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Diego Domingues18

– Três reais a cebola? Nunca mais venho aqui. No supermercado é caro, mas tem qualidade. Aqui só tem xepa!

Ricardo antecipava mentalmente cada palavra da mãe como num jogral medíocre. Ele sabia como e quando a mulher reclamaria mais uma vez. Estava mais do que acostumado à sádica rotina de todos os sábados de manhã.

Ele acompanhava tudo de perto, observando-a em todas suas depreciações das frutas, xingamentos aos feirantes e seu desdém das ofertas. Saco de compras com sangue. Cebolas, tomates e miolos irão se misturar sem pudor dali a algumas horas.

– Sobre o que conversavam naquele momento? – interroga Noronha. – Ela queria saber se a Biju passaria em casa – respondeu Ricardo. – Quem é Biju?

– Uma amiga.

O diálogo entre mãe e filho seguiu:

– Teresinha me contou que alguém viu essa menina no bar. Dizem que tem mania de beber depois que trabalha e deixa os filhos sozinhos em casa.

– Biju não tem filhos, mãe.

– Se não tem é porque deve ter tirado então! – A senhora mal a conhece...

– Claro que conheço, meu filho! Dona Clarice tava me contando que ouviu um pessoal dizendo que em casa ela não ajuda em nada. Mas eu entendo, meu filho! Gente de cor é assim mesmo, é tudo preguiçoso. Não vê seu bisavô? Ao invés de trabalhar e procurar alguém pra ele, foi se engraçar com sua bisavó, que era tão bonita, tão rica e tão branquinha. Coitada! Deu no que deu.

Ano de 1903. Ruth Queirós Medeiros é filha de poderoso fazendeiro, mora com a mãe e duas irmãs em uma grande casa no interior de Minas Gerais. Tadeu Silva trabalha na fazenda, é filho do caseiro. Ruth e Tadeu têm a mesma idade. Apaixonam-se. Fogem. Depois de 107 anos o bisneto de Ruth com Tadeu ouvirá pela centésima vez como a ingênua sinhá entregou-se ao filho do caseiro e desgraçou a linhagem da família.

Arma apontada para a cabeça da mãe de Ricardo. Um dedo no gatilho, cebolas e tomates caindo em câmera lenta da sacola largada pela mulher assustada.

– Não dá pra comprar calças novas, Ricardo. Fica pro mês que vem, tá? – Por que, mãe?

– Porque temos que economizar, ué! A situação tá difícil!

Ricardo não entendia qual era a dificuldade e menos ainda a situação. Sua mãe vivia com uma gorda pensão que passou a receber religiosamente todos os meses após a morte prematura de seu marido, pai de Ricardo. Ela gastava na feira, no bingo, em “dízimos” semanais, em presentes para as vizinhas e nada mais.

A avarenta mulher andava com roupas bonitas, costumava usar brincos caros para ir ao açougue e fazia penteados agressivos no salão toda sexta-feira. Na formatura de Ricardo foi com um sapato baixo e um vestido verde desbotado, manchado de água sanitária em uma das pontas, vestido esse usado para ir à padaria de vez em quando. No entanto, Ricardo lembrava com clareza que, no amigo oculto da igreja, ela foi usando um

18Graduado em Letras: Português-Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com Especialização em Educação de Jovens e Adultos pela mesma instituição, Especialização em Língua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Mestrado em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/FFP). Atualmente é professor de língua portuguesa na rede municipal de Duque de Caxias/RJ, supervisor no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), integrante do grupo Práticas de Letramentos na Ensinagem de Línguas e Literaturas (PLELL) e cursa doutorado em Linguística Aplicada na UFRJ. E-mail: diegodomingues87@gmail.com

vestido azul marinho novo, bem passado, com sapatos de camurça, alguns anéis e um colar de ouro branco, usado com igual elegância no casamento do filho do vereador Paulo César. – Não atira em mim! Pode levar tudo! – ela disse, mas o assaltante estava com um olhar assustado e não sabíamos o que ele queria.

– Ele não pediu nada? – perguntou Noronha.

– Eu estava muito nervoso, não consigo lembrar direito, acho que ele disse alguma coisa, sim.

