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SABEDORIA E FORÇA DA YALORIXÁ JACI: práticas religiosas afro-brasileiras e conflitos em Amargosa na década de 1980

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SABEDORIA E FORÇA DA YALORIXÁ JACI: práticas religiosas afro-brasileiras e conflitos em Amargosa na década de 1980

Lorena Michelle Silva dos Santosi .

Introdução

As práticas culturais-religiosas afro-brasileiras vivenciadas e reconstruídas pelos sujeitos, sobretudo negros e negras, no município de Amargosa, localizado no Recôncavo Sul da Bahia, no período em estudo, na década de 80, territorializaram expressões e influências no meio social, marcando ritmos nas relações que eram estabelecidas no cotidiano da população. Os adeptos a essa religiosidade (Candomblé) exerciam seus saberes religiosos a partir do legado dos seus antepassados e das experiências compartilhada entre os pares, relações estas que estavam pautadas no poder, nas trocas culturais e na (re) configuração das práticas sociais Dessa forma, a religiosidade afro-brasileira no município, a partir das primeiras evidências apontadas nas fontes, representou para muitos dos seus seguidores a possibilidade de viver o sagrado e desenvolver relações de sociabilidade, como também para alguns adeptos, momentos de conflitos e divergências, quando tinham seus costumes religiosos afro-brasileiro, questionados, rejeitados e em alguns momentos perseguidos, por parte da população da cidade, que no intuito de reprimir, condenavam por meio da justiça os adeptos da religiosidade afro-brasileira, e por conseguinte a religião.

Nesse sentido, autor Júlio Braga nos informa que:

Batidas policiais, assim como outras formas de reação da classe dominante, em face dos valores culturais afro-baianos, vão ser frequentes aos terreiros de Candomblé da Bahia [...] a repressão policial tinha propósito de atingir a comunidade religiosa negraii

A citação acima faz menção à repressão sofrida pelos terreiros de Candomblé na cidade de Salvador, na primeira metade do século XX. Nesse sentido, alguns aspectos desse período iriam se repetir em momentos posteriores, na cidade de Amargosa, em proporções e espaços diferentes, no entanto, vislumbravam os mesmos desejos em desqualificar os terreiros de candomblé e seus seguidores.

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Nesse sentido, a repressão policial teve seu papel no município de Amargosa, no período em estudo, agindo de forma repressiva contra alguns adeptos da religiosidade afro-brasileira, tidos como propagadores de malefícios e perigosos. Sendo assim, a justiça passa a ser no Brasil, como também na cidade de Amargosa, um mecanismo de coibição dessas práticas religiosas, tidas como suspeitas, tendo como respaldo as leis.

Assim, o presente texto tem como objetivo analisar como a religiosidade afro-brasileira, principalmente o Candomblé, vivenciada pelos sujeitos, sobretudo negros e negras, no município de Amargosa, localizado no Recôncavo Sul da Bahia, era perseguida e representada por parte da sociedade local.

Um importante aspecto que justifica o recorte temporal do objeto de pesquisa, definido a partir de 1980, se refere as evidências apontadas no contato com as fontes, em especial, num processo-crime encontrado referente a esse período na cidade de Amargosa, no qual a repressão às práticas religiosas afro-brasileiras, se dava a partir do processo de criminalização da mesmas, sendo classificadas em alguns momentos como “curandeirismo”, previsto no Art.258 do código penal de 1940, como crime contra a saúde pública. Este era um dos caminhos trilhados pela polícia e justiça para condenar e perseguir os adeptos do Candomblé, e de outras práticas religiosas afro-brasileiras.

A noção de religiosidade afro-brasileira, aqui pensada, nos permite conceber, numa perspectiva cultural, que, apesar da diversidade e da complexidade das práticas religiosas, os diversos sujeitos adeptos tinham uma experiênciaiii em comum que os faziam, de alguma forma, se unir em torno, por exemplo, a uma ideia de cultura afro-brasileira na cidade e, principalmente, em torno da noção de resistência contra os atos e práticas de perseguição em torno daquilo que genericamente muitos indivíduos da sociedade local chamavam de “macumba”, “feitiçaria”, “superstições

Na realização desse artigo, lançamos mão da análise do processo crime instaurado contra Yalorixá Jaci, o que possibilitou apresentar as complexas interações sociais entre os diferentes grupos, aqueles que desejavam manter o controle sobre as práticas religiosas negras, em contraponto as estratégias de resistência dos indivíduos adeptos ao Candomblé.

