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O impacto da gripe de 1918-1919 na atividade teatral da cidade de Lisboa

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Academic year: 2023

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Universidade de Lisboa Faculdade de Letras

O impacto da gripe de 1918-1919 na atividade teatral da cidade de Lisboa

Mestrado em Estudos de Teatro

Alina Aleixo Macedo

2022

Dissertação especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre, orientada pelo Prof. Doutor José António Camilo Guerreiro Camões

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2 AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Doutor José Camões, pela disponibilidade em me orientar ao longo deste percurso e por ter acreditado neste trabalho desde o início. Agradeço por toda a ajuda, incentivo e paciência em esclarecer as minhas dúvidas.

À Prof. Doutora Maria João Brilhante, pelo apoio prestado nos Seminários de Investigação e de Orientação, pelos conselhos e recomendações de bibliografia e de tópicos a explorar.

À Biblioteca do Museu Nacional do Teatro e da Dança, em especial à Sofia Patrão, pela generosidade e pela ajuda preciosa na seleção do material bibliográfico a consultar.

À Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, à Biblioteca do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e à Biblioteca Nacional de Portugal pela simpatia com que me receberam e pelo auxílio prestado durante as minhas visitas.

Aos meus colegas de curso, pelas críticas construtivas, trocas de ideias, e sugestões para o desenvolvimento deste trabalho.

À minha colega Andresa, pela disponibilidade em rever esta dissertação, pelos comentários, e por me ter encorajado a continuar.

A todas as pessoas que me ampararam, em especial à minha mãe, por sempre me ter apoiado na realização dos meus sonhos.

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3 RESUMO

O presente estudo tem como objetivo abordar o modo como a gripe pneumónica influenciou a atividade teatral lisboeta nas suas múltiplas dimensões nos anos 1918- 1919, uma época de instabilidade política, social e económica em Portugal.

Neste estudo são abordados aspetos como o cancelamento ou adiamento de espetáculos, as doenças de atores e profissionais do teatro, e as medidas sanitárias adotadas nos estabelecimentos teatrais. Além disso, mencionamos o modo como esta doença surgiu e foi abordada na sociedade, tanto no contexto teatral nacional como internacional.

PALAVRAS-CHAVE

Lisboa, Teatro, Gripe pneumónica, 1918-1919.

ABSTRACT

The goal of the present study is to approach the way the pneumonic influenza affected Lisbon’s theatre activity in its multiple dimensions in 1918-1919, in a time of political, social and economical instability in Portugal.

This study addresses aspects such as the cancellation or postponement of shows, the illnesses of actors and theatre profissinals, and the sanitary measures adopted by theatre venues. Furthermore, we mention how this disease emerged and was addressed in society, both in the national and international theatrical context.

KEY WORDS

Lisbon, Theatre, Pneumonic Influenza, 1918-1919.

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ÍNDICE

Introdução ... 5

1. A gripe pneumónica ... 9

1.1. Causas da propagação da pneumónica ... 11

1.2. Medidas sanitárias ... 15

2. A pneumónica no mundo: reflexos no teatro, no cinema, e na música ... 19

2.1. The Widow’s Veil, comédia de Alice L. Rostetter ... 26

3. O contexto lisboeta e a atividade teatral nos anos 1918-1919 ... 30

4. As implicações da pneumónica no teatro em Lisboa ... 38

5. Festas de caridade ... 47

5.1. A favor das vítimas da pneumónica ... 49

5.2. Outras festas de caridade: tifo e mutilados da guerra ... 52

6. A abordagem das epidemias ... 54

6.1. A sátira na imprensa teatral ... 55

6.2. Marcas em peças de teatro ... 61

6.3. O teatro e as suas “epidemias”: a apropriação de expressões ... 65

Conclusões ... 68

Bibliografia ... 73

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5 Introdução

A ideia para este estudo surgiu inspirada na pandemia COVID-19, que grassou durante os anos de 2020 e 2021, sobretudo. Chamaram-nos a atenção os transtornos que esta pandemia causou na apresentação de espetáculos de teatro do nosso país, que obrigaram a que fossem, muitas vezes, realizados através de meios digitais. Este tipo de iniciativa despertou-nos curiosidade e interesse no conhecimento de resultados, quer do ponto de vista da criação artística, quer na perspetiva da receção. Não tendo sido possível abordar ainda os efeitos desta pandemia como tema de dissertação, tendo em conta o facto de ser um assunto bastante recente e de estar a sofrer constantes atualizações, ocorreu-nos recuar cerca de 100 anos, a um contexto histórico-social diferente, para compreender como o meio teatral lidou com uma pandemia que muitas vezes tem sido comparada à atual: a pandemia da gripe pneumónica.

Esta epidemia, que se propagou em Portugal nos anos 1918-1919, ocorreu num contexto histórico-social bastante denso e agitado em termos de acontecimentos.

Instabilidade era a palavra que melhor definia o país nesta época: Portugal encontrava- se a participar na Primeira Guerra Mundial e verificava-se uma crise política que, aliada à grave crise económica, originava revoltas e agitações sociais, incluindo o assassinato do Presidente da República, Sidónio Pais. Para além disso, outras doenças afetavam a população, nomeadamente uma epidemia de tifo exantemático que alastrava no norte do país no início de 1918.

Limitaremos e focaremos esta pesquisa maioritariamente à cidade de Lisboa, concentrando-nos apenas nos anos de 1918-1919. Na abordagem da gripe pneumónica no contexto português utilizaremos o termo “epidemia”, respeitando o modo como na época era mencionada no nosso país. Aliás, era habitual a imprensa da época utilizar a expressão “epidemia reinante”. Já a palavra “pandemia” era utilizada na sua referência à escala global.

A metodologia que utilizámos na investigação para esta dissertação foi de caráter qualitativo. Começámos por ler as edições diárias de três jornais generalistas (A Capital, O Século e o Diário de Notícias), assim como jornais e revistas de imprensa teatral em atividade entre os anos 1918-1919, de modo a encontrar pistas acerca da influência desta epidemia na atividade teatral em Lisboa. Procedemos de igual modo à leitura de memórias de atores dessa época para percebermos se existia algum testemunho acerca do impacto nas suas vidas profissionais ou pessoais durante o

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6 período em que esta epidemia grassou em Portugal. Pareceu-nos também importante ler algumas peças e coplas de teatro de revista, tendo em conta que este género aborda os temas da atualidade, em busca de menções relacionadas com esta (ou outra) epidemia.

Utilizámos como suporte bibliografia acerca da gripe pneumónica, bem como acerca da história de Portugal e do teatro em Portugal na época, incluindo teses e dissertações.

Recorremos também a outras fontes – por exemplo, documentários – que pudessem apoiar a nossa investigação nalguns pormenores. Ademais, após uma breve pesquisa, obtivemos também alguma informação em artigos e websites acerca da influência desta epidemia na atividade teatral (e também um pouco na atividade cinematográfica) em vários cantos do mundo. Lemos de igual modo alguns recortes de jornais norte- americanos arquivados na base de dados online Influenza Encyclopedia, que nos forneceram pistas acerca deste tema nos Estados Unidos da América. Tivemos ainda conhecimento de alguns registos musicais onde se encontram marcas da pneumónica e tivemos acesso integral a uma peça de teatro que foi representada em Nova Iorque durante esta pandemia.

Ao longo da nossa pesquisa notámos que, relativamente a este tema no contexto teatral em Portugal, a informação se encontrava dispersa, quase invisível, e talvez até mesmo omitida. Todavia, acerca de epidemias em geral, e relativamente a um tempo anterior, aproveitamos para mencionar, a título de curiosidade, a cláusula 19.ª do contrato de Emília das Neves com o Teatro Dona Maria II celebrado em 31 de janeiro de 1860, que menciona o seguinte: “Também fica livre a ela segunda outorgante suspender as suas representações sem vencimento algum a fim de sair da capital para onde quiser quando por fatalidade se declare qualquer epidemia, o que Deus não permita”1.

