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Diásporas e deslocamentos: discursos e identidades em trânsito

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Academic year: 2021

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Diásporas e deslocamentos:

discursos e identidades em trânsito

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Colégio Pedro II Reitor: Oscar Halac

Pró-Reitoria da PROPGPEC: Márcia Martins de Oliveira Direção de Culturas: Eloísa de Souza Saboia Ribeiro

Departamento de Educação Infantil: Ana Carolina Silva Martins Departamento de Espanhol: Daniele Gomes Cabral

Departamento de Francês: Márcia da Anunciação Barbosa Gamaury

Departamento de Línguas Anglo-Germânicas: Dayse Maria Oliveira dos Santos Taveira Departamento de Português e Literaturas: Márcio Vinícius do Rosário Hilário

Capa: Tiago Cavalcante da Silva

Diagramação: Tiago Cavalcante da Silva Revisão: Luciano Passos Moraes e Silvia Rosa

Comissão Editorial

Departamento de Educação Infantil

Alessandra de Barros (CREIR, parecerista) Departamento de Espanhol

Luziana de Magalhães Catta Preta (Tijuca II, parecerista) Departamento de Francês:

Luciano Passos Moraes (Centro, parecerista) Márcia Barbosa (Tijuca II, parecerista)

Departamento de Línguas Anglo-Germânicas Maria Inês Alonso (aposentada, parecerista) Departamento de Português:

Laís Naufel (São Cristóvão III, parecerista) Manoel Carvalho (aposentado, parecerista) Marcelo Pereira (Realengo II, parecerista) Silvia Rosa (Tijuca II, revisora)

Tiago Cavalcante da Silva (Centro, editor)

Conselho Editorial

Anabelle Loivos Considera (UFRJ)

Camilla Ferreira (UFF)

Eliane Vasconcellos Leitão (FCRB) Glenda Cristina Valim de Melo (UNIRIO)

Jucilene Braga Alves Maurício Nogueira (CEFET) Laura Barbosa Campos (UERJ)

Luana Maria Siqueira Machado (IFRJ) Marcel Alvaro de Amorim (IFRJ/UFRJ) Sílvia Rodrigues Vieira (UFRJ)

Revista DesSlimites: revista de linguagens do Colégio Pedro II / Colégio Pedro II. - 2020- . - Rio de Janeiro: CPII, 2020-

v. Anual. Impressa. ISSN: 2595-5349

1. Linguagens e línguas. 2. Comunicação. I. Colégio Pedro II.

CDD 401.4

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V

Onde quer que estejas, em teu país ou em outro, és estrangeiro: ninguém tua língua compreende. Só, o deserto de estranhas veredas percorres.

Conservas, no entanto, dos primeiros anos o albor, quando tua cidade, madrasta e mãe, teus sonhos na noite fresca velava.

A grande mão que afagou-te esmaga o peito agora. Ah! Somos apenas o que somos. Apenas.

(RUFFATO, Luiz. As máscaras singulares.)

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SUMÁRIO

Editorial

Luciano Passos Moraes e Tiago Cavalcante da Silva...6

“Impossível retroceder: deixei de ter medo de mim”

A trajetória e os deslocamentos da Professora Jurema Gomes da Silva no Colégio Pedro II...9

Deslocamentos culturais e suas formas de representação

Adriana Kerchner da Silva...22 “Diga às outras bruxas que você não o viu!”: uma cena de meio sol amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie

Carolina Carvalho...26

Navio Negreiro, de Maria Duda

Juliana Mariano...35 Diálogos afro-diaspóricos na obra de Ayrson Heráclito

Marcelino Rodrigues...36

Resistência

Ana Beatriz Barbosa...45 A volta Breno Lucas...47 A última feira Diego Domingues...49 Cão de Goya Luciana Viégas...54

(seção de entrevista)

(seção acadêmica)

(seção literária)

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Lucimar Brandão Guimarães – presente!

Homenagem ao ex-aluno do Colégio Pedro II assassinado pela Ditadura Militar...59

A disciplina gramatical e a influência greco-romana

Ânderson Rodrigues Marins...63

Oração principal na agenda da gramática dos usos

André Nemi Conforte e Felipe de Andrade Constancio...73

Charges e ensino de espanhol: uma abordagem a partir da perspectiva dos gêneros discursivos

Andreia Araujo de Carvalho...84

O ensino da língua espanhola em Antenor Nascentes: um percurso historiográfico na educação brasileira do século XX

Bárbara Franco Cardoso...94

Travessias entre modalidades: a transdução de um conto para vídeo de alunos

Maria das Graças Lino Labrunie...104

(seção de memória)

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EDITORIAL

Na introdução ao Dicionário das mobilidades culturais (2010), Zilá Bernd lembra que o termo mobilidade “por um lado, remete à facilidade de mover-se, de mudar de expressão ou de opinião, de aceitar variações; por outro, remete à inconstância, à instabilidade, à fluidez”1. Como atesta a publicação, outros vinte verbetes estão ligados à

fluidez e ao movimento, dentre os quais as ideias de diáspora e de deslocamento que têm estado no centro de pesquisas realizadas em diversos campos do conhecimento na contemporaneidade.

Ressignificar as identidades e os discursos por meio da releitura de conceitos ligados ao trânsito contemporâneo dos sujeitos tem sido uma das preocupações de muitos estudos desenvolvidos nas ciências sociais contemporâneas e, na área de Letras, o diálogo que se pode estabelecer com tal perspectiva revela-se não só produtivo como amplamente rico em possibilidades, seja nos estudos linguísticos ou literários. Essa é uma das razões pelas quais o corpo editorial da Revista DeSlimites – Revista de Linguagens do Colégio Pedro II selecionou, como tema para a presente edição, o tema “Diásporas e deslocamentos: discursos e identidades em trânsito”, no intuito de acolher produções preocupadas em trazer ao centro do debate as inúmeras confluências possíveis entre os conceitos correlacionados.

Na atualidade, segundo Bolaños (2010), os referentes históricos da diáspora encontram-se ressemantizados e presentificados após longo esquecimento. Desde a antiguidade grega, a palavra diáspora, com os significados originais de dispersar ou

semear, sofreu sucessivas ressignificações em novos contextos, desvinculando-se da

dispersão dos judeus a partir do exílio e da escravização na Babilônia para abarcar, por exemplo, a questão das comunidades afro-americanas forçadas à diáspora em violentos processos de escravização2. Além disso, o termo expandiu-se a ponto de tocar

semanticamente outros processos de deslocamento vividos por comunidades de exilados, migrantes e refugiados.

Para Hall (2009, p. 30),

Nossas sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos. Suas origens não são únicas, mas diversas. Aqueles aos quais originalmente a terra pertencia, em geral, pereceram há muito tempo – dizimados pelo trabalho pesado e a doença. A terra não pode ser “sagrada”, pois foi “violada” – não vazia, mas esvaziada. Todos que estão aqui pertenciam originalmente a outro lugar. Longe de constituir uma continuidade com os nossos passados, nossa relação com essa história está marcada pelas rupturas mais aterradoras, violentas e abruptas.3

Diferentes facetas da mobilidade cultural e social povoam o imaginário contemporâneo e reverberam em questões políticas, linguísticas e artísticas nos mais diferentes contextos. Não só as narrativas contemporâneas tematizam frequentemente o movimento migratório com vistas a ressignificar a movência nas sociedades, o que

1 BERND, Zilá. Introdução. In: _____ (Org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010. p. 13.

2 BOLAÑOS, Aimée. Diáspora. In: BERND, Zilá (Org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010. p. 167-168.

3 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guardia Resende, Ana Carolina Escosteguy, Cláudia Álvares, Francisco Rüdiger e Sayonara Amaral. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

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consequentemente se reflete nos estudos literários, mas também os estudos da linguagem mostram-se abertos a compreender as implicações de processos sociais ligados à migrância, ponto de interesse que contribui em grande medida para o pensamento do contato entre diferentes sociedades e comunidades culturais.

A temática das identidades em trânsito está presente em estudos de diversas naturezas e essa é a justificativa principal para a escolha deste tema: a partir do presente volume, a revista passou a receber contribuições de autoras e autores de outras instituições além do Colégio Pedro II. Trata-se da abertura ao Outro como um dos pilares formadores do pensamento plural, cidadão, contribuindo assim para o diálogo nesses tempos sombrios em que, mais do que antes, se faz necessária a união daquelas e daqueles que entendem as ciências e as artes como vetores fundamentais para a construção de sociedades mais igualitárias e pautadas no respeito às diferenças.

