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Academic year: 2018

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PUC/SP

João Pereira Paulo

O Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher: Resistência cultural dos afro-descendentes na Zona Leste de São Paulo: (1980-2008)

Mestrado em História

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP

João Pereira Paulo

Resistência cultural afro-descendente na Zona Leste de São Paulo: o movimento negro “Fala Negão Fala Mulher” (1980-2008)

Mestrado em História

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em HISTÓRIA sob a orientação da Professora Doutora Maria do Rosário da Cunha Peixoto.

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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução parcial desta dissertação por processo de fotocopiadoras.

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Dedico este trabalho:

À Laura Maria e Artur José, meus filhos. À Silvia, minha companheira.

À Maria da Penha Nascimento de Campos, in memorian, e suas filhas que autorizaram a publicação de seu depoimento.

Ao Gilson Vitório Nunes.

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Agradecimentos

Agradeço à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que proporcionou o desenvolvimento desta pesquisa, seus funcionários e colaboradores, porque sem eles não seria possível o desenvolvimento deste trabalho.

À minha orientadora Maria do Rosário da Cunha Peixoto que acreditou na pesquisa mesmo quando eu estava com dificuldades, formulando questões, chamando-me atenção e me incentivando, muito obrigado professora.

Meus agradecimentos ao departamento de pós-graduação, às professoras do núcleo de pesquisa, professora Heloísa, professora Yara Maria Aun Khoury, professora Olga Brites. Às professoras Vera Lúcia, Maria Izilda e Maria Antonieta, e agradecimentos especiais às professoras do curso de instrumentação em inglês, Laura e Cida.

Aos meus amigos que acompanharam os esforços, as angústias no desenvolvimento da pesquisa, Salvador Tavares, Valdir da Silva, Walter, Felipe, Thiago Guerra, Eder, Mauro, Elaine, Zuleika Stefania, Édson Brito, Danusa, João, Silvia, Aparecida Cabral, Victor da livraria, Marilene do CACS e amigos de turma. Ao amigo José Josberto, que nas longas discussões sobre a pesquisa ajudou nas analises sobre o movimento negro. E à Clarissa Schmidt pelas e críticas que ajudaram a resolver alguns problemas que se apresentaram na escrita do texto.

À banca de qualificação, Amailton e Mirna pelo empenho na leitura e apontamentos que auxiliaram na estruturação desse trabalho.

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Aos meus filhos que indiretamente colaboraram com a pesquisa.

À Silvia Rosa Marques que acompanhou o desenvolvimento dessa pesquisa, desde que ela se apresentava como um projeto.

Meus sinceros agradecimentos à dona Maria da Penha Nascimento de Campos, senhor Walter Hilário, dona Ana Rita, dona Marilene, senhor Gilson Nunes Vitório que gentilmente cederam seus depoimentos e permitiram a publicação de suas narrativas nesta pesquisa, e aos colaboradores e conselheiros do MovimentoNegroFala Negão Fala Mulher.

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Resumo

No presente trabalho analiso a construção de algumas concepções de pertencimento e ancestralidade entre grupos afro-descendentes, mais especificamente o movimento negro Fala Negão Fala Mulher. A trajetória destas pessoas que procuram defender suas idéias sobre cultura, seus modo e práticas em suas vivências.

Tendo a cidade de São Paulo como palco de suas vivências e contradições, nos deslocamentos entre o centro da cidade e os bairros distantes do centro da cidade.

As questões discutidas neste trabalho buscam refletir sobre os argumentos que integram as pessoas que vivem nas comunidades da Zona Leste de cidade de São Paulo, levando-se em consideração aspectos como saberes e fazeres em suas experiências. As disputas e lutas pela moradia e os modos de vivenciar a própria realidade enfrentando problemas com transporte, segurança e saúde.

A discussão sobre a Zona Leste e as diferentes formas de agir dentro da comunidade, já que a Zona Leste produz e proporciona diferentes grupos étnicos e econômicos. Os bairros de Itaquera, Guaianases e São Matheus são alvos das reflexões perpassam pela questão de pertencimento e nas formas que se relacionam.

Todo este trabalho contorna-se pela discussão sobre a cultura afro-descendente em suas manifestações de significações e ressignificações, explorando o carnaval e a construção das tensões entre os movimentos sociais na Zona Leste.

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Abstract

In the present work I analyze the construction of conceptions of pertaining and ancestry among groups african-descendants, more specifically the negro movement Fala Negão Fala Mulher. The trajectory of these people that seek to support theirs cause on culture, theirs modes and practice in theirs experience of life.

Having the city of São Paulo as place of theirs live deeply and contradictions, in the dislocation between the downtown and the distant suburb.

The questions argued in this work seek to reflect on the arguments that integrate the people who live in the communities of the zone east of city of São Paulo, taking in consideration aspects how knowledge and makings in theirs experiences. The disputes and struggle for the housing and modes of experience of life the proper reality confronting problems with transport, security and health.

The discussion about the zone east and the different forms to act inside of the community, already the zone east produces and provides different ethnics and economics groups. The districts of Itaquera, Guaianases and São Matheus are target of the reflections pass by question of pertaining and in the forms that if relate.

All this work is based at discussion about culture african-descendant in theirs manifestations of signified and re-signified, exploring the carnival and the construction of the tensions between the social movements in the zone east.

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Sumário

ListadeAbreviaturas ...11

Introdução ...13

Capítulo 1 – Discurso Político, Ações e Organização do Movimento Negro 1.1 – Cultura, experiência, ancestralidade e memória do Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher ....30

1.2 – Cidade: migrações e luta pelo espaço ...37

1.3 – A busca pela negritude ...44

Capítulo 2 – O Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher: em busca da Cidade 2.1 – Moradia ...52

2.2 – A Zona Leste de São Paulo e a ação do Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher ...61

2.3 – As práticas de intervenção nas narrativas. As mulheres e a violência na Zona Leste da cidade de São Paulo ...65

2.4 – A mulher. A auto-estima ...72

Capítulo 3 – A imprensa no Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher A imprensa e os canais de comunicação nas práticas do Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher ...75

Capítulo 4 – O carnaval da cidade de São Paulo e a resistência cultural 4.1 – Mudanças e permanência ...87

4.2 – O carnaval e as disputas no campo da cultura ...92

4.3 – As escolas de samba Falcão do Morro e Leandro de Itaquera no Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher ...97

Considerações Finais ...107

Fontes ...110

Entrevistas ...112

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Lista de Abreviaturas:

ABRAC - Associação Brasileira de Rádio Comunitária

APEOESP – Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo.

COHAB - Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo DOPS - Departamento de Opressão da Polícia Secreta

MNU - Movimento Negro Unificado

MOCUTI - Movimento Cultural da Cidade Tiradentes PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro

SOACI – Sociedade Amigos de Coletores da Cidade Tiradentes UESP - União das Escolas de Samba Paulistana

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Zé do Caroço

No serviço de auto-falante Do morro do Pau da Bandeira Quem avisa é o Zé do Caroço Que amanhã vai fazer alvoroço

Alertando a favela inteira

Como eu queria que fosse em mangueira

Que existisse outro Zé do Caroço (Caroço, Caroço) Pra dizer de uma vez pra esse moço

Carnaval não é esse colosso Nossa escola é raiz, é madeira Mas é o Morro do Pau da Bandeira De uma Vila Isabel verdadeira

O Zé do Caroço trabalha O Zé do Caroço batalha E que malha o preço da feira

E na hora que a televisão brasileira Distrai toda gente com a sua novela É que o Zé põe a boca no mundo Ele faz um discurso profundo Ele quer ver o bem da favela Está nascendo um novo líder No morro do Pau da Bandeira

Está nascendo um novo líder No morro do Pau da Bandeira No morro do Pau da Bandeira

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Introdução

Durante a graduação no curso de História na Universidade Camilo Castelo Branco1 – UNICASTELO, em 1995, os alunos dos cursos de Ciências Humanas foram convidados para uma palestra sobre cidadania e participação política. Esta palestra foi promovida pelo Movimento NegroFala Negão e Fala Mulher2.

