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John Stuart Mill e o psicologismo O System of logic nas origens da filosofia contemporânea

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OURENÇO

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RADO

John Stuart Mill e o psicologismo

O

System of logic

nas origens da filosofia contemporânea

Tese entregue como exigência para conclusão do curso de Doutorado em Filosofia no Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da PUC-SP, sob a orientação do Prof. Dr. Mario Ariel Gonzalez Porta, em abril de 2006

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Banca Examinadora

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Resumo

Este trabalho apresenta a lógica e a semântica de John Stuart Mill relacionando-as, por um lado, à tradição psicológio-nominalista representada pela teoria das idéias de John Locke e, por outro, aos desdobramentos das discussões lógico-semânticas do século XIX, sobretudo a partir da filosofia de Frege. De acordo com nossa hipótese, ao contrário do que toda uma tradição interpretativa estabeleceu, Mill, como que por detrás de algumas posturas ultrapassadas, foi responsável por teses significativas, entre outras coisas, em favor dos esforços logicistas e antipsicologistas que marcaram boa parte das discussões posteriores acerca da natureza da lógica. A crítica que Mill realiza à tese segundo a qual o significados dos termos da linguagem são idéias (o que ele chama de conceitualismo), aliada à sua clareza em distinguir processos mentais envolvidos no ato do raciocínio das razões objetivas envolvidas na correção das inferências, constituíram, de acordo com nossas conclusões, importantes fontes de influência positiva, não só para a filosofia de Frege, mas para toda uma tradição filosófica que veio a desembocar na filosofia analítica contemporânea.

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Abstract

This work presents the logic and semantic of John Stuart Mill relating them, on the one hand, to the psychological nominalist tradition represented by John Locke´s theory of ideas, and, on the other hand, to the forthcoming logic semantic discussions of XIX century, mainly from Frege´s philosophy. According to our hypothesis, in opposition to an established interpretative tradition, Mill was responsible for significant theses, among others, in favor of the logicist efforts and anti-psychologists who marked most of the later discussions on the nature of logic. On the one hand, Mill´s criticism to the thesis according to which the significance of language terms are ideas (what he calls conceptualism), in addition to his clear view in distinguishing mental processes in the reasoning act of objective reasons involved in the inferences correction, constituted, according to our conclusions, important positive influence sources, not just to Frege´s philosophy, but to a whole philosophycal tradition that came to contemporary analytical philosophy.

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ÍNDICE

Introdução ... 9

CAPÍTULO - I Stuart Mill: Lógica e semântica I.1. Preliminares ... 17

I.1.1. A estrutura do System of logic ... 19

I.2. O conceito milliano de Lógica ... 21

I.2.1. Arte e ciência do raciocínio ... 28

I.2.2. Lógica e linguagem ... 30

I.2.3. Nomes e proposições ... 35

I.3. A teoria da conotação ... 38

I.3.1. Nomes gerais e singulares ... 40

I.3.2. Nomes conotativos e não conotativos ... 42

I.3.3. Nomes concretos a abstratos ... 47

I.3.4. Nomes relativos e absolutos ... 49

I.4. Teoria da proposição de Mill ... 52

I.4.1. Sobre as proposições em geral ... 53

I.4.2. Proposições complexas ... 54

I.4.3. Predicação e nomeação ... 58

I.4.4. Proposições meramente verbais ... 61

I.5. Conclusão do capítulo ... 65

CAPÍTULO - II Refutação do conceitualismo II.1. Preliminares ... 69

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II.3. Locke: psicologia e linguagem ... 79

II.3.1. O origem empírica das idéias... 79

II.3.2. A Linguagem em Locke ... 83

II.3.3. Locke e a generalização ... 85

II.3.4. Significado e entendimento ... 87

II.3.5. Locke e a proposição ... 90

II.3.6. Locke e o psicologismo ... 92

II.4. A refutação do conceitualismo ... 95

II.4.1. Mill e a unidade do sentido proposicional ... 100

II.4.2. Proposição e juízo... 102

II.5. Conclusão do capítulo... 109

Capítulo - III Mill e o antipsicologismo fregeano III.1. É Mill um psicologista? ... 113