Desse modo, apresentamos nos textos a seguir múltiplas reflexões no campo das linguagens, escopo primeiro de nossa revista, na esperança de que o movimento de resistência que sempre buscamos realizar em nossas práticas acadêmicas e pedagógicas amplifique-se e tome força no debate em torno da construção de sociedades mais justas, democráticas e plurais. Na Seção Polivox, o leitor poderá conhecer um pouco mais da trajetória, dos deslocamentos e dos pensamentos da Professora Jurema Gomes da Silva, ex-aluna e docente aposentada do Departamento de Francês do Colégio Pedro II. Na Seção

Veredas, destacam-se artigos que tratam dos diálogos afro-diaspóricos na obra de Ayrson

Heráclito, do potencial de representação dos conflitos colocados pela opção decolonial em

Meio Sol Amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie, do perfil diaspórico-poético da obra Navio Negreiro, de Maria Duda, e da perspectiva teórica presente no livro Deslocamentos culturais e suas formas de representação, organizado por Tatiana da Silva Capaverde de

Liliam Ramos Silva. Na Seção Alumbramentos, iluminam-se contos, crônicas e poemas que versam sobre temas diversos, que perpassam a relação com o cotidiano, os deslocamentos entre centro e periferia e a necessidade da resistência na contemporaneidade. Na Seção Itinerários, evoca-se a memória do estudante Lucimar Brandão, ex-aluno do Campus Centro do Colégio Pedro II, assassinado pela Ditadura Civil-Militar. Por fim, nesta edição, optamos por abrir uma Seção Livre, para textos que não se adequaram especificamente ao tema do presente número. Tais textos passeiam pelas travessias entre diferentes modalidades discursivas, pela perspectiva bakhtiniana de gêneros discursivos na relação entre o gênero charge e o ensino de espanhol, pela agenda da gramática dos usos no estudo do período composto, pelas contribuições de Antenor Nascentes, ex-professor do Colégio Pedro II, para o ensino de espanhol e pela influência da tradição greco-romana nos estudos gramaticais brasileiros.

Convidamos, pois, você, leitor/a, a pensar sobre esse debate que se move entre nossos centros e periferias, buscando romper os limites impostos pelo imperialismo, pela colonialidade, pela expropriação e pelo genocídio. Desejamos a você, leitor/a, que se coloque em trânsito e se desloque pelos discursos que aqui ora se tecem.

Boa leitura!

Luciano Passos Moraes e Tiago Cavalcante da Silva (Editores da Revista DeSlimites)

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“Impossível retroceder:

deixei de ter medo de mim”

Os trânsitos, as identidades e o discurso da Professora Jurema Gomes da Silva, docente aposentada do Departamento de Francês do Colégio Pedro II.4

4 Entrevista concedida via plataforma online, no dia 04 de setembro de 2020. A Revista DeSlimites agradece imensamente à Professora Dra. Luciana Viégas, coordenadora de Português do Campus São Cristóvão II, pela cuidadosa transcrição.

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Professora Jurema Gomes da Silva e professor Tiago Cavalcante da Silva, editor da Revista DeSlimites, durante a entrevista.

D – Antes de tudo, é uma honra estar aqui com você, um nome muito importante para a história do colégio, especialmente neste número que trata de diáspora e diversidades. Primeiro, gostaríamos de ouvir um pouco sobre a sua infância. Quem era e de onde veio a menina Jurema Gomes da Silva? Quais eram seus desejos, seus sonhos, suas angústias?

J – Abrange tudo, tudo?

D – O que você quiser falar...

J - Vou começar pela minha idade e depois retroceder. Deixa eu pegar um lencinho aqui

porque é dureza… Sou muito grata às pessoas que indicaram meu nome, você falou na Silvana, no Departamento de Francês, na ADCPII. Estou com 82 anos, há 12 aposentada. Eu morava em Olaria, numa rua perto da Uranos, numa vila com 27 casas. Tinha dois irmãos, meu pai e minha mãe. Ele era padeiro e minha mãe, costureira, com uma freguesia, digamos assim, bem seleta. Não vivíamos na miséria, mas dentro do limite. Brincávamos de roda, pular corda, eu gostava muito de soltar pipa e minha mãe dizia que isso e bola de gude eram coisa de menino, eu fazia escondido. Estudei numa escola pública perto da minha casa e uma das coisas de que eu sempre gostei – até hoje eu gosto – é de apanhar chuva. Eu ficava muito amolada quando chovia e alguém me buscava de galocha e capa, pra mim era um tormento. Fiz todo o primário lá, depois, não sei por quê, fiz o concurso para o Instituto de Educação duas vezes e não passei. Naquela época, todo mundo queria ser professora. Nesse ínterim, meu pai ficou desempregado e começou a época das confecções e minha mãe foi perdendo a freguesia porque as pessoas começaram a comprar as roupas nelas e ela teve que começar a ser lavadeira, o que foi por muitos anos. Uma das freguesas dela, não sei como, me deu uma bolsa num colégio na rua Mariz e Barros, hoje Miguel Couto Bahiense, era o antigo Instituto Guanabara. Professor Manuel era o diretor junto com Dona Zenaide, a esposa. Pegava o trem, passava pela Praça da Bandeira, ia a pé até lá e fiquei nesse trânsito por dois anos. Até que uma outra freguesa da minha mãe perguntou se ela queria que eu fosse para o Pedro II. Ela respondeu que sim, mas era no Humaitá. Na época, chamava Seção Sul, isso era 1952. No mesmo ano, o Pedro II comprou o Engenho Novo, a Seção Norte. Na verdade, nessa época em que meu pai ficou desempregado, ele saía para fazer biscates, ia muito para o Sindicato dos Padeiros. Eu

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ficava desesperada na hora em que ele abria o portão, quase meia noite, isso significava que ele não tinha conseguido nenhum biscate para o dia seguinte. Assim, ele teria que comprar biscoito Globo, perto da Central, e iria a pé até o Castelo, para vender os biscoitos no Ministério da Educação, da Fazenda, naquela região. Na época a moeda era Cruzeiro. Ele vendia 50 cruzeiros e com 25 ele comprava mais biscoitos e com os outros 25 minha mãe comprava toucinho, fubá, café e feijão. Tomávamos o café com angu e também comíamos angu com feijão. Mas a minha vontade era que meu pai não voltasse, porque significaria que ele tinha arranjado um biscate. Naquela época, os patrões mandavam os empregados embora quando tinham dez anos de casa, acho que ficavam estáveis, depois é que apareceu o Fundo de Garantia. Numa dessas demissões, foram para a audiência meu pai e seu advogado, do sindicato, e o patrão, com o dele. Meu pai, a um momento, percebeu que estava perdendo a causa e pediu a palavra em nome da bandeira brasileira. Não sei por que cargas d’água o juiz deu a palavra a meu pai, que se defendeu e ganhou a causa. Eu só soube disso anos e anos depois. Depois conto como. Esse advogado ficou muito grato a meu pai e volta e meia se aconselhava com Sr. Neves. Falando nele, Sr. Neves era do Partido Comunista Brasileiro. Foi preso, e eu vejo a imagem dele bem grande, nos jornais em preto e branco da época, com CCC (Comando de Caça aos Comunistas) bem grande no alto. Não sei se a gráfica era ruim ou o papel, mas as figuras daqueles dez ou oito comunistas perseguidos apareciam horríveis.

D – Isso afetava o ambiente familiar?

J – Meu pai foi preso várias vezes e para minha mãe isso era uma lástima. Ela tinha muito

cuidado quando passava as roupas das freguesas, para não deixar cair nenhuma lágrima naquelas peças. A lágrima meio salgada podia manchar, só mais tarde que eu percebi esse desespero. Tinha um companheiro de Partido do meu pai que chegava com jornais e revistas, ela ficava injuriada e nem me deixava tocar. Nem sabia onde ela guardava, entregava a meu pai e ficava por isso. Então eu também tinha muita raiva desse homem, porque achava que ele ia apoiar meu pai para ser preso. Por conta desses episódios, minha madrinha, na época de eleição, perguntou: “você quer que seu pai continue preso, apanhando, que nem boi ladrão?” Ninguém falava a palavra ‘tortura’. E eu votei no Carlos Lacerda. Eu não sei se me arrependo de ter votado nele, foi mais um voto que ele ganhou e daí para cá a gente sabe o que aconteceu, né? Sandra Cavalcanti por aí afora. Não sei se esse voto no Lacerda mudou minha vida, porque depois eu percebi o erro. Voltando ao meu pai, ele continuava fazendo biscates, eu estudei um ano no Pedro II do Humaitá, onde fui aluna do Paulo Rónai, ele era muito amado, nós gostávamos muito dele. Ele nos deu um cartãozinho para procurarmos a Aliança Francesa e estudarmos lá. Assim, eu e um grupo fomos e no ano seguinte estávamos assistindo aulas lá.