Neste primeiro contato, pude perceber que havia a necessidade de aprofundamento nas reflexões sobre as questões de cultura e negritude. Negritude essa que parte das experiências vividas por pessoas que tem como laços afetivos as relações que se assemelham por formas de agir, se relacionar, vestir-se, dançar, expressões corporais, sentimentos e significados, compartilhados por meio de práticas socioculturais vividas por homens, mulheres e crianças cujas origens, de diferentes modos, estão vinculados à história de populações afro-descendentes na cidade de São Paulo.

Nos anos que se seguiram desde o primeiro contato com o Movimento Negro, mais especificamente, o Movimento Fala Negão Fala Mulher, comecei a formular uma série de questionamentos acerca de como integrantes do

Movimento articulavam suas concepções e posicionamentos quanto às questões étnicas, reivindicações de moradia, transportes, espaços possíveis às suas atividades de lazer e expressão cultural. No entanto, minha possibilidade em trabalhar essas inquietações não eram viáveis, na condição de professor de ensino médio e fundamental da rede estadual de ensino de São Paulo. Ainda assim, me mantive instigado a realizar uma pesquisa com o propósito de melhor compreender problemáticas que envolviam aquele Movimento.

A presente dissertação faz parte de minhas inquietações, que estão vinculadas à observação das ações do Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher, com sede na rua Giácomo Quirino, nº 96, no bairro de Itaquera, Conjunto Habitacional José Bonifácio – COHAB3 II, na Zona Leste de São Paulo, e que tiveram como referencial cronológico as décadas de 1980, 1990 e o início de 2000.

1 Universidade Camilo Castelo Branco - UNICASTELO, situada na zona leste de São Paulo, no

bairro de Itaquera.

2 Palestra de Gilson Nunes Vitório, Maria da Penha Nascimento de Campos, Professor Milton

Barbosa, Walter Hilário, organizadores do movimento negro Fala Negão Fala Mulher.

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As reflexões que pretendo discutir neste trabalho abrangem a análise da cultura. Neste sentido, busco pensar a cultura não como um conceito, pronto e acabado, mas como um processo de transformação em que as mudanças e permanências se imbricam em um campo de tensões que interagem entre diferentes instâncias de modos de vida de sujeitos e suas práticas sociais, vivenciadas por pessoas que se relacionam e agregam experiências em situações específicas na cidade de São Paulo.

Analiso através das atividades de um grupo de pessoas que busca refletir sobre o significado de ser negro e sobre suas experiências culturais, formas de sobrevivência, de educação e lazer, modos de se organizar e lutar por direitos sociais. Tais lutas envolvem ação de intervenção e crítica a partir dos locais e práticas usuais de lazer como bailes, festas, rodas e ensaios das escolas de samba.

O grupo de pessoas que participou da fundação do Movimento Negro4Fala Negão Fala Mulher, teve o intuito de construir uma sociedade com características culturais articuladas com questões que evidenciassem seu pertencimento suas ligações com tradições, enquanto afro-descendentes, relacionadas aos laços afetivos, com ações de vivências e expectativas de construção de uma sociedade igualitária. A maior parte dessas pessoas era migrante nordestino, que, não pertencendo à cidade de São Paulo, procuravam criar seus espaços de convivência a partir de afinidades culturais, tais como formas de lazer, crenças religiosas, gostos alimentares e as dificuldades de sobrevivência enfrentadas para conseguir trabalho e moradia, de forma a inserir-se nesta realidade com respeito e dignidade.

Moradores de bairros como Guaianases, Itaquera, São Miguel e São Matheus, promoviam roda de samba e nestas ocasiões oportunamente eram realizadas discussões sobre os problemas do bairro e da comunidade. Os encontros geralmente ocorriam nas residências de Maria da Penha Nascimento de Campos (Guaianases) e Gilson Nunes Vitório (Cidade Líder). Em muitos

4 Conforme convenção do Movimento Negro Unificado, realizada em 07 de julho de 1978 -

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casos, os convidados iam motivados por suas afinidades com a música e a dança, como também o clima de sociabilidade presente nestes encontros. Eram ocasiões nas quais reencontravam velhos amigos, apreciavam comidas e bebidas típicas de suas regiões de origem, como caruru, vatapá, abará, baião-de-dois, carne-de-sol e as afamadas cachaças.

As reuniões poderiam ocorrer mediante propósitos mais direcionados, quando se discutia temas específicos ou, de modo mais informal, em que assuntos de interesse da comunidade emergiam espontaneamente. Entre os temas tratados nas conversas eram levados a refletir sobre suas origens e a desenvolver laços afetivos e sentimentos de pertencimento a uma cultura com características comuns. Seus laços de afinidades se estendiam às questões da condição de serem, em sua maioria, de origem afro-descendente. Este aspecto nos parece ser fundamental para o fortalecimento de elos de um enraizamento identitário enquanto moradores da Zona Leste.

Os encontros também ocorriam em outros locais e com características distintas, como por exemplo quando promoviam bailes no clube Santa Cruz, na rua Salvador Gianetti, sem número, onde hoje se localizam os terminais de ônibus e trens urbanos em Guaianases e também no clube Elite Itaquerense, na rua Augusto Carlos Baumann, nº 588, Itaquera, fundado em 1922. Os bailes representavam situações onde prevaleciam a dança e a música como instrumentos de aproximação das pessoas da comunidade.

As pessoas que freqüentavam estes ambientes mantinham para além do que era perceptível a primeira vista nestes eventos, uma disposição para tratar de questões enfrentadas no dia-a-dia, como a exploração do trabalho e a vida na cidade. Essa prática foi se tornando cada vez mais expressiva e freqüente, sendo elemento impulsionador para constituição de um Movimento organizado, que tinha como eixo reivindicações por melhores condições de trabalho e moradia nos bairros distantes do centro cidade, concatenando objetivos comuns de lutas por moradia, transporte, saúde, entre outros.

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Arantes5, em Paisagens paulistanas. Este autor, ao tratar de dimensões da relação de pertencimento à cidade, aponta para o estabelecimento de fronteiras simbólicas presentes no imaginário de pessoas que se deslocam e desenvolvem experiências de vida na cidade. Em tais circunstâncias, desenvolvem laços de afetividade em territórios de disputa e tensões.

Conforme Walter Benjamin, a cidade constitui um espaço de lembrança e de memória. Em sua obra Rua de mão única6, produz um olhar sobre a sua cidade natal a partir do espaço de vivência. Ao narrar suas experiências de infância aponta, por meio de aspectos da memória, como esta relação de pertencimento e de vivências tornam-se reveladoras de informações para compressão da história de uma determinada época ou cidade.

Na década de 1950, assiste-se a uma verdadeira explosão do crescimento populacional da cidade de São Paulo. O processo de migração para essa cidade se intensifica ao longo dos anos 1940 e 1950, levando grande parte de seus moradores para os bairros distantes do centro da cidade. Neste período, a Zona Leste se constitui como um dos principais redutos de pessoas oriundas de outras cidades e estados do Brasil. Os novos moradores iniciaram uma trajetória de luta para se estabeleceram nestas novas vivências, ressignificando suas práticas e constituindo novas dinâmicas culturais.