No primeiro ponto desta dissertação introduzimos o tema da gripe pneumónica.

Tentaremos explicar de que se tratava esta gripe: como surgiu, quais os sintomas, o modo de contágio, a forma como se alastrou pelo país e como vitimou a população portuguesa e mundial. De seguida, abordaremos as causas da propagação da pneumónica em Portugal, não esquecendo o contexto histórico-social e político que se vivia na época. Falaremos de igual modo acerca das medidas sanitárias postas em prática de modo a combater esta epidemia em Portugal.

1 Agradeço ao Prof. José Camões a informação e disponibilização do documento.

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7 No segundo ponto, lançaremos um breve olhar sobre o modo como a gripe pneumónica afetou o teatro (e também o cinema) a nível internacional, fazendo igualmente menção a algumas obras musicais que referem esta doença. Debruçar-nos- emos especialmente sobre a comédia satírica The Widow’s Veil, de Alice L. Rostetter.

No terceiro ponto, abordamos o modo como decorria a atividade teatral lisboeta naquele tempo histórico. Deste modo, para além de observarmos os hábitos de consumo dos lisboetas e a forma como estes acorriam ao teatro, bem como os estabelecimentos teatrais em atividade e o repertório de cada um, falaremos também dos inconvenientes para a atividade teatral decorrentes da agitação social e política que se vivia na época.

Além disso, mencionaremos ainda testemunhos retirados das memórias dos atores que nos oferecem um olhar acerca do modo como se vivia nos bastidores do teatro daquele tempo.

No quarto ponto falaremos das implicações da gripe pneumónica no teatro em Lisboa. Nele daremos conta dos cancelamentos e adiamentos de espetáculos teatrais, assim como das doenças de atores e profissionais do teatro. Mencionaremos também as medidas sanitárias que foram tomadas nos estabelecimentos teatrais e, inevitavelmente, faremos referência a outras doenças que grassavam na época e que afetaram igualmente os profissionais de teatro.

No quinto ponto falaremos da característica solidária que poderia estar presente nalguns espetáculos de teatro. Abordaremos a realização de festas de caridade nos estabelecimentos teatrais e clubs da cidade de Lisboa, que revertiam a favor dos doentes da gripe pneumónica. Reforçaremos este ponto mencionando também outras festas de caridade realizadas nestes estabelecimentos naquele tempo, e cuja receita reverteu a favor dos doentes de tifo e dos mutilados da guerra.

No sexto e último ponto falaremos do modo como algumas epidemias eram abordadas, quer na imprensa teatral, quer em peças de teatro e ainda em jeito de apropriação de vocabulário. Em primeiro lugar, daremos alguns exemplos do modo satírico como a pneumónica e o tifo surgiam pelos textos da imprensa teatral. De seguida, apresentaremos alguns exemplos de peças de teatro e de coplas onde a abordagem das epidemias estava presente (ou delas dava indícios). Por último, falaremos de algumas expressões utilizadas na abordagem do contexto teatral da época que remetem para as epidemias.

Redigimos o texto desta dissertação respeitando as normas do novo acordo ortográfico. Nas citações corrigimos eventuais erros ortográficos, gramáticos e de

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8 pontuação, e adaptámos, sempre que necessário, os tempos verbais às frases em que estas se inserem. Além disso, modernizámos também a ortografia, tanto no português como no inglês e no francês, à exceção das citações referentes à peça The Widow’s Veil.

Nos textos das coplas respeitámos as contrações de palavras.

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9 1. A gripe pneumónica

Nos anos 1918 e 1919 uma epidemia assolou Portugal e o mundo. Tratava-se de uma gripe, denominada em Portugal como gripe pneumónica (dado que a infeção por este vírus afetava particularmente os pulmões). Para além deste nome, esta doença é

Erroneamente conhecida como «gripe espanhola» devido às notícias publicadas na Imprensa daquele país cuja neutralidade durante a Primeira Guerra Mundial isentou os jornais de censura, ao contrário dos países beligerantes que cercearam a divulgação de informações sobre a pandemia (SILVA; PEREIRA &

BANDEIRA, 2019: 7).

Também é comum surgir o nome influenza, proveniente de uma teoria do século XVI que “atribuía a causa dos súbitos surtos epidémicos (…) a fenómenos naturais como a erupção de vulcões, a passagem de cometas e meteoros, ventos e mudanças súbitas de temperatura, arrefecimento, em suma, à «influência dos céus» (influenza coeli)” (SOBRAL & LIMA, 2018: 47).

A sua origem geográfica é desconhecida. Supõe-se que possa ter surgido em março de 1918 nos aquartelamentos do exército norte-americano no Kansas, levada depois para França pelo Corpo Expedicionário Americano; ou na Ásia, em abril do mesmo ano, tendo as tropas francesas sido contagiadas por auxiliares chineses (SEQUEIRA, 2001: 52).

Segundo Ricardo Jorge, Diretor Geral da Saúde na época, “A contagiosidade da influenza [era] a máxima conhecida; contágio direto inter-humano, e tão forte e tão subtil que [conferia] à infeção a sua característica de altíssima epidemicidade, por nenhuma sequer aproximada” (1918a: 11). O contágio era feito de forma rápida, por via aérea, através de espirros e tosse e, após um curto período de incubação (cerca de 1 a 3 dias), muitos doentes morriam em poucos dias.

Em casos mais graves, os sintomas podiam manifestar-se através de problemas respiratórios, febre, dor no corpo, cefaleias, pele negro-azulada, tosse com sangue e hemorragias nasais. A infeção dos pulmões, transformados em sacos de fluído, conduziam os doentes à morte (KILLINGRAY, 2009: 44).

A gripe pneumónica assolou Portugal em três vagas. A primeira onda – que induziu a um aumento de mortalidade, ainda que sob curso benigno – chegou a Portugal

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10 aproximadamente em finais de maio de 1918, detetada pela primeira vez em Vila Viçosa, trazida pelos trabalhadores rurais vindos de Badajoz e Olivença. Difundiu-se por todo o país, afetando as cidades de Lisboa e Porto. Atingiu o seu pico no final do mês de junho do mesmo ano, entrando depois em declínio súbito. A segunda onda epidémica, a mais grave e mortífera, manifestada primeiramente ainda em agosto de 1918, no Porto, em Gaia, alastrou-se até à fronteira luso-espanhola, tendo surgido igualmente outros focos em várias zonas do país. Esta vaga transformou outubro e novembro nos piores meses, assolando uma grande parte da população e elevando a taxa de mortalidade. Foi também nesta segunda vaga que a pneumónica afetou os arquipélagos da Madeira e dos Açores, em setembro de 1918. No ano seguinte, de fevereiro a maio, houve ainda uma terceira e última vaga, de caráter benigno (JORGE, 1919: 7-8; REBELO-DE-ANDRADE & FELISMINO, 2018: 4-5).

Sabe-se que a mortalidade foi mais elevada em jovens do sexo masculino em idade ativa e não tanto em idosos, invertendo assim a tendência, na medida em que “Nas anteriores pandemias de gripe – em 1847-1848 e em 1889-1890, por exemplo, as vítimas mortais da doença tinham sido sobretudo os muito jovens, os doentes, os subalimentados e os idosos” (KILLINGRAY, 2009: 49). Este curioso fenómeno do impacto da mortalidade da gripe pneumónica talvez possa ser explicado pela intensidade da resposta imunológica nos jovens, induzindo o colapso, e pela eventualidade de os idosos terem adquirido imunidade em virtude da exposição à pandemia de 1889-1890 (KILLINGRAY, 2009: 49-50). Não podemos esquecer também a presença dos jovens na Primeira Guerra Mundial expostos quer a “precariedade alimentar e sanitária, a armas químicas e ao stress da guerra, ficando assim mais suscetíveis perante a doença e as suas complicações”, quer ao seu amontoamento propício à propagação da doença em “acampamentos militares e hospitais superlotados e a proximidade nos campos de treino” (REBELO-DE-ANDRADE & FELISMINO, 2018: 9).

