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PROJETO CONHESER: A autopercepção estética de crianças negras

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Academic year: 2022

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PROJETO CONHESER:

A autopercepção estética de crianças negras

Danielle Soares Gomes Carlos Vinicius da Silva Mendes

INTRODUÇÃO

A implementação da Lei 10.639/03 despertou a criatividade de educadores em escolas de todo o Brasil no que tange à realização de projetos, oficinas, aulas, feiras literárias, entre outras manifestações artístico-culturais que abordem a cultura e história africana e afro-brasileira. A semana da consciência negra, comemorada na semana do dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, tornou-se uma data comemorativa no interior das escolas públicas e particulares. Embora haja uma mobilização nesta data, os ambientes educacionais ainda são espaços estruturados pelo racismo, pela invisibilidade da criança negra e sua consequente morte ontológica.

Conscientes destes problemas, este trabalho apresenta um relato de experiência vivenciado a partir do projeto “ConheSer” realizado em uma escola pública de Brazlândia, Distrito Federal, com as turmas de 4º ano do ensino fundamental durante o segundo semestre letivo de 2017 cuja tentativa é, justamente, lidar com os problemas citados.

A necessidade de contribuir para a construção do pertencimento étnico-racial de estudantes tendo por matriz referencial os elementos da cultura africana deu origem a esse projeto cujo objetivo principal foi contribuir no processo de autoafirmação de estudantes negros tendo por princípio seu pertencimento ancestral, com a estética negra como ponto de partida para tal.

Partindo da teoria dos berços civilizatórios de Cheikh Anta Diop, percebe-se a necessidade de se operar dentro de uma perspectiva semiótica africana e, com isso, reelaborar as noções de pertencimento. O projeto se embasou em uma perspectiva afrocêntrica, onde buscamos operar a partir de uma localização africana e com isso enfrentar o desafio de desmistificar o conceito de beleza do padrão europeu como universal. Estes são elementos importantes no processo de construção de uma Consciência Negra.

Para conduzir esse processo, foram realizadas oficinas com diversas temáticas que resultaram em produção artístico-cultural que compôs a exposição de arte da escola ao final do ano letivo. O projeto foi dividido em quatro momentos: a realização de 4 oficinas (“como me vejo/como sou”, “o que é belo?”, “de Kemet a Yorubalândia”, “nós de turbante”), um ensaio fotográfico, a produção de pintura em tela e a culminância na exposição de arte com a apresentação

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das telas e das fotos dos estudantes produzidas no ensaio. No decorrer do texto, detalharemos como foi a realização das oficinas e quais foram os principais resultados observados ao final do projeto.

AS BASES TEÓRICAS

As bases fundamentais que servem de subsídio teórico para apresentação deste trabalho partem da elaboração da teoria de Cheikh Anta Diop dos Berços Civilizatórios e, partindo do berço civilizatório Africano, trazemos a afrocentricidade cuja sistematização feita por Molefi Asante e a Per Aat Ama Mazama nos apresentam uma teoria que está alinhada com a retomada dos valores ancestrais e a resposta dada à nova disposição política do mundo. Faremos uso das considerações fanonianas a respeito da colonização mental e a necessidade de construção do que Fanon chama de consciência nacional com o intuito de pensar como a consciência da criança negra está disposta dada a realidade racista por ela vivenciada e como podemos pensar em estratégias de reversão desse quadro desastroso. Para tanto, não podemos deixar de pensar na contribuição de movimentos como a Negritude, Renascimento do Harlem, o Quilombismo e o Teatro Experimental do Negro e o conceito de Consciência Negra de Steve Biko.

