O Brincar com a matéria1
Muito se tem dedicado, na atualidade, à legitimação da brincadeira como direito da criança (e eu diria do ser humano) e à sua valorização nos ambientes educacionais. As Diretrizes Nacionais Curriculares para Educação Infantil determinam que a brincadeira deve ser um dos eixos norteadores da prática pedagógica na Educação Infantil visando, dentre outros aspectos, promover “o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação de experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da individualidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança” (BRASIL, 2010, p.25).
No Manual de Orientações Pedagógicas para Creches sobre Brinquedos e Brincadeiras, desenvolvido pelo Ministério da Educação, o brincar é considerado como “atividade principal da criança. Sua importância reside no fato de ser uma ação livre, iniciada e conduzida pela criança com a finalidade de tomar decisões, expressar sentimentos e valores, conhecer a si mesma, as outras pessoas e o mundo em que vive” (BRASIL, 2012, p.11)
Todavia, tem ocorrido uma deturpação, no qual o brincar tem se transformado em um instrumento voltado para fins pedagógicos, propondo que seja uma ferramenta importante para a criança aprender a, estando quase sempre vinculado à aquisição de conteúdos pedagógicos. A vivência de momentos de lazer, ou o brincar espontâneo, dirigido pela vontade da própria criança, acaba ficando restrita aos horários de intervalo e recreação, “assim que o corpo e o conhecimento de si acabam por ser colocados em um lugar secundário na relação de aprendizagem” (SAURA, 2013, p.1).
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Trecho extraído da dissertação de mestrado: “AMORAS E JABUTICABAS: Raízes e frutos de uma Pedagogia Profunda para todos”, Bruna Laselva Hamer, Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento e
Ferreira Santos (2004 apud SAURA, 2013, p.7) se refere a esta prática corrente como “pedagogia da brincadeira”, sendo "aquela que transforma a brincadeira em instrumento para alguma coisa, tornando-a instrumental e qualquer coisa menos a brincadeira”. Esta tendência arraigada nas práticas educacionais que, ainda que simpáticas ao lúdico, “buscam em sua concepção a seriedade, o enquadramento e o nivelamento” considerando que “o brincar e o lazer trazem em si a ideia de subversão quando se propõem a atuar com liberdade, com espontaneidade” (p.6). Em contrapartida, estamos aqui considerando a brincadeira enquanto “ação principal para o [...] desenvolvimento” (p.2) da criança, e queremos destacar sua relação intrínseca com o desenvolvimento psíquico e corporal.
Huizinga (1996) em sua obra Homo ludens se refere ao jogo como uma função da vida, presente também nos animais, e que não é passível de ser definido em termos lógicos, biológicos ou estéticos. Assim, o jogo acompanha o desenvolvimento da consciência humana desde seus primórdios. O jogo, na visão do autor, não tem sua existência ligada a qualquer grau de civilização, mas oferece raízes arquetípicas aos seus participantes: “o brincar em sua expressão psíquica superior sustenta uma transcendência da condição humana” (RIBEIRO-BLANCHARD, 2012, p. 53).
Huizinga (1996) aproxima a criança, o poeta e o selvagem, pois, nos domínios do jogo, encontram um elemento comum: a experiência do sagrado. Enquanto joga/brinca “a criança fica literalmente ‘transportada’ de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem, contudo, perder inteiramente o sentido da ‘realidade habitual’ ” (p. 17).
Saura (2013), ao observar o brincar espontâneo em um grupo de crianças que se encontrava diariamente para brincar, defende que, em momentos de lazer e brincar espontâneo, “o repertório imaginal humano manifesta-se de forma premente” (p.5). O termo
repertório imaginal humano utilizado pela autora nos remete ao inconsciente coletivo, que é acessado pela criança e, manifesto na ação de brincar, promove uma “atualização vivencial das imagens ancestrais e míticas” (p.14) e a inserção da criança na cultura humana. Este imaginário se faz presente corporalmente no indivíduo e, em especial, nos movimentos corporais das crianças enquanto brincam. “Toda criança que tem a oportunidade e a paz para expressar seu ser é capaz de desenhar os contornos de uma teologia do mundo, de uma filosofia do homem e de uma hermenêutica no seu brincar” (SAURA, 2013, p. 7). Dessa forma, “muitos jogos infantis são vestígios de antigos cultos, e desses, a criança, brincando, assume a custódia” (LORTHIOIS, s/d, p.3).
Estes jogos infantis nos levam a penetrar na natureza da experiência religiosa e conduzem à representação sagrada, que é “mais do que a simples realização de uma aparência e até mais do que realização simbólica: é uma realização mística. Algo de invisível e inefável adquire nela uma forma bela, real e sagrada” (HUIZINGA, 1996, p.17).