D – Mas você já tinha terminado o ensino médio?

J – Depois eu fui para o Centro, onde eu terminei. Na época, havia da primeira à quarta

série ginasial e tinha as opções do clássico e do científico. Eu, péssima em Matemática, nunca escolheria o científico. Fui para o clássico, até porque em casa não tinha quem me orientasse, mas eu tinha uma colega, a Eni, cujo pai era um dos donos da Capemi, que me chamou para fazer com ela. Só que o Clássico tinha tudo, Física, Matemática, Química, só não tinha Biologia. Não era nada prático, e tinha duas provas parciais. Numa prova, o professor dava sete questões e um problema. Você fazia as sete e errava o problema; na outra, eram quatro perguntas e dois problemas, e a gente tirava quatro. Então estava sempre na média 5,0 pra passar de ano. Mas eu gostei muito, tínhamos adoração por Química, com professor Júlio Hauer. Ele dizia que, se alguém quisesse ser assistente dele, teria que tirar dez. E fazia o quê? Passava a noite tomando café e bolinha, estudando, para tirar dez. Eu queria ser química, mas sabia que no vestibular vinham questões das matérias exatas e eu não ia entrar nessa. Mas também gostava muito de línguas, menos

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inglês, em que eu era péssima. Estudei na Aliança, graças ao professor Paulo Rónai, e havia um curso, com aulas aos sábados de duas às seis da tarde, só pra gente treinar a tradução de Eneida, Ovídio, os clássicos que caíam na prova. No Pedro II, estudávamos Latim, Grego, Espanhol, Alemão, um professor dava aula de Esperanto, e então eu fui fazer a hoje UERJ, onde hoje funciona a Fundação Bradesco, em frente à Igreja dos Capuchinhos, na Tijuca. Não podia fazer a Universidade do Brasil, a UFRJ atual, porque tinha que trabalhar para ajudar um pouco em casa.

D – Você pode contar também um pouco dessa rotina universitária?

J – Ali tínhamos aulas à noite, porque eu pretendia trabalhar, era Universidade do

Distrito Federal e depois Universidade do Estado da Guanabara. Nessa época, ela se mudou para junto da Favela do Esqueleto. Os moradores dali foram transferidos para onde hoje é a Maré, a Vila do João. Ali fiz meus quatro anos de Neolatinas. Nós nos formamos em Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Francês, Italiano, Espanhol, a gente era professor de tudo, e eu me dediquei mais ao Português e ao Francês, tanto que meu primeiro concurso, na época para o município da Guanabara, foi pra Francês, que depois eu tive que abandonar quando fui para o Pedro II. Me formei e trabalhei durante anos na Campanha Nacional de Educandários Gratuitos. Vi que agora está com um problema sério, até mudou o nome para uma coisa tipo Campanha Nacional de Ensino Comunitário.

D – Como era esse trabalho?

J – Ali teve um episódio interessante. Trabalhava em seis colégios da Campanha, entre

eles o Colégio Republicano, onde aconteceu um fato interessante ligado a meu pai, também. Em 1964, eu trabalhava num dos colégios da Campanha na rua Ana Néri, a mesma do Sindicato dos Metalúrgicos. Eu saía da escola, ia direto para lá, avisava ao dono da cantina que eu tinha chegado, subia, deixava minhas coisas e se estivesse muito calor tomava um banho e descia para almoçar. Quando estou nas escadas, o pessoal, apavorado, dizia: “Não desce, não desce, a polícia está aí!”. Era 31 de março. A escola ficava numa vila e a dona Gilda, a diretora, ia chegando, mas conseguiram escondê-la na casa de alunos que também moravam ali. Fiquei aflita, porque, se minha mãe ouvisse no rádio que tinham invadido o sindicato, seria o caos. Imagina a raiva dela do comunismo! E ali eu fiquei até ter uma chance de sair e me levarem para casa, em Olaria, onde morei durante 33 anos. Ficamos um bom tempo sem aulas, o Sindicato completamente ocupado. O metalúrgico sempre foi o operário das trevas da direita. Antes de eu ir para o município, trabalhei no Colégio Estadual Clóvis Monteiro, em Dell Castilho. Do grupo dessa escola, tive uma aluna que é minha afilhada, outro é mastologista em Chapecó, tive o Luiz Paulo da Moita Lopes, que hoje é professor de Inglês da UFRJ. Uma vez, estava marcado um lançamento do Luiz, na Livraria Travessa do Leblon. Eu já estava cansada, no final do dia, e Heloísa Leicovikz, ex-chefe de departamento de Inglês, Magda Massunaga insistiram comigo e fomos embora. Quando eu cheguei lá, o Luiz perguntou se eu já tinha comprado o livro, disse que não e ele falou: “Compra não.” Quando eu vi, ele estava com o livro dedicado a mim. Você imagina o que é isso? Luiz Alberto, que é médico e escritor em Chapecó, não sei como, me localizou e me mandou um dos livros em que eu sou personagem. De outro, eu fiz o prefácio.

D – Mas voltando ao início da sua carreira, conta mais um pouco...

J – Deixa eu voltar um pouco. Em 1967, eu trabalhava no Colégio Republicano, em Vaz

Lobo, e num de religiosas, perto da Igreja da Penha. No mês de julho, a diretora do Republicano me convidou para visitar Brasília. Eu disse que não tinha dinheiro e ela propôs ir descontando do meu salário. Combinei com os meus pais e fiquei o mês de julho todo lá, foi ótimo. Quando eu volto, tinha um telegrama da escola me mandando comparecer ao escritório de um advogado porque eu tinha sido demitida. Onde eu ia

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encontrar um colégio para trabalhar em pleno mês de agosto? Então mostrei ao meu pai, que falou: “Você vá ao seu sindicato.” Essa fala de trabalho, de emprego, é muito ligada ao meu pai, e essa fala do medo, de não avançar muito, é da minha mãe.

D – A influência dele nessa sua formação de militância sindical então foi decisiva?

J – “Você sabe que o sindicato é o segundo lar do trabalhador”, ele dizia. Na verdade, ele

falava muito pouco. Dizia que falar é prata, calar é ouro. Eu também faço assim – fico calada, levanto o dedo e espero até me darem a palavra. Mas voltando: fui ao Sinpro, que era na 13 de maio ainda, onde me orientaram a fazer um acordo. Diziam que as escolas estavam recorrendo nos casos que iam para a Justiça, demorando uns dois anos pra pagar, e eu de volta, em casa, contei pra ele. “Nessa casa não se faz acordo, vá ao sindicato do patrão”, foi o que ouvi. E pedi para, então, ele ir comigo. E no dia seguinte fomos para o escritório do advogado. Me apresentei, e a secretária: “Aguarda um momentinho.” Já viu que esse “momentinho” demorava, né? Meu pai então deu o ultimato. “Se em dois minutos você não for chamada, nós vamos para a Justiça do Trabalho”. Ela entrou e, na mesma hora, quando o advogado abriu a porta, eu só ouvi: “Seu Neves!” Entendi nada. Resultado: ele quis saber o que tinha acontecido, me ouviu, telefonou para o colégio, escreveu um monte de coisas. A escola alegou que eu era muito chata.

D – Chata, como assim?

J – Eu dizia que os alunos tinham que copiar num rascunho e passar toda a aula a limpo,

em casa, porque eu achava que passando a limpo eles estavam recordando a matéria. Precisavam ter dois cadernos. Enfim, o advogado escreveu, escreveu, mostrou para o meu pai, que aceitou o que leu, me ignorou. Olha como eu já era invisível naquela época. Não tínhamos telefone em casa, só na da vizinha, ele ficou de avisar quando eu tinha de voltar. Quando saímos, perguntei para o meu pai de onde eles se conheciam e por que tinham agido daquela maneira. E meu pai contou o episódio que eu contei lá atrás, de quando ele pediu a palavra em nome da bandeira brasileira. Aquele advogado que era do sindicato dos empregados era, agora, do dos patrões. E ele sabia que, ali, não poderia fazer como estava fazendo com os outros. Eu fui demitida, mas saí com todos os direitos pagos e junto comigo saíram meu irmão, um casal do mesmo grupo, e outra colega. Todos receberam tudo o que era devido. Seu João Neves estava ali, por trás de tudo, né?

D – Como essa situação alterou sua vida profissional?