A antropologia, e demais ciências ocidentais, ao longo do século XIX e XX foram utilizadas para enclausurar as civilizações em estereótipos que, além de não refletir a realidade e fazendo uso da violência bárbara, organizou o mundo em lugares de imperialismo e subalternidade. Desfazendo ponto por ponto dessas construções pseudocientíficas, Cheikh Anta Diop demonstra como o processo civilizatório está intimamente relacionado com as condições materiais que, por um lado é um processo calcado na hostilidade da natureza e a escassez alimentar - o berço nórdico - e por outro temos um processo civilizatório constituído em meio a uma natureza benevolente e abundante - o berço africano. Essas duas matrizes vão fornecer as bases materiais para a estruturação das sociedades e suas construções cosmológicas (DIOP, 2014).

Partindo do berço civilizatório africano em todos os seus elementos, a afrocentricidade se estrutura como uma proposta política e teórica que, revisitando de seu passado clássico - Kemet - ao mundo contemporâneo, sinaliza uma retomada ancestral a uma forma de ser, ao passo que faz enfrentamento ao supremacismo branco ocidental. A afrocentricidade é voltar para os trilhos.

Recentralizar. Voltar e tomar o que ficou pelo caminho em nome do restabelecimento da soberania e autodeterminação do povo Africano seja no continente, seja em sua dispersão.

A afrocentricidade nasce, portanto, em resposta ao ideal de supremacia branca que se expressa em pura violência (MAZAMA, 2009). Um dos autores que mais se dedicaram a compreender como essa violência opera tanto no plano mental quanto no plano material foi o revolucionário argelino Frantz Fanon. Em “Pele Negra, máscaras brancas” Fanon (2008) em sua primeira fase se debruça em pensar como se dá o processo de racialização promovido pelo ocidente que passa a operacionalizar no mundo a partir do advento da modernidade. Para Fanon, a racialização promovida pela colonização enclausura as pessoas em determinadas construções subjetivadoras da realidade e esse enclausuramento organiza o mundo de modo que pessoas negras estejam em um lugar de subalternidade em relação às pessoas brancas. Ainda que Fanon esteja fazendo uma análise da construção da humanidade branca partindo dos ditames da modernidade ocidental, vale fazermos uma breve consideração. No monumental “Racismo e Sociedade” Carlos Moore parte de uma análise histórica de mais de 4.000 anos para demonstrar a persistência do povo leucodérmico em perseguir e exterminar o povo melanodérmico (MOORE, 2007). Em “The African Origin of Civilization” de Cheikh Anta Diop, podemos notar a permanente tentativa dos

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povos leucodérmicos - representados pelos líbios - de destruírem os povos keméticos (DIOP, 1974).

Após essa breve consideração e retomando a argumentação de Fanon, podemos perceber como o processo de racialização cria dispositivos mentais para recolocar os indivíduos em posições subalternas. Pensemos, por exemplo, quando Fanon fala da língua e do colonizado que sai da colônia em direção a metrópole. Ao chegar, o colonizado vai ser confrontado com a verdadeira língua e sua fiel expressão, enquanto que o que ele sempre falou passa a estar errado, informal, sujo (FANON, 2008). Ainda que a língua do colonizador não seja a melhor forma da expressão do ser africano, a recusa do colonizador em relação a crioulização da língua – passando a estar errada - é uma demonstração da recusa do colonizador em relação ao modo de ser africano, em qualquer nível que seja.

Na segunda fase do pensamento e elaboração teórica de Frantz Fanon, encontramos um revolucionário que, ´para além de apontar como a colonização se hospeda no universo africano com o intuito de extermínio, nos aponta uma direção para lidar com o mundo pós-colonização.

Para ele, todos os recursos disponíveis devem ser empregados para a libertação da África. O colonizado deixa de operar mentalmente nos ditames coloniais e passa a assimilar um projeto nacional cujo interesse é a Unidade Africana em nome do estabelecimento de uma humanidade baseada no princípio da coletividade africana, isto é, consciência nacional.