III.2 O antipsicologismo fregeano ... 118

III.2.1. A analiticidade da aritmética ... 121

III.2.2. Uma nova lógica ... 128

III.2.3. Frege e a objetividade ... 131

III.2.4. Leis do ser verdadeiro ... 136

III.2.5. Representações e sentido proposicional ... 139

III.2.6. Lógico x psicológico: o princípio do contexto ... 140

III.2.7. Pensar e representar ... 145

III.3. Frege crítico de Mill ... 147

III.3.1. Aritmética e empirismo ... 154

Conclusão ... 161

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Introdução

A relação entre as filosofias de Frege e Stuart Mill é muitas vezes estabelecida, e não sem claros motivos, de maneira fortemente antagônica. Por um lado, Frege teria sido o responsável por inegáveis e importantes contribuições, tanto para a história da lógica quanto para a história da filosofia, seja no que diz respeito ao instrumental lógico-sintático que forjou em seu Begriffsschrift - capazes de dar conta de problemas extremamente complexos que, dentro do velho universo conceitual aristotélico, somente eram resolvidos, quando muito, de forma artificiosa e insuficiente - seja pelos insights semânticos que vieram fincar as bases de muitas e importantes discussões a respeito de temas de filosofia da linguagem que estiveram no centro das atenções nos pelo menos cinqüenta ou sessenta anos seguintes, a partir de figuras como Russell, Moore e, sobretudo, Wittgenstein. Mill, por outro lado, representaria o velho, o ultrapassado, o aristotelismo lógico, o empirismo ingênuo, o psicologismo infantil. Por conta desse contexto histórico-interpretativo é muito tentador enquadrar, dentro de um modelo esquemático, os pensamentos desses dois autores, no âmbito da história da filosofia, em campos opostos. A lógica de Mill seria, por assim dizer, o exemplo de uma certa maneira equivocada e anacrônica de se conceber essa pretensa ciência, que a filosofia de Frege teria simplesmente varrido do mapa filosófico. E não faltam motivos que endossam esse ponto de vista. Por exemplo:

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seu espírito axiomatizante se nos apresenta com um racionalista dos mais vigorosos;

b) Frege, como é demasiadamente sabido, foi um radical e incansável militante anti-psicologista; grande parte de seus esforços e argumentos, grande parte de seu vigor filosófico estiveram voltados a eliminar da lógica todo e qualquer tipo de contaminação subjetiva (seja propriamente psicológica, como no caso dos autores da tradição inglesa, seja transcendental, como no caso de Kant). Mill, por sua vez, numa famosa passagem do escrito sobre a filosofia de Hamilton - citada inclusive por Husserl em suas Investigações lógicas como exemplo daquilo que não deve ser feito em lógica, como um exemplo lapidar de uma lógica psicologista – afirmou que a lógica é uma parte, um ramo da psicologia.

c) Inegavelmente, uma das grandes, senão a maior, contribuição fregeana tanto para a lógica quanto para a filosofia foi a superação da estrutura proposicional baseada nas categorias de sujeito e predicado a partir das categorias de função

e conceito, solucionando, assim, uma série de problemas, como o da

quantificação múltipla e, sobretudo, das proposições relacionais. Mill, por seu turno, segue fiel ao esquema proposicional aristotélico, comungando ainda, apesar dos indícios de insuficiência sintática que já transpareciam nas discussões lógicas de então, da velha estrutura sujeito/predicado.

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Esses fatores parecem servir de suporte para a posição que enxerga uma relação antagônica entre Frege e Mill. No entanto, apesar dos inegáveis e incontestáveis motivos que os situam em pólos opostos no âmbito das histórias da lógica e da filosofia, nem só de discordâncias e antagonismos se constitui a relação entre os dois autores. Se, por um lado, em questões filosóficas mais gerais e fundamentais, Frege e Mill demonstram ocupar posições diametralmente opostas, na medida em que saímos das generalidades e nos detemos em questões mais específicas e pontuais de suas filosofias, na medida em que deixamos de lado uma abordagem esquemática típica dos manuais de história da filosofia para analisarmos as teses mesmas desses autores em seus detalhes, vemos que o quadro se mostra completamente diferente daquele sugerido há pouco. Isso porque, como pretendemos demonstrar no presente trabalho, boa parte dos esforços antipsicologistas de Frege encontraram em Mill, não um adversário a ser refutado, mas uma importante fonte de influência positiva. Como veremos, os principais pilares do antipsicologismo fregeano encontrarão, em maior ou menor medida, respaldo em teses centrais do System of logic. De acordo com nossa hipótese, ao menos nos pontos que nos interessam particularmente, as divergências entre Frege e Mill limitam-se a uma crítica por parte de Frege ao status epistemológico da lógica e da aritmética; Frege critica o radical empirismo milliano; mais especificamente, a tese de que aquilo que os racionalistas chamam de princípios lógicos elementares, em realidade, são produtos da experiência sensível. O que não significa que, uma vez estabelecidos esses ‘princípios’ (sejam eles, princípios ou não) não possa haver convergências pontuais importantes.

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epistemologia e da psicologia constituem a principal característica do movimento que culminou na chamada filosofia contemporânea, então encontraremos no Livro I

do System of logic, e não propriamente no Begriffsschrift ou nos Grundlagen der

Arithmetik (como quer Dummet, por exemplo) o verdadeiro marco desta transição.

O que, pode-se dizer, motivou e serviu de ponto de partida de nossa abordagem é o trabalho Alberto Coffa, intitulado The Semantic Tradition1. Nesta

obra, o autor reconstitui de maneira detalhada os movimentos que proporcionaram a elevação da semântica ao status de disciplina filosófica de destaque, o que, num certo sentido, pode ser considerado um dos marcos do advento da filosofia contemporânea. É, no mínimo, estranho constatamos que o autor não citou Mill uma única vez sequer; e isso, acredito, é uma grande injustiça2. De acordo com nossa

hipótese, e isso foi simplesmente ignorado por Coffa, a crítica que faz Mill àquilo que denomina conceitualismo, ou seja, à tese de que os nomes não se referem às idéias, como quer Hobbes e Locke, mas às coisas mesmas, e, mais importante que isso, o argumento que Mill se utiliza para defender sua posição, baseado na refutação da tese de que a função da linguagem é transmitir idéias, finca as bases, em muitos sentidos, não só do modelo semântico que será adotado por Frege, mas também de seu antipsicolosimo. E isso por dois motivos:

