangeiros para os gregos, uma política, os não-cidadãos, e outra cultural, os bárbaros. Baslez, Marie F. op. cit.

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•'· l11wm pela estabilidade dos princípios legais que as origi11a -, 1111 llú, por assim dizer, princípios fundamentais que dão I•

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e

contorno legais a todos os outros instrumentos norma-11\'\t.~ Llllllplementares e funcionam como base de legitimidade

1 11~.\o legisladora ulterior.42 Os outros instrumentos legais que ,,,..,,.,,uram seu funcionamento, no entanto, são mutáveis e

ten-dnll a ser revistos segundo uma lógica de aperfeiçoamento e

ptn)•rcssividade. É importante perceber que estes grandes

prin-• lptos que originam as associações estão sempre relacionados ,t tutidades territoriais formais, também mais ou menos está-' •. , .. ( 'ontudo, a gestão interna do território, suas subdivisões, .n.ts competências e sua forma de hierarquia e controle são,

pl'tltlanentemenle, objeto de debates e mudanças.

I\ transgressão

à

lei é, nesse sentido, o único crime e nos

'.t'liS mais graves ela deve ser penalizada com a completa exclu-,tu, social e territorial. Mais uma vez, o exemplo grego é

enfáti-' • 1; atinai, quase tão grave quanto a condenação à morte era o

~~~lracismo, que significava, simultaneamente, uma "morte sim-ln•lica" acrescida da humilhante expulsão, que implicava perder iudos os direitos relativos àquele território (muito embora exls-t 1sscm penas de ostracismo com duração de apenas alguns anos, rolllumente dez anos). Em nossas sociedades contemporâneas, l•cqüentemente, as penalidades impostas pelo descumprimento das leis podem conduzir ao encarceramento, que corresponde

igualmente a uma exclusão teJTitorial.43

Este

nomoespaço

é assim construído de maneira a expri-mir relações formais de pertencimento, mas sobretudo de orde-namento. Assim, cada instituição social dispõe de sua área de

lZ Estamos pensando aqui nos princípios constitucionais da maioria das sociedades modernas.

11 Na França, para os estrangeiros, há a dupla pena, ou seja, o encarceramento em uma prisão no território francês, seguido da expulsão do país após o cumprimento da pena

(23)

controle e vigilância, as práticas sociais são regulamentadas no

espaço, e os signos de delimitação territorial são inequívocos. As interdições e a coerção são sempre matéria de comunicação

e sinalização territorial, ou, em outras palavras, o espaço é internamente qualificado por uma regulamentação formal e

uma visibilidade explícita de suas normas e fronteiras. Os re

la-cionamentos tendem a ser impessoais e regulares dentro dos

limites das diferentes esferas socioterritoriais. Dessa maneira, há marcos territoriais que delimitam esferas de práticas regula-res, e eles são, simultaneamente, a condição para que essas

prá-ticas existam e o reflexo delas.

De fato, esse tipo de espaço é a base que funda uma socie-dade de contrato. O nomoespaço é assim uma condição

neces-sária para que se configure a idéia de um pacto social do tipo contratual. Diferentes pactos dão origem a diferentes composi-ções espaciais. Um breve percurso histórico pode nos ajudar a compreender essas distinções e algumas características essen-ciais das sociedades fundadas sobre a idéia de um espaço

nor-mativo, regulador e formalizador de práticas.

Os espaços contratuais: Exemplos e dinâmicas

A cidade grega, o fato político que funda a sociedade oci-dental, estabelece um novo vínculo social, não mais a função de uma comunhão religiosa, familiar ou da submissão a um mesmo .monarca, e sim da integração de indivíduos, como

sujeitos de direito, de uma nova associação, fundada na

co-participação de uma soberania política. Assim, a polis grega cria um novo domínio da vida coletiva e redefine seus quadros físicos e comportamentais.

A simetria igualdade e reciprocidade das relações entre esses novos personagens sociais, os cidadãos, definidos pelas

40

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I

[''

<il' isonomia de Clístenes, pressupõe um novo arranjo espa-1

li

,

lll'spaço da polis é então pensado e figurado como um cír-' 11111 Ao centro, a ágora, antigo espaço aberto destinado ao

1111 1 ~ a do, é desde então delimitado e ganha o estatuto de espa-\ll llllhlico, lugar de encontro dos isoi (iguais).44

llssc espaço público só se torna político quando assegurado numa cidade, quer dizer, quando ligado a um lugar palpável que

possa sobreviver tanto aos feitos memoráveis quanto aos nomes

dos memoráveis autores, e possa ser transmitido à posteridade na

seqüência das gerações. Essa cidade a oferecer aos homens mor-tais e a seus feitos e palavras passageiros um lugar duradouro

constitui a polis - que é política e, desse modo, diferente de

outros povoamentos, porque originalmente foi construída só em torno do espaço público, em torno da praça do mercado, onde os livres e iguais poderiam encontrar-se a qualquer hora.4s

A antiga distinção entre cidade baixa e acrópole, fortemen-le hierarquizada, de acesso discricionário, dissolver-se em uma

abstração geométrica. A localização do bouleutério

(assem-bléia), recém-criado, entre a colina e a ágora, ajuda a dissolver

a antiga hierarquia.46 A distinção fundamental do espaço já não

é entre o sagrado e o profano; agora se trata das distinções

entre o público e o privado (oikos).

A dessacralização·do espaço foi uma das primeiras

conse-qüências e pode ser avaliada, por exemplo, no imediato

impe-dimento de enterrar os mortos dentro dos limites definidos pela muralha das cidades. Assim, a ancestralidade deixa de fazer

44 Grande parte dos elementos dessa descrição se encontram em Vernant, Jean-Pierre. Mythe et pensée chez les grecs, Maspero, Paris, 1980, especial-mente no capítulo 3, "L'organisation de !'espace".

45 Arendt, H., op. cit., p. 54.

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