Nesse processo, todos os elementos da cosmologia africana devem ser examinados para colocar à disposição da guerra de libertação. É nesse sentido que Fanon vai afirmar que, “Quando um povo apoia uma luta armada ou mesmo política contra um colonialismo implacável, a tradição muda de significado” (FANON, 2005, p. 258). Ou seja, se o momento pede guerra, devemos colocar nossa cultura a disposição da guerra. A cultura deve ser analisada e validados num contexto de guerra total onde se tem tudo a perder ou a ganhar.

Se a construção de uma ponte não enriquece a consciência daqueles que nela trabalham, que essa ponte não seja construída, que os cidadãos continuem a atravessar o rio a nado ou de canoa. (idem, p. 230).

Fanon nos evoca a alinhar a vida ao processo de libertação africana. Todos os nossos empreendimentos devem ter como finalidade a União e a Liberdade da África. Com isso, concebemos África não apenas limitada às fronteiras geográficas, mas como uma forma de ser e conceber o mundo partindo de um vínculo ancestral entre as pessoas do continente e da dispersão forçada. Desta forma, a construção da consciência africana que busca liberdade deve ser um empenho dos 400 milhões de africanos da diáspora e que se estabeleça um laço inquebrantável com a ancestralidade Africana e o Renascimento Africano.

Entre as muitas possibilidades de utilização dos elementos formulados pelo povo africano como forma de resistência a Maafa e reformulação do mundo, escolhemos falar da importância do Renascimento do Harlem, da Negritude, do Quilombismo como iniciativas que nos auxilia a retornar ao nosso berço civilizatório meridional.

O Renascimento do Harlem foi um movimento político de cunho cultural e artístico que, após um movimento migratório em massa dos africanos do sul dos Estados Unidos, estes se estabeleceram em Nova Iorque na busca por melhores condições de vida. Como resultado dessa migração, na década de 1920 temos um movimento de resgate dos elementos artísticos africanos que são incorporados nas técnicas de produção musical, poética, plástica e cia. Surgem nesse

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contexto, grandes referências como Louis Armstrong, Zora Hurston, Jacob Lawrence entre tantas outras.

O movimento de Negritude foi outra iniciativa que partindo principalmente da literatura, representou um enfrentamento ao processo de embranquecimento da cultura e fez duras críticas aos processos de colonização. Seu fundador, Aimé Césaire, cunhou o termo no grande poema

“Caderno de retorno ao país natal” onde o autor, depois de viver por um tempo na metrópole colonial, volta ao seu país de origem, Martinica, em um processo de reelaboração existencial. Mas é no “Discurso sobre o colonialismo” que Césaire constrói uma das críticas mais vorazes da colonização. Nos provoca quando denuncia o fato de sabermos tudo sobre a morte dos judeus pela Alemanha, mas não sabemos nada sobre o holocausto no Congo provocado pela Bélgica que matou mais de 10 milhões de pessoas em 20 anos de genocídio. A negritude surge, portanto, como um movimento que tem como uma de suas principais reivindicações a libertação africana do domínio ariano (CESAIRE, 2012; 2020).

O Quilombismo é uma categoria/filosofia/proposição elaborado por Abdias Nascimento que tem por finalidade última, pensar nas estratégias de manutenção da integridade africana em todos os seus aspectos. Abdias retorna à experiência Palmarina para resgatar a dimensão combativa do povo africano sequestrado e sitiado no Brasil, elaborando uma série de proposições teórico- práticas para o enfrentamento do conflito racial. Abdias do Nascimento foi um dos maiores Panafricanistas da história do Brasil. Atuou em vários países com a finalidade única de restabelecer o lugar original do povo Africano no mundo. Foi um poeta, sociólogo, artista plástico, político que estava trabalhando incansavelmente pelo próprio povo. Depois de uma experiência formativa em teatro no exterior, Abdias estrutura uma proposta de intervenção comunitária usando as artes cênicas como meio. Contudo, por uma perseguição do Estado brasileiro, Abdias foi preso e a primeira experiência do que viria a se tornar o Teatro Experimental do Negro foi na prisão. Abdias, se dando conta da dimensão racial do sistema prisional inicia sua militância artística cênica entre os africanos encarcerados: nasce o Teatro do Sentenciado. Posterior a esta experiência, o Estado brasileiro se dando conta que manter Abdias preso não interromperia sua atuação na guerra de libertação, o retira da cadeia. Então, se inicia o Teatro Experimental do Negro que trabalhava não só a parte artística, mas fazia alfabetização de adultos e formação política. Desta experiência nascem Ruth de Souza, Lea Garcia, Guerreiro Ramos e outras figuras ilustres (NASCIMENTO, 2019).

