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Autos n° 0003345-37.2019.8.16.0179

1. Trata-se de Ação Civil Pública com pedido liminar ajuizada pela Defensoria Pública do Estado do Paraná em face do Município de Curitiba, da Fundação de Ação Social - FAS e de Cavo Serviços e Saneamento S/A.

Em longa narrativa, discorre a Defensoria Pública que tem recebido, por meio de seu Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos, reiteradas denúncias de pessoas em situação de rua relatando que "o Município de Curitiba, por meio de seus órgãos, têm sistematicamente recolhido, de forma forçada e sem autorização, seus pertences pessoais, tais como mochilas, colchões, remédios e mesmo documentos pessoais".

Argumenta que tais ações são perpetradas de forma conjunta entre a Guarda Municipal, a FAS e a Cavo, as quais realizam abordagens, algumas vezes de forma truculenta, a moradores de rua em logradouros públicos, recolhendo seus pertences pessoais (agasalhos, objetos de higiene pessoal, remédios, colchões, cobertores, etc), descartando-os e, algumas vezes, promovendo um acolhimento compulsório, o que seria frontalmente ilegal.

Para comprovar os fatos, a Autora traz aos autos relatos de moradores de ruas, de Munícipes que testemunharam alguma abordagem, e material audiovisual do modus operandi. Ainda, apresenta reportagens jornalísticas que noticiaram supostos abusos, por parte dos agentes municipais, ocorridos durante estas abordagens.

Sustenta, dentre outros motivos, que a prática ora relatada configura clara violação à integridade física e mental dessas pessoas - já tão violada - e que, considerando as condições climáticas que acometem essa Capital, tem o condão de aumentar o sofrimento desta população nas épocas de frio o que pode, em última análise, leva-los a óbito por hipotermia.

Documento assinado digitalmente, conforme MP nº 2.200-2/2001, Lei nº 11.419/2006, resolução do Projudi, do TJPR/OE Validação deste em https://projudi.tjpr.jus.br/projudi/ - Identificador: PJL9F 2E4G6 VCYSR 4QZL3

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Em sua fundamentação menciona diversos diplomas legais, dentre os quais a Constituição Federal, que estabelece a dignidade da pessoa humana, assim como o direito a tratamento igualitário, sem distinções, a não submissão a tratamento degradante, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança.

(Art. 1º, III, e art. 5°, I, III). Expõe sobre o direito de propriedade dos moradores de rua de ter a posse e fruir de bens pessoais e/ou essenciais à sua sobrevivência.

Cita, ainda, a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, Lei nº 8.742/1993, que dispõe acerca dos princípios que norteiam o atendimento social, devendo a Administração Pública atentar-se à dignidade do cidadão, à sua autonomia, dentre outros. Comenta a respeito do Decreto Municipal nº 1.226, de 22 de agosto de 2012, por meio do qual o Município de Curitiba aderiu à Política Nacional para a População em Situação de Rua e relata a ocorrência de um suposto déficit estrutural que afeta os serviços destinados a população de rua, tais como vagas em abrigos, espaços para armazenamentos de bens, etc.

Afirma, defendendo a responsabilidade civil objetiva da Administração Pública em virtude de sua conduta ilícita, a ocorrência de dano moral coletivo tendo em vista o flagrante desrespeito a direitos transindividuais. Outrossim, também defende a ocorrência de dano individual, o que seria plenamente possível no bojo da ação civil pública.

Requer, com fulcro no art. 497 do CPC, tutela liminar de obrigação de não fazer, determinando aos Réus que se abstenham de atos que violem os direitos das pessoas em situação de rua, especialmente no tocante à apreensão de pertences pessoais e documentos de identificação, sob pena de multa diária. Ainda, que as abordagens sejam realizadas por agentes municipais devidamente uniformizados e identificados.

No mérito, requer (i) a inversão do ônus da prova; (ii) a procedência total dos pedidos, confirmando-se a liminar, e condenando os réus em obrigação de fazer para o fim de "f.1.) abster-se de retirarem os pertences das pessoas que se encontram em situação de rua; f.2.) capacitar permanentemente os seus servidores e colaboradores para a prestação de um serviço humanizado e consentâneos à dignidade humana, incluindo