Levantei alguns questionamentos sobre as práticas do Movimento Fala Negão Fala Mulher, considerando sua condição de inserção como entidade representativa que busca vincular, por meio de suas ações, a cultura enquanto forma de expressar idéias. De que forma o Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher trabalha a cultura negra africana? Como o grupo que representa a entidade determina suas ações no campo da cultura? De que forma o grupo divulga suas idéias de negritude? E como essas ações são entendidas pelas pessoas naquela comunidade da Zona Leste?

As referências para a reflexão sobre a cultura fundamentam-se em abordagens de autores vinculados aos estudos culturais como E. P. Thompson7,

5 ARANTES NETO, Antônio. Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público.

Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. (Coleção Espaço e Poder).

6 BENJAMIM, Walter. Rua de mão de única: Obras escolhidas. Volume 2. São Paulo. Editora

Brasiliense, 1987.

7 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa; tradução Renato Busatto Neto,

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Raymond Williams8, Stuart Hall9 e Terry Eagleton10. Estes me possibilitaram trabalhar a concepção de cultura para compreender modos de vidas e experiências ligadas aos sentimentos de afinidades culturais sem desconsiderar as tensões e enfrentamentos pertinentes às relações de trabalho, moradia e família na comunidade da Zona Leste de São Paulo.

Nas ações promovidas pelo Fala Negão Fala Mulher, eram postas em práticas possibilidades dos moradores da Zona Leste descobrirem-se portadores de afinidades e laços de pertencimento que os tornam integrantes de uma determinada comunidade de sentidos. Assim, para refletir sobre estas relações de negritude e pertencimento, me apropriei de proposições de Homi K. Bhabha11, Paul Gilroy12, Amadou Hampâté Bâ13, Kwame Anthony Appiah14 e Kabengele Munanga15. Essas leituras desencadearam uma série de questões sobre a miscigenação e as manifestações de ancestralidade que permearam a desconstrução de estereótipos comumente associadas à idéias de negritude e pertencimento ao tratarmos de questões vinculadas à cultura de grupos afro-descendentes no Brasil.

Na perspectiva de levantar informações acerca das atividades e concepções de integrantes do Movimento Fala Negão Fala Mulher recorri a diferentes tipos de fontes tais como depoimentos orais, a partir de entrevistas, e documentos escritos (Estatuto da fundação do Movimento, atas de reuniões, cartazes, jornais, dentre outros).

(Coleção Oficinas de História, v. 5). THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Revisão técnica Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. – São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

8 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Tradução de Waltensir Dutra. - Rio de Janeiro:

Zahar Editores, 1980.

9 HALL, Stuart. A identidade Cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva,

Guaracira Lopes Louro – 10. ed. - Rio de Janeiro: DP&A, 2005. HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações Culturais. Tradução Adelaine La Guardia Resende... [et all]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

10 EAGLETON, Terry (1943-). A idéia de cultura. Tradução Sandra Castello Branco; revisão

técnica Cezar Mortari. – São Paulo: Editora UNESP, 2005.

11 BHABHA, Homi K, O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis,

Gláucia Renate Gonçalves. – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. (Coleção Humanitas).

12 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: a modernidade e a dupla consciência. Tradução de Cid Knipel

Moreira. – São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

13 BÂ, Amadou Hampâté, 1900-1991. Amkoullel, o menino fula. Tradução Xina Smith de

Vasconcellos. – São Paulo: Palas Athenas: Casa das Áfricas, 2003.

14 APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Tradução Vera

Ribeiro; revisão de tradução Fernando Rosa Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

15 MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus

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Os procedimentos de verificação destes materiais foram se delineado no decorrer da pesquisa, à medida que o conteúdo das informações obtidas nas entrevistas interferiam na construção da análise. Em se tratando de narrativas orais, busquei orientar-me por questões levantadas por Alessandro Portelli16, Verena Alberti17 e Beatriz Sarlo18. Para Portelli, lidar com narrativas orais requer um atentamento para a fluidez da memória em sua relação com o tempo;

Isso levanta outro aspecto da fluidez das narrativas orais: o fato de que o tempo tira tanto quanto acrescenta. Há um limite em relação à quantidade de material que pode ser guardada na memória de um indivíduo ou de um grupo. Cada vez que se acrescentam informações novas, as antigas parecem ser descartadas por um processo ininterrupto de seleção19 (PORTELLI, 2004, p. 299).

Ao lembrar ou esquecer, os narradores produzem memória. Nas narrativas, estas memórias fluem em um tempo não cronológico, como tempo vivido, a partir do qual avaliam e organizam as experiências atribuindo-lhe significados. Ao analisar esses aspectos sobre as memórias, as entrevistas tornaram-se narrativas a partir das quais passei a formular algumas questões acerca da maneira como os participantes do Movimento Fala Negão Fala Mulher expressavam suas posições, reivindicadas enquanto postulados coerentes com vínculos de ancestralidade ou pertencimento à cultura afro-descendente.

Ao estabelecer contato com os integrantes do grupo Fala Negão Fala Mulher, comecei a participar de suas reuniões e encontros. Nestas ocasiões, me aproximei de dez pessoas que manifestavam posições mais explícitas em suas falas sobre a cultura e as manifestações defendidas pelo Movimento Negro. Após participar de quatro reuniões convocadas pela direção do Fala Negão Fala Mulher, pude perceber que havia divergência entre eles quanto à constituição ideológica do MovimentoNegroFala Negão Fala Mulher.

Com a aproximação com os participantes do Movimento, busquei compreender melhor suas concepções. Para tanto, realizei entrevistas de sete

16 PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética na

História Oral. In Revista Projeto História, – São Paulo: PUC São Paulo (15), abril 1997.

17 ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. 18 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa

Freire d’Aguiar. – São Paulo: Companhia das Letras, Belo Horizonte: UFMG, 2007.

19 PORTELLI, Alessandro. O momento da minha vida: funções do tempo na história oral. -

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integrantes de diferentes entidades vinculadas ao Movimento Negro: senhor Gilson Nunes Vitório do Fala Negão Fala Mulher, coordenador e fundador, Walter Hilário do Fala Negão Fala Mulher, fundador e conselheiro, dona Maria da Penha Nascimento de Campos do Fala Negão Fala Mulher, fundadora e conselheira, dona Ana Rita, coordenadora do Movimento Cultural Cidade Tiradentes - MOCUTI, senhor Tico Arantes, carnavalesco da escola de samba Nenê da Vila Matilde, senhor Alberto Alves Silva, fundador e presidente da escola de samba Nenê de Vila Matilde e dona Marilene Bernardes Martins, fundadora e diretora de harmonia da escola de samba Leandro de Itaquera.

Estes três últimos depoentes citados, embora não façam parte do

MovimentoFala Negão Fala Mulher, se mantêm próximos ao Movimento Negro e manifestam críticas a algumas posições defendidas por integrantes do Fala Negão Fala Mulher.

A partir das entrevistas percebe-se, de um lado, uma densa diversificação de temas e abordagens, e, por outro lado, uma grande confluência entre aquilo que é narrado pelos entrevistados, como questionamentos a aspectos da cultura e negritude. Por exemplo, o senhor Alberto Alves Silva, também conhecido como Seu Nenê de Vila Matilde, ou apenas por Seu Nenê, fundador e presidente da escola de samba Nenê de Vila Matilde, considerado o cacique do samba em São Paulo, tem várias divergências em relação às questões defendidas pelos fundadores do Fala Negão Fala Mulher. Seu Nenê é uma figura respeitada em suas posições políticas junto às comunidades do samba na cidade de São Paulo.