– Faculdade pra quê, meu filho? Não vê o filho do Paulo César? Terminou o supletivo e já está trabalhando com o pai. Ele ganha mais que a filha da Clotilde, que é professora formada! Ela fez faculdade, prestou concurso e pra quê? Você quer ficar devendo aluguel que nem ela?

Acompanhar a mãe de Ricardo falando não era um bom programa. Seu corpo banhoso tremia durante cada palavra, enquanto jatos de saliva voavam aleatoriamente de sua tumular boca velha.

– Faz prova pra Marinha igual seu irmão, então. Se você quer fazer prova, fazer concurso, faz pra Marinha! Seu irmão não tem nem 30 anos e já viajou o Brasil todo. Aquele menino só me dá orgulho. Disse que tá namorando uma moça loira de olhos azuis, muito bonita.

As conquistas escolares de Ricardo eram ignoradas, os fracassos não. Depois de muito tempo o rapaz começou a entender a dinâmica mesquinha que regia o pensamento de sua mãe, não entendia muito bem o porquê, mas concluiu que ela se sentia bem menosprezando-o. Não coube nenhum entendimento, nenhuma análise, nem devaneios que legitimassem tal comportamento, ele percebeu que não entender era o caminho mais fácil, aceitou-a e assim os anos foram passando.

Não se deve perder muito tempo descrevendo uma pessoa detestável, ao risco de ser tendencioso em reforçar os atributos negativos, por outro lado, qualquer referência que se faça à mãe de Ricardo virá com o pior recheio, formado por características de uma pessoa simplesmente desagradável. Aos mais sensíveis, a figura da mãe pode despertar a empatia, a dúvida e até a pena, muitos são tentados a tentar compreender algo que foge da curva do aceitável, seja para o bem ou para o mal. Não é o caso aqui.

Em um dos costumeiros ataques de fúria, motivado por algo que nunca importava, ela gritou pelo filho. Ricardo pulou de sua cama e foi até o andar de baixo ver o que a mãe queria, infelizmente ele não percebeu, mas a mãe estava abaixada atrás da porta de seu quarto checando qualquer besteira com relação ao piso. Independente dos detalhes mais insignificantes, o importante foi que esse pequeno apanhado de situações fez com que, sem querer, Ricardo esbarrasse em sua mãe que rolou oito degraus escada abaixo.

Pé, degrau, degrau, ombro, degrau, cabeça, degrau, braço, braço de novo, degrau, pulso, degrau, degrau, degrau, cabeça, chão.

Ele ficou atônito olhando de cima para a velha contorcida lá em baixo. Alguns segundos que duraram horas e leves gemidos depois ela se levantou como quem acaba de acordar em dia de domingo, ajeitou a roupa sem muita pressa, olhou para cima, provavelmente tentando entender o que a levou de maneira tão rápida e incomum até aquele ponto. Tirando uma perna engessada e alguns meses de reclamações mais agudas que o normal, nada além disso aconteceu à mulher. Entretanto foi a primeira vez que Ricardo percebeu algo muito simples, muito claro, mas que só agora ganhara contornos de realidade para ele: sua mãe era frágil.

Ricardo lembrou da história do elefante de circo, que certa vez ouviu na escola, a história falava de um elefante bebê que, para evitar que fugisse, teve sua coleira presa a um pedaço de madeira muito fino, os anos se passaram e bem mais velho e pesando algumas toneladas, o elefante continuava sendo preso ao mesmo pedaço de madeira, que poderia ser facilmente quebrado por ele, dando-lhe liberdade. Mas ele nunca quebrava.

Uma faísca de novidade estalou na cabeça de Ricardo. Ele percebeu que sua mãe era seu pedaço de madeira. Frágil. Mantendo-o preso a uma rotina desnecessária de

submissão e infelicidade, pensou também em como certos conceitos prendem as pessoas, como se aceita qualquer coisa apenas pela rotina e conveniência. Lembrou de seu pai e uma imagem triste veio a cabeça, a tristeza era dele ou da imagem? Não sabia.

Enquanto tentava não pensar demais, o que só aumentava o fluxo de seus pensamentos, tentou numa vã retrospectiva entender como tudo o levara até aquele momento. Sua mãe sempre foi daquele jeito? Haveria explicação para tudo e tanto? Os questionamentos não paravam e quando se deu conta já havia quebrado o pacto que fez consigo para não buscar explicações. Voltou ao elefante.