No que se refere às reações das comunidades afro-brasileiras, sempre usaram de resistência para proteger das incursões das camadas dominantes em deslegitimar sua cultura, o

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povo-de-santo se valeu das diferentes estratégias de negociação para superar as dificuldades criadas pela sociedade, que tinha a pretensão de empurrá-los para uma posição de inferioridade social.

Assim, na segunda seção do artigo, discuto e apresento como no período estudado, a cidade de Amargosa, mais especificamente na zona rural também foi palco de perseguição aos agentes religiosos afro-brasileiros e seus ambientes sagrados, tendo como palavra de ordem, punir aqueles que no momento eram tidos como “criminosos”, “perigosos”, atitude discriminatória que levou ao banco dos réus uma Iyalorixá chamada Jaci, os detalhes acerca desse episódio de desrespeito ao indivíduo e a sua escolha religiosa, será narrado a partir de um processo instaurado contra a mesma.

“Ela estava desenganada pelos médicos”iv: sabedoria e força de Jaci – Yalorixá e curandeira

No dia 10 de Agosto de 1983, chegou até a delegacia da cidade de Amargosa a senhora Ivanice, acusando Yalorixá Jaci de ter cometido maus tratos contra a mesma. A partir desse dia, Jaci, líder religiosa de grande atuação na cidade e bastante conhecida entre parte da população, sofreu com a perseguição às práticas religiosas afro-brasileiras desenvolvidas por ela. Vamos narrar, a partir das evidências apontadas nas fontes, como este caso foi tomando proporção importante para identificar como a religiosidade estava presente no cotidiano da população e como os auxílios religiosos de base afro-brasileiro, em alguns momentos, eram justificativas que sustentavam as perseguições.

É necessário apresentar ao leitor quem era a senhora Ivanice Mascarenhas, mulher branca, católica, residente na cidade de Itaberaba. Que ao se encontrar doente e após ter procurado diversos médicos tanto na cidade de Itaberaba, como em outras cidades com o objetivo de solucionar os distúrbios mentais que estava sofrendo, foi indicado ao seu esposo , por populares da região, uma curandeira de nome Jaci e, assim, ele resolveu fazer uma tentativa em levar sua esposa para a referida casa.v Assim, Ivanice e o senhor Odete Fraga Mascarenhas,

seguiram de Itaberaba para Amargosa, uma distância de 130 Km, em busca do terreiro de Jaci. Ao chegar em Amargosa, foram em direção a zona rural, mais especificamente no sitio Santo Antônio, localizado na Palmeiras, lugar onde estava instalado o terreiro de Candomblé de Jaci.

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Chegando lá, foram recebidos por Jaci e contaram a situação a qual a senhora Ivanice estava passando. Então Jaci a chamou para o espaço reservado dentro do terreiro para fazer uma consulta através dos jogos de búzios. Após esse momento, identificou que os distúrbios mentais que a senhora Ivanice estava sofrendo eram referentes aos espíritos que os acompanhavam, que por não estarem sendo cuidados da forma necessária, estavam interferindo na sua saúde. Ao ser informada o que estava causando seu desequilíbrio mental, foi solicitado, pela Yalorixá Jaci, que a senhora Ivanice retornasse em outro momento para dar seguimento em seu terreiro aos tratamentos necessários com o objetivo em recuperar a sua saúde. Nesse sentido, ao voltarem para Itaberaba, para esperar o momento indicado por Jaci para retornar ao seu terreiro; no entanto, antes do tempo previsto, devido aos intensos surtos psicológicos de Ivanice, causando a aflição ao seu marido, regressaram para o terreiro de Jaci, e a mesma já ficou no terreiro para que as atividades religiosas em prol da sua saúde fossem adiantadas.vi.

Na noite que ficou no terreiro, em meio à madrugada, Ivanice teve outro surto, quebrando cama, batendo sua cabeça na parede, sendo necessário Jaci chamar o senhor Emídio Bispo dos Santos, que possivelmente exercia a função de um Ogã da casa, que morava no terreiro, para lhe ajudasse, e, assim, ela foi amarrada junto ao tronco de uma árvore. Segundo relatos de Jaci, que constam no inquérito policial, o objetivo de ter amarrado Ivanice foi em decorrência de lhe dar um banho de folha para que ela voltasse ao seu estado normal. As variadas práticas curativas, relacionadas aos costumes negros, serviam de auxílio na cura para doenças do corpo. Muitas práticas sobreviveram devido à tradição cultural, que fazia com que mesmo em meio às transformações homens e mulheres continuassem a compartilhar antigas práticas culturaisvii.