Por fim, a Consciência Negra é um conceito trazido por Steve Biko para falar da necessidade de se aliar a outras pessoas negras com vistas a um objetivo comum. Uma nova auto percepção não mais baseada em como o branco as veem e sim partindo de seus próprios sistemas de crenças e valores. Sobretudo a importância do orgulho de si mesmo (BIKO, 1990). Percebemos como Biko estava alinhado com as formulações teóricas que trouxemos. Partir de si, como Diop, o orgulho e valorização do que é africano como no Renascimento do Harlem, na Negritude e a necessidade de estar entre pessoas negras em vista de objetivos em comum, tal qual o Quilombismo. Compreender o processo teórico da colonização, suas críticas e saídas possíveis se faz um pré-requisito essencial para a retomada do nosso percurso civilizatório. Essas elaborações são importantes para fundamentar e orientar nossas práticas docentes. Uma educação em base africana só se faz possível quando sabemos quem somos, o que fizeram de nós e o que podemos voltar a ser.

O PROJETO

Tudo começou com a parceria entre três professoras negras que, no ano de 2017, ficaram responsáveis pela docência nas turmas de 4º ano da Escola Classe 08 em Brazlândia no turno

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matutino. Posteriormente a professora do 4º ano vespertino se juntou ao grupo e assim todas as turmas foram contempladas. O desafio naquele ano era trabalhar com alunos que apresentavam baixo rendimento e baixa autoestima. Entre planejamentos e ideias, a decisão foi executar um projeto que trouxesse a temática racial, não se limitasse à semana da Consciência Negra e que tivesse a culminância na tradicional exposição de arte da escola, ao final do ano letivo. Assim, nasceu o projeto ConheSer que visava trabalhar com a autopercepção estética das crianças e elevar a autoestima.

O projeto foi desenvolvido ao longo do segundo semestre de 2017 e dividido em oficinas.

A primeira delas intitulada “Como me vejo e como sou?”, buscou trazer exatamente a percepção de si pelas crianças e teve como instrumento o autorretrato. Como ponto de partida, as crianças deveriam desenhar em uma folha branca o seu próprio rosto. Passados alguns minutos, este primeiro autorretrato deveria ser compartilhado com a turma. Numa roda de conversa, os alunos mostravam os desenhos e com a mediação da professora apontavam semelhanças e diferenças entre o autor/a e a ilustração. Neste primeiro momento foi possível perceber a distância entre como a criança era e como ela gostaria de ser ou como se enxergava. Não faltaram desenhos com olhos verdes ou azuis, mesmo sendo a maioria dos alunos pretos ou pardos e apenas um estudante com olho azul em um total de aproximadamente 60 crianças nas quatro turmas. Ao final da exposição, as professoras pediram para que as crianças guardassem aquele primeiro desenho e solicitaram que na oficina seguinte levassem espelhos pequenos.