J – Com essa demissão, me juntei à professora Marcela Mortara, um ícone da UFRJ, a

Anita Gorodicht, a Irene (não me lembro o sobrenome...) e fundamos a Associação de Professores de Francês do Rio de Janeiro. Sabe Deus como eu estava ali no meio dessas pessoas de alto nível. Como eu trabalhava inclusive aos sábados nessa escola de onde fui demitida, fiquei sem nada para fazer em casa. Lembro que quando eu saía dessa escola, que ficava antes da Igreja da Penha, eu pegava o bonde – vocês evidentemente só conhecem o de Santa Teresa – e ia para a igreja, e ficava lá sentada rezando e descansando da semana pauleira. Pegava o bonde de novo e ia para casa. Só tinha o domingo para preparar aula e recomeçava na segunda-feira.

D – Rotina de seis colégios!

J – Em 1952, quando eu estava no Pedro II, saía de Olaria, saltava no Largo de São

Francisco e ia a pé até o Tabuleiro da Baiana, onde hoje é o edifício Avenida Central, pegava outro bonde na direção do Humaitá, para estar às sete dentro da sala de aula. O pior era no dia de Educação Física, porque não podia ir nem com o tênis nem vestida por

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baixo do uniforme, que era daquele tecido pesadão, cáqui, feito roupa de bombeiro. E a roupa de ginástica não era colante como as de hoje, eram aqueles calções tipo balão, cheio de preguinha, volumoso demais. E às sete tinha de estar na quadra. Na sola do sapato, a gente, pobre, grudava uma ferradurazinha para não gastar muito, se não, nas férias, tinha de botar meia sola. Andei muito de bonde nessa época. Tinha o Taioba, de carga, e as lavadeiras também aproveitavam, porque era mais barato. Mas a gente comprava o passe escolar.

D – Você pode narrar um pouco essa experiência de deslocamento da menina que sai do subúrbio para descobrir o Centro e a Zona Sul do Rio, onde estavam os pontos de acesso aos bens da cultura hegemônica? E como foi ser uma aluna negra no Pedro II no centro desse processo?

J – Eu nem via a Zona Sul. Saía de casa, pegava o bonde, entrava na escola e, na volta, a

mesma coisa. E dormindo. Os motorneiros e os cobradores já nos conheciam e sabiam onde a gente tinha de saltar e nos acordavam. Sobre o fato de ser negra, eu nem desconfiava de qualquer coisa. Ano passado, vendo umas fotos da época, comecei a perceber. Por exemplo, perto de casa, tinha o IAPI da Penha, que era um clube e eu e a molecada toda do bairro levava chá de cadeira. Mas eu não podia perceber que o chá de cadeira era para toda a molecada da redondeza.

D – A cantora Teresa Cristina também fala isso nas lives, soubemos que você gosta e assiste...

J – Compro até a batata frita pra acompanhar! Temos muitas coincidências. A Jaci, que

era do tempo que eu estudei no Centro e foi minha comadre, via-se que ela era de origem negra, mas não tinha pele preta. Tinha o Célio, que se formou em Medicina. Pele preta mesmo era eu. Eram pouquíssimos negros. Só bem mais tarde eu comecei a notar uma coisa aqui ou ali. Por exemplo: durante muito tempo, alisei meu cabelo porque achava que ninguém gostava daquela história de nega do cabelo duro. Nas festas juninas, tinha a sorte de Santo Antônio para tirar e adivinhar o futuro. A brincadeira era colocar três grãos de feijão debaixo do travesseiro. Quando acordasse, se tirasse o branco, ia ser rico; se fosse o mulatinho, remediado; e o preto, ia ser pobre. Então a gente descascava completamente um grão; outro grão, pela metade; e o terceiro, deixava inteiro. Pela manhã, só de tatear a gente já sabia qual grão era. E eu pegava o que ficava pela metade, para afastar aquela vida de sacrifício, de ter que esquentar água para tomar banho de balde, talvez até por rejeição mesmo. Hoje eu sou pobre, antigamente era miserável. Na faculdade, eram três de pele preta. Nunca fui focada nas questões de racismo, embora a minha avó, dona Iaiá, quando alguém chegava chorando por ter sido chamado de tiziu, ou urubu, ficasse uma leoa. Ela era do Espírito Santo, onde trabalhava num bispado. Uma vez, sempre ouvi minha mãe e meus tios contarem, ela foi comprar um peixe e uma portuguesa falou alguma coisa ridicularizando, ela jogou o peixe pra cima da pessoa! E voltou para casa tranquilamente. Quando eu era mais jovem, achava só um episódio esquisito, mais tarde é que eu percebi que minha avó já nos mostrava como nós devíamos reagir se alguém nos ofendesse. Hoje eu digo: se alguém me chamar de loura ou de Xuxa, eu grito, mas, se chamar de preta, sou preta mesmo. Agora, depende de como chamar. Se eu achar que realmente é para mostrar que eu sou diferente, não sou de falar muito, mas vou agir. Não se pode deixar que as coisas continuem se contaminando. Mas eu repito: até eu chegar na faculdade, nunca tinha percebido manifestações de racismo. Talvez porque viesse de um bairro pobre, e, na vila de 27 casas onde vivíamos, moravam só três famílias de negros.

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D – E no Pedro II, como professora, sentiu o racismo?

J – Também nunca percebi. Quando comecei, tínhamos a professora Umbelina, de

Geografia, adorada pelos alunos; o Durval, de Francês, da Tijuca, e eu. E muitos inspetores e o pessoal de serviços gerais. Às vezes, fico pensando se minha opção de estudar Francês foi a melhor. Fiquei assustada quando ouvi, num encontro virtual recente, que eu tinha ido estudar uma língua de elite. Naquela época em que eu escolhi, Francês era o auge. As famílias abastadas mandavam seus filhos para estudar na França. E eu optei porque era o mais fácil para mim, não porque queria lecionar uma língua de elite, de branco, de um povo que pisoteou outros. Devo à língua francesa de fato o meu ganha-pão, mas nunca pude trabalhar com meus alunos a questão racial. Talvez por eu ser a única negra dando aula de francês possa ter despertado neles algum espanto diferente. Um belo dia, fui substituir uma colega na Aliança de Copacabana e não queriam me deixar entrar, me questionaram por que eu não passava por uma outra entrada. Eu chegaria atrasada, mas eu tinha de informar que me impediram de entrar. Ora, como é que pode uma negra dando aula de francês em Copacabana? Só que eu já não podia recuperar o tempo perdido com os meus alunos, em que eu trabalharia essas questões. As pessoas me veem quase como única – agora já nem tanto –, e isso fez com que se agregasse uma certa cumplicidade. As pessoas percebiam que eu não tinha percebido e me protegiam, me blindavam para que eu não sofresse.

D – Conta mais um pouco como era isso no ambiente da Aliança Francesa? J – Fui fazer um estágio com Heloísa Bravagi, para também ser, como ela, mestre de

estágio. Lá, me indicaram para o Sinpro, quando, nos anos 1980, uma nova diretoria estava reunindo também representantes dos colégios e dos cursos. Então eu fui até o Sinpro, onde fiquei duas gestões. A gente fazia aquelas rodadas para discutir aumento salarial e, na hora do acordo, eu ia representando a Aliança. O presidente do Sinpro, o assessor jurídico, Jansen, e, do outro lado, o presidente do sindicato dos donos de escolas, que era proprietário do Colégio Princesa Isabel, o advogado e o diretor da Aliança. Nós tínhamos um diretor que parecia um bicheiro, altão, com o paletó pendurado no ombro, cordão de ouro, pulseira de ouro. Segundo ele, não podia dar aumento, porque a coisa estava “prrrreeeeta”. Levantei o dedo, e me lembro da expressão do Jansen, nosso advogado, de quem pensou: “Isso não vai dar certo”. Perguntaram se eu queria falar alguma coisa, disse que sim: que, se a coisa estava “prrrreeeeta”, a Aliança tinha que nos dar aumento. Afinal, ela nunca teve um presidente preto. Se ela estava sem dinheiro, foi por causa dos presidentes brancos. Então, se não tem dinheiro, a coisa está branca. Foi cômico. Resultado: não tivemos o aumento que queríamos, mas também não foi o que ele pretendia nos dar. Outro episódio também: ontem, a Sueli Carneiro, filósofa negra fundadora do Geledés, entrevistou a Benedita [da Silva]. Eu não pude assistir porque tinha uma assembleia da ADCPII (Associação de Docentes do Colégio Pedro II), e a gente precisa de

quorum, preferi ficar na assembleia. A Benedita falou de 1982, quando foi candidata a

vereadora. Lembro que conversei com o Monrevi, presidente do Sinpro-RJ, perguntei se a gente podia se reunir no Sinpro pra promover um debate com os candidatos negros à vereança. Corri todos os partidos do Rio de Janeiro: MDB, PT – que na época já existia –, PDT, Arena, consultando. Eles nem sabiam se havia negros entre os candidatos. No final, havia oito, dez candidatos por noite, durante uma semana, para debater conosco.