Contudo, no momento de desatenção da Yalorixá Jaci, Ivanice conseguiu fugir em direção à cidade. Após caminhar alguns quilômetros até chegar ao centro urbano, se dirigiu até a delegacia da cidade de Amargosa para prestar uma queixa acusando Jaci de deixá-la amarrada por dois dias e de ter cometido maus tratos, chegando, segundo a depoente, de vez em quando receber uma surra. Foi com base nesta queixa e acusações feitas por Ivanice, que o Delegado Antônio Souza Gonçalves, instaurou um inquérito policial contra Jaci, acusando-a de curandeirismo, crime tipificado no art. 284 do Código Penal brasileiro.

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Segundo autor Antônio de Carvalho, embora fosse muito fácil identificar o que seria curandeirismo, na verdade havia muitas modalidades do delito, fazendo com que práticas tão diversas, a exemplo das atividades de um religioso no templo ou no terreiro pudessem, igualmente, ser enquadradas no delito.viii Cerceados pela lei, os sujeitos que desenvolvessem algum tipo de prática de cura seriam punidos de forma severa, principalmente os praticantes negros e pobres.

Observa-se no caso de Ivanice, segundo palavras do próprio marido, há muito tempo estava vivenciando problemas sérios de saúde e em função disso, não titubearam, ao serem informados da fama e sabedoria de Jaci, em procurá-la para resolução dos males que estavam afligindo a doente. Embora ela tenha, consensualmente, ficado sob os cuidados de Jaci e de ter, de alguma forma, sido tratada pela Yalorixá, ela, talvez em decorrência de seu desequilíbrio mental, além de fugir do Candomblé, tentou incriminar Jaci e, assim, esta conhecedora das práticas religiosas afro-brasileiras foi parar na barra da justiça.

No inquérito constam as seguintes informações:

Às 17 horas do dia 10 do mês passado compareu nesta delegacia de policia a vítima, pedindo providencia; verificando-se que o estado que se achava a vítima era lamentável... a vítima foi submetida a exame de lesões corporais. A indiciada Jaci ao tomar conhecimento que sua cliente Ivanice Fraga Mascarenhas, se encontrava na delegacia, tentou entrar para reconduzir a vítima ao seu terreiro de amargura ou do inferno; não conseguindo se dirigiu a cidade de Itaberaba, em casa de familiares de sua vítima procurando apresentar um álibi desprovido da verdade, tentando argumentar que os ferimentos foram em circunstancias do estado de violência que a vítima apresentava. Pelos depoimentos das testemunhas ficou comprovado que os indiciados vivem na ociosidade, circunstância, aliás, conhecida na região de “curandeira” famosa e perversa e desumana, como se vê Jaci tá respondendo um processo em liberdade nesta mesma comarca. Pelas provas deste auto não resta dúvida que os indiciados deverão ser enquadrados na nossa Legislação Penal e outros; e consequentemente responderão pelos seus crimes praticadosix.

O delegado ao associar as atividades religiosas de Jaci à ideia de ociosidade e a própria yalorixá como “perversa e desumana” tenta enquadrar tal fato àqueles velhos estereótipos, de que os adeptos da religiosidade afro-brasileira eram sujeitos desprovidos dos bons costumes e da moral. Nesse sentido, muitas autoridades policiais, no intuito de deturpar as práticas religiosas afro-brasileiras e criminalizar seus praticantes, se utilizaram, a exemplo do Delegado

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que presidiu o inquérito contra Jaci, de argumentos desqualificantes para caracterizar os sacerdotes e sacerdotisas como criminosos e desviantes.

Nesse sentido, no dia 10 de Maio de 1984 a Juíza Euzari Anselmo Freitas de Brito, enviou por meio do oficial de Justiça uma intimação para que acusada, no dia 31 do ano corrente. Assim, a mãe de santo Jaci ao comparecer, relatou sua versão sobre o caso. Versão esta, que já havia sido contada ao delegado; no entanto, algumas informações não haviam sido apresentadas.

