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Mestre Marta Madureira Prof. Doutora Paula Tavares Catarina Ferreira Gomes O desenho como processo de construção pessoal

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Academic year: 2021

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O desenho como processo de construção pessoal

O livro de actividades para adultos como forma de incentivar a prática do desenho

Mestranda

Catarina Ferreira Gomes

Orientadora

Prof. Doutora Paula Tavares

Co-orientadora

Mestre Marta Madureira

Dissertação/Projecto de Estágio apresentado ao Instituto Politécnico do Cávado e do Ave

para obtenção do grau de Mestre em Ilustração e Animação.

Junho 2013

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O desenho como processo de construção pessoal

O livro de actividades para adultos como forma de incentivar a prática do desenho

Mestranda

Catarina Ferreira Gomes

Orientadora

Prof. Doutora Paula Tavares

Co-orientadora

Mestre Marta Madureira

Junho 2013

Este texto foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico

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O desenho como processo de construção pessoal

O livro de actividades para adultos como forma de incentivar a prática do desenho

Resumo

A presente dissertação pretende demonstrar de que forma o livro de actividades que desenvolvemos como objecto de estudo para este trabalho, contribui para fomentar a prática do desenho e contribui para o leitor melhor se conhecer e a melhor conhecer o que o rodeia. Tendo em conta que o livro de actividades apresentado tem como objectivo principal incentivar o leitor a um registo diário do desenho, tivemos como referência, por serem exemplos paradigmáticos, diários gráficos de diferentes artistas que, apesar de distintos, têm em comum o facto de representarem processos artísticos que antecederam e acompanharam determinada obra, vivências e/ou pensamentos intrínsecos ao carácter auto-reflexivo e auto-biográfico deste tipo de registos.

Palavras-chave: desenho, diário gráfico, livro de actividades

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Drawing as a personal construction process

The activity book for adults as a way to encourage the practice of drawing

Abstract

This dissertation aims to demonstrate how the activity book that we developed as an object of study for this work, is beneficial for enhancing the practice of drawing and helps the reader to know himself better and to better understand his surroundings. Considering that the activities’ book presented mainly aims to encourage the reader to a diary drawing record, we took as reference, for being paradigmatic examples, graphic diaries of different artists that despite different, have in common the fact they represent artistic processes that preceded and followed certain work, experiences and / or thoughts with an inherent self- reflexive and autobiographical character.

Keywords: drawing, graphic diary, activities’ book

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Agradecimentos Agradeço a todos aqueles que tornaram a realização deste trabalho possível.

Em especial às minhas orientadoras, Prof. Paula Tavares e Prof. Marta Madureira.

Aos meus pais, João e amigos.

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júri

presidente

Prof. Doutor Pedro Mota Teixeira

Professor adjunto convidado do Instituo Politécnico do Cávado e Ave

arguente

Prof.ª Doutora Claúdia Amandi

Professora auxiliar na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

orientadora

Prof.ª Doutora Paula Tavares

Professora adjunta do Instituo Politécnico do Cávado e Ave

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ÍNDICE

Introdução ... 8

Capítulo 1 – Desenho – Contextualização 1.1 O que é? Onde está? ……….……….………... 10

1.2 O desenho para todos ... 11

1.3 O lugar do desenho na história da arte ...12

1.4 A aplicabilidade do desenho ... 16

1.4.1 O desenho autónomo ... 16

1.4.2 O desenho projecto ...17

Capítulo 2 - O diário gráfico 2.1 As possibilidades lúdicas do desenho ... 20

2.2 Contexto histórico ... 21

2.3 Tipologias do diário gráfico ... 22

2.3.1 Diário Gráfico de Observação ... 22

2.3.2 Diário Gráfico de Criação ... 24

2.3.3 Diário Gráfico de Reflexão/Livro de artista ... 25

2.4 Principais características (do desenho) dos diários gráficos ... 26

2.4.1 Formato ... 26

2.4.2 Qualidade do papel ... 27

2.4.3 Factor cronológico... 27

2.4.4 Pessoal ... 28

2.4.5 Laboratório de experiências ... 29

2.4.6 O carácter auto-biográfico do desenho... 29

2.5 O contributo dos recursos tecnológicos na prática do desenho - o diário gráfico digital vs o diário gráfico tradicional ... 30

Capítulo 3 - Projecto Prático – Livro (de actividades) para massajar a Imaginação 3.1 O estatuto do livro impresso em relação ao digital - contributos do design gráfico ... 34

3.2 Estado da Arte ... 35

3.3 Apresentação do projecto prático ... 36

3.3.1 Livro de actividades - estrutura e conteúdo ... 37

3.3.1.1 Opções Formais ... 39

3.3.1.2 Opções Semânticas ... 40

Conclusão ... 44

Bibliografia ... 46

Anexos ... 50

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação serve de suporte teórico ao projecto prático - “Livro de (actividades) para Massajar a Imaginação” - realizado no âmbito do Mestrado em Ilustração e Animação no Instituto Politécnico do Cávado e Ave, e que tem por objectivo a prestação de provas públicas de defesa de Mestrado.

Numa altura em que o desenho é tão divulgado e discutido, apresentamos um projecto prático em que se convida o leitor/autor a contar a sua história através do registo do desenho. O suporte teórico procura reflectir sobre como o desenho pode ser uma forma de construção pessoal e para tal faremos uma análise do tipo de desenho presente nos diários gráficos, por este ser um suporte onde o desenho é substancialmente mais genuíno e que consequentemente melhor reflecte o modo como nos movemos pelo mundo e como nos apropriamos dele (KENTRIDGE, 2012).

Por outro lado e uma vez que usamos dispositivos visuais para mediar a maioria das nossas relações com o exterior, este livro apresenta-se como uma proposta que procura trazer-nos de volta ao "tecido do mundo" (ROBINS, 2003, p. 52), proporcionando, a quem nasce neste contexto cultural1, outras possibilidades de contacto com o mundo real. Com este projecto pretendemos lembrar a quem nasce neste universo a importância do desenho manual, individual e único. Este é um livro de celebração do desenho e da singularidade de cada praticante. Esperamos que com esta proposta o leitor se sinta motivado e com vontade de iniciar o seu diário gráfico.

Pretendemos pesquisar e aprofundar conhecimentos relativos a este género de livros (livros impressos que incentivam a prática do desenho, facultam ideias acerca do que registar e estimulam a criatividade), compreender a importância do desenho como método de pensamento, exploração e reflexão, fundamental para o desenvolvimento criativo e cognitivo e compreender a importância de criar mecanismos atractivos que estimulem e captem a atenção do leitor, nomeadamente a importância de o envolver na construção do livro, permitindo que este seja uma colaboração entre o autor e o leitor. Como objectivos operacionais propusemo-nos a criar um livro que incentiva a prática do desenho, acessível, inclusivamente a pessoas sem formação na área, que será futuramente apresentado a editoras do campo artístico/experimental.

Com este trabalho procuramos responder às seguintes questões:

- Qual a importância do desenho na aprendizagem de outras disciplinas?

- De que forma o livro de actividades pode contribuir para estimular a prática do desenho?

- De que modo é que o registo diário do desenho nos representa e reflecte aquilo que somos?

1Contexto este, onde o “sentido do tacto, sentido íntimo, tem sido reprimido e desvalorizado” (ROBINS, 2003) por oposição a uma experiência sensorial moderna que se tornou poderosamente associada à visão, devido à crescente utilização de mediadores oculares que utilizamos para nos relacionarmos com o mundo.

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Antes de iniciar, apresentamos a estrutura que iremos seguir ao longo da dissertação:

No capítulo 1, começamos por definir o que é o desenho – primeiro de um modo genérico;

seguidamente no campo da história da arte, para percebermos qual o papel que desempenhou nas artes visuais ao longo do tempo, reflectimos sobre a importância do desenho para todos e referimos e analisamos “as duas versões predominantes da aplicação do desenho” (TAVARES, 2009, p. 19).

O capítulo 2 aborda as possibilidades lúdicas do desenho – o diário gráfico – sendo que começamos por contextualizar e perceber em que altura é que a sua utilização passou a ser uma prática comum e de seguida analisamos as principais características deste tipo de desenho tão singular, através da análise de diferentes tipos de diários. Já no último ponto deste capítulo, mencionamos os contributos tecnológicos na prática do desenho, em especial os diários gráficos digitais, analisando quais as vantagens e desvantagens em relação ao diário gráfico tradicional.