Por sua vez, Gilson Nunes Vitório um dos fundadores e conselheiro do

Fala Negão Fala Mulher, manifesta-se de modo contundente sobre importância da participação de pessoas de origem afro-descendentes em manifestações como o carnaval e organização de outras práticas socioculturais nas comunidades considerando seus laços de pertencimento específicos que os ligam às questões de culturas negras.

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A utilização de entrevistas orais neste trabalho, consistiu-se em recurso metodológico a partir do qual depoimentos e histórias de vida foram essenciais enquanto fontes de informações desencadeadas ao recorrer à memória de vivências como forma de conhecer práticas, modos e ações políticas a partir de experiências. Ainda que a memória permita um conhecimento apenas parcial do vivido, pois a memória é seletiva, freqüentemente sofre interferências da subjetividade do narrador.

Ainda neste sentido, as narrativas orais são fundamentais para a compreensão de concepções e posturas sobre as etnias negro-africanas, que tem na oralidade a preservação de significativos aspectos de suas culturas. “Na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima” (BÂ, Amkoullel Hampaté, O menino fula, 2003).

Ainda sobre as narrativas orais como fonte para a pesquisa, Portelli faz uma reflexão de como o historiador pode utilizá-las ao lidar com vivências e experiências sentidas por depoentes a partir do modo de elaboração de contextos de pesquisa.

Essa fusão de discursos e estilos de narrativa não é conseguida simplesmente pela citação das fontes. É, antes disso, uma questão de modificar nosso procedimento narrativo, nosso próprio modo de administrar o tempo e o ponto de vista. Que nossa história seja autêntica, lógica, confiável e documentada como deveria ser um livro de história. Mas que contenha também a história dialógica da sua formação e a experiência daqueles que a fazem. Que demonstre como os próprios historiadores crescem, mudam e tropeçam através da pesquisa e no encontro com os sujeitos. Falar sobre o ‘outro’ como sujeito está longe de ser suficiente, se não nos enxergarmos entre outros e se não colocarmos o tempo em nós mesmos e nós mesmos no tempo20

(PORTELLI, 2005, p. 313).

Entre as expressões culturais de sociedades africanas e afro-descendentes, a cultura oral constitui aspectos de grande relevância para a comunicação, por meio de manifestações de musicalidades, transmissão de saberes e tradições. Contar história, transmitir conhecimento oralmente são práticas recorrentes entre os descendentes de culturas africanas no Brasil. No cotidiano do Movimento Fala Negão Fala Mulher, percebemos que esta prática faz parte da maneira de como as pessoas se portam em relação as suas ações.

20 PORTELLI, Alessandro. O momento de minha vida: funções do tempo na historia oral. In

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Nas reuniões de coordenação do Fala Negão Fala Mulher, muitos eventos e práticas são definidos a partir da palavra de compromisso. Neste caso, o sujeito se compromete a realizar as ações definidas pelo grupo a partir de acordos feitos pelos participantes da reunião e muito pouco se registra em ata de reunião. Os participantes do Fala Negão Fala Mulher mantêm a oralidade como um traço emblemático de suas práticas culturais, modos de vida, de comunicar-se, de expressar conhecimentos e de refletir sobre suas ações. Isto nos leva a considerar sua importância na preservação de aspectos da cultura africana, ressignificada na sua experiência de viver.

Não pretendemos com isso afirmar que se trate de africanos, e sim de brasileiros descendentes de africanos. São brasileiros que preservam valores e práticas da cultura de seus ancestrais, não em estado primitivo, mas modificado no contato com outras culturas, inclusive de seus ancestrais não africanos, mas brasileiros, que por razões políticas adotam intencionalmente valores culturais africanos.

Daí a discussão sobre as questões da memória e suas ressignificações no campo de entendimento cultural de cada entrevistado. Procurei considerar as lembranças e as experiências vividas no presente como o lugar de onde parte minhas análises. E de suas atuais condições de vida busquei compreender sua historicidade.

Neste meandro o gravador e o mp321 foram fundamentais para a gravação dos depoimentos ou entrevistas, juntamente ao bloco de anotações. Além disso, registrei conversas informais, os famosos bate-papos, nos quais ocorriam valiosas trocas de informações e experiências de vida, muitas vezes compartilhadas na memória. Isto significou um extenso trabalho, muitas vezes cansativo, mas muito prazeroso. Logo após os contatos, as reflexões ganhavam dimensões elucidativas e tensas, porém de grande inquietação.

Entendo que a memória constitui uma experiência individual e compartilhada, pois é socialmente construída e se mantém em constante atualização, resultado de percepções vividas. A compreensão de experiências de vida, tomando por base a memória, também nos permite lidar com esquecimentos, favorecendo o ato de re-elaborar significados e re-estabelecer

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relações com o passado, posto diante da dinâmica da própria memória. Se lembrarmos, por que lembramos? Como lembramos? Se esquecermos, por que esquecemos?

Durante o desenvolvimento da pesquisa sobre o Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher, as mudanças sobre as concepções de cultura passaram a ter importância fundamental para reflexão não só sobre o Movimento Negro e sobre as noções de negritude, mas também para entender as relações entre as pessoas que participavam do Movimento. À medida que estabeleci maior contato com referências teóricas que trabalham o conceito de cultura, tornou-se possível ampliar percepções de elementos que o Movimento Fala Negão Fala Mulher

defende como sendo o campo de atuação coerente com as reivindicações que levam a comunidade a conquistar a possibilidade de ser reconhecida em sua cultura afro-descendente.

Com o intuito de aprofundar a compreensão e análise destes aspectos acerca das concepções de cultura que permeiam a realidade do Movimento Negro, mais especificamente o Fala Negão Fala Mulher, trabalhei com materiais publicados pela imprensa, buscando perceber como eram tratadas as manifestações de grupos afro-descendentes por meios de comunicação como o

Jornal Hora X Consciência Negra, a Revista Fala Negão e o programa da Rádio Esperança. As matérias publicadas por estes meios de comunicação forneceram elementos bastante significativos para a discussão da cultura e de pertencimento, postuladas pelo Movimento.

Através de fontes impressas percebi as relações existentes entre a realidade vivenciada pela comunidade negra e as questões culturais. Considera-se, no entanto, serem os materiais impressos que tratam da cultura negra, ainda um tanto escassos. Como meio de suprimir tais deficiências, recorri ainda a outros documentos como as atas de reuniões e o Estatuto de fundação do Movimento Fala Negão Fala Mulher, além de depoimentos de militantes deste Movimento

para construir a reflexão acerca da cultura negra na Zona Leste de São Paulo. Encontrei no Jornal Hora X Consciência Negra um manifesto que destaca alguns dos princípios defendidos pelo MovimentoNegro.

CONSCIÊNCIA NEGRA É:

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CIDADANIA, UMA LUTA A ENGROSSA!!! MUITO POUCO DIFUNDIDA!!!

NECESSÁRIA, MUITO LOUCA!!! LUTA E CONSCIENTIZAÇÃO!!

DISCUSSÃO SOBRE DESIGUALDADES!!! É FRACA NO BRASIL!!!

É PRECISO FORMAR!!!

FUTURÍSTICA, DEPENDENDO DA CONSCIÊNCIA!!! MUITO FRAGMENTADA!

A SINGULARIDADE E A BELEZA DE SER O QUE É! MUITA DISCUSSÃO, IMPORTANTE, CRUCIAL! A UNIÃO FAZ A FORÇA!