Segundo a mãe de santo Jaci:

Ela não usou de perversidade com Ivanice, que não usa desses métodos para retirar espírito, que amarrou Ivanice para lhe dar um banho de folhas, oração, além de um defumador para ajudá-la. Que após o banho não deu nada para Ivanice ingerir. Que o tipo de trabalho que faz é baseado no espiritismo na linha “Queto”.x

No relato de Jaci, é possível identificar a importância que tinham as folhas nas práticas de cura tanto espiritual, quanto física dos doentes. Tais folhasxi utilizadas de forma correta, no

momento e horário adequado, por aqueles que conheciam seus segredos, proporcionavam a recuperação da saúde, a exemplo das folhas que fizeram parte do banho preparado por Jaci para acalmar Ivanice e os espíritos que estavam lhe causando desequilíbrio psicologicamente. Os rituais de cura pela sua natureza e dinâmica poderiam ser mais complexos do que se imaginava. Há casos, por exemplo, que o doente deveria ser submetido a rituais mais profundos como foi o caso de Ivanice, onde teve que ficar por alguns dias na casa de Jaci e ser submetida aos tratamentos indicados. O fato de ter dito que os procedimentos realizados por Jaci iriam acalmar os espíritos, igualmente, podia indicar que àquela doente, talvez, tivessem em seu ori (cabeça) divindades que necessitavam ser assentadas e, portanto, ela deveria ser iniciada ao Candomblé. Nesse sentido, Vivaldo da Costa Lima, em sua obra “Família de

Santo”, indica que a maior parte dos adeptos do Candomblé era iniciada, sobretudo, porque o

noviço ou a noviça por algum problema de saúde (físico e espiritual) precisava reestabelecer o equilíbrio entre o aiyê e o orun, portanto entre o mundo visível e o invisívelxii. Em muitos casos era necessário que o “doente” se iniciasse à religiosidade afro-brasileira para, a partir daí, está em harmonia consigo mesmo e com os “mundos” que o rodeavam.

Na verdade, como é sabido, os cultos dos Candomblés, durante todo século XX, mesmo

depois que as casas de santo deixaram de ser obrigadas a se registrar na delegacia de jogos e costumes, como é este caso da yalorixá Jaci, ainda eram associados à ideia de “magia negra” e

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de coisas maléficas. Por essa razão, que Jaci dizia que seu culto era uma prática espírita. No entanto, a mãe de santo Jaci, ao especificar que seu trabalho se “baseava em um espiritismo da linha queto”, evidenciou que era um terreiro de Candomblé de nação Queto.

Podemos perceber através do relato de uma das testemunhas, neste caso o marido de Ivanice que ao depor, ao invés de criminalizar a acusada, apenas ressaltou a fama que Jaci tinha em toda região e suas qualidades terapêuticas. Nesse sentido, o Sr. Odete nos informa que:

Que aproximadamente trinta dias antes havia levado sua esposa para ser tratada por Jaci e obteve melhora, após este primeiro tratamento sua esposa voltou a ficar atacada dos nervos, levou para Jaci fazer um outro tratamento, que a sua esposa já estava ferida antes de ir para Amargosa. Que atribuiu os ferimentos a várias batidas da cabeça da sua esposa, no chão e na parede. Que está sendo ouvido na vista da acusada sem nenhum receio. Que até hoje a esposa não disse que foi maltratada, que pagou a Jaci 100 cruzeiros, que Jaci é famosa, que várias pessoas tratadas pela mesma inclusive sua cunhada Valdira, já ficaram boas da saúdexiii.

Diante das evidências apontadas, inclusive, a partir da fala do Sr. Odete, pode-se compreender a força religiosa de Jaci perante a população que a procurava, pois dentre tantos outros lugares de axé existentes na Bahia, o marido de Ivanice a levou para a casa de Jaci. Dessa forma, era notória a fama que essa mulher, por ser Yalorixá e curandeira, tinha para além do município de Amargosa. Nesse sentido, em razão de sua fama, Jaci seria perseguida na sociedade local, a exemplo do delegado que disse que a referida curandeira já respondia na mesma cidade a um inquérito de igual natureza.

A partir da eficácia e do poder das suas práticas, muitos curandeiros, a exemplo de Camila, ao estabelecerem relações com pessoas importantes da sociedade, aumentavam a popularidade daqueles que desenvolviam, como também das práticas religiosas, o que ocasionava maior preocupação das autoridades policiais com esses líderesxiv.

Após a instauração do inquérito policial e o processo ter sido remetido à justiça pela Promotoria local, em 1984, o processo ficou parado no Fórum judiciário de Amargosa por cinco anos, sendo desarquivado no ano de 1989. Nesse momento, novamente, intimaram a yalorixá Jaci e o Sr. Emídio para ambos, à luz da justiça, pudessem contar mais uma vez as suas versões em torno do episódio acontecido e defenderem-se. Além dos acusados, também, foram convocados, quem na época era a vítima, a Srª Ivanice e, também, seu marido o Sr. Odete. Dentre as várias evidências que são apontadas no processo, identificamos uma testemunha que enviou carta ao Juiz de Amargosa em defesa de Jaci.