Na época, não existiam instrumentos estatísticos que permitissem calcular com exatidão o número de vítimas e de mortos. Deste modo, não existe um consenso quanto ao número de afetados, mas estima-se que foram entre 100 e 120 mil as vítimas mortais em Portugal, numa população de 6 milhões de habitantes (RTP, As febres do século, 2021). “De facto, em Portugal, a gripe pneumónica foi o episódio que produziu mais óbitos no século XX, ultrapassando em muito o número de mortes na Guerra Colonial e na Primeira Guerra Mundial” (SOUSA; CASTRO; LIMA & SOBRAL, 2008: 472). A

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11 nível mundial as estimativas apontam para 50 a 100 milhões de mortos (JOHNSON &

MUELLER, 2002: 115).

1.1. Causas da propagação da pneumónica

A epidemia da pneumónica surgiu numa altura de grande instabilidade política, financeira, económica e social em Portugal. Deste modo, o ambiente tornou-se favorável à sua propagação, como veremos adiante.

Desde o fim da Monarquia e consequente proclamação da República, a 5 de outubro de 1910, a estrutura política em Portugal nunca foi estável e vivia-se uma quase permanente crise política. Ocorriam várias incursões monárquicas e os confrontos políticos acentuavam-se cada vez mais, quer entre republicanos e monárquicos, quer no seio do próprio campo republicano. Houve golpes militares e sucessivas alterações de governo com mandatos que duravam poucos meses. Sidónio Pais subiu ao poder a 8 de dezembro de 1917 através de um golpe de estado, instituindo uma ditadura denominada República Nova, tendo sido depois assassinado num atentado contra o seu regime a 14 de dezembro de 1918, na Estação do Rossio. Estava assim instaurada uma grave crise política, reflexo de uma guerra civil entre monárquicos e republicanos, que definiu o começo do ano 1919. A 19 de janeiro, uma Junta Governativa liderada por Paiva Couceiro conseguiu instaurar a Monarquia no Porto, a chamada Monarquia do Norte, dominando grande parte do norte de Portugal e, uns dias depois, a 23 de janeiro, os monárquicos tentaram também ocupar Monsanto, em Lisboa. A 13 de fevereiro a Monarquia do Norte foi derrotada, simbolizando a vitória dos republicanos e o fim das tentativas de instauração da Monarquia, dando-se então o regresso da “República Velha”. António José de Almeida foi eleito Presidente da República a 9 de agosto de 1919, cargo que ocupou até 1923.

A entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial também trouxe consequências a vários níveis. Com o fecho das fronteiras, o comércio internacional foi afetado: interromperam-se as reexportações de produtos coloniais africanos para o resto do mundo, as exportações de vinho e de cortiça para a Europa, de têxteis para as colónias africanas, as importações de carvão, matérias-primas e manufaturas da Europa e dos cereais dos Estados Unidos da América. Ademais, diminuiu a emigração para o Brasil, deixando, assim, Portugal de receber a mesma quantidade de pagamentos

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12 externos relativamente às remessas dos emigrantes, dos quais estava dependente.

Também as despesas do Estado cresceram com o financiamento da guerra, com o aumento da produção de armamento, o recurso a empréstimos, e o aumento da dívida pública interna e externa (COSTA; LAINS & MIRANDA, 2012: 365-375). Deste modo, da guerra adveio uma crise económica “que incidiu em particular sobre as classes trabalhadoras e os mais pobres, através da subida dos preços dos alimentos e géneros de primeira necessidade, do seu racionamento e açambarcamento e do mercado negro”

(SOBRAL & LIMA, 2018: 53). Como consequência, a agitação social deu origem a greves, nomeadamente à greve geral de novembro de 1918, bem como a assaltos a estabelecimentos de produção e comércio de alimentos (ibidem: 53), impulsionados precisamente pela carestia de alimentos, pela fome, e pela crise de subsistências. Além disso, tendo em conta que, economicamente, Portugal subsistia maioritariamente com base na agricultura e no artesanato, os anos de fracas colheitas deram de igual modo origem à inflação do preço de vários géneros alimentícios e à sua oneração com impostos e altas taxas alfandegárias (REBELO-DE-ANDRADE & FELISMINO, 2018:

12-13).

As fábricas funcionavam de forma irregular devido a doença ou falecimento de trabalhadores. Além disso, também a falta de matérias-primas nas fábricas afetava o abastecimento das populações. Como se não bastasse, a especulação por parte de comerciantes e industriais levava igualmente a que os produtos ficassem retidos nos armazéns com o objetivo de gerar o aumento dos preços (SAMPAIO, 2020: 3). O recurso a ajudas de caridade – como as Sopas dos Pobres, as Cozinhas Económicas e a Obra de Assistência 5 de Dezembro, fundada por Sidónio Pais, – era um dos poucos meios disponíveis para a população escapar à fome (CORDEIRO, 2012). Relativamente à pobreza e à crise de subsistência que se vivia nesta época, leia-se o testemunho do ator António Pinheiro:

Convulsionava a Europa e quasi o mundo inteiro com a guerra da Alemanha: as lutas políticas entre nós desencadeavam-se amarfanhando e enrodilhando os homens públicos, a economia nacional, os carateres. A luta pela vida era enorme, dolorosa, latente. Encarecia tudo. Nada havia para comer.

Racionavam-se os géneros alimentícios. O pão era negro e caro. As bichas às portas das padarias, das mercearias, das carvoarias eram enormes e formavam-se ininterruptamente, sem solução de continuidade. Não havia pão, não havia carvão, não havia luz, não havia água. Dinheiro só o avezavam os novos-ricos, os

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13 exploradores, os açambarcadores. Caráter era coisa que se comprava a qualquer preço. (PINHEIRO, 1929: 331-332)

Financeiramente, o escudo estava em constante desvalorização. Para além disso, o aumento da emissão de notas originou também o aumento dos preços dos bens, cujas tentativas de tabelamento, bem como as de controlo de produção e distribuição, levaram a que muitos agricultores abandonassem a atividade (RAMOS; SOUSA &

MONTEIRO, 2009: 607).

Ora, com salários baixos e preços altos, uma população pobre tinha tendência a procurar alimentos pouco nutritivos, tornando os seus corpos mais débeis e menos imunes às doenças (VIEIRA, 2019: 43), que na época já eram bastantes. Lutava-se contra a tuberculose e, no início de 1918, grassava no Porto o tifo exantemático, a epidemia que antecedeu a influenza, com tendência a alastrar para o resto do país. Mais tarde, ressurgiram surtos de varíola, bem como alguns casos de disenteria e febre tifoide.

Aliado à pobreza, o êxodo rural contribuiu para a degradação e insalubridade de habitações nas cidades, cujas condições já eram escassas, favorecendo a propagação destas doenças. Através da leitura dos jornais generalistas é possível ter uma breve noção do estado em que se encontravam as ruas: as sarjetas não eram limpas, resultando em entupimentos quando vinham as chuvas grossas. Isto contribuía para o aparecimento de focos de contágio, cuja propagação podia agravar-se com a falta de chuva, que também trazia graves consequências, porque, deste modo, não era feita uma correta higienização do ar. Apelava-se várias vezes à tomada de medidas de higiene sanitária, que não eram ou tardavam a ser implementadas. A título de exemplo, destacamos um desses apelos expresso n’A Capital, do dia 8 de outubro de 1918 (n.º 2921, p. 1), onde é reportado que as ruas não eram desinfetadas nem lavadas devidamente, o que levava à constituição de vários focos de infeção, existindo um deles precisamente atrás do Teatro D. Maria II. Entre as medidas aí sugeridas, apelava-se à criação de postos médicos nos bairros, de modo a evitar que as doenças dos moradores se agravassem, à utilização de automóveis particulares para o transporte de doentes, ao recurso aos médicos domiciliados em cada freguesia, e à solicitação de medicamentos aos países aliados.

Relativamente aos espaços públicos, anteriormente já tinha sido sugerido n’A Capital a obrigatoriedade do arejamento de locais onde se reuniam muitas pessoas (n.º 2824, 02/07/1918, p. 2).