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nessa capacitação instituições protetoras dos Direitos Humanos e as próprias pessoas em situação de rua e suas organizações; f.3.) determinar que todos os agentes que realizem abordagem às pessoas em situação de rua ostentem de forma visível a sua identificação de modo a possibilitar, em caso de abuso de poder e violação de direito, a correta identificação desses agentes; f.4.) editar normas ou orientações internas de caráter geral contendo diretrizes para a abordagem das pessoas em situação de rua que vede a retirada de pertences e respeite a dignidade da pessoa humana e todos os seus direitos fundamentais, apurando e sancionando administrativamente todos casos de violação desses direitos por seus agentes públicos; f.5) Determinar que o Município de Curitiba desenvolva políticas específicas de habitação de interesse social voltadas para a população em situação de rua como medida para a superação da situação de extrema vulnerabilidade; f.6) disponibilizem três guarda-pertences no centro da cidade, incluindo o antigo guarda pertence da Praça Osório, para que as pessoas possam ter locais mais centralizados para, caso queiram, guardar os seus pertences; f.7.) Condenação dos réus ao pagamento de R$10.000,00 (dez mil reais) a título de danos morais individuais a todas as pessoas que foram atingidas pela atuação dos réus a serem apuradas em sede de liquidação de sentença". E, por fim, a condenação do Município de Curitiba e da Cavo S/A ao pagamento de R$1.000.000,00 (um milhão de reais) a título de indenização por danos morais coletivos.

Determinada oitiva prévia do órgão Ministerial (seq. 7.1), este manifestou-se favoravelmente à concessão da medida liminar (seq. 14).

Na sequência, facultou-se aos réus prazo para manifestação sobre o pedido liminar (seq. 17).

Devidamente intimado, o Município de Curitiba defendeu a lisura das abordagens realizadas pelos agentes municipais, enfatizando o repúdio a remoções compulsórias e práticas políticas de cunho higienista, violenta, racista ou com fim segregatório. Afirmou ainda que é praxe as abordagens serem sempre realizadas por servidores uniformizados e devidamente identificados.

Enfatiza a disponibilização, nos Centros POP e nas Casas de Passagem, assim como também na Praça Plínio Tourinho, de guarda volumes para os itens pessoais dessa população. Sustentou que o Departamento de Limpeza Pública do Município de

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Curitiba recolhe das ruas e das praças apenas os pertences, como roupa e colchões, por exemplo, que estejam abandonados, ou seja, desacompanhados, e que as abordagens da Guarda Municipal são rotineiras e realizadas de forma indistinta, prática que inclusive culminou com a localização de inúmeros foragidos da justiça.

Por fim, impugna a documentação juntada, eis que produzida unilateralmente. Pugna pelo indeferimento da tutela liminar.

Réplica pela autora (seq. 32).

Ao seu turno a Cavo Serviços e Saneamento S/A afirma que por força do contrato de concessão que é parte, e por envolver abordagem, negociação e encaminhamentos institucionais, bem como pelos riscos à segurança de seus colaboradores, somente realiza a coleta de resíduos sólidos/entulhos pertencentes a moradores em situação de rua quando diretamente solicitado pelo ente municipal e após a implementação do que se denomina como Ação Integrada, envolvendo os protocolos de ação da Fundação de Assistência Social, da Guarda Municipal e do Departamento de Limpeza Pública.

Explica que os objetos coletados são aqueles expressamente indicados e autorizados pelos agentes públicos presentes no local. No tocante a bens abandonados nos logradouros públicos relata que "são objeto de varrição manual e não coleta por caminhão, conforme informado pelas autoridades em suas manifestações, tal atividade é determinada pelo Departamento de Limpeza Pública. Nesse sentido, o garimpo, manuseio e reaproveitamento de materiais abandonados são absolutamente vedados às equipes de varredores, por razões de segurança, eficiência e competência técnica. Portanto, não cabe aos varredores (profissionais responsáveis pelo serviço de varrição manual) fazer avaliações ou juízos subjetivos que envolvam garimpo de materiais".

Aponta que a concessão da medida liminar pode vir a prejudicar o desempenho do serviço público tendo em vista que "os trabalhadores do ramo de limpeza pública não têm condições de avaliar ou discriminar a origem de objetos sem guarda deixados em logradores públicos, na maioria das vezes em estado deteriorado de preservação, e se houve intenção de abandono ou há intenção de reutilização por parte de

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alguma pessoa. (...). Porém, em quaisquer das hipóteses, é proibida a catação de bens pessoais, conhecida como muamba".

Postula, ao final, pelo indeferimento da medida liminar, acrescentando que o seu deferimento implica em periculum in mora reverso, uma vez que tem o condão de prejudicar a escorreita prestação de serviço público de limpeza urbana.

É a síntese do necessário.

Decido o pedido liminar.

2. A previsão de concessão de tutela específica liminarmente decorre da previsão contida nos artigos 11, 12 e 21 da LACP c/c o art. 84, §1° do CDC:

“Art. 11. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor.”

“Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo.”

“Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. (Incluído Lei nº 8.078, de 1990)”

“ Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

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§ 3° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.”

A previsão constante do art. 497 do CPC prevê uma regra a ser adotada somente em caso de procedência [final] da ação, e não naquelas de natureza provisória.

Vejamos o que dispõe o art. 497 do CPC (grifei):

Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo.

A ação civil pública, de base constitucional, visa a responsabilização por danos causados ao meio-ambiente; ao consumidor; a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; a qualquer outro interesse difuso ou coletivo; por infração da ordem econômica; à ordem urbanística; à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos; e ao patrimônio público e social. E está disciplinada na Lei nº 7347/1985, que prevê, em seu art. 12, a possibilidade de concessão de mandado liminar.

Para tanto, faz-se necessária a congruência de dois requisitos: a plausibilidade do direito alegado e o perigo advindo da demora na prestação da tutela jurisdicional.

No caso em tela, ao menos em juízo de cognição sumária, verifica-se a presença dos requisitos para a concessão parcial da liminar pretendida.

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Isso porque, em análise preliminar das provas trazidas inicialmente, verifica-se a probabilidade do direito invocado, na medida em que se observou, de fato, que alguns agentes dos réus vêm, em algumas situações demonstradas (docs. seq. 1.4, 1.12, 1.14, 1.15, como exemplo) afrontando fundamentos constitucionais basilares, como aquele previsto no artigo 1°, III da Carta Magna:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui- se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;”

Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet, in Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 60, a dignidade da pessoa humana compreende “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos”.

Ainda, há a previsão do Decreto n° 7.053/2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, em seu artigo 5°, I: respeito à dignidade da pessoa humana.

Pois bem, considerando os documentos acostados com a inicial, em que constam termos de declarações de moradores de rua, testemunhas, fotografias, percebe-se que, ainda que não seja o padrão e a política implementada pelo Município de Curitiba, alguns de seus agentes incorreram em abusos, causando constrangimento à população em situação de rua, como na situação em que um agente arrasta uma pessoa por meio de uma “gravata”, bem como como pela fotografia de seq. 1.6 em que há aparente recolhimento de pertences de moradores de rua, na presença destes.

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Ora, a situação de rua é a mais degradante de todas as condições.

Quando a pessoa perde todos os vínculos familiares e de seu círculo social, sem manter um teto para abrigar-se, ela perde todas as referências.

Com efeito, o direito à moradia está incluído nas garantias sociais contempladas pela Constituição Federal (art. 6º).

É inconteste o dever do Poder Executivo em implementar ações de acolhimento de moradores de rua em abrigos municipais, com a finalidade de conferir o mínimo de dignidade a tais pessoas, como o acesso a direitos fundamentais básicos como moradia, educação, saúde e segurança, além de permitir uma melhor ordenação e utilização dos espaços públicos.

Tais medidas constituem políticas públicas a serem implantadas pela administração pública, sendo inviável ao Poder Judiciário fazer esta opção pelo administrador, sob pena de interferência indevida entre os poderes da República.

Entretanto, na presente lide, o que se busca liminarmente não traz à baila esta discussão, uma vez que o que se busca é a garantia da dignidade dos moradores de rua ao impedir-se que tenham seus pertences pessoais recolhidos por agentes públicos, bem como que qualquer abordagem seja realizada por agente identificado.

Na presente ação civil pública, ajuizada pela Defensoria Pública Estadual, narra-se que o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos do órgão recebeu inúmeras denúncias de que agentes da Prefeitura de Curitiba estavam recolhendo, sem justa causa, com apoio da Guarda Municipal, pertences de moradores em situação de rua (utensílios, roupas, alimentos, cobertores, documentos, etc.), situação que configura grave violação aos direitos dessa população altamente vulnerável, diminuindo assim suas possibilidades de sobrevivência, e contrariando os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana.

As reportagens jornalísticas e publicações que acompanham a exordial também informam que os moradores em situação de rua vêm sofrendo violências diversas, com abordagens truculentas por parte de agentes dos réus e recolhimento de

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pertences pessoais, inclusive documentos de identificação, como corroboram os vídeos que constam do link indicado pela autora.

Não se desconhece, tampouco minimiza-se a situação atual do país, sendo de percepção desta magistrada todas as dificuldades e entraves existentes na efetivação das políticas públicas determinadas pela Constituição Federal, sendo reconhecidas as ações já envidadas pelo Município, por meio da FAS, a fim de levar a efeito medidas que assegurem um mínimo de dignidade a esta população vulnerável que vive à margem do Estado. E sabe-se, também, que a questão perpassa por problemas outros de educação, saúde e moradia.