No capítulo 3 apresentamos o livro de actividades – começamos por referir os motivos que nos levaram à sua realização, mencionamos projectos similares, justificamos a estrutura do livro e as opções formais e temáticas.

Por fim, concluímos, dizendo se os objectivos que traçamos inicialmente foram atingidos e apresentamos (caso existam) as dificuldades com que nos deparámos bem como expectativas futuras.

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Capítulo 1 – DESENHO - CONTEXTUALIZAÇÃO

1.1 O QUE É? ONDE ESTÁ?

“Desenhamos desde a infância, a infância da humanidade, com os desenhos rupestres que “iluminaram” as cavernas e desde a infância propriamente dita. A tentativa de representação, antes da consciência da interpretação ou invenção faz parte da vontade humana.” (TAVARES, 2009, p. 9)

Como observou Tavares (2009) o impulso para desenhar está presente desde o início da história da humanidade. Usámo-lo (no passado) para nos adaptarmos ao meio, pois ao contrário das outras espécies que foram dotadas de mecanismos biológicos que lhes permitiram adaptar-se ao ambiente envolvente, o Homem, teve antes a capacidade/privilégio de adaptar o meio transformando-o, intervindo e criando, através do desenho. Daí o uso da expressão “Desenhar é ser humano” (TREIB, 2008), pois o hábito de registar o quotidiano e de criar é característica da espécie humana. Assim, podemos afirmar que o desenho “está em todo o lado” (DEXTER, 2005, p.6), está presente em tudo aquilo que nos rodeia e em tudo o que foi planeado e construído pelo homem, desde um casaco que nos protege do frio, um edifício para morarmos, estradas e transportes para nos deslocarmos, entre outros.Mas, além do desenho ser uma ferramenta utilizada de forma rigorosa por profissionais das mais diversas áreas, todos nós o usámos diariamente para resolver as mais variadas situações. O desenho ajuda-nos a considerar hipóteses e percepcionar problemas, que de outra forma não seriam detectados, pois ao colocarmos num só plano/superfície uma série de ideias e informações, temos a possibilidade de as comparar, relacionar, associar e estruturar, num tipo de registo que não tem necessariamente de representar algo esteticamente correcto (no sentido de ser o mais naturalista/objectivo possível), mas é em vez disso, sintético e simples pois o seu propósito é o de analisar e explorar determinado problema.

Mas o desenho pode servir para muitos outros fins. Usámo-lo desde a infância onde há como que algo de mágico em ver surgir algo onde antes nada existia. Como observou Tavares (2009), “a tentativa de representação, antes da consciência da interpretação ou invenção faz parte da vontade humana. (...) Qualquer um de nós que se lembre da infância, ou que na idade adulta lide habitualmente com crianças, sabe que há o impulso de riscar, de ver deslizar pela folha de papel o lápis, a ânsia da cor, mas sobretudo pela identificação do resultado com “um algo”, ainda que no suporte nada se reconheça” (pp. 9-10). Usámo-lo ainda para sonhar e idealizar. Usámo-lo para mostrar alternativas do mundo visível. Usámo-lo porque temos uma inata vontade de descobrir, inventar e de conhecer algo até ao mais profundo detalhe. Usámo- lo porque sentimos necessidade de viajar e de procurar o desconhecido, bem como uma vontade “de contar, de descrever e de desenhar o que se viu ou que se viveu” (SALAVISA,

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2008, p. 31). Usámo-lo para nos conhecermos melhor e para termos uma noção daquilo que somos, pois o desenho possibilita a descoberta do que está à nossa volta e inerentemente de nós mesmos. Ainda que não pensemos muito nisso, ao desenharmos “descobrimos motivos que explicam os nossos gostos, definimos uma “estética”, e a capacidade de formular juízos sobre beleza e a fealdade” (Botton2, 2004, apud SALAVISA, 2008, p. 30). Não podemos deixar de referir, que ainda o usamos quando a linguagem verbal não é possível, já que o desenho é uma linguagem universal.

Graficamente, o que é um desenho?

Normalmente associamos o desenho à representação de uma ideia em qualquer superfície, realizada com determinada ferramenta. Para a maioria das pessoas é necessário uma folha de papel e um lápis, mas essa representação pode ser feita com os mais diversos materiais e nas mais variadas superfícies: sombras, rastos de fumo, pegadas, nódoas, marcas de pneus na estrada - tudo isto são desenhos - marcas que deixamos por onde passamos. No fundo “todas as marcas feitas deliberadamente ou não, são desenhos” (DEXTER, 2005, p. 6).

1.2 O DESENHO PARA TODOS

É comum ouvirmos (erradamente) dizer “eu não sei desenhar” ou “eu não tenho esse dom ou esse talento”. Aprender a desenhar é algo que está ao alcance de qualquer pessoa, desde que pratique, tal como o faz para aprender a ler ou para aprender a conduzir um automóvel.

Obviamente, há pessoas que têm uma maior predisposição, vontade ou necessidade de aprender esta disciplina do que outras. Neste ponto vamos procurar entender porque é que o desenho é uma disciplina que, como observou HENRIQUES (2001) citando Ramalho Ortigão (1880), está “na base de toda a educação do homem”, inclusive para pessoas que não procurem obter uma formação artística3.

Como referimos anteriormente, “desenhamos desde a infância” (TAVARES, 2009, p. 9) pois é algo inato e inerente à vontade humana. O desenho numa primeira instância, auxilia a criança a desenvolver as suas capacidades imaginativas e representativas, e ajuda-a a entender o mundo.

Tal como vários autores4 referem, também Maslen e Southern (2011) fazem uma comparação entre a aprendizagem do desenho e a aprendizagem da linguagem. Imaginemos duas crianças, uma de 4 anos e outra de 10 anos. Elas dizem a mesma coisa mas a mais velha possui um vocabulário mais extenso e usa naturalmente descrições mais completas que a outra. Quando somos crianças, ouvimos para construir o nosso repertório de palavras para nos podermos

2 BOTTON, Alain de. A arte de viajar. Dom Quixote, Lisboa, 2004

3 Referimos aqui o exemplo do antropólogo Manuel João Ramos que observou (no blog de Eduardo Salavisa - http://diariografico.com/htm/outrosautores.htm) a propósito da utilização da ferramenta do desenho na sua área de trabalho: "A necessidade de desenhar acaba por ter um importante impacto no meu próprio trabalho em antropologia, no modo como organizo a informação, no modo como concebo um texto, na capacidade de construção, na capacidade diagramática, seja de um desenho, seja de um texto. O sistema intelectual é o mesmo, não vejo o que faço como duas expressões diferenciadas de dois hemisférios cerebrais distintos”.

4 E.g. Ramalho Ortigão (1836-1915) ou Lev Semyonovich Vygotsky (1896-1934)

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exprimir e só com uma prática constante começamos a entender o vocabulário e as suas regras. Tal como observou Laurie Olin no ensaio “More than wiggling your wrist (or your mouse): thinking, seeing and drawing” presente no livro “Drawing Thinking” de TREIB (2008), “aprendemos o vocabulário e uma série de regras. Fazemos isso numa prática constante. Fazemos cópias, e construímos um repertório gramatical que nos permite encontrar a nossa forma de nos expressarmos…" (p. 82) Que no fundo é o mesmo que acontece com o desenho – quanto mais praticarmos e experimentarmos novas abordagens mais amplo e rico fica o nosso vocabulário de técnicas e de linguagens, que nos ajuda a melhor traduzir uma ideia. Deste modo, podemos afirmar que, como começamos a desenhar antes de ler/escrever, a prática do desenho contribui para o desenvolvimento da destreza manual da criança e consequentemente as que mais praticarem, mais facilidade terão em escrever. Tal como já tinha referido Bordes (2001), citando Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo, educador e político, o ensino do desenho é fundamental, “não pela arte em si” mas pela sua capacidade de educar, “pois serve para ajustar a vista e fazer flexível a mão” (p. 507) e é “esta coordenação entre os sentidos que nos permite elaborar um conhecimento do mundo que nos rodeia” (Ibid.). Também Henriques (2001), nos recorda que em 1880, em Portugal “Ramalho Ortigão defendia que o desenho é a base de todo o ensino escolar e toda a educação do homem.” (p. 9) e que (baseando-se nas ideias expressas por Rosseau) a educação da criança deve iniciar-se pelo “estudo do desenho, e consequentemente, pela adestração dos sentidos na observação directa de tudo o que o rodeia” (p.9). “E é esta e não outra a razão que justifica a sua aprendizagem, inclusivamente para aqueles que não procurem uma formação artística”

(BORDES, 2001, p. 507).