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14 Ricardo Jorge indicou e enumerou os vários fluxos populacionais apontados como um dos veículos de transmissão da pneumónica: migração militar, tendo sido trazida pelos soldados da guerra; migração popular, através da mobilização de trabalhadores e civis para feiras e peregrinações; migração agrícola, através das mobilizações dos trabalhadores rurais; migração balnear, na época de banhos; e migração naval, com a entrada de navios contaminados e tráfico para a guerra (JORGE, 1919: 21-23). No contexto da migração popular, temos o exemplo dos regressados das festas e touradas de Santo Isidro em Madrid, que foram responsáveis pelos primeiros casos de pneumónica em Portugal (JORGE, 1918a: 12). Quanto à migração naval como fator de propagação, podemos ilustrá-la com o exemplo da chegada do vapor Mormugão ao Funchal, bem como de um navio vindo de Bordéus a Ponta Delgada, que contribuíram também para a propagação desta epidemia na Madeira e nos Açores, respetivamente. Tal como reportava O Século no dia 25 de setembro de 1918:

ao Funchal chega, a 14 do corrente, o vapor “Mormugão” com uma grave carga gripal, sendo necessário recolher a tripulação no lazareto, para tratamento, e a Ponta Delgada, a 21, um vapor vindo de Bordéus com 60 pessoas a bordo, que tiveram de ser baldeadas para o hospital de isolamento. (n.º 13217, p. 1)

Ainda dentro da migração naval temos também o caso do vapor Moçambique, que trazia de regresso militares em fim de serviço ou em situação clínica débil. Ao chegar a Lisboa a 21 de outubro de 1918, muitos saltaram desesperadamente ao rio Tejo indo ao encontro das suas famílias, desobedecendo à ordem de quarentena que seria realizada no lazareto. Esta atitude aumentou ainda mais o surto que já se vivia em Portugal nesse caótico mês (PEREIRA, 2019: 76-81).

Portugal ainda era um país pouco instruído, embora o novo regime tivesse investido na reversão desta situação. Com uma população ainda em grande parte analfabeta, tornava-se complicado seguir as medidas de contingência e perceber o que de facto estava a acontecer. Deste modo, procedia-se à leitura dos jornais nas tabernas e à transmissão das medidas oralmente na missa.

A nível da Medicina, os estudos científicos para a descoberta do agente infecioso da gripe ainda se encontravam em desenvolvimento, pelo que não era possível então encontrar uma resposta clara por parte da bacteriologia e da epidemiologia. A nível hospitalar, os médicos mais jovens tinham ido auxiliar os soldados na guerra, enquanto os que permaneceram em Portugal possuíam conhecimentos desatualizados. A falta de

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15 hospitais, de médicos e de medicamentos levou a que as autoridades de saúde sentissem dificuldades em responder às necessidades da população, culminando na saturação dos hospitais e na necessidade de os pacientes se medicarem em casa.

1.2. Medidas sanitárias

Como resposta a esta epidemia, e apesar das dificuldades que o país enfrentava, foram tomadas – ou propostas – algumas medidas de profilaxia, tanto individual como coletiva. No entanto, isto não significa que as mesmas tenham sido completamente eficazes ou que tivesse sido possível responder a todas as necessidades.

Ricardo Jorge aconselhou o isolamento “sempre que [pudesse] realizar-se, tanto nos domicílios como nas habitações coletivas – colégios, cadeias, asilos, hospícios, hospitais, etc.” (JORGE, 1918a: 12). Era aconselhado o distanciamento e deveriam evitar-se os “ajuntamentos dispensáveis, especialmente dos que empilham e acotovelam gente numa atmosfera confinada.” (JORGE, 1918a: 12). A proibição de visitas aos doentes nos hospitais, o fim dos apertos de mão como forma de cumprimento, o arejamento e a ventilação de espaços e recintos de permanência eram também outras das medidas aconselhadas pelo Diretor Geral de Saúde.

Para o doente, o aconselhável era “cama, dieta, tisanas e médico. Nada de droguear-se por sua conta, nem com purgas, nem com as inas, nem com os grogues”

(JORGE, 1918a: 13). Deste modo, era desaconselhado o consumo de medicamentos

«milagrosos» cujos anúncios surgiam abundantemente nas páginas dos jornais. Quanto aos cuidados individuais, Ricardo Jorge também recomendou:

É para crer que os germes se alojem na parte superior das vias respiratórias e ali façam ninho para forçarem a mucosa. Seriam, pois, indicáveis as lavagens frequentes do nariz e da garganta, por exemplo com a comezinha água salgada; a água oxigenada diluída vem a ponto para este efeito. Desinfeções rigorosas, como as que se têm ensaiado nas fauces dos portadores dos cocos meníngeos ou bacilos diftéricos, não são para tentar. Práticas imunizantes não se conhece nenhuma;

drogas preventivas não existem, e nenhuma deve tomar-se com tal fim. O mesmo apanhar do mal não livra doutro, pois não é das infeções que conferem a imunidade. Talvez os que vierem depois de nós, gozem do benefício dalgum soro ou vacina – única esperança profilática para um contágio assim. (JORGE, 1918a:

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16 Todavia, em 1919, Ricardo Jorge referiu que por vezes estas desinfeções causavam lesões nos canais respiratórios e que a sua eficácia era duvidosa, embora não deixasse de ser aconselhada:

La prophylaxie individuelle est aussi pauvre que la publique. Les lavages fréquents du nez et de la gorge à l’eau salée, mentholée ou oxygénée, sont entres dans les recommandations courantes. Que l’on puisse se fier à leur efficacité, c’est très douteux; qui sait même si les mucosités des voies respiratoires supérieures ne constituent pas, par elles-mêmes et par leurs microbes, un enduit protecteur? A force de tourmenter leur nez et leur gorge par phobie de la grippe, de renifler et de sa faire des lavages avec des substances irritantes, ce à quoi beaucoup de gens ont abouti c’est à contracter des pharyngites et des rhinites. (JORGE, 1919: 34)

Relativamente aos espaços públicos, Ricardo Jorge não era a favor de se proceder ao encerramento dos mesmos para não prejudicar a vida económica nem alimentar o pânico, no caso do entretenimento, rejeitando assim a ideia de um lockdown:

On réclama aussitôt la fermeture des théâtres et de cinémas, et c’est là une mesure à laquelle nous nous sommes refusés. Une fois entrés dans la voie des prohibitions, nous n’aurions plus su où nous arrêter; derrière les établissements de spectacles il y avait les cafés, les églises, les transports en commun, les marchés, les bureaux, les magasins, les usines. La vie sociale et économique ne peut être ni arrêtée, ni même entravée dans aucune de ses manifestations, même celles qui paraissent les plus superflues ou le plus frivoles; il n’y a qu’à la laisser continuer dans toutes ses modalités, distractions comprises, pour ne pas donner aliment à la désolation et à la panique. (JORGE, 1919: 32)

Assim, teatros e cinemas continuavam a anunciar os seus espetáculos e filmes, com as repercussões que veremos adiante. Além disso, “a proibição total de todos os grandes ajuntamentos contrariava a prática política do regime, que recorria à mobilização pública de massas em torno do líder como meio de propaganda”

(SOBRAL; SOUSA; LIMA & CASTRO, 2009: 83).

De igual modo, para não alimentar o pânico, proibiram-se os toques de sinos nos enterros. Ademais, ainda de forma a “evitar alarmes e na intenção de que não se [propagassem] mais boatos tendenciosos sobre a epidemia” foi solicitado que os empregados dos hospitais “fossem proibidos de dar qualquer notícia sobre o que se [passava] nos mesmos hospitais, sob pena de procedimento disciplinar” (O Século, n.º 13227, 05/10/1918, p. 1).