1) Por não considerar as idéias como referência imediata dos nomes, Mill deixa de ter ao seu dispor elementos de ordem psicológica para estabelecer a relação entre as palavras e as coisas; ou seja, se os nomes referirem-se à idéias, basta que se postule

1 COFFA. J. A.: The semantic tradition from Kant to Carnap – To the Vienna Station (1991)

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uma semântica da convenção e da arbitrariedade para justificar a relação do signo com aquilo que significa; e a relação dos nomes com as coisas mesmas se explicaria, não por meio da semântica propriamente, mas por meio da psicologia. A questão não seria “como as palavras se relacionam com as coisas?”, mas “como nós formamos nossas ideais acerca das coisas?”, e as palavras, por sua vez, teriam idéias como referência. Ora, com a supressão da idéia mediando a relação entre as palavras e as coisas, se fará necessária a introdução de elementos teóricos de outra natureza, no caso, de uma natureza eminentemente semântica. E para esse fim, no System de Mill, será forjado o conceito de conotação.

2) Por não considerar que a função da linguagem é transmitir idéias, mas informar crenças (crenças em verdades), Mill já estabelece, de forma embrionária, as bases daquilo que, em Frege, será chamado de princípio do contexto; e, mais importante do que isso, esse movimento acaba por delegar à linguagem uma função lógico-veritativa em oposição à dimensão sócio-pragmática que exercia em Hobbes e Locke; a ‘mentalidade’ representada por essa mudança de acento no que se refere à função da linguagem no conjunto das atividades humanas, em muitos e importantes sentidos, abrirá caminho para a edificação de toda uma escola filosófica que desembocará, por exemplo, no Tractatus de Wittgenstein e no positivismo lógico.

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Capítulo - I

Stuart Mill: lógica e semântica

Serão apresentadas aqui algumas teses importantes com relação ao conceito de Lógica de J. S. Mill, bem como os fundamentos de sua teoria do significado; serão abordados os seguintes pontos:

- definição de Lógica como ciência da prova com ênfase na precisa distinção que Mill realiza entre explicações causais de ordem psicológica e aquilo que justifica a verdade da conclusão de um raciocínio;

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I.1. Preliminares

A figura de John Stuart Mill se apresenta para a história da filosofia, em muitos aspectos, de forma um tanto paradoxal, e até surpreendente. Pensador multifacetado, escreveu sobre lógica, epistemologia, ética, política, economia... sempre com um rigor conceitual extremado, no qual todos os aspectos de suas investigações buscam entrelaçar-se num nexo sistemático dos mais bem arquitetados, digno dos mais ilustres baluartes da metafísica tradicional. Ao mesmo tempo, um empirista dos mais radicais e um naturalista vigoroso. Mas, ao contrário dos ‘empiristas tradicionais’ de origem britânica, seus predecessores, nutriu grande respeito pela lógica formal, além de ter fornecido, em seu System of logic, elementos teóricos preciosos para a superação do nominalismo psicologizante tão difundido entre os britânicos modernos. Por um lado, Mill se apresenta para a história da filosofia, ao menos no que diz respeito à sua lógica, como um pensador anacrônico, representante de posturas ultrapassadas já para os problemas de seu tempo. Sua lógica acabou por ser enquadrada, por toda uma tradição interpretativa, no âmbito de algo que foi definitivamente superado pela novidade representada, sobretudo, pelo pensamento de Frege. Mas, por outro, foi responsável por teses decisivas para a revolução lingüística ocorrida na filosofia do século XIX, em parte operada pelo próprio Frege. Fatos como esses demonstram que a figura de Stuart Mill possui um papel peculiaríssimo na história da filosofia, principalmente no que tange às origens daquilo que se acostumou chamar de filosofia contemporânea.

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numa tradição diferente. Por um lado, é o ponto de culminação de um processo histórico-filosófico que se inicia com Ockan, passando por Bacon, Hobbes, Locke, Hume, Berkeley; por outro, encontra-se em posição privilegiada no que tange à superação do que ainda restava da filosofia moderna no pensamento do século XIX. Num certo sentido – e, na realidade, será essa a conclusão mais geral extraída pelo presente trabalho – Mill passou ao mesmo tempo pelo inconveniente e privilegiado papel histórico de estar demasiadamente comprometido com o passado para extrair todas as conseqüências significativas e importantes de seus insights.

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vez, que a lógica é uma parte da psicologia; no entanto, suas teses semânticas, e seu próprio conceito de lógica enquanto relacionada à justificação de verdades inferidas e não com descrição de processos subjetivos, demonstram claramente que ele está estabelecendo os alicerces a partir dos quais será edificada boa parte dos esforços antipsicologistas de Frege. Ora, Mill disse isso, porque isso era o normal e corrente entre os seus. De forma semelhante, a teoria milliana da conotação, que traz consigo novidades significativas para o estabelecimento das bases em que se edificou a virada semântica na filosofia do século XIX, é constituída e apresentada dentro de um contexto proposicional aristotélico, o que pode camuflar, graças a uma aparente constituição sintática ingênua e ultrapassada, seu verdadeiro alcance e as conseqüências que suscitou. Como Frege bem notou, chega a ser irritante notar que o radical empirismo de Mill não lhe tenha permitido ir mais adiante. O que se tem, em realidade, é uma semântica e um conceito de lógica requintados e progressistas a serviço de uma sintaxe aristotélica velha e agonizante, e de um empirismo tão radical quanto inconseqüente. Será buscando enfatizar essa característica da lógica e da semântica millianas que as apresentaremos no presente capítulo.