Foi a partir do reflexo de seu próprio rosto refletido no espelho que a segunda atividade com autorretrato se iniciou. Com espelhos a postos, as professoras iniciaram a aula convidando os alunos a se observarem com atenção. Durante cerca de 10 minutos, a única tarefa foi se olhar e se perceber. Intervenções eram feitas pelas educadoras: “Observem como são seus olhos, qual é a cor deles?”, “Como é o seu cabelo? Liso ou cacheado? Curto, longo, baixo ou volumoso?”, “Qual é a cor da sua pele? Que tom de marrom ela tem? Será que esse lápis (o famoso cor de pele) é o melhor para colorir o seu desenho?” e assim por diante. Depois da observação inicial, os alunos desenharam novamente em uma folha A4 o segundo autorretrato. Desta vez a representação foi mais fiel e os olhinhos brilhavam na hora de mostrar para os colegas: “Tia, ficou igualzinho!”.

Figura 1: confecção do autorretrato Figura 2: autorretratos expostos na sala

Fonte: arquivo pessoal, 2017. Fonte: arquivo pessoal, 2017.

Na medida em que a oficina ia sendo desenvolvida foi possível perceber a mudança nos autorretratos, representações totalmente diferentes do que realmente eram, -diga-se, embranquecidas- passaram a retratar com fidelidade os rostos após as intervenções. Nariz, boca, olhos, cabelo e cor da pele iam tomando forma e representando o real.

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A segunda oficina “O que é belo?” foi um momento menos lúdico e de debate com as turmas acerca do que é considerado como bonito. Com as três turmas do turno matutino reunidas em uma sala, as professoras iniciaram perguntando se todos gostavam de si como eram. A resposta unânime foi “mais ou menos” e as professoras questionaram o que não gostavam e o porquê. A partir disso, o questionamento foi: o que gostariam de mudar fisicamente? Em seguida, a pergunta foi: Como é uma pessoa bonita para você? As respostas foram registradas no quadro branco:

Figura 3: O que você gostaria de mudar?

Fonte: arquivo pessoal, 2017. Fonte: arquivo pessoal, 2017.

É notória a frequência em que os olhos e o cabelo aparecem como um elemento que as crianças gostariam de modificar. Mais curioso é perceber como o padrão ocidental do que é belo está engendrado no subconsciente das crianças. Uma pessoa bonita é considerada assim por ter olhos claros, cabelo liso, cor branca ou o que mais se aproxima dela na percepção das crianças.

Neste momento, a professora Maria do Socorro fez a seguinte indagação: “Então eu não sou bonita?” Os alunos ficaram surpresos com a pergunta e de imediato responderam: “Não tia, a senhora é linda!”. A professora então retomou:

“Vocês disseram que uma pessoa bonita tem os cabelos lisos, olhos azuis, corpo de modelo, então nem eu, nem a tia Mércia e nem a tia Dani somos bonitas! Se for assim, aqui nesta sala só quem é bonito é o (citou o nome do aluno), pois só ele tem olho azul, cabelo liso...” (Professora Socorro, 2017)

Por alguns segundos o silêncio pairou no ar. A fala proposital da professora fez os alunos refletirem sobre algo que já estava naturalizado para eles. Como seria possível achar as professoras lindas e ao mesmo tempo não descrever nenhuma característica delas? Até então, a turma não sabia do que se tratava aquelas atividades com autorretrato e nem essa reunião para conversar sobre o que achavam bonito. A partir desse momento foi possível iniciar um debate com a turma sobre o que fomos ensinados a considerar como bonito, e então falar sobre a temática racial. Foi aí que aconteceu o momento mais intenso e desafiador de todo o projeto.

Um dos alunos levantou a mão para falar. “L.” era um aluno retinto, com diagnóstico de aluno especial, com baixíssima autoestima, mas com rendimento escolar acima do nível da turma.

Durante sua fala relatou que sofria “bullying” quando estudava em uma escola no interior do Maranhão. Os colegas diziam que ele tinha cara de peixe. Afirmou que não gostava da sua pele e que gostaria de ser branco. Engasgou nas palavras. O choro escorreu no rosto perante toda a turma.

Foi difícil continuar a partir daí. Acompanhei “L”. até o banheiro para lavar o rosto. Lágrimas enxutas -as minhas e as dele- voltamos para dar seguimento à oficina. As professoras e a turma,

Figura 4: Como é uma pessoa bonita para você?