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17 Era aconselhada a limpeza e a desinfeção das casas e das povoações, e foi também pedido à população que evitasse os escarros e que matasse as moscas, pois eram meios de propagação do vírus. Foram tomadas medidas de desinfeção de espaços públicos, como transportes e salas de espetáculos, bem como de ruas e sarjetas, embora estas, como vimos anteriormente, tardassem a ser implementadas ou não chegassem a ser realizadas devidamente. Na Ata da sessão da Câmara Municipal de Lisboa de 21 de outubro de 1918 é possível ler a aprovação de uma proposta para que fosse

nomeada uma subcomissão composta dos vogais dos Pelouros das Ruas, Limpeza e Regas, Cemitérios, Águas, Matadouros e Mercados, que [funcionasse] em sessão permanente a fim de serem adotadas sem demora, quaisquer medidas de caráter urgente que [pudessem] ser impostas pela grave situação em que se [encontrava] a capital, no que [respeitava] ao seu estado sanitário e aos abastecimentos. (p. 713)

Ainda na sequência das medidas de higiene, na Ata da sessão da Câmara Municipal de Lisboa de 14 de outubro de 1918 existe uma proposta aprovada por unanimidade de modo a oficiar à Companhia Carris de Ferro de Lisboa o aparafusamento das janelas dos carros elétricos até 15 de abril de 1919. Deste modo,

“não [seria] permitido aos passageiros fumar na parte interior dos carros fechados, podendo somente fazê-lo nas plataformas dos mesmos” (p. 695).

O controlo de fronteiras, a proibição de feiras e romarias, o encerramento de escolas e adiamento do arranque das aulas foram de igual modo algumas das medidas tomadas enquanto esta epidemia persistiu. Relativamente às migrações, Ricardo Jorge pediu que a «migração militar» fosse impedida pelas autoridades, e que a «migração agrícola» fosse vigiada pelas autoridades sanitárias, “de modo a combater os seus efeitos pela hospitalização e pela observação” (O Século, n.º 13223, 01/10/1918, p. 3).

Foram convocados todos os médicos que estivessem em idade de servir, incluindo os aposentados. Improvisaram-se hospitais para responder às enchentes, sendo possível a requisição de espaços para este fim. Criaram-se o Hospital Militar de Campolide e o Hospital Temporário da Cruz Vermelha Portuguesa para receber os militares que regressavam da guerra vindos da Europa ou de África. Reabriu-se o Hospital de Arroios (quando este se encontrava em obras) e transformaram-se em hospitais o Liceu de Camões e o Convento das Trinas. Também o Hospital do Rego se destinava ao internamento, isolamento e tratamento de doenças infetocontagiosas. Além disso, foram igualmente criados orfanatos para as crianças cujos pais faleceram vítimas desta

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18 epidemia. Na Ata da sessão da Câmara Municipal de Lisboa de 21 de outubro de 1918, é também possível ler-se:

Continuando no uso da palavra o Sr. Presidente refere-se ao bom acolhimento que tivera a iniciativa do Diretor dos Hospitais Civis de Lisboa, com respeito aos socorros a dar aos epidémicos pobres, concluindo por apresentar a proposta seguinte que é admitida e submetida à discussão:

«Proponho que a Comissão Administrativa tome qualquer deliberação no sentido de socorrer os doentes sem recursos, atacados da epidemia satisfazendo, assim, os instantes e justos apelos da imprensa.»

Depois de uma breve troca de ideias sobre o assunto é a referida proposta aprovada e resolve-se por unanimidade pôr à disposição do Diretor dos Hospitais Civis de Lisboa, em nome da Cidade, até à verba de mil escudos, destinada a socorrer os convalescentes da epidemia à saída do Hospital. (p. 713)

Deste modo, desenvolveu-se a assistência médica social para responder à escassez de medicamentos, de transportes e de médicos, tal como Ricardo Jorge referiu num relatório de 1919:

On a réquisitionné des véhicules pour le service médico-sanitaire et ce n’est que tardivement qu’on a pu obtenir un approvisionnement suffisant de gazoline. On a distribué des denrées alimentaires, du pai net du sucre, et on a fourni de la quinine, de la farine de moutarde, de la farine de li net d’autres drogues, les plus usuelles et nécessaires. On a réparti des secours en argent aux indigents et on a institué des commissions de secours pour recueillir des dons et exercer la bienfaisance.

(JORGE, 1919: 35)

Apesar de estas e de outras medidas terem sido implementadas, a dificuldade na gestão da epidemia era visível, evidenciando ainda mais a crise que se vivia. A pneumónica continuava a ceifar vidas, os corpos continuavam a acumular-se nas morgues, e no cemitério eram colocados em valas comuns, onde muitas vezes chegava a faltar espaço para enterrá-los. Todo este cenário catastrófico não era de admirar tendo em conta um país com poucas condições, a participar numa Guerra Mundial, e com uma estrutura governamental até então instável.

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19 2. A pneumónica no mundo: reflexos no teatro, no cinema, e na música

Antes de mencionarmos como o teatro lidou com a epidemia da pneumónica no nosso país, iremos abordar um pouco a forma como internacionalmente esta questão foi gerida em alguns países no âmbito não só do teatro, mas também um pouco pelo cinema e pela música. Por um lado, enquanto grassou a gripe pneumónica, não só existiram impedimentos à realização das atividades, causando muitas vezes protestos e perdas financeiras, como houve, nalgumas situações, o recurso a outras alternativas, quer por parte da produção e das companhias, quer por parte dos profissionais, que procuraram outras atividades de modo a garantir a subsistência. Para contextualizar esta situação, servimo-nos de alguns artigos publicados em websites e de uma base de dados online, a Influenza Encyclopedia, que permite o acesso a vários recortes de jornais acerca da influência desta epidemia nos Estados Unidos da América. Para além deste tipo de impacto na atividade do teatro e do cinema, iremos também abordar algumas marcas que encontrámos em registos musicais.

Em Espanha, a epidemia surgiu em maio de 1918, coincidindo com as festas de San Isidro, em Madrid, e propagou-se através das aglomerações nas ruas e nos espetáculos públicos. Os programas teatrais sofreram alterações devido às indisposições de vários artistas. Obrigou-se à interrupção da temporada teatral no Gran Teatro, tendo- se cancelado deste modo as representações da opereta La Reina del Carnaval, como reportava o jornal Nuevo Mundo a 7 de junho desse ano. Segundo a revista La Lidia, com data de 3 de junho, chegou a ser realizado um trocadilho com o título de uma canção de uma zarzuela, Soldado de Nápoles, nome que passou a ser atribuído à gripe, tendo em conta que esta era tão pegadiza como essa mesma canção presente na peça La canción del olvido, estreada em março no Teatro de la Zarzuela (JIMÉNEZ, 2020). A 23 de setembro de 1918, constava numa nota no jornal O Século que em Madrid os teatros e outros lugares públicos haviam sido desinfetados (n.º 13215, p. 1). No mês seguinte foi proibido que se fumasse em teatros, cinemas, e salas de espetáculos de forma a evitar a propagação dos micróbios deste vírus através do fumo, e era aconselhado a que, enquanto durasse a epidemia, não se recorresse a locais fechados onde existissem ajuntamentos, incluindo teatros (CAMPO & PUIG, 2020: 6, 8). Ainda no mesmo mês, no dia 13, foi decretado na província de Badajoz o encerramento de estabelecimentos públicos e privados, incluindo os de espetáculos. Posteriormente, a 14

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20 de dezembro, a epidemia foi declarada extinta, sendo assim levantadas as restrições e possibilitando deste modo a reabertura dos teatros (HERRERA, 2020: 308-309).

Em Londres, os estabelecimentos teatrais não encerraram, continuando as suas exibições. A ventilação e lavagem dos espaços nos intervalos entre representações foram das poucas precauções tomadas. Deste modo, os artistas saíam prejudicados, como por exemplo Harry Champion, que adoeceu repentinamente enquanto atuava.

Respondia-se à crise com uma produção de musicais alegres e frenéticos, tendo sido Chun Chin Chow, de Oschar Ache, o maior sucesso: uma comédia musical inspirada em Ali Babá e os 40 Ladrões e cujas cenas continham mulheres seminuas vestidas de escravas (SIERZ, 2020).