I.1.1. A estrutura do System of logic

O System of logic tem por objetivo estabelecer de forma organizada e

sistemática os princípios e fundamentos desta pretensa ciência para, a partir das premissas estabelecidas e do instrumental analítico obtido, ser possível a edificação de todo um sistema de conhecimento, cujo objetivo último e principal repousa na fundamentação das ciências morais. A obra é dividida e seis livros:

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3. Da indução;

4. Das operações auxiliares da indução; 5. Dos sofismas;

6. Da lógica das ciências morais.

Embora, tomados em conjunto, os livros do System of logic constituam uma unidade sistemática bastante clara, cada um deles, tomados isoladamente, possui uma organicidade própria que os caracterizam, de fato, como livros independentes. De forma resumida, podemos assim caracterizar o caminho percorrido por Mill em seu

System: primeiramente, é estabelecido o estatuto semântico da linguagem, tanto no

que se refere à significação dos termos de forma isolada quanto à significação das proposições (Livro I). Feito isso, o foco de atenção volta-se aos processos dedutivos de inferência (Livro II). Uma vez, porém, que, de acordo com Mill, as proposições universais, premissas dos raciocínios dedutivos, não nos são disponíveis de forma imediata - pois, como bom empirista que é, defende que todo conhecimento inicia-se, necessariamente, a partir das impressões sensíveis, que somente fornecem conhecimentos singulares - o autor utiliza o terceiro e o quarto livros para fundamentar a indução, tipo de raciocínio que possibilita a aquisição das tais premissas universais. Em seguida, são considerados os argumentos falaciosos e as causa de tais erros de raciocínio (Livro V). Por fim, após a edificação de todo um aparato conceitual coerente e estruturado, é considerado o papel da ciência lógica no estabelecimento das ciências morais (Livro VI).

Durante o caminho percorrido no System, Mill trata de expor e fundamentar três teses capitais, que têm a ver com problemas que interessam diretamente a Frege:

a) a lógica e matemática possuem proposições e inferências reais; b) nenhuma proposição real é a priori;

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Para poder levar adiante seu projeto ultra-empirista, Mill necessitará de determinadas premissas lógicas, semânticas e, em muitos sentidos, epistemológicas e mesmo metafísicas, presentes, sobretudo, no Livro I do System of logic. Por isso, uma vez que o interesse de nosso trabalho repousa basicamente nas teses semânticas de Mill, em seu conceito de lógica e, sobretudo, na influência que tais teses exerceram na edificação da filosofia e da lógica fregeanas, e dado o caráter, em certo sentido, autônomo dos livros do System of logic, o Livro I será, prioritariamente, tomado como objeto de nossa investigação.

I.2. O conceito milliano de Lógica

Pergunta: por que Mill, sendo um empirista radical, deu tanto valor à lógica, a ponto de escrever um grande tratado sobre essa disciplina? Não é a lógica a “ciência” das leis formais do pensamento puro? Não é ela a maior expressão de um tipo de saber eminentemente racional baseado em princípios universais e, por isso mesmo, absolutamente a priori? O que justificaria tal interesse? A resposta a essas indagações não pode receber um tratamento simples, pois Mill delega à Lógica um estatuto absolutamente coerente com seus supostos epistemológicos mais gerais. Para compreendermos o que Mill entende por Lógica é necessário, primeiramente, termos em mente o que ele entende por conhecimento e, mais especificamente, que tipos de conhecimento postula como possíveis.

De acordo com Mill, todo conhecimento deve, em última análise, ser reduzido a duas formas básicas: ou o conhecimento é intuitivo ou é inferido3.

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Conhecimento intuitivo é aquele que obtemos por meio do testemunho direto dos sentidos; conhecimento inferido é aquele derivado, que se obtém por meio de inferências, tomando conhecimentos já adquiridos como premissas. Eu sei direta e imediatamente que sinto uma dor, ou que estou na frente do computador, e sobre isso não pode restar dúvidas, pois tenho em favor dessas verdades o testemunho direto de meus sentidos. Há, no entanto, uma série de conhecimentos que eu certamente possuo, mas somente de forma indireta, que não me foram disponibilizados a partir do mesmo processo cognitivo; por exemplo: não vi nem presenciei a chegada de Cabral ao Brasil em 1500, mas sei, por meio de uma série de indícios que me são disponibilizados, em última análise, intuitivamente, que esse fato é verdadeiro. Sou, portanto, capaz de inferir a verdade de um fato mesmo sem tê-lo presenciado. Como podemos notar, Mill tem uma visão muito ampla acerca do que são inferências: todos os conhecimentos que somos capazes de obter, desde que não estejam disponíveis diretamente aos sentidos, são inferidos; e todos os tipos de inferência que somos capazes de realizar (que, segundo Mill, nos possibilitam a maior parte de nossos conhecimentos) nos fornecerão, portanto, conhecimentos derivados. Certamente, para que haja conhecimentos derivados obtidos por meio de inferência é necessário que outros conhecimentos intuitivos prévios sejam considerados. Somente por meio da intuição – entenda-se, pela faculdade que nos proporciona o acesso direto ao mundo exterior, possibilitando, assim, um conhecimento eminente empírico – é possível a passagem do não-conhecimento ao conhecimento de alguma espécie, fundamental para a edificação de qualquer forma de saber. Ou seja, somente é possível haver qualquer conhecimento derivado obtido por inferência se, antes de tudo, a cadeia de raciocínios partir de alguma ou algumas premissas empíricas. A conseqüência dessa teoria será bastante controvertida. De