1.3. O LUGAR DO DESENHO NA HISTÓRIA DA ARTE

“É possível imaginar uma altura em que não havia pintura a óleo (antes do séc. XV) ou vídeo arte (antes de 1964), mas o desenho parece ter estado sempre connosco.” (HOPTMAN, 2002, p. 11). De facto, e apesar da disciplina do desenho ter servido (e continuar a servir) de alicerce/apoio a todas as obras que a história da arte retrata, ela não tem sido propriamente tratada, pois não era normalmente vista como uma arte final. Em vez disso, o desenho ficou escondido frequentemente no atelier, em segundo plano. Fazia parte do processo de trabalho e só era visto enquanto tal. Não era exibido, divulgado, nem discutido. Contudo, hoje assiste- se a um ressurgimento no interesse na disciplina do desenho, e há uma vontade em estudá-la para perceber qual o seu papel no campo da arte, já que finalmente o seu estatuto deixou de ser inferior ao das outras disciplinas. Mas porquê agora? Vamos seguidamente analisar, de forma resumida, como o papel do desenho se foi alterando ao longo da história: desde a altura em que pertencia apenas ao espaço do atelier, até aos dias de hoje, em que é exibido e admirado, como qualquer outra obra de arte.

O desenho como disciplina e ferramenta de construção surgiu no Renascimento, o primeiro momento marcante na história do desenho, que recuperou alguns fundamentos da

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antiguidade clássica (alicerçada numa “filosofia antropocêntrica de sentido racionalista”5) que teve expressão na Grécia e em Roma.

“No século XVI, em Itália o desenho assumiu uma posição de grande destaque, como nunca antes acontecera na produção artística. Até ao final do séc. XV, as superfícies de desenho eram caras e a sua falta de disponibilidade limitava a produção de desenhos preparatórios. Com o aparecimento do papel a um preço mais acessível, no final do séc. XV, feito de polpa de fibra e produzido para o desenvolvimento da indústria de impressão, permitiu que os artistas experimentassem mais e com mais liberdade. Como resultado, os esboços nesta altura abundavam.”

(KLEINER, ano, p. 581)

Por outro lado, com a descoberta da perspectiva linear - pelo arquitecto e engenheiro Filippo Brunelleschi (no início de 1400), que deslocou o autor para fora da obra - expandiram-se as possibilidades de representação, que permitiram desenhar com uma surpreendente exactidão.

O desenho passou então, a ser um elemento fundamental na criação artística, uma forma de conhecimento, uma ferramenta com a qual passou a ser possível compreender e investigar o mundo natural, e um meio de os artistas expressarem os seus pontos de vista. Foi através do desenho que Leonardo da Vinci, uma das figuras mais emblemáticas do Renascimento -

“descrito como o arquétipo do homem do Renascimento”6 - contribuiu para grandes avanços em várias áreas do conhecimento, como a anatomia, a engenharia civil, a botânica, a geologia, a matemática, a música e claro, a pintura, a escultura e a arquitectura.

Durante o séc. XVI (na Europa, França e Itália) deu-se o início do ensino do desenho nas academias, onde os alunos tinham como referência as obras dos grandes mestres, nomeadamente as de Miguel Ângelo ou do já citado Leonardo da Vinci, das quais faziam cópias para aperfeiçoarem a técnica. Também nesta altura, começaram a surgir os primeiros manuais de desenho, graças à invenção dos tipos móveis - por Johannes Gutenberg na Alemanha no início do séc. XV7 - que permitiram divulgar conhecimentos através dos livros bem como produzi-los em massa.

O desenho continuou, durante os séculos seguintes, a apoiar as outras áreas artísticas, mantendo-se na penumbra com o seu papel de subserviência.

Entre o final do séc. XVIII e meados do séc. XIX, as várias revoluções avassaladoras que decorreram na Europa, vieram dar aso a uma série de importantes mudanças na vida contemporânea, que se repercutiu por todo o mundo (fruto igualmente, das grandes invenções criadas no séc XIX que revolucionaram os hábitos da população, como o telefone, a

5 http://pt.wikipedia.org/wiki/Arte_da_Grécia_Antiga 6 http://pt.wikipedia.org/wiki/Leonardo_da_Vinci

7 LUPTON, Ellen. Pensar com tipos. Cosacnaify. 2004 (p. 13)

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fotografia, o automóvel ou as exposições universais). No que diz respeito ao campo artístico “a sociedade dividia-se em duas tendências: o conservadorismo das academias, que assumiram para si o papel de divulgadoras e guardiãs da verdadeira arte; e o desejo de mudança e inovação, patente em muitas minorias que, não obstante a rejeição académica e/ou dos críticos, foram logrando encontrar públicos próprios. Dessas tendências inovadoras saíram as sementes de toda a arte do séc. XX” (PINTO, MEIRELES, & CAMBOTAS, 1999, p.8).

Paralelamente ao ensino rigoroso do desenho, que tinha como finalidade representar a realidade o mais fielmente possível, começaram a surgir abordagens inovadoras na forma de representar. Com o aparecimento da fotografia (por volta de 1840), a finalidade dos processos representativos, que equivocamente tinham a finalidade de ser uma reprodução verídica da realidade, alterou-se (MASSIRONI, 1982). Deste modo, como a necessidade de copiar a realidade tinha diminuído, pois a câmara fotográfica poderia fazê-lo, os artistas alteraram a forma de representar o mundo. Por outro lado a fotografia facultou ideias alternativas de enquadramento e começaram a surgir pinturas com perspectivas nunca antes vistas e foi também uma ferramenta auxiliar para muitos pintores que mais tarde finalizavam a obra nos seus ateliers através da visualização da imagem fotográfica.

Com o Impressionismo (o movimento mais revolucionário desde o Renascimento, ao nível da forma de representação, que surgiu como oposição ao Romantismo e Academismo) as imagens passaram então, a ser cada vez mais codificadas, pois as distintas abordagens dos diferentes artistas vieram atribuir outro sentido ao que estava representado, o que tornou a arte mais complexa e rica de significados. Embora os artistas desta corrente representassem temas comuns (nomeadamente a efervescência da época que se vivia, temas ligados à vida citadina ou a ilusão do movimento), as suas pinturas começaram a reflectir, cada vez mais, a personalidade de cada um, o que possibilitou o aparecimento de abordagens tão distintas e deu origem a um crescente individualismo.

Deste modo, a partir desta altura os limites entre a área da pintura e do desenho começaram lenta e gradualmente a fundir-se. Até aqui, existia na pintura, uma necessidade de se esconder o desenho, de se esconder a linha com o qual fora esboçado inicialmente. Porque de facto, na realidade não existiam esses contornos e a pintura retratava a realidade de uma forma muito realista. A título de exemplo, referimos o quadro “Olímpia” (1863) de Edouard Manet, que esteve exposto no 1º Salão dos recusados e “escandalizou o público burguês (...) e os críticos da academia pelo seu nu vulgar, executado com ligeireza numa técnica que usava o traço negro nos contornos e saltos bruscos entre as cores claras e escuras.” (ver fig. 1 em anexo).

Um dos exemplos mais emblemáticos e inovadores para a altura na forma de representar, foram as colagens de Matisse (1869 – 1954), pela forma como sintetizou linha e cor, pois foi algo extremo para a altura (com cores planas e contrastantes, silhuetas, forma positiva e negativa, a ausência de profundidade e de ilusões ópticas). Como observou Essers (2004)

“Matisse consegue apresentar todos os seus elementos do quadro ao mesmo nível, conseguindo com isso, alcançar a equivalência absoluta entre linha e cor” (p. 83) e os seus papéis recortados são o melhor exemplo disso (fig. 2). Nas palavras de Matisse (1951), “o papel recortado permite-me desenhar na cor. Trata-se de uma simplificação” (p. 278). A

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presença da linha (bem como as cores planas, a expressividade das pinceladas ou a falta de perspectiva), em tempos impensável de exibir, começou a ser uma prática recorrente entre as representações dos artistas.