Em Milão, como medida preventiva, foi “posta à venda uma máscara anti micróbica, que [era] aconselhada aos artistas, principalmente em viagem, contra a influenza” (Eco Artístico, n.º 146, dezembro de 1918, p. 11). A mesma tratava-se de

“um protetor em cartolina perfurada para permitir a respiração, que se [adaptava], por meio de cordões presos às orelhas, ao nariz e boca” (ibidem, p. 11).

Nos Estados Unidos da América, em Chicago, no estado de Illinois, foram encerrados teatros e casas de vaudeville (WALL, 2020). Tal facto podia ler-se no jornal Chicago Herald Examiner, a 15 de outubro de 1918: “Theaters, moving picture houses, night schools, lodge halls and all places of public amusement will be ordered closed today until the influenza pneumonia epidemic has been cleared” (p. 11). Como medidas sanitárias, foram aprovados decretos contra cuspir em público e também medidas de restrição da sociabilidade, no que tocava a apertos de mão e à lavagem das mãos. Em Tucson, no Arizona, era proibido sair de casa sem máscara (WALL, 2020).

Em São Francisco, a 18 de outubro de 1918, o jornal San Francisco Examiner reportava 743 novos casos e 15 mortes e dizia-nos que estariam encerrados, por tempo indeterminado, “Theaters, moving picture houses, dance halls, and all other places of amusement” e também “schools, churches and to prohibit even the appearance of performers at cabarets until further notice. Parties in private homes are included in the ban” (p. 5). Já a 27 de outubro do mesmo ano, o jornal San Francisco Chronicle abordava a possibilidade de reabertura de alguns teatros afirmando que “In point of ventilation they were better equipped than most homes and many hotels” (p. 3).

Adotando as medidas de segurança, a abertura dos teatros poderia ser feita de forma segura: “if masks were worn, the possibility of infection would be rendered still more remote” (p. 3). Todavia, parecia existir um problema quanto à reabertura dos

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21 estabelecimentos teatrais que mais eficazmente pudessem adotar as medidas sanitárias:

“To permit the opening of certain theaters while others less effectively equipped were kept closed would smack too much of discrimination. It is to prevent the close assemblage of persons that the board of Health is bending much of its energy” (p. 3).

Em Filadélfia, na Pensilvânia, foram igualmente encerrados os locais onde existiam ajuntamentos, incluindo casas de vaudeville e teatros (WALL, 2020). O jornal Philadelphia Evening Bulletin noticiou a 24 de outubro de 1918 que, devido ao encerramento dos estabelecimentos teatrais em Filadélfia, a perda iria já em centenas de milhares de dólares ao fim de duas semanas de atividade suspensa.

The actors lose their salaries. All travelling shows of the legitimate and burlesque kind play under a percentage contract. The vaudeville players pay their own travelling expenses and receive a salary the same as the house employs. But they will not get their salaries when they are set working. (p. 10)

A mesma notícia reportava que a indústria cinematográfica de Filadélfia estaria igualmente a apresentar prejuízo:

The corporations which control movies in which “super-stars” are shown, have release dates which have been upset by the closing of the houses on account of the epidemic. The cost of the first release is the greatest, the price being graduated for successive releases. But the dates of these will now have to be changed. So with some of the important plays. (p. 10)

E, como se não bastasse, até mesmo a orquestra sinfónica de Filadélfia sofreu perdas humanas:

Three of the Philadelphia Orchestra men died within the last three weeks. All three played second violin, and all were young and promising musicians. David Silverman was twenty, and Benjamin H. Winterstein twenty-one years of age.

Their places in the Orchestra have been filled. The draft has taken away eight men, but their places also have been filled. (p. 10)

Como reação ao encerramento das salas de espetáculo e cancelamento de contratos dos atores, a revolta dos profissionais do teatro fez-se sentir de várias formas.

No estado de Atlanta, artistas de vaudeville e de variedades invadiram um hotel à medida que os seus contratos foram sendo cancelados, e em Chicago o cenário foi

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22 idêntico (WALL, 2020). Em Atlanta temos o exemplo de um protesto de profissionais do teatro movidos por um sentimento de injustiça e discriminação pelo encerramento de alguns estabelecimentos, ao passo que outros, bem como eventos de natureza semelhante, continuavam em atividade sem impedimento:

That showing was made by the theater men that in some of the biggest northern cities, including New York, Chicago and others, the movies and theaters are running in full blast, not having been compelled to close because of the fact that they are not only well ventilated and kept in a highly sanitary condition, but that they are regularly inspected by the government army officers and are given clean bills of health by these men. (Atlanta Constitution, 15/10/1918, p. 1)

Igualmente em Denver, no Colorado, fizeram sentir-se os protestos, não só dos trabalhadores do teatro, mas também do cinema:

“We are perfectly willing to comply with any rules which will allow any plans of business to remain open” one of the theater men said. “We don’t want to be put in the light of protesting for more business issues. We closed before for five weeks, and did so willingly. All we want is to be given the same chance as the other businessmen. We are willing to supply gas masks to all patrons if that deemed necessary.”. (Rocky Mountain News, 23/11/1918, p. 7)

Em Nashville, no Tennessee, apesar do encerramento dos teatros, os artistas de vaudeville recorreram à improvisação no que dizia respeito ao modo de apresentação dos seus espetáculos:

With a booth and improvised stage on practically every corner, the various acts were staged, much like the sideshow of a circus, with the patriotic crowds migrating from place to place to bear the “speller,” who, instead of being a croaking person for personal gain and humbug, was a patriotic Nashville four- minute speaker, who asked the people to buy bonds and lend their Money to the Government. (Nashville Tennessean, 08/10/1918, p. 12)

Também em Nashville, alguns teatros aproveitaram o tempo de encerramento para proceder a remodelações: “There is not a theater in the city that has not undergone a complete renovation and some of them have been fairly rebuilt” (Nashville Tennessean, 03/11/1918, pp. 2-1). Em Seattle, Washington, já existia uma preparação de programação para quando os teatros reabrissem. Podia ler-se no título e subtítulo de

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23 uma notícia: “Good plays – If theatres reopen. Vaudeville and drama houses prepare programs in hope influenza order ends” (Seattle Daily Times, 13/10/1918, p. 6).

Na sequência da reabertura dos teatros, em Omaha, como relata o jornal Baltimore Sun a 31 de outubro de 1918, “Almost 100 actors and actresses, who have been stranded in Omaha for several weeks because of the quarantine against influenza, were made happy yesterday when told the ban is to be lifted Friday night” (p. 8). A mesma notícia referia que alguns dos profissionais do teatro tiveram de recorrer a outras ocupações rentáveis para conseguirem sobreviver durante o tempo em que a sua principal atividade profissional esteve suspensa:

The condition of many of the players was such that the Elks Clubs in different cities and towns have never been caring for them. Some of them have been doing manual labor. Four members of the “Somewhere in France” company have been at work in Armour’s Packing Plant at South Omaha.

One whole company is working at the American Smelting and Refining Company carrying pigs of hot lead. Many chorus girls are waitresses in restaurants.

(p. 8)

Em Cleveland, no estado de Ohio, a 12 de novembro de 1918, o jornal The Cleveland Press, na mesma secção onde foram tecidas críticas às peças estreadas logo após o levantamento de restrições, refere que “Theaters opened with every seat occupied Monday afternoon, after being closed four weeks by the flu. In the evening the audiences were not so large as they are likely to be the rest of the week from Tuesday to Saturday” (p. 14) e que o entusiasmo foi visível, nomeadamente quando eram feitas referências aos países aliados dos Estados Unidos da América na Primeira Guerra Mundial: “At every theater performance the audiences responded with great enthusiasm to every references to the United States, or to the allied nations, Great Britain, France, Belgium and Italy” (p. 14).