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acordo com esse ponto de vista, Mill rejeita que as proposições universais, aquelas que servem de premissas para os raciocínios dedutivos, sejam disponibilizadas de forma imediata e intuitiva. Ao invés disso, as proposições universais fazem parte daquela porção de nosso conhecimento dita derivada. Isso, porque a experiência empírica fornece um tipo de conhecimento meramente singular, expresso por meio de proposições particulares; somente por meio da indução - raciocínio a partir do qual premissas particulares impõem conclusões universais – as premissas dos raciocínios indutivos podem ser dadas. Segue-se disso que todo raciocínio dedutivo pressupõe, necessariamente, raciocínio ou raciocínios indutivos preliminares, capazes de fornecer as premissas da dedução. O principal e mais problemático resultado desta teoria é a tese, no mínimo estranha, de que as chamadas ‘ciências dedutivas’, sobretudo a matemática e a própria lógica, são a posteriori, possuem uma origem empírica. Veremos, no Capítulo III, que será essa a principal divergência de Frege com relação às teses do System of logic: tanto o que diz Mill sobre o estatuto epistemológico das ‘leis’ da lógica, quanto sobre o estatuto da própria indução, serão atacados por Frege nos Grundlagen der Arithmetik. Voltaremos, pois, a esses problemas no momento mais oportuno. Por ora, vale somente salientar as duas classe de conhecimentos que Mill considera como possíveis, e a origem eminentemente empírica de todo conhecimento, seja ele intuitivo ou derivado.

Colocadas as coisas desta maneira, Mill pode estabelecer um lugar privilegiado para a Lógica no espectro do conhecimento humano sem, com isso, contradizer seus pressupostos epistemológicos e metafísicos mais fundamentais. A Lógica deve tratar somente daquele tipo de conhecimento dito derivado, inferido, não tendo nenhum poder e não exercendo nenhum papel no processo de aquisição primitiva de conhecimentos por meio do testemunho dos sentidos4. É nesse sentido que Mill

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define a Lógica como ciência da prova5. Ela não pode fornecer os indícios, as

premissas, os fundamentos objetivos a partir dos quais uma verdade pode ser inferida; mas, uma vez de posse dessas premissas, ela deve decidir se as verdades delas extraídas o foram de forma correta. Certamente, como acabamos de mencionar, esse ponto de vista o obriga, necessariamente, a considerar a Lógica como sendo algo muito mais abrangente do que a maioria dos autores. A lógica deve ser entendida como ciência (e arte também, como veremos a seguir) do raciocínio e da inferência. No entanto, por raciocínio deve-se entender não somente as inferências dedutivas, mas também a indução6. Não é por acaso que a obra milliana se propõe a ser um

sistema de lógica indutiva e dedutiva.

Vale salientar, com relação ao conceito milliano de lógica e à teoria epistemológica que o supõe, um fato extremamente importante: Mill aceita, ao contrário de Locke, a possibilidade de termos acesso direto e imediato a verdades, e não meramente a idéias. Como veremos mais adiante7, para Locke, tudo o que

obtemos imediatamente por meio da experiência sensível são idéias simples; e todas as demais manifestações intelectuais humanas, como a atribuição de verdades, por exemplo, já se dão de forma mediata. A verdade, para Locke, nunca se refere às

5 “Logic is not the science of Belief, but the science of Proof, or Evidence. In so far as belief professes to be founded on proof, the office of logic is to supply a test for ascertaining whether or not the belief is well grounded” ou: “Logic, however, is not a same thing with knowledge, though the field of logic is coextensive with the field of knowledge. Logic is the common judge and arbiter of all particular investigation. It does not underkate to find evidence, but to determine whether it has been found. Logic neither observes, nor invents, nor discovers; but judges” (idem)

6 “Logic, then, comprises the science of reasoning (...). But the word reasoning, again, like most other scientific terms in popular use, abounds in ambiguities. In one of this acceptations, it means syllogizing; or, the mode of inference which may be called (with sufficient accuracy for the present purpose) concluding from generals to particulars. In another of its senses, the reason is simply to infer any assertion, from assertions admitted: and in this sense induction is as much entitled to be called reasoning as the demosntrations of geometry”. (idem, Introduction, 2)

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coisas mesmas do mundo, mas somente às nossas idéias8. Ora, qual a importância

disso para a lógica e para a semântica? O fato de que em Mill, que considera que a verdade somente pode se dar no nível proposicional, já se pode identificar um nível proposicional prioritário e imediato. Escreve ele:

O que chamamos, por um cômodo abuso de um termo abstrato, uma verdade, significa simplesmente uma proposição verdadeira, e os erros são proposições falsas9