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num ritmo desconcertado, ainda sem saber como proceder diante àquela situação, engoliram a angústia e continuaram a conversa. O objetivo agora era mostrar o contrário, apresentar imagens em que pessoas negras não apareçam em situações subumanas ou degradantes, imagens que são pouco veiculadas pela mídia. A segunda parte dessa oficina foi, então, apresentar em slides uma

“chuva” de pessoas pretas, pardas, indígenas em que a beleza se apresenta em cada uma na sua forma. As reações das crianças foram surpreendentes: “Olha, ela tem o cabelo igual o meu”, “Minha tia tem tranças igual ao cabelo dela”. Esta fase da oficina foi importante para que as crianças consumissem outro tipo de imagem que não fosse o estereótipo de beleza constantemente visto e internalizado. Os tecidos, adereços, tranças, turbantes, cabelos, entre diversos aspectos mostrados procuravam ressaltar o quanto há beleza no que se convencionou a achar feio.

A terceira oficina contou com o professor Carlos Mendes, coautor neste relato, que buscou localizar os alunos a partir de sua ancestralidade situada no continente africano. Para isso, conduziu uma aula na qual trouxe elementos Keméticos, da cultura Yorubá, assim como referências de personalidades e personagens negros presentes nos desenhos infantis e mídia em geral. Após a oficina os alunos ilustraram o que mais gostaram, o que posteriormente deu origem às telas expostas na exposição de arte da escola no encerramento do ano.

Figura 5: Pintura em tela: Oxóssi

Fonte: arquivo pessoal, 2017. Fonte: arquivo pessoal, 2017.

Quando a quarta oficina aconteceu, já se aproximava a semana da consciência negra em novembro. Foi durante as comemorações que aconteceu a oficina “nós de turbante”, onde as meninas participaram de um diálogo sobre beleza, autoestima, autocuidado com cabelos crespos e cacheados e confecção de turbantes. Além dessa atividade, foi proposta uma produção de texto na qual as crianças deveriam escrever, em sua opinião o que é ter consciência negra e quando o racismo acontece. “M”. fez o seguinte relato:

“Racismo foi quando eu estava indo para o mercado comprar pão com meu amigo e vinha um cara de cavalo e ele me pediu uma massa. Ai eu falei: que massa, massa de pão? Ai ele falou: massa de maconha. E ele colocou o cavalo pra cima de mim. E quando eu cheguei lá em casa eu fiquei pensando: eu acho que é porque eu sou negro. Ter consciência negra é… comer o que eles comem, brincar como eles e dançar como eles.” (M., 10 anos).

RESULTADOS E ANÁLISE

Após semanas de muito trabalho as oficinas findaram e teve como resultado um ensaio fotográfico cujo objetivo era ressaltar a beleza das crianças e contribuir para elevar sua autoestima.

Para isso foi realizada uma parceria com o fotógrafo Matheus Alves, que aceitou realizar um ensaio Figura 6: Pintura em tecido: autorretrato

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fotográfico com todos os estudantes voluntariamente. Os pais ou responsáveis concordaram, assinaram termo de uso de imagem e colaboraram simbolicamente com 2 reais para imprimir as fotos. Desta forma, após a exposição os familiares poderiam levar as respectivas fotografias para casa. O ensaio foi precedido de muito entusiasmo pelas crianças. Na data marcada trocaram o uniforme e colocaram a melhor roupa. As meninas levaram pentes, cremes de pentear e arrumaram uma à outra de modo que os cabelos ficassem bem cacheados e elas bonitas para a foto. Algumas meninas que antes das oficinas só iam para a escola com o cabelo preso apareceram com os crespos e cachos livres e soltos. Ser fotografado por um especialista na área era algo inédito. Ver o resultado desse trabalho nos painéis da exposição, ou melhor, se ver naquele lugar de importância foi fundamental para os alunos valorizarem a si mesmos e ressignificar o seu pertencimento étnico racial.