A história do elefante era romântica e previsível, Ricardo não gostava muito do desfecho nem se importava com outro, achava que no mundo do óbvio, o elefante com certeza quebraria a madeira e correria desenfreado pela vida, gastando toda sua energia de elefante, enquanto esmagava domador, equilibrista, mágico e palhaço. Por que não? Mesmo assim, não parava de pensar em sua mãe, agora quebrada, agora, pela primeira vez, quebrável.

Setenta e duas horas antes do dia da feira, Ricardo encontrou por acaso seu tio na rua, os dois se abraçaram e conversaram durante um bom tempo numa lanchonete próxima. O tio de Ricardo disse que ligava de vez em quando para o sobrinho, porém sua mãe sempre dizia que ele não estava ou que já dormia. Ricardo nunca recebeu os recados. Conversaram sobre a vida, sobre as novidades. Desde a morte do pai, Ricardo não falava com o tio. Por algum motivo irrelevante a pensão entrou na pauta dos assuntos, Ricardo desconfiou quando seu tio falou de um valor três vezes maior do que sua mãe supostamente recebia, a princípio sentiu pena dela e culpa por todos os pensamentos ruins que teve, imaginando que apesar de tudo, ela sustentava a casa sozinha e, ainda por cima, recebendo menos do que deveria.

Correu até o banco para checar junto à gerente por que o valor estava vindo errado durante todos esses meses. A pensão iria totalmente para Ricardo, mas como até alguns meses atrás era menor de idade, sua mãe ficou responsável por administrar o dinheiro. A gerente mostrou-lhe vários comprovantes informando que o dinheiro integral realmente havia sido pago. No final de cada um daqueles papéis, a assinatura da mãe confirmando os saques.

– Eu tentei conversar com aquele marginal, mas ele não falava coisa com coisa. Devia tá drogado! – afirmou o rapaz.

Enquanto a mãe de Ricardo tomava banho, ele entrou no quarto dela. Pesadas cortinas marrons transformavam o ambiente num espaço mórbido e opressor. Foi caminhando devagar até a gaveta onde sabia que ela guardava seus documentos. Revirou tudo com extremo cuidado e não achou nada.

– Mãe! – Disparo – Cuidado! – Foi o que eu disse.

Decidiu verificar a gaveta de roupas. Entre meias e gigantescas roupas íntimas, encontrou um saco plástico preto fechado com duplo nó.

– Eu tentei salvá-la! Liguei pra ambulância e depois pra polícia, mas já era tarde. Ela ficou com os olhos meio abertos me encarando, como se quisesse dizer algo...

Desfez os nós e conferiu silenciosamente os papéis escondidos. Cartas de seu tio, notas fiscais, boletos bancários e um maço de dinheiro amarrado com um grosso elástico.

– Daí ele puxou a bolsa e saiu correndo! – E isso é tudo, Ricardo?

– É sim, seu delegado. É tudo que lembro.

– Tudo bem, rapaz, o sargento Soares vai te acompanhar até a sala de reconhecimento, você vai precisar assinar algumas folhas também e depois tá liberado. Qualquer coisa, nós entramos em contato.

Após contar sua versão dos fatos, Ricardo foi caminhando, ainda com aparente nervosismo, até a porta, quando o delegado Noronha o chamou.

– Lamento muito pela sua mãe. Pelo que você me contou, ela era uma excelente pessoa e pode ficar tranquilo que mais cedo ou mais tarde vamos pegar aquele ladrão.

– Obrigado, delegado.

A consciência de Ricardo estava limpa, contou ao delegado tudo tal como exatamente aconteceu, tirando, é claro, algum ou outro detalhe que tornava sua versão levemente diferente dos fatos. Ricardo não estava ao lado de sua mãe durante o ocorrido, estava na frente dela; ele não segurava uma sacola de compras, segurava um revólver; não houve um assalto, mas um assassinato. Amenidades suprimidas, todo o resto era verdade. A feira havia terminado de maneira incomum naquele dia. Uma quadra antes de chegarem em casa, Ricardo sugeriu como atalho um beco pouco movimentado. Durante a conclusão do caminho, o filho executou a sentença da mãe com elegante precisão. Apenas um tiro foi suficiente. O planejamento dos últimos três dias facilitou todo o processo.