Ora, se levarmos isso às suas últimas conseqüências, teremos que supor que Mill postula a anterioridade da proposição em relação aos seus elementos constitutivos, o que só foi explicita e definitivamente estabelecido na história da filosofia pelo princípio fregeano do contexto10. Se a verdade nada mais é do que uma proposição

verdadeira, e se a experiência imediata pode nos fornecer verdades, claro está que já se deveria poder falar num sentido proposicional primário e imediato em Mill. Como veremos mais adiante11, quando tratarmos da distinção que Mill estabelece entre

proposição e juízo, a crença numa verdade supõe um conteúdo objetivo prévio como seu objeto. Portanto, se é possível termos acesso direto e imediato a verdades, isso somente pode ser compreendido da seguinte forma: temos acesso imediato ao conteúdo objetivo crido como verdadeiro. A diferença com relação às verdades inferidas está no fato de que, nessas, a crença dependerá de provas e se estabelecerá a partir delas. Já nas verdades intuitivas, o testemunho direto dos sentidos elimina a necessidade de provas e, portanto, de argumentos. Por isso, não há lógica para as

8 ver: II.3.4.

9 “What, by a convenient misapplication of na abstract term, we call a Truth, means simply a True Proposition; and errors are false proposition”. (idem: I, i, 2)

10 ver: III.3.2

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verdades intuitivas12. Mas, ainda assim, elas são verdades e se dão imediatamente aos

sentidos. Talvez tão ou mais importante do que Mill ter, digamos assim, delegado um caráter realista à verdade, que não se refere mais às idéias como em Locke, mas ao mundo real13, foi ele ter, ao menos indiretamente, postulado a possibilidade de

termos acesso direto a um sentido proposicional originário. Porém, Mill é confuso; não tem muita clareza acerca das conseqüências de seu insigth. Isso, porque é claramente contraditória a assunção de que temos acesso direta e intuitivamente a verdades, sem necessidade de nenhum tipo de mediação (seja por parte de processos subjetivos ou de elementos de ordem puramente semântica, nos quais o sentido proposicional se estabeleça), conjugada a uma sintaxe proposicional aristotélica. Se a proposição relaciona ou articula dois termos e se institui como um símbolo complexo, e se a verdade somente pode ser estabelecida no nível proposicional, então não deve ser permitido o acesso intuitivo e imediato a nenhum tipo de verdade, dada à relação intrínseca entre verdade e proposição. E, como vimos, Mill aceita essa possibilidade. Há, portanto, aqui, uma flagrante contradição sistemática: numa sintaxe proposicional aristotélica, a proposição é necessariamente algo complexo e mediato; é o resultado da articulação de duas ‘entidades’ que se incluem ou excluem uma à outra a partir da ‘função sintetizante’ da cópula. Essa complexidade elementar do sentido proposicional, conjugado ao fato de ser a verdade atribuída exclusivamente a conteúdos proposicionais, é incompatível com a tese de que o temos acesso intuitivo a verdades empíricas.

12 “Whatever is know to us by consciousness, is known beyond possibility of question. What one sees or feels, whether bodily or mentally, one cannot but be sure that one sees or feels. No science is required for the porpose of establishing such truths; no rules of art can render our knowledge of them more certain than is is in itself. There is no logic for this portion of our knowledge” (idem; 4)

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Essa situação é, porém, compreensível e se rrelaciona com aquilo que falamos nas Preliminares do presente capítulo: Mill está trabalhando num momento de transição nos rumos da filosofia e tem, por isso, cada pé numa tradição diferente. É, pois, natural que algumas de suas boas idéias não encontrassem respaldo no universo teórico no qual transitava. Existem exemplos variados na história do pensamento em que ocorreram situações semelhantes. Para lembrarmos um: tal como faltou a Galileu uma mecânica mais elaborada, capaz de dar conta de seus insights físicos e astronômicos - o que só foi realizado com Newton14 - também Mill, não teve à sua

disposição uma lógica e uma sintaxe proposicional mais elaboradas, capazes de acomodar algumas de suas melhores idéias. No entanto, como já foi mencionado, uma das principais hipóteses que norteia o presente trabalho repousa justamente na constatação de que a novidade representada por várias teses millianas é absolutamente incompatível com os ditames de sua tradição; entre eles, a estrutura

sujeito/predicado. Certamente, o mérito de ter superado a velha estrutura

proposicional é exclusivamente de Frege. Frege notou não só a insuficiência sintática daquele modelo mas, além disso - e principalmente - teve o mérito de priorizar a unidade do sentido proposicional com relação a suas partes. Mill não chegou tão longe, mas enxergou, certamente, uma coisa muito nova, que, utilizada e referida num contexto conceitual menos anacrônico, pôde render alguns bons frutos.