Também na indústria cinematográfica de Hollywood a gripe pneumónica causou transtornos, como nos diz um artigo do website The Hollywood Reporter. Em Los Angeles, no início de outubro de 1918, a National Association of the Motion Picture Industry enfrentou prejuízos devido à diminuição da afluência às salas de cinema. A 11 de outubro, a câmara municipal de Los Angeles (L.A. City Hall) ordenou que todos os teatros e cinemas fossem encerrados. Nas rodagens dos filmes, os atores contagiavam-se entre si através do contacto direto, chegando alguns a falecer. De forma a contornar a dificuldade financeira resultante do encerramento das atividades durante um mês,

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24 alguns estúdios mais pequenos fundiram-se. A 24 de outubro foram proibidas gravações de cenas com multidões, os espectadores em torno das filmagens deveriam estar dispersos (MEARES, 2020) e os visitantes eram pulverizados com desinfetante (KOSZARSKI, 2005: 468). No entanto, os impactos dos transtornos no cinema não parecem ter sido profundos ao ponto de serem memoráveis: “Did the epidemic, striking at a crucial moment in this developing contest, affect the future of the American motion picture industry as well? Like the rest of the public, subsequent film historians seem to have forgotten all about it” (KOSZARSKI, 2005: 466). No início da primavera de 1919, a pandemia já tinha acalmado e os estúdios funcionavam normalmente. A década de 1920 veio compensar as perdas temporárias sofridas pela gripe (MEARES, 2020).

Na Austrália, a gripe pneumónica terminou o império expansivo do music hall de Harry Clay (WALL, 2020). Segundo um artigo de 2020 de Kate Rice publicado no website do Arts Centre Melbourne, à semelhança do que acontecera noutros locais, os líderes do setor teatral também saíram prejudicados devido aos encerramentos e à falta de compensação monetária.Os artistas encontraram meios alternativos para subsistirem face à suspensão da sua atividade profissional: dançarinos e acrobatas continuaram a treinar em casa ou em teatros vazios, outros escreveram romances, fizeram voluntariado em hospitais temporários, ou aproveitaram para gozar férias. Os cinemas reabriram em março de 1919, adotando práticas de ventilação e limpeza (RICE, 2020).

Por vezes, através dos jornais portugueses tínhamos conhecimento de falecimentos e do contágio de profissionais das artes do espetáculo, vítimas da gripe pneumónica. Temos o exemplo do falecimento, no Lazareto de Gando, em Las Palmas, do violinista catalão Tomás Gorques, que a bordo do vapor “Infanta Izabel” se dirigia para Cuba (A Capital, n.º 2928, 15/10/1918, p. 2). Temos também a notícia de que a atriz Sabine Laundray, da companhia Brulé, não pôde acompanhar a trupe para a Argentina por motivo de doença, tendo ficado em S. Paulo a restabelecer-se, pretendendo seguir viagem assim que possível (A Capital, n.º 2949, 05/11/1918, p. 2).

A pneumónica inspirou também a composição musical. Encontrámos referências a esta epidemia na letra de duas canções, tendo uma delas chegado a ser interpretada numa peça de teatro.

Influenza Blues, canção escrita por Robert B. Smith, com música composta por Melvin B. Franklin, fazia parte do musical A Lonely Romeo, que esteve em cena na Broadway, em Nova Iorque, no Shubert Theatre em junho de 1919, e no Casino Theatre de julho a novembro do mesmo ano. Com acompanhamento de piano, a canção tem

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25 uma letra melancólica, apesar da melodia ritmada. Não sabemos em que contexto da peça se inseria esta canção, mas através da letra percebemos que a personagem que a cantava seria uma pessoa pobre, que vivia na rua, à chuva, e invejava quem tinha um lar e dançava alegremente, sentindo-se por isso triste (“feeling blue”). Além disso, é também percetível que esta pessoa estaria infetada pela influenza (“I’m on the outside feeling blue/ (…) And feeling friendly with the «flue»/ (…) I got the Influenza Blues”).

Nesta canção existe claramente um contraste entre os ricos e os pobres, sendo mencionados alguns elementos indicadores do modo luxuoso como os ricos viviam e se entretinham na época, como por exemplo as danças no cabaret e o consumo de bebidas, mais concretamente o champanhe. O facto de ser apresentada num musical da Broadway lembra-nos a crítica social ao jeito da revista portuguesa e é possível que tivesse um objetivo idêntico.

Já a canção The 1919 Influenza Blues terá surgido mais tarde e é um pouco diferente da anterior. Enquanto a canção mencionada acima se referia indiretamente à pobreza de alguém que estaria doente com a pneumónica, esta é um relato do cenário vivido, na medida em que retrata de forma mais pormenorizada o que se vivia na época, ainda que seja igualmente feita uma crítica social. Originária dos Estados Unidos da América, terá circulado entre os cantores de blues no início da década de 19302.Nesta canção é feita a referência à morte que se insinuava no ar, aludindo ao facto de a gripe se propagar por via aérea, podendo contagiar qualquer pessoa independentemente da classe social (“Death was creepin' all through the air,/ And the groans of the rich sure was sad”). Alude também ao castigo divino, tendo em conta que os religiosos acreditavam que esta epidemia se tratava disso mesmo (“Well it was God's almight plan,/ He was judging this old land,/ North and south, east and west”) e conta que os médicos achavam que a epidemia em breve estaria controlada, no entanto, eles próprios foram também contagiados (“The doctor said it soon would be,/ In a few days influenza would be controlled./ Doctor sure man he got had,/ Sent the doctors all home to bed,/

And the nurses all broke out with the same.”). Por fim, são feitas referências aos sintomas da influenza: fraqueza, febre, e dores nos ossos, (“Influenza is the kind of disease,/ Makes you weak down to your knees,/ Carries a fever everybody surely dreads,/ Packs a pain in every bone”) dizendo que em poucos dias as pessoas vão para o

2 Pouco ou nada se sabe acerca do seu autor ou da sua origem, mas é possível aceder a dois registos áudio: um interpretado por Bob Zaidman, de 1984, e outro interpretado pela cantora afro-americana Essie Ray Jenkins, de 2004.

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26 túmulo, referindo-se à morte rápida que esta gripe provocava (“In a few days, you are gone./ To that hole in the ground called your grave”).

Finalmente, com base nas informações recolhidas, concluímos que, relativamente à atividade teatral pelo mundo, de uma forma geral e como era de esperar, o encerramento dos estabelecimentos teatrais, a doença e morte de artistas, bem como alguns prejuízos – grandes ou pequenos, profundos ou ligeiros – a nível da economia foram os impactos mais comuns. A lavagem e a desinfeção dos espaços parecem ter estado igualmente entre as medidas mais adotadas. Além disso, também verificámos mais do que uma vez que os artistas encontraram alternativas para subsistirem face à suspensão da sua atividade profissional. Relativamente aos registos musicais que encontrámos, ambos se mostram relevantes, já que parecem não só testemunhar e marcar o que foi vivido, como constituem, simultaneamente, uma crítica social através da música. Para além das canções, temos conhecimento da existência de peças de teatro influenciadas por esta epidemia. É o caso de La Influenza Española, zarzuela cómica mexicana em um ato, dividida em cinco quadros, em prosa e em verso, com música de Lauro D. Uranga, do ano 1919 (Boletín de la Biblioteca Nacional de México, 1919: 53), e da comédia The Widow’s Veil de Alice L. Rostetter, que abordaremos com mais atenção no capítulo seguinte.

2.1. The Widow’s Veil, comédia de Alice L. Rostetter

The Widow’s Veil (O véu da viúva) é uma comédia satírica num ato escrita por Alice L. Rostetter, representada pela primeira vez pela companhia Provincetown Players, no Playwright’s Theater, em Nova Iorque, a 17 de janeiro de 1919, portanto, durante o período da pandemia de influenza. O título desta peça é uma referência ao véu negro utilizado pelas viúvas como símbolo de luto. Havia um orgulho implícito nas famílias da classe trabalhadora em usar o véu de viúva durante o luto, que indicava também a sua disponibilidade para o casamento (KENNEDY, 2007). The Widow’s Veil tem como personagens principais duas vizinhas, Katy MacManus e Mrs. Phelan. Ao longo da peça também surgem vozes e outros sons, maioritariamente provenientes da

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27 vizinhança3. A história passa-se em 24 horas “and not so long ago”, no quinto andar de um prédio de Nova Iorque, “the meeting place of tender-hearted women”

(ROSTETTER, 1920: 4).