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Assim, um morador da cidade de Iaçúxv, ao não aceitar o que estava acontecendo com Jaci, enviou uma carta para o Juiz da cidade de Amargosa em defesa dela. Vamos conhecer o conteúdo dessa carta e analisar a sua importância dentro do contexto do processo. A mesma foi enviada, em 14 de outubro de 1989, por José Reis Braga e dizia que:

Afirmo que conheço os trabalhos desenvolvidos por Jaci, na área espirita e afirmo que a mesma não merece as acusações injustas que fizeram. Há algum tempo atrás eu estava sentindo pontadas fortes no coração, insônia e falta de apetite. Fui a médicos e curadores e nenhum deles acertou. Foi quando me informaram a casa de Dona Jaci, comecei o tratamento com ela e dias depois estava curado e com coragem para enfrentar a vida. Peço que entreviste outros clientes, para ter a certeza que ela está sendo injustiçadaxvi.

Nesse sentido, o autor João José Reis sinaliza que poucas instituições negras desenvolveram e aperfeiçoaram como o Candomblé a sabedoria da negociação.xviiPodemos compreender que as estratégias de negociação permitiam à religiosidade afro-brasileira, através dos seus adeptos, frequentadores, desenvolverem resistências em defesa dos seus valores religiosos.

Ivanice, também narrou novamente suas versões quanto ao episódio que teria acontecido lá em 1983, incriminando a yalorixá Jaci. Em setembro de 1989 O Sr. Odete, firme em seu testemunho, continuou a dizer que Jaci não fizera mal à sua mulher e que apenas ela utilizou de conhecimentos espirituais para curá-la e, assim, o fizera. Mas, quanto ao testemunho de Ivanice, que na época estava doente, mudou completamente de versão. Assim, a mesma perante o juíz disse:

Que não se recorda de ter sido levada para o sítio de propriedade da acusada; que não se recorda de ter sofrido nenhum espancamento ou qualquer tipo de maus tratos no sítio da referida acusada; que se lembra nesse período, somente de sua chegada na fazenda da referida acusada; que, esses esquecimentos se deveu ao fato de ter passado um longo período enferma e com transtornos mentais; que não sabe explicar a causa porque é feita a denúncia contra os acusados; que nada sabe responder com relação aos fatos narrados na denúncia que lhe foi lida no momento dessa audiência: que atualmente encontra-se bem de saúde; que não tem nada contra os acusadosxviii.

Nota-se que a vítima, em seu novo testemunho, disse não recordar do que teria acontecido com ela e, realmente, confirmou que há alguns anos sofria, de fato, de transtornos mentais, mas que, naquele novo momento, se encontrava bem de saúde. No caso em questão apreende-se, também, que a vítima, para além da eficácia da cura que ela teria alcançado, inocentou os acusados dizendo que nada tinha contra eles. Não apenas a vítima teria isentado Jaci de qualquer

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crime, igualmente, como vimos anteriormente, testemunhas através de cartas eximiram Jaci de qualquer tipo de conduta que a criminasse.

Contudo, em 02 de maio de 1990, o Dr. Osvaldo, juiz de direito, após analisar os fatos e ouvir testemunhas e mesmo constatando que os réus eram inocentes no caso, ele sentenciou dizendo que os acusados poderiam ser, de fato, criminalizados pela prática de curandeirismo tipificado no art. 284 do Código Penal. Mas, que pelo decorrer do processo, que teria ficado parado por cinco anos, ele, o juiz, sentenciou que os réus estavam livres de qualquer penalidade tendo vista a prescrição processual do fato.

Considerações Finais

Assim, mesmo com a prescrição do processo, nada vai ser capaz de apagar da memória local, o constrangimento que a Yalorixá foi submetida. Vimos no caso em questão, como por motivos diversos, perseguiam e tentavam criminalizar os praticantes da religiosidade afro-brasileira.