A partir da segunda guerra mundial (1939 – 1945) os limites entre as diferentes áreas artísticas ficaram cada vez mais difusos e cada vez mais complicados de definir, devido ao aparecimento de uma diversa panóplia de estéticas, com obras híbridas e difíceis de catalogar (Será Pintura? Será Desenho? Será Escultura? Será Performance?), reflexo de uma sociedade em mudança e inquieta, que teve expressão em movimentos entre o Abstraccionismo e a Arte Conceptual, (1942 e 1960) – as chamadas vanguardas do pós-guerra – e após 1965, em movimentos como a Land Art, Performance, Happening ou a Vídeo Arte (PINTO, MEIRELES, & CAMBOTAS, 1999). As obras da artista plástica portuguesa, Helena Almeida (que se inserem na arte conceptual, onde o desenho passou a ser valorizado pelo seu carácter de processo) são um exemplo de como as diferentes áreas se cruzam. Esta é, aliás, a principal característica dos seus trabalhos - o estar na fronteira entre vários campos artísticos e o procurar ultrapassar os limites de cada um. A obra da artista é vasta e diversificada com trabalhos de pintura, desenho, gravura, escultura, e sobretudo fotografia. Em alguns dos seus trabalhos (como estes exemplos da série “Desenho Habitado” de 2004 ou da série “Pintura habitada” de 1975) (fig. 3 e 4 respectivamente) questiona precisamente os limites entre as áreas e há uma vontade de sair do papel e de trazer o desenho para o espaço. Nas palavras8 da autora (1999): “nunca fiz as pazes com a tela, o papel ou qualquer outro suporte. Creio que o que me faz sair do suporte, através de volumes, fios e de muitas outras formas, foi sempre uma grande insatisfação em relação aos problemas do espaço” (p. 62).

De acordo com TAVARES (2009) “A conquista da autonomia do desenho, como disciplina/forma de expressão não subordinada, deu-se no séc. XX, especialmente desde os anos sessenta. Como as reflexões do artista Bruce Nauman sugerem, esta valorização, reconhecimento e legitimação, deveu-se principalmente ao vínculo do desenho com o processo mental e energia criativa que são a génese da obra de arte” (pp. 17-18). A arte conceptual considerou que mais do que a técnica utilizada para executar determinada obra, o mais importante era a ideia, o conceito, valorizando assim o processo criativo e a espontaneidade dos primeiros desenhos. E Naumam afirma mesmo que “deve considerar-se que o desenho está terminado quando se atinge o ponto em que a ideia de define como necessária” (MOLINA, p.16).

Importa referir que esta autonomização do desenho não implica um abandono da sua utilização enquanto ferramenta de estudo inicial que testa e esboça as primeiras ideias e acompanha todo o processo. “O desenho como estudo continua a ser um procedimento recorrente no processo artístico, mas agora liberto dos condicionalismos que o remetiam para segundo plano, passando a ser valorizado pela sua espontaneidade, pela rapidez de execução, pelo potencial de experimentação, pela economia de meios.” (VASCONCELOS, 2009, p.65).

8No livro A indisciplina do desenho. (cat. exp.) Lisboa, Ministério da Cultura, Instituto de Arte Contemporânea, 1999.

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1.4 A APLICABILIDADE DO DESENHO 1.4.1 O DESENHO AUTÓNOMO

Na última década do séc. XX (1990) o desenho surge finalmente de forma autónoma, e independente, não subordinada a outras disciplinas. Segundo Dexter (2005), este é o tempo do desenho. São vários os exemplos de artistas que o usam como meio preferencial de registo, como é o caso de William Kentridge, Raymond Pettibon, Robin Rhode ou Kara Walker (fig. 5).

Mas porque houve, agora, este retorno ao desenho? Ema Dexter refere três razões essenciais que explicam o facto de o desenho ser actualmente explorado e utilizado como meio preferencial por variados artistas:

Primeiro porque “o desenho oferece liberdade aos artistas, porque estando sub-valorizado e sub-teorizado permite explorar aspectos da criatividade até então ignorados ou reprimidos.

Mas em meados da década de 1990, quando o desenho começou a emergir de forma autónoma, foi também o meio perfeito para contrastar com o tipo de arte que o precedeu”

(DEXTER, 2005). O que nos leva ao segundo motivo: após uma altura em que as exposições de arte contemporâneas eram predominantemente monumentais, com um tipo de representações que preenchiam todo o espaço e envolviam o visitante (fruto do tipo de arte que se praticava na altura, nomeadamente as artes performativas ou as instalações de vídeo), houve um retorno ao desenho, quase como uma resposta a uma era em que os espaços expositivos grandiosos absorviam o visitante. Como referiu Dexter (2005) “Neste contexto, surge a revolução silenciosa de desenho” (p. 8). Por último, e tendo em conta o estado em que se encontrava e encontra a economia mundial, o desenho tornou-se popular por ser um tipo de arte fácil de realizar (no sentido de não requerer muitos meios) e que se pode realizar em casa. “O desenho não necessita de colaboradores, de criações elaboradas e de entendimento com terceiros, tal como as instalações, a fotografia (em termos de estúdios de impressão) ou até a pintura (pelo menos pinturas monumentais) necessitam. Tudo que o desenho precisa é imaginação, criatividade e habilidade” (Ibid.).

Se houve tempos em que se ocultava/camuflava o desenho, agora é tempo de se mostrar o desenho, de o exibir. Deste modo, assistimos a uma explosão de manifestações do desenho, representadas sob a forma de exposições (e.g. “Drawing now: Eight Propositions” no MoMA de Nova Iorque em 2000, “On Line: Drawing Through the Twentieth Century” no MoMA de Nova Iorque em 2011 ou “Cinco séculos de pensamento no percurso de uma linha” no Museu Nacional Soares dor Reis em 2011); conferências (e.g. “Thinking through Drawing 2012”

organizado pelo Drawing Research Network, 2012 ou “Desenho na Universidade Hoje – Conferência Internacional de Desenho, Imagem e Investigação” organizado pela FBAUP, 2013); plataformas na internet como o Drawing Research Network (que surgiu em 2011 como parte integrante da “The campaign for drawing”), uma comunidade internacional de artistas, designers e educadores que usam esta plataforma para debater variados aspectos relacionados com a prática do desenho; espaços dedicados exclusivamente à exposição do desenho (e.g. The Drawing Center, é uma instituição em Nova Iorque que se

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dedica exclusivamente à exposição do desenho e O Lugar do desenho9 – Fundação Júlio Resende, no Porto); grupos que se formam na internet com o intuito de ir em conjunto para a rua desenhar (e.g. Urban Sketchers, que existe em várias cidades por todo o mundo; grupos de se formam temporariamente como é o caso dos workshops de diários gráficos, nomeadamente dos que são organizados pelos portugueses Eduardo Salavisa ou Richard Câmara) e por fim os livros. Livros que abordam aspectos técnicos e cognitivos e a história do desenho (e.g. “Ver pelo desenho” de Manfredo Massironi ou “El Manual de Dibujo” de Juan José Gómez Molina, Lino Cabezas e Juan Bordes), livros com ensaios que falam sobre o desenho na contemporaneidade (e.g. “Drawing Thinking” de Marc Treib), livros que mostram artistas que usam o desenho na contemporaneidade (e.g. “Vitamin D” de Ema Dexter), livros que são um registo de exposições de desenho (e.g. “Drawing Now” de Laura Hoptman ou “a Indisciplina do desenho”), livros sobre diários gráficos (e.g. “Graphic: Inside the Sketchbooks of the World's Great Graphic Designers” de Steven Heller & Lita Talarico) e ainda livros de actividades/ou interactivos que procuram que o leitor se envolva na construção do mesmo através do registo do desenho (e.g. “Wreck this journal” de Keri Smith).