D – Dessa campanha você participou?

J – Nós nos reuníamos para a campanha na Casa do Estudante Universitário, na Praia

do Flamengo, à luz de velas, porque as contas de luz nunca estavam pagas. Nesse momento, comecei a me envolver com esse debate e foi quando entrei no movimento negro propriamente. No Sinpro, tínhamos encontros com o Nizinga (Coletivo de Mulheres Negras

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fundado pela liderança de mulheres negras do Rio de Janeiro, Lélia González) e fizemos o primeiro encontro de Mulheres Negras. Mas, em 1984, minha mãe sofreu um AVC e abandonei tudo. Precisava trabalhar, organizar a minha casa e contar com alguém que ficasse com ela. Uma prima foi meu braço direito e o esquerdo e duas empregadas também foram primordiais naquela época em que elas dormiam na casa do patrão: uma trabalhava uma semana, eu assumia no final de semana, na outra semana revezava. Fiquei doze anos fora de todo o movimento sindical. Fui voltando aos poucos. Em 1992, ela teve outro AVC, ficou hospitalizada até 1994. Ela morreu em agosto, e meu pai, em setembro. Quando me dei conta, estava envolvida de novo na ADCPII.

D – Como foi a fundação da ADCPII?

J – Era a Pierre, Puppin, Antônio, Francílio... eram professores do Pedro II e diretores do

Sinpro-RJ. Na verdade, um grupo tinha mais urgência, outro achava que podia esperar e analisar um pouco mais, eu, inclusive. Tínhamos indenizações para receber, entramos com uma ação pelo Sinpro e ganhamos tudo. Os professores tiveram tamanha sensação de agradecimento que não deixaram de dar os dez por cento para a fundação da ADCPII. Nessa época já tinha a Ascope, e o Zé, que era o presidente, não admitia que professor fosse sindicalizado simultaneamente. Era só técnico. Mas apareceu a ADCPII e os professores ficaram liberados. Sou, assim, sindicalizada desde que ele permitiu que docentes se sindicalizassem. Até hoje estou como remida no Sinpro; no Sindscope continuo sendo descontada, e na ADCPII, só quando eu morrer.

D – Com essa trajetória tão bonita no Pedro II, você recebeu o título de aluna eminente em 2018, não foi? Conta um pouco...

No ano de 2018, a Cristina Galvão, hoje diretora de São Cristóvão I, indicou meu nome para receber o título de aluna eminente. Foi emocionante entrar naquele pomposo salão mor do Campus Centro, com colegas da ADCPII, ex-alunas e ex-alunos, além de pessoas da minha família, meu sobrinho Jorge, minha prima Levina, minha sobrinha de Vitória, Perina. Entrei, na solenidade, entre a Cristina e a nossa Helena Godoy, que recebeu o título de professora emérita do Pedro II. Com esse título de aluna eminente e o do professor do ano do SINPRO/Rio, nos anos 80, além do título de ser filha da dona Zizi e do seu Neves e também da dona Samaritana, que me deu a oportunidade de ir estudar no Colégio Pedro II, eu penso que valeu a pena ter nascido, vivido, errado muito. Me senti compensada, agradecida e feliz. Como peelista, seguidora da PL, Perfect Liberty, minha religião, o processo foi difícil, mas gostoso; triste, mas compensador. E o resultado vocês estão me devolvendo com juros, e que juros! Fiquei muito agradecida, em nome de todas e todos que passaram pela minha vida e eu na delas e deles

D – Como você vê, nessa trajetória por uma sociedade mais justa, esse momento de ataque à educação, de esvaziamento das entidades representativas e de ascensão de grupos como Escola Sem Partido, o fato de não haver políticas públicas para incluir os alunos que não têm acesso digital? Como você vê esse cenário a partir dessa luta construída?

J – Política pública nunca houve. Antigamente, quem não estudasse nas escolas religiosas,

que eram as boas da época, tinha como referência mesmo o Pedro II. Na rede municipal, todos folgavam na quinta-feira e íamos para a matinê. Na gestão do Lacerda, apareceu o rodízio de folgas, cada série num dia, não havia mais encontro de todo mundo. Isso foi uma quebradura, eu ainda era aluna e não havia nenhuma luta para que houvesse essa atitude como reação. Tive uma comadre que me provocava, dizendo: “Você estudou no colégio padrão do Brasil, se formou e não ganhou nada. Eu estudei no Instituto de Educação e já saí empregada.” Realmente, as normalistas, mesmo indo trabalhar dois anos na zona

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rural, já saíam com emprego, lá não faltavam professores. Na Aliança, convivi muito com Mme. Sikora, cujo marido era um dos chefes do curso de línguas Oxford, onde as professoras, ao serem contratadas, ganhavam um nome em inglês. Assim, ninguém sabia quem era quem. E colocavam uma câmera na sala para vigiar. Disso, só soubemos muito mais tarde. Essa situação, antes de 64. Ou seja, as dificuldades não são de agora. Fernando Henrique Cardoso e o ministro Paulo Renato fizeram o que puderam para acabar com o Pedro II. Primeiro, o alvo era o Pedrinho, porque essa fase fica sob a égide do município. O ginásio é do estado, alegavam. Como uma instituição pode ter as três fases? Fizemos uma exposição imensa no campus Centro, com todas as atividades, obras e matérias e, criado pelo Roberto Adão, usamos o slogan “Como é fundamental o meu Pedrinho”. Íamos, professora Márcia Maretti e eu, se não às terças, às quintas-feiras, à Brasília, e conseguimos manter o Pedrinho. Com o Lula, tivemos outros problemas, inclusive a criação dos institutos federais. É para parar e pensar. Minha mãe teve os três filhos na escola pública. Amanhã, podem querer fazer concurso para a universidade. O filho da patroa dela pode também querer fazer. Digamos que fosse meu irmão quem passasse. Como ficaria isso? Então vamos desmantelar, incendiar, para que não persista essa vontade de que um esteja ao lado do outro. Não é de agora. E também acabar com os sindicatos, que sempre foram uma força... Quando colégio particular fazia greve e ia para o meio da rua? Fizemos nos anos 1980, uma semana parados.

D – E saíram vitoriosos?

J – Na minha segunda gestão no Sinpro, mudamos totalmente as cláusulas do acordo. Por

exemplo, o professor podia ser dispensado à hora que o dono do colégio quisesse. Criamos, assim, a cláusula que garante que o professor seja dispensado, para o ano seguinte, até outubro do ano em curso ou no primeiro semestre, se fosse para dispensar em agosto. Outra garante a gratuidade para filho(a) ou enteado(a) na escola em que o docente trabalha. Se ele ou ela for demitido(a), o dependente tem a vaga garantida até o final do ano. Isso parece que foi uma revolução! Não foi ganho pecuniário, mas de tranquilidade diante de uma demissão. Essas lutas sempre incomodam o empresário responsável pelo colégio. Aquele Sr. Julio Lopes, dono do Centro Educacional da Lagoa, foi deputado federal por pelo menos quatro anos, nunca fez nada pelo ensino no Rio de Janeiro. Como pode, com o caos nesse estado? Claro, qualquer coisa que ele fizesse para melhorar seria até concorrência para os alunos dos colégios dele. Então, quanto pior for, melhor para ele. E nós estamos avançando, escrevendo, estudando... O Pedro II sempre foi um pedregulho, um prego no sapato desse pessoal. Tanto é que chegamos ao Escola sem Partido. Começou em São Paulo, veio para o Rio e se espalhou. Um despenhadeiro. Eles são muito midiáticos, mas a gente não dorme. Lembro que a Helena Godoy foi candidata a Diretoria-Geral, na época não chamava ainda Reitoria, claro que eu fazia campanha para ela e não para o Wilson Choeri. Nessa época, eu trabalhava no Engenho Novo. Um dia, vejo uma aluna chorando e pergunto o que tinha acontecido. “Ah, é porque, se a senhora ganhar, vai me mandar embora do colégio!” Como assim, eu? O boato que corria era que, se eu ganhasse – e eu não era candidata a nada –, todos os alunos que entraram pela janela iam ser expulsos.

D – Fake news já naquele momento?

J – Eles estavam desesperados! Bom, mas a Associação de Pais do Engenho Novo era um

caos! Claro que isso não foi a razão de a Helena não ter vencido, mas foi também por isso.

D – E as políticas públicas?