Podemos afirmar que o objetivo inicial foi alcançado na maioria dos alunos. M. citado anteriormente entrou nas aulas de capoeira da comunidade e relatava isso com orgulho para a professora. F. que já era praticante passou a valorizar ainda mais os ensinamentos da luta e participou de uma apresentação de capoeira na escola com o professor de Educação Física. E., aluna especial, com dificuldade intelectual e motora, cuja autoestima era afetada por estes fatores e por ser negra, começou a soltar o cabelo para ir para a escola. No início, com timidez, mas à medida que foi se acostumando passou a não ter mais vergonha dos cachos. Meninas de todas as turmas me paravam no corredor para mostrar o novo creme de pentear que a mãe havia comprado e para relatar como estavam cuidando dos cabelos no dia a dia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de vermos como o processo de racialização é internalizado nas crianças, podemos ver porque “L” queria ser branco. De acordo com Fanon, se a única expressão da humanidade é sendo branco, quero ser branco também (FANON, 2008). Deslocar essas subjetivações para um contexto coletivo é um dos maiores ganhos que podemos ter em um projeto como este. Pois, só poderemos lidar com esses processos coletivamente. No contexto do mundo pós-racializado que vivemos, a produção artística, seja no contexto do Renascimento do Harlem, seja na oficina com os estudantes precisa estar alinhada com o princípio da libertação e da retomada de uma forma de ser. Temos aqui a importância de vincular as reflexões fanonianas na nossa prática pedagógica, vislumbrando sempre a recolocação da nossa percepção de mundo no nosso berço original. A Afrocentricidade é um dos caminhos que nos possibilita esse retorno.

Mais do que esgotar a argumentação feita até aqui, percebemos a importância de ampliar o debate. As perguntas só podem ser respondidas em contextos específicos. Antes de responder qualquer inquietação sobre que caminho tomar para voltar a ser, podemos nos desacomodar das clausuras raciais e buscar nossas próprias referências rumo a reconstrução. O auto reconhecimento possibilitado com esse projeto representou um grande momento de construção de uma consciência negra que se compromete com a percepção de uma forma de ser que nos reposiciona no mundo para além da estética por si mesma. As práticas pedagógicas, projetos, oficinas servem como um espaço onde essas questões podem ter uma dimensão prática. Lidar com a dor das crianças negras racializadas e construir com elas saídas mais humanas é uma das proposições que deixamos ao final desse trabalho.

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REFERÊNCIAS

BIKO, Steve. Escrevo o que eu quero. São Paulo: Editora Ática, 1990

DIOP, Cheikh Anta. Unidade Cultural da África Negra. Lisboa: Edições Pedago. 2014.

DIOP, Cheikh Anta. The African Origin of Civilization: Myth Or Reality. Estados Unidos: Lawrence Hill Books, 2014.

CÉSAIRE, Aimé. Diário de um Retorno ao País Natal. São Paulo: edUSP, 2012.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso Sobre o Colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: edUFJF, 2005.

FANON, Frantz. Pele Negra, mascaras brancas. Salvador: edUFBA, 2008.

MAZAMA, Ama. A Afrocentricidade como um novo paradigma. In: LARKIN, Elisa.

Afrocenticidade. Uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. 111-127 MOORE, Carlos. Racismo e Sociedade. Belo Horizonte: Mazza, 2007.

NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. São Paulo: Perspectiva, 2019.

Informações do(a)(s) autor(a)(es) Danielle Soares Gomes

Universidade de Brasília

daniellesoaresgomes@gmail.com

http://lattes.cnpq.br/8011963583979533 Carlos Vinicius da Silva Mendes

Universidade de Brasília carlosmendesljs@gmail.com

http://lattes.cnpq.br/1548159653420986

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