1.4.2 O DESENHO PROJECTO

“O desenho é uma área do conhecimento transversal a várias actividades – artísticas ou técnicas, simbólicas ou objectivas. A história do desenho acompanha a história da arte, a história da arquitectura e a história do design (se as entendermos separadas), mas também dentro do âmbito normativo, a história das engenharias (que sempre o usaram); no entanto e preze a sua relevância, o seu reconhecimento como actividade autónoma é relativamente recente. O desenho foi considerado, desde sempre, como veículo e projecto.” (TAVARES, 2009, p.12 )

Tavares (2009) enuncia neste parágrafo as “duas versões predominantes da aplicação do desenho”: o desenho projecto que auxilia e serve “várias áreas do conhecimento como as artes visuais (no geral), a arquitectura e o design” e o desenho autónomo, “exclusivo das artes plásticas” (que foi abordado no ponto anterior).

Como referimos no ponto 1.1 o desenho é utilizado para idealizar, projectar e conceber tudo o que nos rodeia - desde uma caneta até um edifício; desde uma letra a um livro; desde um sinal de trânsito a uma exposição, entre tantos outros exemplos. Independentemente da área do conhecimento/disciplina, é através do desenho que se rabiscam as primeiras ideias (ainda a medo, sem certezas e sem grandes detalhes) que vão ficando cada vez mais nítidas e rigorosas

9 Tem este nome por Júlio Resende considerar o desenho “a disciplina estruturante de qualquer processo criativo.

Um espaço onde criadores e público se questionam acerca da existência. O desenho como rastilho do pensamento.”

emRevista U. Porto Alumini nº 17, Dez 2012 – “Júlio Resende – da sede e outros entusiasmos” – pág. 41.

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(à medida que vamos tendo mais certezas) e que vão servir para a realização do protótipo (onde se efectuam os últimos testes), antes da concretização do objecto real. A esta ordem lógica de operações dá-se o nome de metodologia projectual. Apesar de serem vários os autores que “trabalharam sobre a metodologia projectual, (...) destacamos aqui (...) o artista e designer italiano Bruno Munari (1907-1998) na clarificação do processo e do seu faseamento, o primeiro pelo enfoque sistémico com ênfase na problematização e pesquisa e o segundo pela sua visão mais voltada para o processo criativo com o seu eficaz “arroz verde”. (Ibid., p. 15).

Munari (1981) afirma que “qualquer livro de cozinha é um livro de Metodologia Projectual”

(p. 17), pois tal como para fazer uma receita é necessário seguir um método (pesquisar receitas, cozinhar numa determinada ordem, com determinados ingredientes, em recipientes próprios, no tempo certo, etc.), “também no campo do design não se deve projectar sem um método, pensar de forma artística procurando logo a solução, sem se ter feito uma pesquisa para se documentar acerca do que já foi feito de semelhante ao que se quer projectar...”

(MUNARI, 1981, p. 20). A metodologia projectual mostra como seguindo uma série de operações essenciais numa determinada ordem (que foi ditada pela experiência empírica) se consegue construir algo com o menor esforço possível (MUNARI, 1981).

Não podemos deixar de referir os contributos da tecnologia na área do desenho projectual - a partir do momento (em meados da década de 80) em que os computadores se tornaram acessíveis à maioria das pessoas, surgiu a possibilidade de se poder utilizar programas de computador que vieram agilizar a construção de determinados objectos/produtos, nomeadamente ou fundamentalmente na fase final, de concepção do protótipo e do objecto final (embora seja cada vez mais comum a sua utilização em praticamente todas as fases de execução do projecto). Programas como o Solid Works auxiliam o design de produto/industrial, o Autocad as áreas de arquitectura e engenharia, o Adobe Photoshop e Adobe Illustrator no design de comunicação e ilustração, entre outros.

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2. O DIÁRIO GRÁFICO

2.1 AS POSSIBILIDADES LÚDICAS DO DESENHO

Embora sejam realizados com diferentes propósitos e tenham características distintas, os tipos de desenho mencionados anteriormente (o desenho autónomo e o desenho projecto/função) podem cruzar-se e conviver no mesmo espaço (pelo menos os primeiros esboços e ideias iniciais já que depois, o desenho será naturalmente transferido para outros suportes, usualmente em dimensões maiores e porventura, realizado com outros materiais) - num diário gráfico10. Aqui misturam-se desenhos prévios, de estrutura e análise, que vão servir para criar algo mais, desenhos preparativos para um outro desenho, desenhos que são criados apenas no bloco (e que poderiam ser igualmente autónomos, se saíssem do bloco para serem expostos e comercializados, algo que não é comum acontecer), ideias soltas, rabiscos feitos enquanto se falava com alguém ao telefone, registos do nosso quotidiano sob a forma de texto ou imagem, entre outros.

Estamos assim, perante outra11 forma de aplicação do desenho (se quisermos, mais descomprometida que as anteriores) – “o desenho como uma actividade lúdica” (TAVARES).

Note-se que aqui não nos referimos à infância (onde o praticamos por puro prazer e espontaneamente, para perceber o mundo envolvente) mas antes a uma prática do desenho mais autónoma, consciente e frequente. Normalmente, são pessoas de áreas criativas (e.g.

artes plásticas, design, arquitectura, música, cinema ou literatura) que os usam, pois é um hábito que se incute nos alunos destas disciplinas, embora seja também utilizado por pessoas de outras áreas, que criam este hábito autonomamente. Os professores (e aqui refiro-me especialmente às artes plásticas) esperam que este seja um espaço para os alunos experimentarem, praticarem, errarem, evoluírem, “soltarem o traço”, registarem o que os rodeia, no fundo um espaço que é só nosso e que podemos levar para onde quer que formos.

Esta questão da portabilidade do desenho potencia por sua vez, o aparecimento de novas formas de representar, particulares do desenho realizado em viagem12. Quem utiliza um diário gráfico “deambula muitas vezes sem itinerário marcado e por sítios desconhecidos, o que faz com que os seus registos incidam em aspectos particulares desses locais, sejam eles as pessoas que os habitam ou frequentam, sejam algum objecto ou edifício característico” (SALAVISA, 2008, pp. 16-17). Muitas das vezes utilizam até como suporte de registo algum papel do local onde se encontram, que posteriormente colam no seu diário, como um guardanapo ou um pacote de açucar, por exemplo. Por serem realizados (muitas das vezes) em condições um pouco precárias ou pelos “modelos” observados se deslocarem inoportunamente, os instrumentos de registo utilizados com mais frequência são o lápis ou a caneta (SALAVISA, 2008). No mercado podemos encontrar estojos de aguarela adequados para desenhar no

10Referimo-nos a um diário gráfico e não de um diário (literatura) – bloco de páginas brancas no qual se fazem registos do quotidiano sob a forma de desenho, ilustração, texto, recortes...

11Que pode também estar presente nas duas versões do desenho abordadas anteriormente

12“Mesmo tendo em atenção que a viagem pode ser entendida unicamente como espaço de disponibilidade, onde temos mais apetência para observar, registar e experimentar…” (SALAVISA, 2008, p. 16)

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exterior, bem como canetas com um reservatório para a água (que susbtituem a utilização e a limpeza do pincel). É também usual que os utilizadores de diários gráficos anotem apenas as cores para finalizar posteriormente ou, e como mencionou Salavisa (2008) usem “técnicas menos tradiconais e mais improvisadas, como o cuspo do dedo a fim de borrar a tinta da caneta (…) ou o uso do resto do café, por exemplo” (p. 18).

2.2 CONTEXTO HISTÓRICO

Antes de analisarmos as principais características deste tipo de desenhos ou antes, o que faz deles registos tão únicos e singulares, vamos voltar atrás na história para perceber em que contexto é que este hábito começou a ser uma prática comum.

Ainda que associemos o início desta prática aos artistas do “ar livre” do séc. XIX (pertencentes ao movimento Impressionista) existem vários exemplos de registos do quotidiano mais antigos. Um dos primeiros diários a existir foi o The pillow book of Sei Shonagon (séc. XI, Japão) realizado pela dama da corte Japonesa, e que contém importantes observações e reflexões sobre histórias de pessoas que conheceu, bem como observações de fauna e flora, que constituem hoje um importante registo histórico que documenta aquela época (fig. 6).