J – Só haverá realmente quando mudar todo mundo envolvido com Educação. Claro que

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sempre. Em 2018, eu carregava uma lista xerocada com as candidatas pretas à Assembleia Legislativa. Me concentrei nas deputadas estaduais, mas o Molon, o Glauber, a Jandira estavam nela. Eu tinha colegas, da ADCPII inclusive, que perguntavam: “Por que tem que ser preta?”. Só dizia que não dá para continuar como está. Eu mesma já não tinha mais elementos para discutir. Bom, conseguimos aqui no Rio a Mônica Francisco, a Renata Souza e a Dani Monteiro. Em Brasília, Talíria Petrone e Benedita da Silva, que foi reeleita.

D – E agora, qual é o panorama?

J – Esse ano, não estou entendendo nada¹. Preciso acompanhar as assembleias para tentar

entender. Muitas mensagens novas. Detesto a palavra live! Outro dia, queria comprar um

mouse e fui à papelaria. Chegando lá, pedi um rato. O atendente ficou parado. Insisti, pedi

um camundongo. Até que o vendedor perguntou: “Por que a Sra. não pede logo um mouse?”. Ora, espanhol não fala assim, francês também não, por que eu? Recentemente descobri o grupo Pensar Africanamente. Lembro quando o Lula falou alguma coisa sobre a pandemia. Não é que ele estivesse agradecendo o aparecimento do vírus. Com a pandemia, as coisas foram se abrindo para o mal e para o bem. Com isso, os racistas saíram de dentro do armário. Acharam que iam deitar e rolar, mas tiveram de enfrentar uma barreira de negros doutores, pós-doutores, acadêmicos, ativistas, militantes, sem títulos acadêmicos, e se espantaram. Então, estão reagindo e nós ficamos sabendo de coisas de que nem suspeitávamos.

D – A luta da sua geração pavimentou esse caminho. Como você vê a importância da ancestralidade para o estágio em que estamos hoje?

J – Em 2018, comemoramos os trinta anos do Encontro Nacional de Mulheres Negras.

Fomos mil negras para Goiânia. Numa cidade pequena, impossível não ser notado. Todos os hotéis ocupados. Não havia uma nota de jornal. Passamos os dias na PUC, que tem instalações universitárias maravilhosas. Conheci uma estagiária que ficou de tentar publicar alguma coisa. Nada saiu. Esse trabalho não começou comigo, vem da Lélia Gonzalez, da Luisa Bairros. Essa ancestralidade vem caminhando e chegamos agora à pandemia e vemos esse escancarar de mortos e assassinados, muitos mais do que os que têm certa condição financeira para ter um hospital, o que também não garante muita coisa. Mas melhora. Se alguém chegar à UPA da Tijuca, às vezes não tem onde sentar, nem médico. Matam as pessoas aos poucos até que chega o governador e diz que vai mandar bala na cabecinha. Todas as maneiras que encontram de eliminar um ou dez ou mil, aproveitam. Esquecem que matam um, aparecem outros mais. Não tem hospitais, e eles ainda fecham vagas. Antigamente havia o IAPI (Instituto de Aposentadoria de Pensão dos Industriários), o IAPC (Instituto de Aposentadoria de Pensão dos Comerciários), o Hospital dos Bancários, o dos Servidores, instituições públicas que funcionavam e atendiam cada categoria muito bem. Juntaram tudo e piorou. Você hoje não tem médicos, remédios, técnicos de enfermagem. Quando eu era estudante, na escola pública tinha dentista.

D – Como fica a esperança nessa pandemia?

J – Certeza absoluta de que não vai ficar barato, de que meus netos, bisnetos, sobrinhos

vão ver mudanças. Não pode ser diferente. Tenho um sobrinho, advogado, defensor doente do presidente eleito. Agora só nos comunicamos por recados mínimos. Outro dia ele me mandou alguma coisa sobre o Leandro Karnal e o Mário Sérgio Cortella. Só perguntei a ele: “Você conhece outros filósofos? Quantos filósofos negros existem e a gente não conhece? O Sílvio Almeida, por exemplo, que agora leciona nos Estados Unidos.”. A mulher de outro sobrinho dá aula de Literatura Africana na UFRRJ. Há pouco tempo, diante de um branco que apareceu como se fosse Machado de Assis, numa propaganda da Caixa Econômica,

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liguei logo para ela. Quando conversamos, ela logo me contou que já estavam se articulando. No dia seguinte, já tinham trocado por outro artista. Olha a tecnologia que a gente está aproveitando!

D – Você se lembra de como Machado era tratado na Universidade?

J – Estudei Machado de Assis com a Dona Dirce Riedel. Não estou dizendo que ela teria

que ficar repetindo que ele era negro, mas nunca foi ventilada alguma coisa que transparecesse que Machado de Assis fosse negro. Eu só vim a descobrir isso velha. Um exemplo: minha neta, que mora em Cuiabá, ganhou um edital para um projeto sobre Maria Taquara. Tem uma estátua dessa figura na cidade, mas ninguém sabe quem é. Para descobrir isso, ela está fazendo a biografia com um grupo. As pessoas estão descobrindo personagens que ninguém sabia que existiam. Ou seja, não podemos retroceder. Tenho 83, não posso amanhã ter 81 anos. Impossível retroceder. Mas é possível adiantar. Com muitos estudiosos. Bárbara Carine, por exemplo, em Salvador, criou a Escola Maria Felipa, que atende crianças brancas e negras e não tem a rigidez da escola tradicional. No dia do Índio, por exemplo, por que é que ele tem que aparecer mascarado? Há coisas que a escola faz e a criança passa a encarar como normal. Já tive época em que eu via um jovem negro e tinha medo, porque sempre me incutiram a ideia de que um negro ia te atacar. Não sei a partir de quando nem por quê, passei a cumprimentar. Digo: “Oi, bom dia”. Deixei de ter medo de mim. Do meu irmão, do meu neto, do meu sobrinho. Essa mentalidade que a gente entranha, como a água que eu bebi e não posso tirar um dia, vai sendo eliminada. Essa pandemia veio eliminar muita coisa porque se abriram as portas, as pessoas estão aparecendo, discutindo, exigindo. Por outro lado, não adianta ficar apenas fazendo panelaços, tem que ir enfrentando. Ainda encontro pessoas que acham que nada disso existe. Comecei a escrever um texto e vou tentar terminá-lo hoje, sobre salário de parlamentar. Parlamentar não tem que ter salário, só o da categoria profissional dele. Os livros de história têm que ser incinerados. Não servem nem de calço pra mesa. Outras coisas têm que aparecer.

D – Com essa sua esperança de que nós não vamos retroagir, essa certeza de que vamos continuar avançando, se você tivesse oportunidade de se ver menina de novo, lá em Olaria, pegando o bonde na chuva, o que você diria? Valeu a pena? J – Ah, valeu! Valeu! Mesmo com o voto no Lacerda. Agora estou vendo que, sob emoção,

a gente nem sempre age certo. Durante muitos anos, passávamos pelo quartel do Exército na Barão de Mesquita e estavam sendo torturados ali amigos nossos, como num campo de concentração. Quando a gente soube disso – eu trabalhava na escola Afonso Pena, que fica na esquina da rua José Higino –, eu dava uma volta a pé muito maior para não passar naquela calçada. Hoje estamos alertas, sabemos o que pode acontecer, eles não podem fazer o que fizeram antes. Valeu a pena até a minha cegueira, a minha ignorância em perceber os atos de racismo. Uma vez eu quis operar esse nariz chato. Meu pai disse: “Nasceu assim, vai morrer assim.”. Pronto, encerrou o caso. Para tirar retrato, apertava a boca para esconder, porque branco tinha lábio, preto tinha beiço. A minha avó simplesmente não admitia que negro usasse vermelho. Um belo dia, ganhei da mãe de uma aluna uma toalha de Natal. Tive que pedir encarecidamente para ela me trocar por outra com todas as outras cores. Eu só fui usar vermelho quando, já trabalhando, comprei uma sandália que tinha uma tira fininha no peito do pé. Até hoje tenho primas que não usam nem batom vermelho. Mas valeu a pena. Quando eu ia imaginar que a minha neta ia fazer um trabalho sobre uma mulher que Cuiabá desconhece até hoje?

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D – Que mensagem você gostaria de deixar para a escola, um testemunho como mulher negra?