CONQUISTA DE ESPAÇO! MOBILIZAR, SUPER LEGAL!

NÃO DÁ PRA EXPRESSAR EM 2 LINHAS!!! NOSSA FORÇA, É NOSSA JUVENTUDE!!!22”

(Jornal Hora X Consciência Negra, Novembro de 1997)

Uma forma que o Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher tem para enfatizar suas posições sobre uma cultura afro-descendente se verifica, na edição de número 0 do ano 1, no Jornal Hora X Consciência Negra que trouxe em sua capa um chamado à conscientização das pessoas que participam do Movimento Fala Negão Fala Mulher na comunidade.

A maneira de apresentar ou representar os grupos, as discussões sobre as fontes, tanto na imprensa quanto nas narrativas de depoentes, foram fundamentais para a organização de minha pesquisa.

O Jornal Hora X Consciência Negra23 (1997), publicado no formato tablóide e com quatro páginas, tinha como objetivo primordial transmitir informações que contribuíssem para a formação de uma consciência negra. Desde a primeira página, editoriais e demais matérias eram direcionadas para a divulgação de assuntos voltados a eventos artísticos da comunidade. Como por exemplo, na edição de novembro de 1997, com o seguinte título: “DIA 13 DE DEZEMBRO, SÁBADO, 17H ITAQUERA VAI SE TRANSFORMAR NO MAIOR PALCO DA CULTURA NEGRA”24.

Muito embora o público alvo deste periódico fosse a comunidade negra que mora em regiões distante do centro da cidade de São Paulo, a leitura é igualmente feita por pessoas de outras comunidades. O jornal Hora X

22 Consciência Negra é:. Jornal Hora X Consciência Negra, São Paulo, Ano 1 nº 0, novembro de

1997.

23 Consciência Negra é:. Jornal Hora X Consciência Negra, São Paulo, Ano 1 nº 0, novembro de

1997.

24 Reportagem de Capa: Consciência Negra é - Jornal Hora X Consciência Negra, Ano 1, nº 0,

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Consciência Negra tinha o objetivo de atingir o público negro da Zona Leste de São Paulo, mas as questões que eram discutidas, por sua abrangência, atingiram um público maior que os limites da comunidade. Isso ocorrera graças à sua forma de distribuição, que chegou ao número de dez mil em uma das edições.

Os exemplares eram distribuídos nas assembléias de professores da rede estadual de ensino fundamental e médio do Estado de São Paulo, organizadas pela Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo - APOESP25. Geralmente as assembléias aconteciam nas praças da Sé ou da República, no centro da cidade de São Paulo. Os jornais distribuídos para os professores das várias regiões do Estado de São Paulo como as sub-sedes de Campinas, Ourinhos, Marília, Assis, Bauru, Presidente Prudente, Santos, Sumaré, São José do Rio Claro, Ribeirão Preto, entre outras, eram utilizados como material pedagógico entre os professores. Também eram distribuídos nas estações de metrô e de trem urbano do Brás, onde há um grande fluxo de pessoas de várias regiões da cidade de São Paulo. E ainda nas sedes dos sindicatos dos metalúrgicos em Santo André, São Caetano do Sul e São Bernardo do Campo.

Neste periódico, publicado entre 1997 e 2001, predominavam os temas e assuntos direcionados aos interesses da comunidade negra e afro-descendente. As reportagens, textos e eventos sobre artistas e políticos da comunidade negra da região da Zona Leste de São Paulo estavam presentes em todas as edições do jornal. Em seu título o jornal traz, de modo bastante explícito, sua perspectiva de veículo de divulgação sob concepções e bandeiras defendidas pelo Movimento Negro.

O ano de 1997 foi, sem dúvida, de grande importância para o Movimento Negro e muito significativo para o Fala Negão Fala Mulher. Este momento tornou-se referência por tornou-se tratar da comemoração dos trezentos anos de Zumbi dos Palmares. O Movimento Negro apropriou-se da ocasião para dar destaque às questões referentes à participação dos negros na história do Brasil e a forma como eram vistos (ou melhor, como praticamente não apareciam na história). Nesse contexto, uma das iniciativas do Movimento foi a criação de uma revista

25 Sindicato: Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, sede na

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inteiramente dedicada às questões de interesse da população afro-descendente. Assim, foi lançada em 1997 a Revista Fala Negão26.

A preocupação de lançar uma revista comemorativa dos trezentos anos de Zumbi teve como princípio uma pesquisa de opinião pública, realizada entre jovens de comunidades da Zona Leste de São Paulo pelo Fala Negão Fala Mulher. Realizada em bailes funks e entre os moradores da Zona Leste, pedia que os jovens indicassem um símbolo de negritude. A maioria dos jovens que respondeu à pesquisa apontou Zumbi como símbolo de negritude, um herói rebelde que se refugiou na mata em defesa de ideais de liberdade.

Também se perguntou aos jovens se a permanência nos bairros onde moravam era uma forma de rebeldia. Estes jovens, em sua maioria pessoas entre quatorze e vinte e cincos anos de idade, responderam que a permanência no local, próximo da comunidade em que residiam, em alguns casos se justificava pela dificuldade em se deslocar para bairros próximos ao centro de São Paulo, ou em outros casos, a falta de recurso financeiro. Entretanto, essa opção por permanecer na comunidade, bem como construírem suas formas próprias de lazer nos locais onde moram, não se constitui algo novo, uma vez que, desde meados do século XX há registros da existência de grupos de sambistas e blocos carnavalescos que realizavam bailes e rodas de samba no local.

Os bailes realizados no clube Santa Cruz, em Guaianases, no Elite Itaquerense e as rodas de samba, promovidas pelas escolas de samba Falcão do Morro e posteriormente Leandro de Itaquera, agregavam um grande número de pessoas, desde 1950.

Pude perceber que as referências a eventos musicais aparecem em vários artigos da revista e em entrevistas dos fundadores, coordenadores e participantes do Fala Negão Fala Mulher.

De acordo com o Estatuto de fundação da Sociedade Comunitária, Ecológica, Cultural e Escola de Samba “Fala Negão”, fundada no dia 21 de março de 1992, o Movimento foi criado efetivamente no dia Internacional Contra a Discriminação Racial. O grupo era constituído por moradores da Zona Leste, oriundos de diferentes condições e segmentos sociais. Alguns de seus

26 REVISTA FALA NEGÃO – “Pesquisa em Salões de Baile – O que pensa a Juventude da Zona

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integrantes eram estudantes universitários que desenvolviam estudos e pesquisas sobre o negro e suas culturas. As atividades que constituíram o Fala Negão Fala Mulher estavam ligadas diretamente à formação de pertencimento a partir de suas experiências e práticas vivenciadas, com destaque na realização de reuniões temáticas, debates, seminários, encontros, passeatas, exposições, mostras culturais, atos públicos realizados em bairros distantes do centro de São Paulo, nas comunidades e em escolas públicas e privadas.

Ao tratar de posturas de participantes de movimentos sociais, Kabengele Munanga destaca a maneira como estes se organizam e sobre o que caracteriza suas formas de luta.

Todos os movimentos sociais, incluindo o dos negros, lutam pela justiça social e por uma redistribuição eqüitativa do produto coletivo. Numa sociedade hierarquizada, como a brasileira, todos encontram dificuldades para mobilizar seus membros em torno da luta comum para transformar a sociedade27 (MUNANGA, 2001, p. 19).

Nas palavras de Kabengele Munanga, apresentadas em seu discurso na defesa da tese de livre docente, junto ao departamento de antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, publicada na obra “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil – identidade nacional versus identidade negra”, este pesquisador levanta questões sobre as várias formas de discursos de construção de racismo e anti-racismo no Brasil.