Em The Widow’s Veil, Mrs. MacManus conta a Mrs. Phelan que o marido aparenta estar doente. Na noite de domingo, Pat disse-lhe que, se morresse antes dela, Mrs. MacManus deveria casar de novo e que o véu de viúva lhe assentaria bem. Mrs.

Phelan dá então o véu da sua prima a Mrs. MacManus, que o experimenta alegremente.

Nessa noite, parece ter morrido alguém na vizinhança e Mrs. Phelan crê que tenha sido o marido de Mrs. MacManus. No dia seguinte, Mrs. MacManus diz que afinal ele está recuperado e que a sua doença “Twa’s nothin’ but two tonsils in his throat started all the roarin’ and rampin’ and preparin’ us for his death” (ROSTETTER, 1920: 29). Deste modo, Mrs. MacManus não poderia usar o véu, e por isso devolve-o, tristemente, a Mrs.

Phelan.

Embora nunca seja referida, encontramos subtilmente várias marcas alusivas à gripe pneumónica que assolava o mundo na época em que esta peça foi representada.

Deparamo-nos, em primeiro lugar, com pistas de um certo distanciamento dos moradores do prédio, já que o isolamento social foi uma das medidas implementadas nesta época. A comunicação entre eles é feita não por meio de contacto direto, mas sim através de um monta-cargas (dumbwaiter). Além disso, ao longo da leitura da peça é percetível a utilização de bastantes indicações sonoras: “The voices in each apartment exist in their own spheres for the majority of the play, only intersecting as business or a need to socialize with other people brings them back to the dumbwaiter shaft”

(WINTER, 2020: 17). Também através das várias vozes que falam ao longo da peça e dos sons provenientes dos diferentes apartamentos, bem como do ambiente do prédio em si, é possível entender que vivem pessoas em cada apartamento e o que se passa no seu interior. Esta característica parece evidenciar uma distância não só entre os moradores, mas também entre estes e a assistência, na medida em que não os vemos, apenas os ouvimos.

Em segundo lugar, os sintomas de Pat descritos por Mrs. MacManus são uma pista que remete para esta epidemia. Temos a alusão à palidez (“He was white”, “and the blood all gone from his face”, ROSTETTER, 1920: 11), ao frio devido à febre

3 Entre as quais: voz do encarregado do prédio, voz da mulher do 6.º esquerdo, o choro do bebé do 6.º esquerdo, voz da mulher do 6.º direito, voz de uma menina, voz de Johnny Phelan, filho de Mrs. Phelan, uma agradável voz italiana, voz do merceeiro, voz do homem do 4.º esquerdo, voz do homem do 6.º esquerdo, e voz de Pat MacManus.

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28 (“And his hand cold—cold as the hand of a marble saint”, ibidem: 11), e também a referência à dor de cabeça e garganta (“And he’d the pain in his head and the throat of him burnin’ like hot peat”, ibidem: 11). Temos ainda como sintomas a falta de apetite e o mal-estar (“He wouldn’t eat the meat I was fixin’ […] at nine by the clock he starts mutterin’ and tossin’ and twistin’ like a soul in the black depths of hell”, ibidem: 13).

Apesar de, posteriormente, Mrs. MacManus revelar que afinal se tratava de uma amigdalite, os sintomas que Pat apresenta são de facto semelhantes aos da pneumónica.

Em terceiro lugar, ainda na sequência da enfermidade de Pat, observamos que tanto Mrs. MacManus e Mrs. Phelan, como Pat (através das falas da sua mulher) parecem antever e esperar uma morte rápida, através de um discurso sombrio, metáforas e analogias à morte e viuvez. Pat pede, irritado, a Mrs. MacManus que o deixe morrer sozinho e diz-lhe que deveria usar o véu de viúva caso ele partisse primeiro do que ela.

Já Mrs. Phelan, não só alude várias vezes à morte e lamenta que uma mulher perca o marido e fique viúva tão cedo, como também vai sugerindo várias vezes o véu de viúva e, de certa forma, parece demonstrar uma certa ansiedade em ver a amiga a usá-lo. As marcas no discurso de Mrs. MacManus parecem também aludir à morte, logo quando ela descreve os sintomas e compara o estado do marido ao de uma alma nas profundezas do inferno, por exemplo.

Em quarto lugar, o facto de ambas as vizinhas se divertirem a experimentar o véu parece ser utilizado como forma de se abstraírem da desgraça que estaria prestes a acontecer. No entanto, e apesar de o próprio Pat ter dito à mulher que deveria usar véu caso ele morresse, o entusiasmo crescente ao experimentarem o véu estando ele ainda vivo não deixa de ser uma atitude bizarra e paradoxal. Por um lado, distraem-se e divertem-se, por outro, inconscientemente e no meio dessa ilusão, parecem querer que Pat morra, tendo em conta que o véu seria usado apenas quando Mrs. MacManus se tornasse viúva (e se isso realmente acontecesse).

Rostetter’s Mrs. Phelan and Mrs. MacManus cannot escape death, so they devote themselves to the petty joys that accompany bereavement. The flu is neither romantic nor easily dealt with, so Rostetter allows her protagonists to worry about things that are, to the delight of audiences and critics alike. They are not heroes or role models, but they are extremely human, and they suggest that if the flu cannot be defeated, at least a small amount of entertainment can be had at its expense.

(WINTER, 2020: 19)

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29 Ao ser exposto este lado mais “humano” de ambas as vizinhas, é utilizada a sátira e o humor negro, jogando não só com o que ocorre na peça, mas também com o que se vivia naquele tempo, na vida real. Ademais, no dia seguinte, vemos que Mrs.

MacManus parece claramente zangada pela forma rude como cumprimenta a vizinha, visivelmente incomodada pelo facto de o marido ter melhorado e estar constantemente a chamá-la para pedir-lhe favores. Tal como refere Kennedy, “Thematically, one wonders whether the play intended to make a comment that the potential widow would have been better off in her own mind if her husband had died, or whether, simply, that her disappointment at his recovery was due to vanity” (2010: 114). Parece que nenhuma das duas esperava a recuperação de Pat, e que isso lhes tirou toda a alegria que sentiram no dia anterior. Além disso, ficamos com a sensação de que a tragédia aqui não seria a suposta morte do homem, mas sim o facto de ter recuperado e sobrevivido.

Em suma, são estas as marcas que demonstram de que forma, ainda que subtilmente, The Widow’s Veil é uma peça que remete para a gripe pneumónica. Para além de ter sido representada durante a epidemia, também os próprios profissionais da companhia Provincetown Players foram afetados pela gripe, como é o caso da dramaturga Djuna Barnes e da atriz Berenice Abbott, tendo esta última sido hospitalizada durante seis semanas e necessitado de reaprender a andar. Foram ainda exigidas várias reformulações do elenco durante aquela temporada (KENNEDY, 2010:

111). Já no texto, as marcas do distanciamento social e os sintomas de Pat, bem como a crença numa morte próxima, recordam-nos esta epidemia. Por fim, temos a atmosfera satírica em torno do véu da viúva.

O facto de esta peça de tom cómico e satírico ter subido à cena num período difícil poderá também ter feito com que o público se risse um pouco da situação e, ao mesmo tempo, se abstraísse dela. Segundo a pesquisa realizada por Winter, esta peça obteve comentários positivos por parte da crítica, tendo sido também elogiado o equilíbrio entre a comédia e a tragédia. “In a time period where millions were dying from both war and plague, Rostetter’s ability to breathe comedic warmth into the specter of ever-present death did not go unappreciated” (WINTER, 2020: 12).

Referências

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