– Pai?

– Oi Tiago. Você veio...

Tiago visitava seu pai no asilo todo sábado de manhã, gostava de ver, mesmo que por alguns minutos, aquele velho homem carregando seus oitenta anos de vida enquanto ainda tinha forças. Notou que nos últimos meses sua memória foi ficando cada vez mais fraca, esquecia nomes, datas, palavras. Esquecia tudo, menos o nome do único filho.

Na tentativa de ativar o consciente debilitado do pai, Tiago levou antigas fotos familiares, foi apresentando cada uma, enquanto alternava seu olhar entre a imagem impressa e o rosto do pai. Ele recontava algumas histórias, inventava outras, trocava alguns finais. No final das contas, a visita de Tiago era a única ocasião na qual aquele velho homem sorria. Ricardo estava muito velho.

Qual a lembrança que fica em um homem quando nada mais lhe sobra? Em momentos efêmeros de lucidez, Ricardo analisava sua vida pela perspectiva de alguém que já viveu o suficiente, o distanciamento temporal fazia com que todos os acontecimentos se colocassem na sua frente como num mural de escola primária; alguns mais vivos e coloridos, outros desbotados, além daqueles que foram arrancados e dos que foram substituídos.

Vendo seu mural imaginário, Ricardo notou que a memória é uma invenção da vida e que, como qualquer invenção, pode ser manipulada sem nenhuma restrição pelo seu inventor. Quem poderia discordar de uma memória inventada? Se ele dissesse que já foi a Paris ou ao Congo, quem poderia lhe desmentir?

Ele sabia também que as memórias inventadas deveriam ser coerentes, que qualquer pessoa mais letrada perceberia em meia dúzia de palavras que ele jamais estivera no Congo, portanto era preciso habilidade para mentir e simular em si, não um velho caduco, mas um homem viajado.

Talvez daí viesse a ideia de que toda pessoa velha é mentalmente irregular. Pessoas que já viveram muito começam a avaliar o percurso vivido, não gostam do que veem e passam a recriar algumas passagens, porém nem todos conseguem desenvolver a sagacidade necessária para mentir sem se contradizer ou soar absurdo.

Infelizmente, em meio a tamanho devaneio, Ricardo só percebeu isso tudo muito tarde e mais tarde ainda percebeu que havia percebido, o que faz toda a diferença quando, além de se obter instantaneamente algum conhecimento, percebe-se como este lhe fizera falta em anos passados. Ainda assim era uma boa ideia, que lhe permitia algum orgulho pessoal nos instantes em que não delirava.

As fotos levadas pelo seu filho não ajudavam muito no exercício de seu pensamento, pareciam todas de outra vida, de uma família que não conheceu, embora se reconhecesse em muitas delas, não guardava simpatia por nenhum daqueles momentos emoldurados em papel envelhecido.

– É o senhor aqui? – Talvez...

– Deixa eu ver mais de perto... Sim, sim, sou eu. Acho que com sua idade. Ou mais. Ou talvez um pouco menos.

– Tem um número no verso, deve ser a data, 2017 diz aqui. – Isso já faz muito tempo...

Poses não naturais, sorrisos forçados, olhares conjuntos para o mesmo alvo. Em uma das fotos, um pouco fora de foco, estava a mãe de Ricardo. Tiago aproveitou a chance para perguntar mais de sua vó, já que seu pai raramente falava dela.

– Morreu cedo. Acidente de carro – disse Ricardo. – Não tinha sido em um assalto, pai?

– Ou isso...

Para evitar contrariamentos, Tiago preferiu não insistir e mudou de foto. Acontece que, ao contrário do que possa parecer, Ricardo realmente não lembrava de sua mãe, não lembrava da causa de sua morte e pode ser até que em alguns momentos ele sentisse saudades. Nunca se saberá.

Voltando para casa, depois do depoimento prestado na delegacia, Ricardo passou em frente ao mesmo beco, ainda deserto. Na rua, a poça de sangue já secara e agora parecia açaí derramado, não chamando a atenção de praticamente ninguém.