A reflexão a respeito das dificuldades em organizar uma entidade social vinculada ao Movimento Negro no Brasil põe em debate o próprio conceito de negritude. A concepção de negritude é discutida a partir da noção de miscigenação ao longo de um período de mais de quatrocentos e cinqüenta anos de presença dos negros africanos no Brasil. A busca pela conquista do que se concebe como justiça social ou até mesmo do estabelecimento de uma relação de luta pelos direitos sociais,

Parece haver grandes questões quanto a direção e o caráter da cultura e da arte negras se levarmos em conta os poderosos efeitos mesmo de

27 MUNANGA, Kabengele, Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil – Editora Autêntica, 2001, MG,

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experiências temporárias de exílio, e deslocamento28 (GILROY, 2001, p.

63).

O conceito de negritude formulado de Paul Gilroy, em “O Atlântico Negro”, procura rever a questão da Diáspora Negra nas narrativas de deslocamentos entre a África e América. O “Atlântico Negro” foca as questões culturais e suas concepções na pós-modernidade, levando em consideração suas manifestações e transformações entre os dois lados do Atlântico Negro.

O deslocamento de pessoas que se aventuravam na saída de sua terra de origem se dava por vários motivos, como pude perceber nos depoimentos do senhor Gilson Nunes Vitório, migrante originário do interior da Bahia ou do senhor Nenê de Vila Matilde e Walter Hilário, ambos vindos de Minas Gerais para a cidade de São Paulo. Eles passaram a ressignificar seus hábitos e costumes agregando novas práticas para se adaptarem à situação que passaram a viver em contextos diversos daquele de suas origens. Na nova realidade perceberam a necessidade de valorizar os laços com sua ancestralidade africana, recuperando significado ou ressignificando-a.

Ao observarmos, por exemplo, as características sonoras de ritmos africanos marcados pelo tom intimista de atabaques, que na África conferem sentido próprio a manifestações culturais condizentes com realidades vividas em contextos distintos daquele, os africanos trazidos para o Brasil passaram a desenvolver, nos terreiros em candomblé e umbanda, modalidades de música marcados pelas condições enfrentadas no cotidiano do cativeiro.

O Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher, busca recuperar sentidos e significados de traços de sua ancestralidade. Em seu Estatuto Social apresenta como proposta desenvolver a cultura afro-brasileira, vislumbrando a defesa de valores humanitários universais. Para atingir tais anseios, desenvolvem ações de formação de uma consciência de elementos que os vinculem à sua própria historicidade. Suas atividades concretizam-se pela realização de festivais de música, dança, teatro, exposições de artesanato, palestras e seminários. Nestes eventos pleiteiam ampliar a participação popular na promoção da cidadania29.

28 GILROY, Paul, O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Senhores, senhoras,

escravos e a antinomias da modernidade, Tradução de Cid Knipel Moreira - São Paulo: Ed. 34: Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos afro-asiático, 2001, p. 63.

29 Projeto Cultural Fala Negão Fala Mulher. Estatuto Social. Capítulo 1. Da denominação –

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De acordo com Abdias do Nascimento, militante do Movimento Negro, o combate à discriminação étnica no Brasil, ou seja, a luta contra a discriminação étnica é representada pelo Movimento Negro através da afirmação de preceitos que não podem pautar-se apenas por fatos passados, mas também por um permanente engajamento de grupos que levantam bandeiras em defesa dos direitos aos bens materiais e culturais a todas as etnias. Assim, depreende-se que: “o Movimento Negro tem várias faces, mas sempre é a continuidade da grande luta, cujo maior líder e referência básica é o Zumbi dos Palmares”30.

Entre os vários modos de produção de cultura afro-brasileira compreendidas como práticas e modos de vivência, considerei necessário refletir sobre a memória e os significados de aspectos culturais mantidos em costumes, hábitos e vivências que se relacionam em práticas construídas por laços de afetividade e valores de pertencimento. A discussão sobre tais questões, ressaltamos, remete a reflexão sobre o tempo, percebido no passado e o passado no presente.

Para melhor sistematizar as questões que desenvolverei neste trabalho, optei por dividí-lo em quatro capítulos, nos quais analisarei o Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher na trajetória de sua construção na cidade de São Paulo. Partimos da discussão da problemática acerca dos significados de ser negro analisadas no âmbito do processo de constituição de Movimentos de comunidades negras em bairros da Zona Leste da cidade de São Paulo.

No primeiro capítulo apresento o Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher e sua trajetória de formação enquanto movimento social organizado. Discutirei aspectos políticos da organização do Movimento, as ações ideológicas em relação à cultura e à memória, considerando os processos de migração de seus integrantes e as lutas por espaços na cidade de São Paulo, bem como os discursos sobre a negritude e a miscigenação focados no pertencimento da etnia negra.

No segundo capítulo, as reflexões que procurei desenvolver referem-se a questões da cidade nas relações possíveis de pertencimento ao espaço urbano. A resistência sobre a mudança e o deslocamento para os bairros distantes do

30 NASCIMENTO, Abdias do. Uma vida dedicada a um ideal, Entrevista concedida em: 17 dez

2001. Disponível em:

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centro da cidade de São Paulo, as relações estabelecidas às novas vivências que a partir dos projetos urbanos passaram a fazer parte do cotidiano, como novos habitantes de bairros situados na Zona Leste do município de São Paulo, que surgiu como alternativa de moradia, qualidade de vida e pertencimento. As questões de saúde e estrutura na Cidade Tiradentes, Guaianases, e a situação da mulher e suas lutas por direitos de pertencimento.

No terceiro capítulo tratarei da imprensa como canal de discussão sobre as práticas do MovimentoNegroFala Negão Fala Mulher, tendo como ponto de partir as reflexões levantadas a partir do Jornal Hora X Consciência Negra. Como ele constituiu em veículo de expressão das vivências e ações na comunidade negra. Também procurei perceber como uma publicação escrita posicionou-se e produziu um discurso crítico sobre as questões culturais percebidas nas ações do

MovimentoNegroFala Negão Fala Mulher.

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Capítulo 1

Discurso Político, Ações e Organização do Movimento Negro

1.1 Cultura, experiência, ancestralidade e memória do Movimento

Fala Negão Fala Mulher

O Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher, criado na década de 1990, é entendido nesta pesquisa como um projeto social de lutas, com interesses amplos. Sua formação e trajetória constituíram-se por processo de busca por melhores condições de vida em locais de difícil acesso da Zona Leste de São Paulo, mais especificamente em bairros como: Itaquera, Guaianases, São Miguel, São Matheus e Itaim Paulista. O Movimento se envolve nas lutas de classes sociais na cidade o que pode ser observado nos discursos sobre cultura - ou culturas - da etnia negra ou afro-descendente.

Neste capítulo pretendo discutir o discurso sobre as questões da negritude e ancestralidade na formação do Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher na cidade de São Paulo, levando em consideração as experiências dos sujeitos que o constituem e por ele são constituídos.

A sociedade comunitária, ecológica, cultural e escola de samba FALA NEGÃO, organização não governamental, fundada oficialmente em 21 de março de 1992 (Dia Internacional Contra Discriminação Racial) tem como objetivo desenvolver o espírito comunitário da população negra, assim como, reunir grupos, personalidades, pessoas comuns e da comunidade em geral com o propósito de incentivar a militância e pesquisa. Também promover estudos dos problemas que afetam a população negra

marginalizada31 (ESTATUTO SOCIAL, São Paulo, 1992).