Lado outro, também é importante ressaltar que que parcela da população de rua, geralmente influenciada pelo uso de substâncias entorpecentes, vive a par da legalidade, praticando delitos e causando insegurança ao restante dos cidadãos, o que merece, sim, ser repelido, havendo que se fazer aqui esta ressalva, sendo louvável a atuação regular e legal da Guarda Municipal nas situações que envolvam delitos.

O que se está a impedir é a penalização das pessoas em situação de rua com a retirada de pertences que lhes conferem um mínimo de dignidade, bem como que tais ações não sejam acompanhadas de truculência e violência física.

Não obstante, nenhum direito ou garantia deve ser considerado absoluto. Há que se ponderar o interesse público envolvido, consistente em assegurar- se o escorreito funcionamento dos serviços públicos de limpeza e zeladoria urbana, o direito à segurança pública e à preservação da saúde pública de todos os cidadãos, com os direitos fundamentais das pessoas em situação de maior vulnerabilidade.

Torna-se clara a situação delicada que aqui se afigura.

Há que se ponderar os interesses envolvido no caso concreto, como ensina o Min. Luis Roberto Barrozo: “(...) não existe hierarquia em abstrato entre princípios, devendo a precedência relativa de um sobre o outro ser determinada à luz do caso concreto(...)”. (in Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 329)

Consoante o próprio Município consta em sua manifestação, houve um substancial aumento do número de pessoas em situação de rua nos últimos anos e, por

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esse motivo, cada vez mais, as políticas públicas não se revelam efetivas, não se mostrando suficientes os abrigos disponibilizados pela administração para acolher a população nesta situação.

Ora, se o Poder Público tem falhado em prover o mínimo a essa população, não se pode permitir, pois, que lhes sejam retirados os pertences essenciais para a sobrevivência com um mínimo de dignidade, o que ofende o artigo 1º, incisos II e III da Carta Maior, que trazem a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da República Federativa do Brasil, e igualmente o inciso LIV do artigo 5º da CRFB/88, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, além de seu artigo 3º, que trata dos objetivos fundamentais do estado.

É como ponderou, com precisão, o i. Promotor de Justiça:

“No caso em apreço, o Município de Curitiba tem demonstrado incapacidade em oferecer a essa população o mínimo dos direitos fundamentais e sociais à moradia, à saúde, à propriedade e, no limite, à própria vida, assim descumprindo a mais comezinha das obrigações.

Consta dos autos, p.ex., que não há vagas de acolhimento para todos que se encontram em situação de rua, modo que, além de não oferecer uma alternativa a essas pessoas, ainda tem retirado delas o pouco que possuem e, com isso, tornado sua condição ainda mais indigna e aumentado o risco à vida decorrente do desabrigo (p.ex., tomando-lhes seus medicamentos e seus cobertores).

Quem deveria estabelecer as políticas públicas capazes de tutelar esses cidadãos e reduzir-lhe a vulnerabilidade, tem sido justamente o responsável por fomentar essa condição, mediante ações que retiram deles os poucos bens que puderam amealhar, valendo-se por vezes de abordagens violentas e ameaçadoras. Há lesão pelo Município ao princípio da moralidade ao qual está adstrito (tanto quanto suas Secretarias e a própria CAVO).

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Saliente-se, ademais, que o dever estatal de assegurar o mínimo existencial engloba além do mínimo dito fisiológico, referente à sobrevida dos cidadãos, a perspectiva do mínimo social, referente à própria noção de inclusão social. “

Não nos falta no ordenamento jurídico preceitos legais que consagrem os direitos de que gozam a população em situação de rua. O Decreto Federal nº 7.053/2009 institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, de modo que estabelece no artigo 5º que “São princípios da Política Nacional para a População em Situação de Rua, além da igualdade e equidade: I - respeito à dignidade da pessoa humana; II - direito à convivência familiar e comunitária; III - valorização e respeito à vida e à cidadania; IV - atendimento humanizado e universalizado; e V - respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência”.

Dessa maneira, a despeito da supremacia do interesse público que deve nortear a atuação da Administração, não se negando o poder de polícia administrativo que, segundo o doutrinador José dos Santos Carvalho Filhos, consiste na “prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade” (Manual de Direito Administrativo, 13ª ed., Ed. Lúmen júris, 2005, pág. 56), constata-se, nesse juízo preliminar, a existência de eventuais abusos por parte dos agentes dos réus em relação à população em situação de rua, que não podem ser tolerados pelo ordenamento jurídico.