A arma de seu pai estava bastante limpa depois da terceira vez que a lavou. Colocou-a de volta debaixo de uma tábua solta do piso, que ficava no canto de um dos pés do armário do quarto.

Ricardo era o tipo de pessoa que não acreditava em julgamento divino. Sempre amou muito sua mãe, amava seu cheiro de pessoa velha, amava seus escândalos, sua visão distorcida do mundo, seu peculiar talento para provocar humilhações públicas, os preconceitos todos, amava. Amava. E o que tinha que ser feito, fez.

Já era fim de noite, aquele havia sido um dia cheio, Ricardo trancou as portas e janelas, caminhou pela casa não menos vazia do que antes, comeu um sanduíche de queijo, escovou os dentes, ajeitou seu travesseiro, estendeu a coberta e deitou-se tranquilo. Estava com muito sono e nenhuma culpa.

Cão de Goya

Luciana Viégas19

O cabra macho de Goya espera pela visitante. Na galeria onde se ocupam os turistas domingueiros, ficam frente a frente, sem se ver. Mas os olhos dele parecem cobrar-lhe a razão da demora. Entre outros rostos em semitons de carvão, ele inicia os movimentos, as pernas ossudas se esticam para pisar, com alguma indelicadeza, o assoalho. Por ali, multiplicados aos milhares, os japoneses passam rapidamente, quase sem dar importância, para se concentrar salas adiante, parecendo afastar a sobrancelha um pouco mais do que de hábito das retinas escondidas entre parênteses na horizontal, à frente da Guernica. Uma sala dedicada unicamente a ela. Porque é a Guernica. Porque são japoneses. Ela estava lá.

As hordas de turistas fotografam sem parar, fotografam e põem as máquinas na mochila, os iphones no bolso, e tiram e fotografam de novo, e se olham e se fotografam ao lado das telas célebres da arte de todos os tempos e fotografam, para não esquecer, as legendas dos quadros nas paredes do museu centenário. Ela não consegue deixar de observar as dobradiças das portas tão areadas. Não há poeira nos cantos, o rumor das freadas de ônibus e carros não atravessa as janelas trancadas, em nenhum momento pinga por falta de manutenção um ar refrigerado, as junções dos assoalhos estão vedadas sob a camada de verniz, os funcionários da portaria completam o que dizem os da chapelaria que não contradizem os que vendem os fones dos audioguias que, por sua vez, se comunicam com as guardetes e, mesmo os talheres e as xícaras da cafeteria trinam no mesmo volume da voz dos que servem o lanche embalado em papel filme.

Faz frio e logo se sabe quem vem dos países tropicais, imediatamente acaipirados pela falta de jeito em aprumar os cachecóis, os gorros e as luvas. Não cresceram na neve. As lojinhas cheias de aperitivos culturais e as compras que não param, e ela também não resiste diante dos cartões, das borrachas e lapiseiras, das cadernetas, dos recortes de flanelas para telas de tablet, das sacolas ecológicas. Diante de um balcão, ensaia um comentário com uma ruiva, que devia ser dinamarquesa ou de outra nacionalidade nórdica, enquanto escolhiam postais com reproduções de Velasquez ou Miró, qualquer um seria esquecido. Sem sucesso tenta lhe dizer que ela lhe faz lembrar as moças que vê passear de short e havaianas nas calçadas do bairro comercial onde trabalha, distante quase meia hora da praia, nos dias ensolarados da terra onde nasceu. Não consegue, fica um fiapo de conversa mal acabada e ela se convence de que era melhor dessa maneira, antes que se aventurasse a, ridicularizando, falar que achava muito ridículas as coxas e os ombros esturricados pela exposição exagerada ao sol e o calor insano. E que, graças à moeda que carregam, os preços se inflacionam nos botequins e os táxis remarcam o valor das corridas. Ao fim, por mais que tentassem ser simpaticamente cosmopolitas, uma não conseguiu afinal descobrir qual o idioma da outra. Turistas são assim mesmo, trocam frases interrompidas.

Na avenida principal da cidade, as pessoas andam, andam, andam. Sobem e descem as alamedas do centro onde restaurantes, grandes lojas de departamentos, marcas conhecidas de roupas e produtos eletrônicos ocupam os imóveis centenários de fachadas