New (2005) referiu, citando Thomas Mallon, que “as mulheres japonesas confidenciavam as suas emoções no “pillow book” que guardavam num estojo e longe dos olhos do marido, séculos antes de haver a tradição de manter um diário no ocidente” (p. 16). Ao contrário do exemplo anterior que tem um carácter mais íntimo e onde o registo literário se sobrepõe ao registo do desenho, os diários de Leonardo da Vinci (1452-1519) têm um carácter mais operativo (fig. 7). Neles encontram-se tanto desenhos de estudos para as suas obras e invenções (nomeadamente em áreas como a engenharia militar ou a engenharia civil) como registos de observação do mundo natural (nomeadamente nas áreas de anatomia e botânica), quase sempre acompanhados de anotações. Como último exemplo referimos (baseado nas pesquisas de NEW, 2005) os diários de Lewis and Clark (1803-1806) que foram o resultado de um expedição/viagem de descoberta encomendada pelo então presidente Thomas Jefferson que procurava saber o que existia na parte oeste do continente norte-americano. Tal como os livros de cabeceira, também estes foram uma contribuição singular e inigualável para a escrita da história natural, fauna e flora, pois descrevem e retratam a viagem pelo Oceano Pacifico, (desde o rio Missouri até ao Pacífico norte) com registos de mapas, rios, recursos naturais, plantas e características e costumes dos povos nativos (fig. 8).

O diário começou então a ser muito popular e uma ferramenta essencial para todos os artistas, a partir do séc. XIX. Importa referir que a escola de Barbizon13 teve uma grande influência na nova forma de representação que se caracterizou fundamentalmente pela saída do atelier e a realização das pinturas directamente na natureza. Embora se continuasse a representar de forma realista, os temas passaram a ser quase exclusivamente paisagens, que

13 Que não se trata de uma escola no sentido físico, mas de um grupo de pessoas que partilhavam algumas ideias, que mantinham um contacto frequente e que se insurgiram contra o formalismo romântico do Delacroix

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passaram a ser a figura central das pinturas, ao contrário do que acontecia anteriormente em que faziam parte de um segundo plano e eram vistas apenas como um cenário. Deste modo, “o desenho da natureza tornou-se o rigor do séc. XIX” (HOPTAMN, 2002). A exposição do pintor John Constable no Salão de Paris de 1824 com cenas rurais, influenciou os jovens artistas que começaram a fazer esboços e estudos directamente na natureza, com alguns apontamentos de cor, para mais tarde poderem terminar nos seus ateliers (fig. 9). Como observou Preckler (2003) “o impressionismo é a primeira corrente artística que surge verdadeiramente avançada e inovadora (...) emerge no último terço do séc. XIX e supõe uma troca estrutural na estética tradicional de tal ordem, que rompe com todos os modelos anteriores e abre as portas, definitivamente à arte do séc. XX.”. Este movimento surge como oposição ao romantismo e academismo, nomeadamente com a saída do atelier para a ruas e a representação do movimento. Os cafés foram nesta altura (em que a vida decorria essencialmente nas cidades) o lugar de encontro, tertúlia e debate (de progressos técnicos, clima social e político, entre outros) e um lugar privilegiado para captar a efervescência do clima que se vivia. As “impressões sensoriais dos seus autores, foram sendo fundadas num individualismo crescente, longe de peias académicas” (PINTO, MEIRELES, & CAMBOTAS, 1999, p. 10) o que possibilitou o aparecimento de temas e formas de representar bastante distintas.

Desta forma o diário, pequeno e portátil passou a ser um suporte de registo fundamental que tanto convida o autor a focar a sua atenção para o que o rodeia (por estarmos fora do atelier a absorver informação), como é, ao mesmo tempo íntimo e pessoal e o faz reflectir e olhar para dentro. Assim, os desenhos dos diários podem conter tanto desenhos de observação que documentam deambulações pelo mundo exterior, como desenhos de invenção/criação que documentam uma viagem ao interior de nós mesmos (onde podemos incluir registo de ideias, esboços para futuros projectos, desenhos projectuais, entre outros). Como observou Mário Bismarck (2002) citando Le Corbusier, “Desenhar é, primeiramente, ver com os olhos, observar, descobrir. (…) Desenhar é também inventar e criar. (…) O lápis descobre e depois entra em acção para nos conduzir muito mais além do que temos debaixo dos olhos.”

Note-se que, ter um diário gráfico tem um grande tradição romântica (já que foi o movimento artístico que precedeu o Impressionismo) e está também relacionado com o drama da criação individual, as dúvidas e a solidão. “Na verdade, os cadernos de notas dos românticos são, muitas das vezes, de uma forma bem explícita, uma crítica implacável aos preceitos académicos” (MOLINA, 2001, p. 97).

2.3 TIPOLOGIAS DO DIÁRIO GRÁFICO

Partindo de uma divisão por categorias14 relativamente aos conteúdos/temas dos diários gráficos, fazemos aqui uma breve delimitação para que se entenda como eles podem ser tão

14 Baseada na fusão de duas divisões previamente realizadas por dois autores distintos (Jennifer New em “Drawing from life: the journal as art” de 2005 e Eduardo Salavisa em “Diários gráficos. Desenho em cadernos de 2010)

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variados. Note-se que, não se pretende engavetar os diferentes diários em apenas uma categoria, mas vamos dividi-los para que se entenda como eles podem ser graficamente tão diferentes – consequência dos conteúdos que são representados, que estão inerentemente relacionados com o facto de serem pessoas diferentes, de locais diferentes, com passados diferentes e com profissões diferentes. E naturalmente esta divisão vai já de algum modo enunciar algumas características deste tipo de desenho tão singular – o desenho no diário gráfico.

Assim, podemos dizer que existem: diários gráficos de observação, diários gráficos de trabalho/criação e diários gráficos de reflexão/livro de artista.

2.3.1 DIÁRIO GRÁFICO DE OBSERVAÇÃO

Os diários gráficos de observação contêm essencialmente desenhos que documentam a realidade, (representados de forma mais ou menos realista) que por sua vez se dividem em três tipos: desenhos do quotidiano; desenhos de viagem/exploração e desenhos de investigação.

Os artistas cujos diários gráficos representam desenhos do quotidiano tendem a transformar o quotidiano numa viagem, a agirem como turistas na sua própria cidade, ou como se costuma dizer a “transformar o ordinário em extraordinário”, como é o caso dos desenhos nos diários gráficos de Eduardo Salavisa (fig. 10), Richard Câmara (fig. 11) ou Maira Kalman (fig. 12). Atentos à infinidade de padrões que a vida lhes oferece, estes autores tentam absorver tudo o que os rodeia, tentando ver os locais/objectos/pessoas por onde passam todos os dias, de outras formas. Como escreveu Alberto Caeeiro (heterónimo de Fernando Pessoa)

“Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo”15.

Os diários de desenho de viagem ou exploração são naturalmente aqueles que são realizados quando estamos longe de casa, longe dos nossos hábitos, das nossa rotinas, dos nossos amigos, quando partimos com tempo e disposição para sermos bons observadores (SALAVISA, 2008, p.13). Quando se viaja, distanciamo-nos da nossa realidade e este afastamento para lugares desconhecidos (com tempo para desfrutar) propicia a reflexão, e faz-nos ver as coisas de outras perspectivas. E parece que quanto mais longe e diferente for o local para onde vamos, mais revigorados ficam os nossos sentidos, pelas diferenças com a realidade a que estamos habituados. Difícil é manter este olhar atento, esta predisposição, quando voltamos a casa, às nossas rotinas, (como o fazem os autores mencionados no ponto anterior). O ilustrador espanhol Enrique Flores (fig. 13) partilha a mesma opinião: “Não gosto de viajar em Espanha e sinto-me mais confortável em sítios onde há muita coisa que não compreendo (isto também me sucede no meu país, mas o que dele não compreendo consegue irritar-me)” (SALAVISA, 2008, p.86).

15 PESSOA, Fernando. O Guardador de Rebanhos e outros poemas, Editora Cultrix. 2012 p. 89

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Outros locais que também costumam ser um motivo de interesse são os chamados “não- lugares”16, “espaços sem história e sem identidade, por onde as pessoas passam como meros utentes...” (SALAVISA, 2008, p. 38), lugares que não pertencem a ninguém mas que são de todos de vez em quando. Restaurantes, aeroportos, bombas de gasolina ou quartos de hotel são sítios onde embora estando rodeados de outras pessoas/realidades podemos isolar-nos, e a distância que temos com elas pode propiciar a reflexão (o trabalho do pintor Edward Hopper - fig. 14 - reflecte precisamente este interesse por viajar para os chamados “não- lugares”).