Na medida em que os agentes municipais, com o resguardo da Guarda Municipal, algumas vezes em período noturno, têm procedido à apreensão, recolhimento e destruição de objetos pessoais de suma importância para essas pessoas, como cobertores, remédios, exames e documentos de identificação, há uma situação flagrante de ofensa à dignidade da pessoa humana, à propriedade e à legalidade.

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Nesta senda, estes pertences, além de constituírem instrumentos capazes de permitir a sobrevivência do morador de rua, são sua propriedade (no sentido jurídico da palavra) e não entulhos - independente do estado em que se encontrem -, e sob estes é seu direito exercer a posse e a fruição sem que sejam "desapropriados" pela Administração. Como assevera o parquet "Os seus poucos pertences, pois, representam todo o exercício do direito à propriedade, sejam as coisas de valor econômico ou afetivo.

Retirar-lhes à força, portanto, significa afastá-los ainda mais do mínimo de que necessitam para a sobrevida e um empecilho ainda maior para a inclusão social".

Consoante o teor do item 5 da informação prestada pela FAS (seq.

31.2), que diz "Nas orientações técnicas/ diretrizes do atendimento realizado pela FAS não prevê subtração, inutilização, destruição ou apreensão de bens pessoais como: documento de qualquer natureza, cartões bancários, sacolas, medicamentos e receitas médicas. Todos esses pertences caracterizam-se de uso pessoal", deve ser observado que a retirada forçada dos bens dos moradores de rua não constitua uma estratégia do Poder Público que tem como intuito o de forçar essas pessoas a buscarem os serviços que a municipalidade lhes oferece (deficitários, frise-se), a exemplo dos abrigos. Tal encaminhamento deve ser feito pela abordagem dos agentes, porém seu acatamento deve se dar de forma voluntária.

O poder de polícia somente pode (e deve) ser exercido dentro dos limites que o catálogo de direitos fundamentais lhes autoriza, garantindo-se que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem obediência a regras anteriormente postas.

Há, certamente, um limite tênue existente e delicado na atuação estatal, a qual deve respeito à dignidade da pessoa humana desta população vulnerável, como também deve atuar de forma a garantir ações assistenciais a estes, as quais nem sempre são aceitas, além de zelar pela continuidade dos serviços públicos essenciais e segurança pública.

Cabe destacar, por fim, que não se está combatendo ou inibindo aqui o serviço de varredura dos logradouros públicos conforme descrito pela ré Cavo S/A, com o consequente recolhimento de objetos/pertences abandonados nas vias. Isso porque,

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não é razoável exigir dos colaboradores da empresa concessionária que estes saibam se determinado bem pertence ou não a um morador de rua ou se está abandonado ou não.

Em outras palavras, merece ser coibida a prática perpetrada por agentes públicos municipais consistente no confisco dos pertences, estes entendidos como aqueles bem não abandonados (cobertores, colchões, vestuário, sacolas, remédios, documentos, alimentos, etc.) da população em situação de rua, estando elas em grupo ou sozinha, e os objetos estando em bom estado ou não.

Presentes, portanto, a probabilidade do direito em relação à necessidade de garantir-se a dignidade da pessoa humana da população de rua no que tange à manutenção de seus bens pessoais, bem como o risco ao resultado útil ao processo, na medida em que muitas pessoas poderão ficar sem seus pertences até a decisão final do processo, a concessão em parte da medida liminar é medida que se impõe.

Diante do exposto, defiro parcialmente a liminar pretendida para determinar que os agentes vinculados aos réus se abstenham de recolher/retirar os bens pertencentes aos moradores de rua que não estejam em situação de abandono e para determinar que todos os agentes que realizem abordagens à população moradora de rua estejam devidamente identificados, sob pena de incidência de multa fixada em R$500,00 para cada descumprimento da obrigação.

3. Deixo de designar audiência de conciliação prévia, porquanto o direito tutelado não admite auto composição (artigo 334, §4º, do CPC).

4. Citem-se os réus para, querendo, oferecer resposta no prazo 30 (trinta dias), nos termos dos artigos 183 e 335, do CPC, com a advertência do artigo 344, do mesmo Código.

5. Uma vez contestado o feito manifeste-se a parte autora no prazo de 15 (quinze) dias, conforme artigo 350, do Código de Processo Civil.

6. Após, intimem-se as partes para que especifiquem, no prazo comum de 05 (cinco) dias, as provas que desejam produzir, de forma minuciosa e demonstrando sua pertinência, sob pena de indeferimento.

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7. Por fim, dê-se vista dos autos ao Ministério Público.

Curitiba, 23 de janeiro de 2020.

Diele Denardin Zydek Juíza de Direito Substituta

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