Em seu Estatuto Social, o Fala Negão Fala Mulher propõe desenvolver suas ações em três direções:

1. Desenvolver o espírito comunitário;

2. Incentivar a militância ao Movimento Negro;

31 Estatuto Social – SOCIEDADE COMUNITÁRIA, ECOLÓGICA, CULTURAL E ESCOLA DE

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3. Realizar estudos sobre a realidade de vida da população negra marginalizada.

Uma característica que permeia o Movimento ao longo de sua trajetória, é pensar uma sociedade comunitária que procure a participação na questão ecológica, percebida na forma de aproximação de suas ações com a própria religião ou até o manuseio de raízes e plantas para curar enfermidades. Essas ações, assim como a discussão sobre a cultura e a escola de samba, são questões que delineiam as referências identitárias nas intenções do Movimento NegroFala Negão Fala Mulher.

Essas ações ocorrem a partir dos modos e formas de construção dos laços afetivos e de aproximação, da busca de igualdade e respeito às diferenças entre os participantes do Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher que articulam a construção de suas experiências na comunidade, estabelecendo traços comuns de suas experiências vividas.

Assim, as expressões e linguagens corporais que permitem assumir formas de comportamentos, gestos, músicas e sentimentos de proximidade, constituem hábitos que possibilitam a desconstrução do que estamos familiarizados como pressupostos de aptidões morais e intelectuais sobre a negritude. Essa relação de desconstrução faz-se sobre as diferenças entre a permanência e a resistência dos indivíduos nas transformações do cotidiano.

Na afirmação de modos liberados de ser, a ênfase na ancestralidade africana como forma de resistência é a razão pela qual identificamos a partir dos gestos, ou mesmo nos modos de referirmos ao outro, como o Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher busca desenvolver seu trabalho junto à comunidade de Itaquera, em São Paulo, com a finalidade de discutir as questões da negritude. Podemos então perceber na fala de Walter Hilário o contorno das referências identitárias a partir do reconhecimento das ações políticas.

Eu quero falar um pouco de como eu conheci o Gilson, eu já conhecia o Gilson, do Fala Negão, eu estava na cidade, eu tinha vindo do movimento, o movimento político bom para a escola de samba, leva a escola de samba para discutir o movimento da cidade, quando eu conheci o Gilson, 83, 84, a questão do primeiro movimento do Zumbi dos Palmares, 84, e ai vai, começa engajar no movimento em 8432 (HILÁRIO, São Paulo, 2007).

32 HILÁRIO, Walter. Fundador e Conselheiro do Movimento Negro Fala Negão. Entrevista

(32)

Essa percepção sobre a necessidade de converter as ações políticas em situações de igualdade pode nos levar à compreensão da relação entre o discurso de engajamento e da construção de um Movimento Negro pautado no posicionamento político que explora as possibilidades de intervenção na cidade. Quando Walter Hilário fala que já conhecia o Gilson Vitório, é uma forma de reconhecimento do papel deste na organização e nas lutas em Movimentos

populares.

No caso da construção do Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher, tanto a valorização da ecologia quanto da escola de samba parte da valorização da cultura e das práticas culturais como dimensão importante da história dos afro-descendentes, de suas experiências vividas e sentidas nas significações e ressignificações. Portanto, cultura neste contexto não é considerada como mera ilustração, superestrutura ou ponto de partida para justificar o Movimento Fala Negão Fala Mulher. Ou ainda como simples prática de abordagem, mas sim como seu fundamento principal.

Na trajetória das experiências vividas pelas pessoas que buscaram vincular-se ao Movimento Fala Negão Fala Mulher para atender as necessidades do que elas entendiam como justiça social em seus direitos de moradia, trabalho e lazer, é importante o reconhecimento de suas idéias, ações e resistências como expressão de afirmação de sua negritude.

Conforme nos diz Stuart Hall,

A cultura não é uma prática; nem apenas a soma descritiva dos costumes e “culturas populares [folkways]” das sociedades, como ela tende a se tornar em certos tipos de antropologia. Está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a soma do inter-relacionamento das mesmas. Desse modo, a questão do que e como ela é estudada se resolve por si mesma. A cultura é esse padrão de organização, essas formas características de energia humana que podem ser descobertas como reveladoras de si mesmas – “dento de identidades e correspondências inesperadas”, assim como em “descontinuidades de tipos inesperados” – dentro ou subjacente a todas as demais práticas sociais. A análise da cultura é, portanto, “a tentativa de descobrir a natureza da organização que forma o complexo desses relacionamentos”. Começa com “a descoberta de padrões característicos”. Iremos descobri-los não na arte, produção, comércio, política, criação de filhos, tratados como atividades isoladas, mas através do “estudo da organização geral em um caso particular”. Analiticamente, é necessário estudar “as relações entre esses padrões”. O propósito da análise é entender como as inter-relações de todas essas práticas e

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padrões são vividas e experimentadas como um todo, em um dado período: essa é sua “estrutura de experiência” [structure of feeling]33. (Da

diáspora, 2003, p. 128).

A essa prática de organização entre vários modos de entender o espaço cultural, Stuart Hall procura estabelecer a construção de um conceito singular sobre a cultura. Em que ela se forma, se cria e recria a partir de experiências vividas. No caso das análises de formação de grupos sociais, especificamente do

Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher, as reflexões sobre a cultura desencadeiam uma grande confluência de idéias que perpassam pelo tempo cronológico entre as necessidades do sentimento de negritude.

Pensamos a cultura como forma de saberes, práticas e experiências vividas e sentidas, como uma grande teia entrelaçada sem começo ou fim. Essa cultura - ou culturas - estende-se tanto ao plano das tensões como nas atividades produtivas. Como pode ser observado nos argumentos de Gilson Vitório:

Eu faço uma ligação de movimento, um pouco nessa linha. A linha da escola de samba e da discriminação, a gente não tinha uma ligação, é, política da discussão do movimento. Mas tinha a discussão da cultura, da resistência da cultura através da escola de samba, embora que não muito vigorosamente nessa linha, mas acho que era um pouco nessa ligação34 (VITÓRIO, São Paulo, 2007).

Ainda para Vitório, as práticas culturais que o Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher procura desenvolver são justificadas a partir dos contextos culturais, ora dentro dos espaços comuns na comunidade a qual pertence, ora fora dela, como espaço vivencial, divulgando as experiências de ancestralidade e de luta por eqüidade, representado como prática de ação do Movimento Negro. A ligação que Gilson Vitório faz entre a cultura e a escola de samba pode ser percebida como forma de resistência incorporada às referências identitárias do

Movimento Negro. A escola de samba é percebida e construída como lugar social de discussão sobre a negritude e ancestralidade e, portanto, como espaço de atuação do Movimento Negro.

33 HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações Culturais. Tradução Adelaine La Guardia

Resende... [et all]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 128.

34 VITÓRIO, Gilson Nunes. Fundador e Coordenador do Movimento Negro Fala Negão Fala

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A idéia de ancestralidade que aqui procuramos discutir é aquela que nos remete aos hábitos, costumes, idéias, valores, sentimentos, rituais que procuramos adotar, desenvolver, tornar presentes não só em nosso dia-a-dia, mas em nossas referências identitárias, inspirados em nossos antepassados ou ancestrais.

Percebemos a construção de um sentimento de ancestralidade como forma de luta a partir da ressignificação das experiências vividas que interagem na desconstrução/reconstrução do passado em relação ativa com o presente. Não se trata de mera permanência do passado, nem de uma recriação das experiências de nossos ancestrais tal como eram, mas sim, de sujeitos que no presente selecionam, qualificam, ressignificam o passado e o próprio presente, a partir de seus interesses, valores e necessidades com vistas ao futuro.