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I.2.1. Arte e ciência do raciocínio

Há um ponto de vista extremamente importante no que se refere à concepção milliana de lógica, e que possui grande relevância para os nossos propósitos. Mill aponta para uma dupla característica da Lógica: ela é, ao mesmo tempo, ciência e arte do raciocínio:

ele (o Arcebispo de Whately) definiu a Lógica como ciência, mas também arte do raciocínio, entendendo pelo primeiro desses termos a análise da operação mental realizada quando raciocinamos, e pelo segundo as regras fundadas sobre essa análise para executar corretamente a operação. Não há duvidas com relação à propriedade dessa retificação. (...) a lógica, portanto, é ao mesmo tempo a arte e a ciência do raciocínio15

Esta passagem é fundamental para os problemas que permeiam os interesses do presente trabalho. Mill apresenta aqui uma distinção fina que deve ser obedecida quando se investiga o raciocínio lógico: explicações causais acerca do ato do raciocínio em oposição àquilo que justifica a correção do raciocínio. E isso se manifesta nas duas características da lógica apontadas acima. Enquanto ciência, a lógica deve descrever os processos psíquicos e ocorrências mentais que têm lugar quando raciocinamos efetivamente. Enquanto arte, ela deve servir como instrumento balizador e normativo para a realização de inferências válidas. No primeiro caso, a lógica deve descrever processos psicológicos (e nesse sentido, Mill pode - ao menos em princípio, pois veremos que a coisa não é bem assim - ser chamado de psicologista), no segundo, deve constituir-se num conjunto de esquemas e abreviações destinado a possibilitar o raciocínio correto; e, portanto, já que a lógica

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cuida daquela espécie de conhecimento dita derivada, deve estar suposta na aquisição da maior parte dos conhecimentos que estamos aptos a possuir. A lógica, pois, deve possuir uma parte descritiva e outra normativa. Uma lógica que se pretende descritiva é, certamente, uma lógica psicologista, já uma lógica que se reivindica normativa, pode certamente possuir um outro estatuto.

Mais adiante, no capítulo III, retomaremos o problema da relação de Mill com o psicologismo. Por ora, cabe ressaltar que, embora Mill tenha afirmado o contrário, a Lógica milliana abarca, de fato, somente uma das perspectivas acima: a lógica como arte. Ele definiu a lógica como arte e ciência, mas, durante o desenvolvimento de seu conceito de lógica, de modo a expor mais detalhadamente sua função no conjunto das atividades humanas, a descrição dos processos psíquicos é esquecida. Se considerarmos a definição mais precisa oferecida acima, que caracteriza a lógica como ciência da prova, veremos claramente que os processos psíquicos que seriam analisados pela, digamos assim, ‘parte científica’ da lógica, não jogam nenhum papel relevante na derivação das verdades inferidas a partir das premissas. Eles pretendem explicar a gênese de tais princípios por meio de uma análise dos processos subjetivos. Mas uma explicação genética não pode substituir uma justificação lógica. Se as regras de inferência16 - que em última análise decidem sobre a correção do raciocínio e

sobre a validade da prova - são ou não obtidas a partir da consideração de processos psíquicos, esse é um problema de outra ordem, que diz respeito, na melhor das hipóteses, à epistemologia da lógica. Porém, uma vez estabelecidas essas regras, sejam elas consideradas como princípios universais da razão, sejam esquemas ou abreviações de processos psíquicos obtidos por observação e indução, o fato é que a Lógica não serve a uma causa psicológica e sim à justificação objetiva das verdades

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inferidas. O que deve ficar claro na presente seção é a incompatibilidade existente entre a lógica entendida enquanto análise de processos mentais e a lógica entendida enquanto relacionada à justificação dos raciocínios. Como Frege foi capaz de ver com toda clareza17, causas psíquicas estão envolvidas tanto na realização de raciocínios

corretos, quanto incorretos, tanto no estabelecimento de verdades, quanto de falsidades. Portanto, essas causas não devem guardar nenhuma relação com aquilo que pode justificar a validade ou correção18 de uma inferência. É interessante

notarmos que Mill enxergou isso, pois fez questão de salientar a distinção entre causas psíquicas e justificação de inferências. Pecou, entretanto, ao defender que a análise das causas psíquicas está também sob a égide da lógica. No entanto, apesar de ter afirmado isso explicitamente, Mill preocupou-se exclusivamente com a justificação dos raciocínios, pois não há outra maneira de compreendermos a tese de que a lógica é a ciência da prova.

I.2.2. Lógica e linguagem

Definida a lógica como ciência da prova, Mill estabelece a necessidade de voltar-se prioritariamente para a linguagem em sua edificação. Deve estar incluída na ciência da lógica também uma dimensão semântica, capaz de dar conta tanto da significatividade dos termos, quanto da contribuição que o significado dos termos fornecem ao estabelecimento do sentido proposicional19. Isso, no entanto, em nada

17 Ver: III.3.1

18 Falo em validade ou correção de um raciocínio, porque a expressão “validade” é associada comumente aos raciocínios dedutivos. E, como vimos, Mill está interessado também nas inferências indutivas.

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contraria a definição da lógica como ciência e arte do raciocínio: se a lógica busca conhecer os procedimentos mentais envolvidos nos raciocínios e, a partir dele, ser uma disciplina normativa capaz de balizar a conduta argumentativa dos sujeitos na busca da verdade (daquelas verdades derivadas), e se tudo aquilo que pode ser dito verdadeiro ou falso deve necessariamente assumir a forma de uma proposição, a análise semântica da linguagem e o estabelecimento da maneira como os termos se articulam na constituição do sentido proposicional não deve ser encarada senão como preliminares fundamentais da arte do raciocínio. Por esse motivo, o primeiro capítulo do Livro I do System of logic é dedicado aos nomes e às proposições.