J – O Pedro II foi uma escola generosa. Ele dava tudo para todo mundo, e cada um ficava

com aquilo que melhor lhe aprouvesse. Se não fosse esse colégio, talvez eu estivesse na cozinha de algumas pessoas que se tornaram minhas colegas. Isso é a gratidão que eu tenho. O fato de a minha mãe ter sido obrigada a lavar roupa para fora fez com que ela conhecesse a dona Samaritana, que foi subsecretária de educação e me ofereceu a vaga. Saí daquele sacrifício da minha mãe, que lavava e quarava a roupa na mão, e do meu também, que tinha de carregar a roupa passada sem amassar. Hoje sou da Perfect Liberty, que é uma religião de prática, que ensina a não ficar pedindo a Deus, prega que as coisas vão acontecendo e são aceitas e você vai praticando. Foi tudo difícil, doloroso, choroso, mas estou aqui hoje. É importante saber que você tem pessoas por perto que te dão a mão e seguem a caminhada. E você vai cavando e andando, e olha pra trás e diz: “Puxa, como eu andei isso tudo? Ainda tem muito para andar.”. Fico pensando como conseguem três homens pegar no pescoço de outro para bater... Eles têm certeza de que não vai acontecer nada. Mas agora vai ficar mais difícil, todos se fotografam a todo momento. Valeu a pena, não foi uma estrada de fórmula um, de asfalto reto e liso, mas provocador de mortes – mas a gente enfrenta. É um desafio, desde quando tinha que passar o uniforme, encarar o inspetor na segunda-feira de manhã, porque, se tivesse de esmalte vermelho tinha de tirar; depois como professora; depois como avó de aluno; agora como aposentada. E você não pode imaginar o orgulho que eu tenho dessa ADCPII! Não consigo imaginar o Pedro II amanhã se a Associação deixar de existir. Isso não pode acontecer, o colégio vai se desmilinguir.

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Deslocamentos culturais e suas formas de

representação

CAPAVERDE, Tatiana da Silva; SILVA, Liliam Ramos da (Org.). Boa Vista: Editora da UFRR, 2019.

Adriana Kerchner da Silva Desde a sua gênese, a América, como continente, conforma-se como um espaço em que convivem, nem sempre harmoniosamente, pessoas de diferentes povos, culturas e tradições. Enquanto alguns vieram voluntariamente, a grande maioria dos deslocamentos iniciais foram violentos e forçosos, com o processo da escravidão sendo o melhor exemplo disso. Os povos originários, por sua vez, já aqui viviam, sofrendo a violência dos europeus recém-chegados. A partir dessa configuração inerentemente heterogênea, o continente até os dias atuais segue como um espaço em

que os trânsitos culturais são intensos e significativos. O Brasil, por sua vez, é um país tão grande que, ademais da heterogeneidade dentro da cultura nacional, também faz fronteira com diversos países, cada um com sua(s) cultura(s) própria(s). Desse modo, nossa nação se configura como um espaço também inerentemente heterogêneo e formado por culturas muitas vezes extremamente diversas entre si. As cidades de fronteira são, por excelência, os locais em que essas tensões são mais visíveis, uma vez que existe um trânsito e um diálogo literais entre pessoas de diferentes nacionalidades.

Tendo todos esses aspectos em mente, as professoras doutoras Liliam Ramos da Silva, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Tatiana da Silva Capaverde, da Universidade Federal de Roraima, organizaram o volume intitulado Deslocamentos

culturais e suas formas de representação. Neste extenso e fundamental livro, as

organizadoras reuniram artigos de pesquisadoras e pesquisadores de diversas nacionalidades e locais de atuação, compondo um volume também híbrido, que aborda temas bastante diversificados. Os 15 artigos, dois deles traduções, estão organizados em três grandes eixos, que abarcam conceitos importantes no campo semântico do “deslocamento”: Diálogos literários, Línguas em contato e Trânsitos Tradutórios.

Na primeira seção do livro, temos cinco textos que versam sobre diferentes obras literárias, de livros a canções, de brasileiros a hispano-americanos, como argentinos e mexicanos. No artigo “A escrita migrante de J. C. Méndez Guédez: três venezuelanos em Madri em Árbol de Luna”, de Tatiana da Silva Capaverde, o foco é na obra do venezuelano

Mestranda em Estudos Literários na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na linha Pós-colonialismo e identidades. Graduada em Letras-Bacharelado Português/Espanhol pela mesma universidade.

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Juan Carlos Méndez Guédez. A partir de sua própria experiência como imigrante, o escritor tematiza a imigração de forma contundente em sua obra, explorando o tema do deslocamento e do não lugar em que se encontram os imigrantes nestes contextos. No livro

Árbol de Luna, foco do artigo de Capaverde, narra-se a história de Estela e Tulio,

venezuelanos que migram para a Espanha, e de seus trânsitos dentro do próprio território espanhol, bem como a discussão dos motivos diversos que os levaram a imigrar. No entanto, o que os une, segundo Capaverde, é esse sentimento de não pertencimento ao território estrangeiro, algo que pode caracterizar a experiência de muitos sujeitos migrantes. No artigo seguinte, “Memoria del viaje (notas para una autopoética)”, Aimée Bolaños, também ela um sujeito em deslocamento, por ser de origem cubana, professora universitária no Brasil e atualmente vivendo no Canadá, discute a centralidade da memória para uma autora em diáspora. Analisando suas próprias obras, Las Otras

(Antología mínima del Silencio), Las palabras viajeras, Escribas e Visión de mujer con alas, Bolaños articula ideias como as de viagem, memória, poética, diáspora, autoficção e

autopoética. Em “Exilio, ‘ese largo paréntesis’ en el libro de Tununa Mercado En estado de memoria”, Neiva Graziadei discute o livro de Mercado, de teor autoficcional, sobre o período em que a escritora argentina teve de se exilar no México nos anos da ditadura em seu país. Aqui temos um importante exemplo de migração dentro do continente latino-americano, muito forte no contexto das ditaduras nos anos de 1960 a 1980. No livro, Tununa Mercado oscila entre a ficção e a não ficção como forma de elaborar as experiências vividas durante o exílio. Nesse sentido, o ato de escrever-se a si mesma, na leitura de Graziadei, permite à autora romper seu próprio exílio interno, em um intenso processo de auto-reconhecimento.

O artigo seguinte, “Já leu João Pinto da Silva?”, de Carlos Rizzon, já inicia com esta provocação, apontando para um importante intelectual gaúcho, crítico literário, cuja

História literária do Rio Grande do Sul, de 1924, muitas vezes é esquecida dentro da

fortuna crítica da literatura nacional. Ao travar diálogo com pensadores uruguaios e argentinos, isto é, que não são do centro do Brasil ou europeus, como fazem a grande maioria dos críticos do sudeste, João Pinto da Silva buscou articular a integração do estado à nação como um todo por meio de uma perspectiva regionalista. Desse modo, coloca o Rio Grande do Sul como um local fronteiriço, com intensa relação com os outros países do pampa. No último artigo desta seção, “Afirmar é negar: Vitor Ramil, um caso fronteiriço na música popular brasileira”, Valterlei Borges de Araújo e Júlio César Suzuki analisam a obra de outro gaúcho, este um cancionista, que também coloca o Rio Grande do Sul como uma região fronteiriça que trava diálogo direto com os hermanos Uruguai e Argentina, mais talvez do que com outras regiões do Brasil. Partindo do conceito de estética do frio, Ramil constrói um argumento por uma produção fronteiriça, marcada pela diferença da cultura dominante no âmbito brasileiro, esta caracterizada, em sua visão, por uma estética do calor tropical.

Na segunda seção do livro, intitulada Línguas em contato, são abordadas as representações identitárias em espaços fronteiriços, com foco na linguagem. No artigo “Mobilidades e superdiversidade: representações identitárias no contexto escolar transfronteiriço”, Maria Elena Pires Santos e Tatiane Lima de Paiva discutem essa ideia no contexto de Foz do Iguaçu, região marcada pela “superdiversidade”. Por ser uma região transfronteiriça, naturalmente é um espaço em que há um imenso trânsito de indivíduos e, consequentemente, de culturas. Nesse sentido, as pesquisadoras analisam como se (re)constroem as representações identitárias de alunos de uma escola de periferia em Foz do Iguaçu, verificando as influências que tem nisso um ambiente sociolinguisticamente complexo. Em “Una experiencia en las clases de español como lengua adicional en la enseñanza superior: la Universidad Federal de Integración Latinoamericana (UNILA) desde la frontera”, a pesquisadora Jorgelina Tallei apresenta o contexto da UNILA, universidade gestada com o objetivo de integrar a América Latina, como diz seu próprio nome. Discute, desse modo, algumas experiências que teve enquanto professora de espanhol como língua adicional para um grupo de, em sua maioria, habitantes de Foz do

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Iguaçu. Embora vivam nessa região de fronteira, tinham pouco ou nenhum conhecimento de espanhol. Partindo da metodologia proposta pela universidade, Tallei utilizou a literatura cartonera como uma das atividades de ensino de língua estrangeira. Já no artigo “As línguas nacionais como representações identitárias na fronteira Brasil/Venezuela”, Ancelma Barbosa Pereira apresenta alguns resultados de sua pesquisa de mestrado, desenvolvida na fronteira Brasil/Santa Elena do Uairén-Venezuela. Investigando como se conformavam as representações de identidade nacional de pessoas desses locais, Pereira chegou à conclusão de que estas são sujeitos com uma identidade flutuante, construída em interações entre brasileiros, venezuelanos e suas respectivas culturas.