A questão da ancestralidade é focada como forma de resistência e de resposta às tensões na luta por melhores condições de vida diante das transformações vividas pelos atores sociais que nela se vêem e têm como ponto de modificação de seus sentidos, levando-se em consideração as ações cotidianas que permeiam as relações entre o tempo presente e o tempo passado.

Esta visão de ancestralidade não nos permite pensá-la como uma simples forma genealógica de aparência física ou de hábitos que vivenciamos. Essas relações que expressam sentidos de igualdades e diferenças são constituídas e transformadas na construção dos sujeitos que transitam pelo tempo cronológico, buscando no passado referências para modificar o presente e projetar o futuro.

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E quando você se levanta uma proposta com esta então, começam a assediar a cultura, a minha família começa a chegar, as pessoas começam a se apropriar da cultura, o negro sempre foi desbravador, a própria religião, morava longe, buscava medicamento no meio do mato, a própria religião, a benzedeira, a religião afro, precisava do mato, precisava da água, entendeu, precisava das coisas toda aí, e o negro gosta de morar longe do centro, ele gosta, sabe, ele sente a dificuldade de quando chega, chega por que, porque demora muito, eu adoro morar na Cidade Tiradentes35 (HILÁRIO, São Paulo, 2007).

Os vários elementos que Hilário aborda sobre a questão da cultura negra africana, como os hábitos e modos vida praticados em alguns locais da periferia, nos refere a aspectos constitutivos da memória que pretendemos trabalhar aqui, como memória compartilhada ou que PORTELLI36 chamou de memória social. Valores culturais cultivados na África, expressos nas atividades cotidianas de homens, mulheres e crianças, e trazidos para o Brasil, foram passados para as gerações seguintes que incorporaram e modificaram, ao longo dos séculos, de diversas maneiras e em condições também diferenciadas. Fazeres e saberes de seus antepassados foram aqui desenvolvidos como os rituais religiosos, o conhecimento de ervas, os cuidados com a natureza, musicalidades e gestuais que compõem uma ampla e enraizada memória cultural. E como toda memória, articula lembranças e experimentos, tendo o presente como referência.

No uso da metodologia da história oral é preciso considerar que o ato de lembrar é individual, porém, experiências que compõem as narrativas orais ou escritas são vivenciadas individual e socialmente. Por essa razão, não nos é permitido falar em memória coletiva, mas em “memória compartilhada37”, que pode ser entendida na reflexão de Alessandro Portelli (REVISTA PROJETO HISTÓRIA, Abril, 1997, p. 16) da seguinte forma:

A essencialidade do indivíduo é salientada pelo fato de a História Oral dizer respeito a versões do passado, ou seja, à memória. Ainda que esta seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A memória pode existir em elaborações socialmente

35 Cf. HILÁRIO, 2007, referência 32 da página 31-32.

36 REVISTA PROJETO HISTÓRIA 15. Revista do programa de estudos pós-graduados em

História e do departamento de História. – São Paulo: PUC São Paulo (15), abril 1997, p. 16. PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética na História Oral.

37 Memória compartilhada está relacionada às lembranças compartilhadas, surgidas nas suas

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estruturadas, mas apenas os seres humanos são capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são – assim como as impressões digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes – exatamente iguais.

É por esse motivo que eu, pessoalmente, prefiro evitar o termo “memória coletiva”. Embora estejamos trabalhando com o intuito de registrar lembranças que possam ser coletivamente compartilhadas e aproveitadas, devemos ser cautelosos ao situá-la fora do indivíduo38. Em relação aos aspectos que fizeram parte de lembranças da infância, como as cantigas de ninar, dos quais, em algum momento, lançamos mão como recurso para ativar lembranças a fim de atingir novos elementos de nossa cultura, a fala de Walter Benjamim39 sobre uma memória involuntária que pode ser despertada sem que a desejássemos; sons, cheiros, paladares e cores que nos sensibilizam, nos faz lembrar de pessoas, acontecimentos e sentimentos.

Pensando ainda nas reflexões feitas por Walter Benjamin40 em Rua de mão única, ao descrever a cidade onde viveu sua infância, com detalhes observados pelos olhos de uma criança, podem compor um cenário reconstruído a partir do encantamento de sua cidade natal.

Gilson Vitório lembra da cidade de sua infância

[...] e vim pra cá com 9 anos, em 1957.[...] Eu morava na rua de cima, da Liberdade, e era só descer a rua São Joaquim, eu já saia na primeira escola de samba que era a Galvão Bueno, e andava mais uns trezentos ou quatrocentos metros, atravessava a rua de baixo, e saia na Escola de Samba Lavapés.

[...] Eu descia, assistia as escolas, ali do outro lado era o Cordão Carnavalesco Fio de Ouro, depois tinha a Vai-Vai e no centro da cidade, na época daqueles bondinhos abertos, o pessoal desfilava ali na Rua Direita, ali tudo naquele círculo, até hoje a gente participa, eu comecei assistindo [...]41 (São Paulo, 2006).

38 Cf. REVISTA PROJETO HISTÓRIA 15, p. 16, referência 36 da página 35.

39 BENJAMIM, Walter. Rua de mão de única: Obras escolhidas. Volume 2. Tradução de Rubens

Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo. Editora Brasiliense, 1987. passim.

40 Ibid. passim.

41 VITÓRIO, Gilson Nunes. Fundador e Coordenador do movimento negro Fala Negão. Entrevista

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Em suas lembranças de um menino de nove anos, recompõe a cidade de São Paulo, na qual perambulava, percorrendo ruas, praças e feiras.

Mesmo não sendo sua cidade natal, Gilson Vitório ia se apropriando dela, tornando-a sua. E assim, São Paulo foi se fazendo presente na constituição de suas experiências e referenciais identitários. Hoje, aos sessenta anos, essas lembranças sobre o centro da cidade indicam que o carnaval teve um papel importante na construção de seus laços afetivos e de sua formação cultural e política.

1.2 Cidade: migração e luta pelo espaço

Na cidade de São Paulo percebemos que a conquista do espaço de moradia se estabelece a partir de processos migratórios e seus conseqüentes desdobramentos, como acesso a transporte, a saúde, aos meios de comunicação, dentre outros, relacionando à experiência de construção de sentimentos de pertencimento.

As questões que o Movimento Negro Fala Negão Fala Mulher discute estão relacionadas principalmente à cidade de São Paulo, mais especificamente à Zona Leste e sua atividade política.

A proposta de formar uma entidade de cultura afro-descendente surgiu ironicamente em uma situação em que integrantes do Movimento Negro

participavam de uma roda de discussão com o propósito de tratar de questões relacionadas ao Movimento Negro na cidade de São Paulo. Essa expressão que na boca de muitos significava uma forma de descriminação sofreu um deslocamento de significado ao ser incorporado pelo Movimento, abrindo espaço para uma comunicação mais oralizada e coloquial. Em meio a estas discussões, freqüentemente surgia, em tom de piada, uma provocação quanto aos modos de tratamento pelos quais algumas pessoas costumavam tratar seus pares: “E então, fala aí negão! Fala negão”.

Essa forma de falar foi desenvolvida como maneira de se expressar e se manifestar, de expor idéias sobre os assuntos que eram percebidos pelas pessoas que participavam das rodas de discussões sobre o Movimento Negro.

Imagem

Figura 2 – Mapa da Zona Leste de São Paulo e outros municípios.

Referências

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