A partir dos caminhos apontados pelas fontes, foi possível analisar o fato de que muitas ações contrárias aos adeptos dos cultos afros e seu espaço eram devidas ao prestígio dos diferentes agentes religiosos afro-brasileiros, não só entre a população pobre e negra, mas também outros grupos sociais que buscavam auxílios ou conselhos de pais e mães de santo que, cheios de sabedoria e humildade, estavam lá nos seus espaços sagrados sempre dispostos a ajudar

Nesse sentido, foi possível compreender os aspectos do universo religioso e cultural afro-brasileiro de homens e mulheres da cidade de Amargosa que deram continuidade e ressignificaram seus saberes religiosos no território em estudo, e adentrar no mundo de suas experiências cotidianas e religiosas, conflitos e resistências vivenciadas por esses líderes religiosos afro-brasileiro.

Notas

i Mestre em História Regional e Local pela UNEB/ Campus V. Professora Substituta – Departamento de História – UNEB/ Campus XVIII

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ii Ver: BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: Edufba, 1995, p.25.

iii O termo experiência em comum está sendo pensado a partir, de um lado, das experiências compartilhadas pelos adeptos da religiosidade afro-brasileira e, de outro lado, das experiências vivenciadas por pessoas e setores que eram avessas à tal religiosidade. Nesse sentido, veremos, ao longo das discussões, que havia um embate entre os costumes, leia-se cultura, vivenciados pelos adeptos da religiosidade afro-brasileira e os costumes vivenciados por aqueles que perseguiam às práticas religiosas afro-brasileiras. Essa perspectiva de análise, ela foi, sobretudo, inspirada a partir das reflexões de THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Revisão técnica Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

iv Essa citação que faz parte do sub título está presente no processo crime analisado.

v Fórum Desembargador Sálvio Martins. Secretaria dos feitos criminais. Processo Crime – Curandeirismo, maço, n°. 71, n°. 2028, ano 1983.

vi Idem

vii Ver: SANTOS, Denilson Lessa dos. Nas Encruzilhadas da Cura: crenças, saberes e diferentes práticas curativas. Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado. UFBA, 2005, p. 259-261

viii CARVALHO, Antonio Carlos Duarte de. Feiticeiros, Burlões e Mistificadores: Criminalização, expropriação e mudanças dos hábitos e práticas populares de saúde em São Paulo de 1950 a 1980. 2001. 260 f. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Assis, 2001. p. 143.

ix Fórum Desembargador Sálvio Martins. Secretaria dos feitos criminais. Processo Crime – Curandeirismo, maço, n°. 71, n°. 2028, ano 1983.

x Fórum Desembargador Sálvio Martins. Secretaria dos feitos criminais. Processo Crime – Curandeirismo, maço, n°. 71, n°. 2028, ano 1983

xi Sobre a importância das folhas, ervas e raízes medicinais nas práticas religiosas afro-brasileiras em Salvador, Bahia. Ver: SERRA, Ordep. O Mundo das Folhas. Feira de Santana: UEFS, Salvador: UFBA, 2002

xii Ver: LIMA, Vivaldo da Costa. A Família-de-Santo nos Candomblés Jeje-Nagôs da Bahia: um estudo de relações intra-grupais. Salvador: UFBA, 1977.

xiii Idem

xiv Ver: SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: pai-de-santo na corte. Rio de Janeiro. Editora: Arquivo Nacional, 2009. p. 31

xv Cidade com distância de cerca de 90 km de Amargosa,

xvi Fórum Desembargador Sálvio Martins. Secretaria dos feitos criminais. Processo Crime – Curandeirismo, maço, n°. 71, n°. 2028, ano 1983

xvii REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 9.

xviii Fórum Desembargador Sálvio Martins. Secretaria dos feitos criminais. Processo Crime – Curandeirismo, maço,

n°. 71, n°. 2028, ano 1983

Referência Bibliográfica:

BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: Edufba, 1995.

CARVALHO, Antonio Carlos Duarte de. Feiticeiros, Burlões e Mistificadores: Criminalização, expropriação e mudanças dos hábitos e práticas populares de saúde em São Paulo de 1950 a 1980. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Assis, 2001. LIMA, Vivaldo da Costa. A Família-de-Santo nos Candomblés Jeje-Nagôs da Bahia: um estudo de relações Intra-grupais. Salvador: UFBA, 1977.

REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

SANTOS, Denilson Lessa dos. Nas Encruzilhadas da Cura: crenças, saberes e diferentes práticas curativas. Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado. UFBA, 2005

SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: pai-de-santo na corte. Rio de Janeiro. Editora: Arquivo Nacional, 2009

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SERRA, Ordep. O Mundo das Folhas. Feira de Santana: UEFS, Salvador: UFBA, 2002. THOMPSON, Edward P. Costumes em comum. Revisão técnica Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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