No artigo “Práticas translíngues e transculturais de refugiados venezuelanos”, de Déborah de Brito Albuquerque Pontes Freitas, discute-se a temática das práticas translíngues e transculturais de imigrantes venezuelanos em solo brasileiro, algo extremamente relevante no atual momento político nacional, em que vemos um exponencial aumento do número de venezuelanos que se refugiam em nosso país, especialmente em Roraima, em busca de uma vida melhor. Analisando anúncios e avisos em escolas, por exemplo, a pesquisadora aponta para um bilinguismo social, uma vez que os autores dessas peças compreendem a necessidade de escrever as informações em português e espanhol, para atingir todos os possíveis públicos. No último artigo desta seção, intitulado “Práticas de (re) territorialização: contos escolares em/sobre um espaço fronteiriço”, de Cláudia Eloir Rodrigues Sanches, Sara dos Santos Mota e Valesca Brasil Irala, é analisado o contexto da cidade de Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, região também fronteiriça e com intenso trânsito com o vizinho Uruguai. O artigo traz o relato de uma experiência de docência em uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), com pessoas com diferentes situações, sendo algumas falantes de espanhol nativas, outras apenas tendo intenso contato com o idioma pela região de fronteira. Usando o gênero conto, escritos em espanhol, os alunos foram instados a representarem literariamente a cultura dos locais onde vivem ou viveram, retratando os hábitos e costumes de suas próprias famílias.

Na parte final do livro, intitulada Trânsitos tradutórios, temos também cinco artigos, dois deles sendo traduções, de Quince Duncan e Pierre Ouellet. O primeiro dos artigos é a tradução de “Afrorrealismo: uma nova dimensão da literatura latino-americana”, do costarriquenho Quince Duncan, realizada por Liliam Ramos da Silva. Neste importante trabalho, o teórico apresenta uma metodologia muito pertinente para a análise da literatura negra latino-americana, em especial. Além de reconstruir um certo cânone literário negro hispano-americano, formado por autores como Manuel Zapata Olivella e Pilar Barrios, Duncan elenca seis características básicas que podem identificar um livro afrorrealista, como a reivindicação de uma memória simbólica africana e a busca e proclamação da identidade afro. No artigo seguinte, “Los archipiélagos sonoros de José Balza: la escucha del otro y sus imaginários”, Digmar Jiménez Agreda analisa a íntima relação entre música e literatura na obra do escritor venezuelano José Balza. A pesquisadora discute essa articulação entre dois campos da arte utilizando o conceito de Tradução Intersemiótica de Jakobson e considerando o trânsito tradutório que Balza realiza dos imaginários sonoros a sua escrita. Em “Contextos multilíngues e transculturais em Ciudad Del Este (PY) vistos pelas óticas de Michael Cronin e Sherry Simon”, André Luiz Ramalho Aguiar utiliza os conceitos dos dois teóricos da tradução de “zonas de tradução”, “paisagem sensorial” e “mediador cultural” para pensar o resgate da memória histórica da Ciudad del Este. Nesse sentido, Aguiar faz uma importante contribuição para pensarmos sobre o quanto a tradução pode ser relevante para compreender a memória coletiva de uma cidade, seu multiculturalismo e hibridismos.

O artigo “La (no) traducción como muestra de la alteridade”, de Mayte Gorrostorrazo e Leticia Lorier, traz exemplos de dificuldades de tradução e as soluções encontradas em contos do escritor uruguaio Álvaro Pérez García, conhecido como Apegé, no que tange a questões de referências culturais. As traduções foram publicadas na importante revista Pontis – Prácticas de Traducción, em projeto encabeçado, em parte,

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pelas duas pesquisadoras. Entre as soluções encontradas para tais referências culturais tipicamente uruguaias e de difícil tradução ao português, temos escolhas por notas explicativas ou uso de termos equivalentes na língua de chegada, por exemplo. Por fim, para fechar o volume, temos a tradução do artigo “Fora-do-tempo: introdução à poética da pós-história”, de Pierre Ouellet, realizada por Luciano Passos Marques. Neste instigante texto, Ouellet discute a relação entre literatura e História, observando a potência da primeira para perturbar, agitar e revolucionar a língua, colocando a História a seu serviço. Nesse sentido, a literatura não vem para reescrever a História, mas para inventar um sentido que a História não reteve, criando uma outra representação.

Ao final deste longo percurso pelo livro, essencialmente se fez um grande movimento de deslocamento cultural. Passamos pela obra de escritores de diversas nacionalidades, como venezuelanos, brasileiros e argentinos, vimos como alunos de cidades transfronteiriças realizam suas representações identitárias, seja em Roraima, Foz do Iguaçu ou Santana do Livramento, e chegamos até teorias de tradução e discussões sobre a importância da tradução em contextos outros que não apenas os textos escritos. Desse modo, à guisa de conclusão, observamos que este livro traça um extenso panorama por áreas tão diversas, unidas justamente por este deslocamento, pelo movimento, pelo diálogo e pelos contatos possíveis entre essas práticas fronteiriças que são a literatura, a tradução e a cultura.

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“Diga às outras bruxas que você não o viu!”:

uma cena de meio sol amarelo, de

Chimamanda Ngozi Adichie

Carolina Carvalho Resumo: No aclamado romance Meio sol amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie, uma das personagens que nos guiam pelo enredo é Olanna, mulher negra e politizada, formada em Sociologia no Reino Unido e professora da Universidade de Nsukka, na Nigéria. No livro, acompanhamos a vida de Olanna depois de conhecer e decidir morar com Odenigbo, também professor, líder político e intelectual na universidade. Em certo momento, ainda no início da narrativa, conhecemos Mama, a mãe de Odenigbo, que vem de sua vila no interior da Nigéria para uma visita à cidade universitária do filho. A cena que esta pesquisa analisa é a do encontro entre Olanna e Mama; especificamente, o choque entre duas mulheres cujas referências imediatas são diferentes, apesar de suas origens nacional e étnica comuns. Minha leitura explora o potencial de representação em Meio Sol Amarelo dos conflitos que a opção decolonial nos impõe: como nos desviar da centralidade europeia e, ao mesmo tempo, considerar os conhecimentos e discursos tradicionais sem cair no conservadorismo? Como transformar uma força centrípeta em força centrífuga, sem perder o eixo? Este trabalho explora tais tensões na literatura de Adichie, dialogando-a com textos do historiador indiano Dipesh Chakrabarty e da filósofa Denise Ferreira da Silva.

Palavras-chave: Chimamanda Ngozi Adichie; Literatura decolonial; Conhecimento.

Começo alertando para a natureza indagadora deste trabalho. Não existe proposta de solução à la redação de ENEM, sequer um vislumbre de caminho, para o conflito que levanto aqui, na representação. Este será um exercício de escritura, para ver se, colocando no discurso, consigo discernir algo do que me aflige nas esferas individual e coletiva.

A cena que escolhi para pensar hoje, aqui, é retirada do livro Meio Sol Amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie. Publicado em 2006, o romance acompanha a história de duas irmãs gêmeas, logo antes e durante a guerra de secessão da Nigéria, na qual a República do Biafra foi declarada e destruída pelas forças nacionais do governo central, apoiado pela Grã-Betranha e pela Rússia, no contexto de Guerra Fria. O romance se estrutura em capítulos, cujos focos narrativos em 3ª pessoa se alternam entre três personagens: Richard, um escritor inglês branco, Olanna e Ugwu. Dada a importância destes dois para a cena em questão, desenvolvo-os melhor a seguir.

Olanna Ozobia é uma mulher nigeriana, negra, de etnia igbo, cujos pais integram a seleta elite urbana de Lagos. Estudou em uma escola secundária exclusiva, e logo em seguida foi para Londres, onde concluiu o ensino superior em Sociologia. Em uma de suas visitas à Nigéria, conhece Odenigbo, professor de matemática na Universidade de

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (PPGCL/UFRJ). Pesquisa

poesia brasileira contemporânea e dívida com abordagem interdisciplinar de Literatura e de Economia. Integrante do Laboratório da Palavra, projeto de extensão do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ). Foi professora substituta de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Pedro II, no Campus São Cristóvão II. E-mail: carolinafabiano93@gmail.com

Referências

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