A experiência mística nutre o ser humano, a alma humana:
O mito é recriador. E, diz Mircea Eliade, nas sociedades em que os mitos ainda estão vivos – e eu incluiria a Infância entre essas sociedades -, eles designam histórias que são consideradas como verdadeiras porque encerram um encontro com o sagrado, e porque conferem “significação e valor” à experiência humana. (LORTHIOIS, 2008, p.107)
Este encontro com o sagrado, com o sentido da vida humana, está presente no brincar espontâneo da criança, que pode ser observado por um educador sensível, quando o brincar não é reduzido a “atividades recreacionistas e pedagogizadas”: “Diariamente, ao observar e participar de brincadeiras observamos como os gestos brincantes estão repletos de movimentos sagrados, arquetípicos e ritualísticos” (SAURA, 2013, p.10) e neste contato com a força da ancestralidade humana “deflagramos o verdadeiro aprendizado corporal infantil” (p. 11). O papel do educador neste processo é visto por Saura (2013, p.1) como de “mediador, observador e potencializador”.
Nesta perspectiva, o jogo, o brincar, carregado de espiritualidade e corporeidade não pode ser restrito por um tempo e espaço, fragmentados em horários e espaços específicos como o recreio ou a brinquedoteca, por se constituir na experiência integral da criança, na sua maneira de ser e viver o mundo. A movimentação da criança no espaço e no tempo reflete esta aproximação com o sagrado:
Assim, as crianças modificam o ambiente, exploram e reorganizam os espaços, especializam-se naquilo de que têm necessidade, produzindo cenas imagéticas de impacto simbólico, poéticas, estéticas, dentro desse jogo que pode perdurar incansavelmente por horas a fio, em experiências numinosas. "Numen", do latim, divindade. De fato, todos os momentos de criação estão associados à aproximação do homem com o sagrado. Porque requerem sensibilidade, emoção e intuição, conceitos comumente colocados em oposição à racionalidade. Assim, mais próximos do sensível e do mistério, mais próximos do divino. (SAURA, 2013, p.10)
Neste mesmo sentido, Slade (1978) oferece uma grande contribuição ao perceber o brincar da criança como jogo dramático infantil, que para ele é
uma forma de arte por direito próprio; não é uma atividade inventada por alguém, mas sim o comportamento real dos seres humanos [...] Não é uma atividade de ócio, mas antes a maneira da criança pensar, comprovar, relaxar, trabalhar, lembrar, ousar, experimentar, criar e absorver. O jogo é na verdade a vida. (SLADE, 1978, p.17-8)
Quando este drama criativo das crianças não é tolhido pelos adultos, elas “podem encontrar autoexpressão e assim procurar atingir o pleno desenvolvimento de sua personalidade” (MACKENZIE apud SLADE, 1978, p. 11). Nesta experiência, Slade reconhece a tarefa do professor como a de um aliado amoroso.
Lorthiois (2005) identifica o jogo dramático espontâneo como caminho para crianças e jovens, que vivem situações de vulnerabilidade intensas, se manifestar e dramatizarem, individualmente e em grupo, características ou papéis que, fora dele, não seriam aceitos. Neste momento, abandonam temporariamente a aparência que se viam forçadas a manter em seu mundo e se fortalecem para lidar com sua realidade:
Em um ambiente onde coexistiam o cuidado e a descontração, através da nossa tentativa de ser pedagogicamente sutil e não intrusivo e impositivo, de atuar à maneira de um toque, e de carregar seu espírito quando este não
podia ser dado, esses jovens revelavam o grupo e o jogo que emergia em seu seio como edificantes meios de autodefesa lúdica. (LORTHIOIS, 2005, p.32)
Assim, “todo o trabalho da imaginação na criança busca organicizar, animizar e regenerar o mundo” (PIORSKI, 2012 apud SAURA, 2013, p.8), tanto o mundo interior quanto exterior.
Referências
BRASIL, Ministério da Educação: Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, 2010.
___________________________. Brinquedos e Brincadeiras de Creches - Manual de orientação Pedagógica. Brasília, 2012.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura, tradução João Paulo Monteiro, 4 ed, São Paulo: Perspectiva, 1996.
LORTHIOIS, Céline. O ambiente da Pedagogia Profund,s/d. Material oferecido aos alunos do curso de Pedagogia Profunda.
_________________. Edificação de crianças e adolescentes no jogo dramático
espontâneo e através da aplicação indireta de trabalhos corporais. Revista Hermes, São
Paulo, n.10, p. 26-33, 2005.
________________. Exercícios de Pedagogia Profunda: uma inclusão da alma na educação, São Paulo: Paulus, 2008.
RIBEIRO-BLANCHARD, Anita. A consciência e sua base no corpo. In:
SPACCAQUERCHE, Maria Elci (org). Corpo em Jung: estudos em calatonia e práticas integrativas, São Paulo: Vetor, 2012.
SAURA, Soraia Chung. O imaginário do lazer e do lúdico anunciado em práticas
espontâneas do corpo brincante, Revista brasileira de educação física e esporte, São Paulo,
2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbefe/2013nahead/rbefe_aop_1513.pdf>. Acesso em 02 jan 2014.
SLADE, Peter. O jogo dramático infantil, tradução de Tatiana Belink; direção de Fanny Abramovich, São Paulo: Summus, 1978.