A viagem pode também ser um ponto de viragem no modo de representar dos artistas, pois altera o modo como vêm a realidade, como foi o caso da viagem a Marrocos do pintor francês Eugene Delacroix17 (fig. 15) que começou a utilizar cores mais quentes do que era habitual, bem como uma forma de representar mais livre e solta feita com bico de pena, lápis e aguarela (que o permitia fazer registos mais rápidos).

Por fim, referimos os diários gráficos que contêm desenho de observação de carácter científico ou de investigação que para além de terem um papel essencial na investigação científica e na difusão das ciências são também o lugar onde por exemplo “sequências de desenhos de insectos tomam a forma de bestiários fantásticos ou, das impressões de terreno de um antropólogo, surgem narrativas de viagem que as convenções da disciplina tendem a marginalizar” (SALAVISA, 2010), como é caso do diário gráfico do desenhador científico Pedro Salgado (fig. 16) ou do antropólogo Manuel João Ramos (fig. 17).

2.3.2 DIÁRIO GRÁFICO DE TRABALHO OU CRIAÇÃO

Os diários gráficos de trabalho ou de criação são aqueles cujos desenhos registam o processo criativo de qualquer trabalho, desde uma peça de mobiliário, um cartaz, um storyboard, uma música, um livro, entre outros. Aqui fica registado o modo de pensar do autor, as boas e as más ideias, as hesitações, os erros e os primeiros esboços, pouco definidos mas expressivos o suficiente para se entender a ideia geral. A título de exemplo mencionamos os diários gráficos do arquitecto e pintor Le Corbusier (fig. 18), característicos pelos desenhos esquemáticos e fluídos, normalmente acompanhados por notas e outros sinais gráficos (como linhas, setas, tracejados) que evitam ambiguidades e definem melhor a ideia. Os seus desenhos, feitos essencialmente a caneta preta ou lápis “não pretendem ser considerados, virtuosos tecnicamente; eles são a expressão das suas ideias e explicam o seu processo de concepção, o seu método de criação artística.” (SALAVISA, 2008, p. 52) e “como ele próprio reconhecia dão acesso aos segredos de todo o seu trabalho”(Ibid.). Nas várias viagens que efectuou, recolheu

16 Conceito proposto pelo antropólogo francês, Marc Augé. Segundo o site wikipédia “O não-lugar é diametralmente oposto ao lar, à residência, ao espaço personalizado. É representado pelos espaços públicos de rápida circulação, como aeroportos, rodoviárias, estações de metro, pelos meios de transporte, pelas grandes cadeias de hotéis e supermercados”.

17 Que integrou uma comitiva diplomática francesa cujo objectivo foi documentar a expedição e documentar paisagens, a fauna e a flora dos territórios explorados

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informação e registou-a de forma a entender o melhor possível como determinado edifício tinha sido construído e como funcionava, captando aquilo que considerava fundamental e intemporal. Para isso fazia registos do mesmo local em diferentes horas, de diferentes pontos de vista, com pormenores, cortes, axonometrias, desenhos com diferentes escalas e desenhos sequenciais, para mais tarde aplicar nos seus projectos.

Já os diários de Pablo Picasso (fig. 19) mostram vários estudos para obras que desenvolveu mais tarde com uma grande variedade de materiais e com páginas que são por si só verdadeiras obras de arte. Picasso mantinha com os diários uma relação muito próxima e neles registava todos os desenhos que permitem, a quem os desfolha, ver as suas obras de pintura transformar-se e ganhar forma. Os seus diários foram um elemento vital para o desenvolvimento das suas pinturas, nomeadamente do quadro “Les demoiselles d’Avignon”

(1907) dos quais existem aproximadamente 10 cadernos preenchidos com estudos das várias personagens em diferentes composições onde se pode ver a evolução da obra.

2.3.3 DIÁRIOS DE REFLEXÃO/LIVRO DE ARTISTA

Por último, referimos os diários gráficos de reflexão, que se caracterizam por serem particularmente introspectivos, íntimos e de carácter meditativo, o que os aproxima do livro de artista, se forem editados e reproduzidos (integralmente).

“Enquanto o Diário Gráfico está ligado à ideia de percurso, de viagem, de informações vindas do exterior, com uma forte carga intimista, que não é mostrado ou só o é a quem o autor quiser, o Livro de artista, cuja execução mantém o cunho intimista na sua execução é considerado um objecto plástico quando virado para o exterior, para o observador anónimo” (SALAVISA, 2010).

Exemplo disso é o diário da pintora Frida Kahlo (fig. 20) que foi reproduzido fielmente e onde podemos quase como que fazer uma viagem pelo seu inconsciente e saber tanto o que a inquietava como o que a motivava. O tema dos seus diários é ela própria por isso a viagem é ao interior dela mesma. Não há propriamente um registo do quotidiano ou estudos preparatórios para as suas pinturas. O diário encerra-se em si mesmo e documenta essencialmente as suas duas grandes obsessões: a sua paixão pelo pintor Diego Rivera e as lutas que travou devido a doenças graves. O facto dos seus desenhos serem realizados de forma espontânea e muitas vezes iniciados de forma aleatória, com uma grande variedade de materiais (o que tinha disponível à sua volta), permite-nos “penetrar no seu inconsciente”

(SALAVISA, 2008, p. 45).

Desta forma é possível estabelecer uma comparação ou pelo menos perceber que existe uma relação com os diários dos autores que referimos e o tipo de obra que eles reproduzem no final, nomeadamente o desenho de observação presente nos livros ilustrados ou na pinturas

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de Maira Kalman, as obras arquitectónicas de Le Corbusier que, tal como os seus desenhos se caracterizam pelo seu enorme poder de síntese ou os auto-retratos de Frida Kahlo, um dos temas mais presentes na sua pintura. Assim, podemos afirmar que aquilo que nos é dado a conhecer dos autores através dos seus trabalhos finais, está reflectido nos seus blocos. E este é o tema central da dissertação, a que voltaremos.

2.4 PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS (DO DESENHO) DOS DIÁRIOS GRÁFICOS

Apesar de serem usados com diferente intuitos, de poderem ser mais ou menos organizados, com diversidade de materiais ou sempre com a mesmo instrumento de registo, com mais ou menos texto, mais ou menos íntimos, há características comuns e que todos partilham. Por serem os primeiros, estes desenhos revelam-se vibrantes, crus, fluídos e transmitem uma frescura e espontaneidade particulares, pois são feitos sem medo de errar, só para nós. Neles registamos o que nos motiva, o que nos inquieta, relatamos a nossa vida e o nosso trabalho, manualmente, algo que nos dias de hoje fazemos cada vez menos, pois mediamos muitas das nossas actividades diárias por dispositivos visuais e estamos cada vez mais ligados a máquinas e não ao mundo real (dispositivos estes que, não obstante, se têm revelado cada vez mais profícuos, como veremos no ponto 2.5).

“Pequeno, compacto e discreto, o diário gráfico não é um livro que se ande a exibir facilmente.

O espaço de liberdade que proporciona está precisamente relacionado com esta característica”

(Manuel San Payo)18. Efectivamente e como refere Manuel San Payo, os desenhos nos diários gráficos têm determinadas características precisamente por serem realizados neste suporte, como verificaremos de seguida, nos pontos que se seguem.

2.4.1 FORMATO

O tamanho mais frequente deste tipo de suporte é o A5 ou um tamanho compreendido entre o A5 e o A4, podendo assim ser transportando na maioria das bolsas e mochilas. Alguns autores utilizam um bloco mais pequeno que os acompanha fora de casa, um “mini-estúdo ambulante” (como lhe chama o autor de B.D. Rui Lacas19) que lhes permite criar onde quer que estejam, e outro com um formato maior, que usam em casa. Este formato pequeno faz- nos estar mais próximos do objecto, como se só houvesse espaço para o olhar do autor, ao contrário por exemplo de um desenho que fazemos em casa, num cavalete - onde usamos o braço como charneira e estamos mais distanciados do desenho.

18 No livro Diários de Viagem de Eduardo Salavisa, 2008, p. 158 19 No livro Diários de Viagem de Eduardo Salavisa, 2008, p. 14

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2.4.2 QUALIDADE DO PAPEL

Os afamados blocos da marca Moleskine, que ficaram conhecidos pelas semelhanças com os blocos de notas que alguns ícones como Picasso, Van Gogh ou Hemingway utilizavam, agradam os clientes pelos seus atributos estéticos, nomeadamente a qualidade e variedade do papel, a banda elástica que fecha o livro, os cantos arredondados, a possibilidade de abri-los a 180º (que não costuma acontecer em muitos outros blocos) e a bolsa na contra-capa. Embora estes sejam os blocos que ficaram mais célebres, existe no mercado uma enorme diversidade de blocos que variam no tamanho, no tipo de papel e inerentemente no preço. Há quem prefira blocos com folhas com uma gramagem superior ou com textura ou uma cor específica, com linhas ou quadrículas, sendo que esta opção depende essencialmente do tipo de material que costuma utilizar. Contudo muitos autores preferem usar blocos mais baratos, por vezes até cadernos que não foram feitos com o intuito de serem diários gráficos, pois ficam intimidados com papéis mais resistentes e caros. Como refere o antropólogo Manuel João Ramos20 “Desenhar é um impulso espontâneo e sinto que o papel de má qualidade, que utilizo frequentemente, reflecte essa espontaneidade.”

2.4.3 FACTOR CRONOLÓGICO

O carácter cronológico que estes diários adquirem é outro factor importante que os diferencia dos desenhos realizados em folhas soltas - há uma componente temporal importante pois, em princípio, não é suposto desmembrar o diário gráfico.

"O caderno é um baú onde tudo está guardado e floresce quando o abres. Por isso o caderno é algo muito pessoal, íntimo e que faz parte de mim. É uma manifestação da tua vida quotidiana donde voltas a recuperar o passado. Tanto que às vezes se tem convertido em nostalgicamente perigoso." (Rodrigo Alonso)21

Pedro Salgado22 partilha a mesma opinião quando refere que "o desenho é como um catalisador de memória e do imaginário. A viagem torna-se aquele caderno", por isso quando os volta a ver "é transportado para o momento em que os fez”. Efectivamente, quando voltamos a folheá-los recordamos tudo com mais intensidade, sentimos o passar do tempo, e olhamos para os nossos desenhos de um modo diferente. Porque evoluímos. Ou só porque estamos diferentes. Revisitá-los ajuda-nos a reconectar com nós mesmos e é também uma forma de termos a noção de como evoluímos e melhoramos ou de como estagnamos.

20 No livro Diários de Viagem de Eduardo Salavisa, 2008, p. 152

21 http://www.diariografico.com/htm_e/outrosautores/Alonso/Autor01.htm 22 No livro Diários de Viagem de Eduardo Salavisa, 2008, p. 16

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2.4.4 PESSOAL

“Gosto de desenhar em cadernos e não em folhas soltas, não porque o caderno guarde, mas sobretudo porque esconde os desenhos.” (Manuel João Ramos)23. Outro aspecto relacionado com o modo como armazenamos estes desenhos é este lado íntimo e pessoal, consequência do seu pequeno formato, da forma como as folhas estão organizadas (em cadernos) e pela possibilidade de se fechar, tal como uma caixa.

É um curioso, que desenhos que não foram inicialmente criados para serem partilhados/exibidos possam cada vez mais ser vistos por pessoas desconhecidas do autor, tanto através de livros (e.g. “Draw In: A Peek into the Inspiring Sketchbooks of 44 Fine Artists, Illustrators, Graphic Designers, and Cartoonists” de Júlia Rothman, 2011) como e principalmente através da internet (e.g. diariografico.com de Eduardo Salavisa que apresenta desenhos do autor bem como desenhos e textos de outros autores, ou os inúmeros blogs ou páginas pessoais em que os próprios artistas divulgam os seus desenhos).

Já em relação à apresentação dos diários gráficos numa exposição, as mudanças também se têm verificado, mas mais lentamente, ou seja eles costumam aparecer frequentemente em exposições de arte contemporânea, bem como em retrospectivas históricas, mas com um carácter secundário (pois acompanham a obra final como forma de mostrar o processo). O que não é ainda muito comum é existirem exposições só com diários gráficos. Contudo, existem exposições apenas de diários gráficos, mas principalmente de pessoas anónimas, como é o caso de “Diários Gráficos no Museu” de 2013 no Museu Fundação Oriente, resultado de um curso que decorreu no mesmo espaço ou a exposição itinerante “The Sketchbook Project” aberta à participação de toda a comunidade. Em relação à exposição de diários gráficos de artistas reconhecidos mundialmente referimos a exposição itinerante da Moleskine denominada “Detour”, que costuma ter lugar tanto em livrarias, lojas de museus, galerias, lojas como também em museus. Talvez pelo facto de serem necessários alguns cuidados no seu manuseamento seja mais adequado exibi-los em locais mais pequenos, onde também seja mais fácil controlar os visitantes, e esta será a outra razão que faz com que não seja (ainda) muito comum existirem exposições apenas de diários gráficos. Contudo, tem-se verificado que existe um crescente interesse por este tipo de objectos, como se pode comprovar pelos inúmeros livros que têm sido publicados sobre diários gráficos (e.g.

“Sketchbooks: The Hidden Art of Designers, Illustrators & Creatives” de Richard Brereton,

“Draw in” de Julia Rothman ou “Drawing from life” de Jennifer New) ou pela divulgação de desenhos em diários, dos e pelos próprios artistas, nas redes sociais.

Folhear o diário gráfico de alguém é como estar dentro da cabeça do artista, acompanhar o que ele pensa e o que cria e lembremo-nos que, e como referiu o director da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Francisco Laranjo24 “expor um desenho sem artifícios é um acto de coragem, de nudez total. Estou aqui. Sou assim. Isto é o que eu sei e o que eu não

23 Ibid., p. 152

24 Na entrevista “Cinco séculos de Pensamento no percurso de uma linha” presente na revista U. Porto Alumini nº 15, Dez 2011, p. 26

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sei. Expomos o que não sabemos” e por isso há quem receie a sua exposição, “por ser um lado despojado do pensamento”.

2.4.5 LABORATÓRIO DE EXPERIÊNCIAS

A componente íntima destes diários vai então permitir que este seja o suporte, por excelência, de experimentação/especulação. Um lugar onde o autor arrisca e onde fica registado todo o processo pois vai contando uma história através de um registo sequencial que fixa tentativas, explorações, erros e descobertas. Um lugar onde não há pressões e onde o desenho é sincero pois em princípio só os nossos olhos irão percorrer aquelas páginas. Um lugar onde os acidentes acontecem, por vezes felizes acidentes – como mencionou Júlio Pomar “o acaso é o material mais precioso que pode haver”25, que só se pode encontrar se nos libertarmos, e se experimentarmos sem medo de errar.

2.4.6 O CARÁCTER AUTO-BIOGRÁFICO DO DESENHO

São vários os artistas que referem este lado catalizador da nossa personalidade, do desenho.

Ao folhearmos estes pequenos laboratórios de experiências percebemos como os autores vêem o mundo e em que cultura estão inseridos (ou por que culturas é que se passeiam).

A explicação do artista plástico William Kentridge (2012) resume de uma forma interessante de que modo é que ao retratarmos o que nos rodeia acabamos por nos retratar a nós mesmos :

“Se pensarmos em todos os fragmentos com que somos bombardeados todos os dias (começando pelo contexto histórico e político onde estamos inseridos, a memória de uma conversa, imagens que passam na televisão, o jornal que li de manhã, alguma coisa que nos dizem, uma conversa que ouço) (...) todos estes fragmentos entram na nossa cabeça/cérebro, são desmembrados e reconstruídos numa espécie de senso coerente, (que fazemos sem pensar nisso), sob a forma de desenho, pintura, filme, etc.”26.

O estúdio (neste caso o estúdio ambulante – diário gráfico) “torna-se numa emblemática demonstração de como nós nos movemos pelo mundo”27- uma demonstração da forma como nos apropriamos dele. Tal como acontece noutras áreas de expressão artística, como a música ou a literatura – o nosso trabalho (seja um livro, a letra de uma música ou um desenho) é resultado do que nós somos e de como operamos no mundo, por isso ele vai naturalmente reflectir a nossa personalidade.

25 No documentário “O risco”

26 No documentario "A Natural History of the Studio" - A Meeting with the Artist Williams K.”

27 Ibid.

Referências

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