A primeira seção do capítulo I é destinada a justificar o motivo pelo qual Mill inicia seu System of logic a partir de uma análise da linguagem:

A Lógica é uma parte da arte do pensar; a linguagem, de acordo com o testemunho de todos os filósofos, é, evidentemente, um dos principais instrumentos úteis ao pensamento (...) Um espírito que, sem estar previamente instruído sobre a justificação e o justo emprego das diversas classes de palavras, empreendesse o estudo dos métodos de filosofar, seria como aquele que quisesse chegar a ser observador em astronomia sem ter aprendido a acomodar a distância focal dos instrumentos de ótica para uma visão distinta.20

Está claro nesta passagem que Mill comunga da concepção, completamente oposta à de Locke21, de que o pensamento é uma atividade eminentemente simbólica, que

necessita da “mediação” da linguagem para se realizar. Veremos que, em Locke, o universo do pensamento se realiza num contexto fundamentalmente extra-lingüístco. A linguagem tem por função somente comunicar pensamentos e não

20 “Logic is a portion of de Art of Thinking: Language is evidently, and by the admission of all philosophers, one of the principal instruments or helps of thought (...) For a mind not previously versed in the meaning and right use of various kinds of words, to attemp the study of methods of philosophizing, would be as if some one should attemp to become na astronomical observer, having never learned to ajust the focal distance on his optical instruments as to see distinctly” (idem; I, i, 1)

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propriamente ser um “instrumento do pensamento”. Locke iniciou seu Essay falando as idéias – e portando, sobre o que está envolvido no ato de pensar; somente depois trata da linguagem, determinando seu caráter utilitário e sua necessidade social. Mill, por seu turno, inicia sua grande obra pela análise da linguagem, e só depois abordará o raciocínio. Porque, se a lógica se pretende ciência e arte do raciocínio - este entendido eminentemente como manifestação do pensamento – e se a linguagem é um instrumento útil ao pensamento, então um tratado de Lógica deve ser iniciado por uma análise da linguagem.

De acordo com o que podemos ler na passagem acima, uma coisa importante deve ser salientada: se Mill está reivindicando a necessidade instrumental da linguagem no ato do pensamento, certamente ele não pode estar entendendo por

pensamento, coisas como apreensão, relação ou associação de idéias, de imagens

(33)

linguagem para sabermos como os nomes significam e, a partir disso, verificarmos como se constitui a unidade do sentido proposicional. Uma vez, pois, que é o sentido proposicional o ‘objeto da crença’ - ou seja, o portador da verdade22 - a análise da

linguagem, no universo do sistema de lógica deve possuir essa característica: fundamentar aquilo que, em última análise, é o elemento lógico prioritário, o portador da verdade, a saber, o sentido proposicional.

Há um outro ponto importante a ser aqui salientado: ao voltar-se para a linguagem, Mill retorna a um estágio, digamos assim, pré-moderno. A preocupação milliana com a linguagem e, mais especificamente, com uma teoria do significado capaz de estabelecer a relação direta entre nomes e coisas sem referência às condições subjetivas envolvidas nos processos cognitivos23, demonstra que Mill

promove, num certo sentido, um retorno aos escolásticos24. Como veremos mais

22 ver: II.4.

23 ver: I.3.

(34)

adiante, quando tratarmos da teoria milliana da conotação25, aquele empirismo

psicologizante e idealista típico dos britânicos modernos assumirá em Mill o aspecto de um empirismo semântico e realista. Se concordarmos com Dummet26 que o marco

do advento da filosofia contemporânea foi uma espécie de retorno a Aristóteles e aos escolásticos, na medida em que se coloca a lógica como prioritária com relação à epistemologia, contradizendo, assim, todo o espírito idealista e subjetivista - comum, em suas diversas manifestações, à Descartes e Berkeley, a Locke e Kant – então, talvez seja Mill, e não propriamente Frege, como acredita Dummet, o iniciador desse processo. E isso por dois motivos: primeiramente, por ter escrito como sua obra fundamental e prioritária do ponto de vista sistemático, um tratado de lógica, e não de epistemologia; em segundo lugar, por ter iniciado e fundamentado seu tratado de lógica a partir da semântica, e não da psicologia. A lógica é prioritária com relação a todas as outras ciências27 e a semântica é prioritária com relação à própria lógica.

Mill assume, assim, um ponto de vista que coloca os problemas filosóficos prioritários a partir da pergunta elementar da relação entre os nomes e as coisas. Boa parte das discussões que empreenderá no Livro I de sua grande obra estará voltada à

25 I.3

26 “Desde el tiempo de Descartes hasta hace muy poco, la pregunta básica para la filosofia era qué podemos conocer y como podemos justificar nuetras pretensiones de conocimento; y el problema filosofico fundamental era hasta dónde puede refutarse el scepticismo u qué tando debe aceptarse. Frege fue el primer filósofo posterior a Descartes que rechazó totalmente esta perspectiva y en este respecto vio más allá de Descartes hacia Aristóteles y los escolásticos. Para Frege, como para ellos, la lógica era el principio de la filosofia; si no tenemos una lógica correta, no obtendremos nada más correto. La epistemologia, por otro lado, no es prioritária con respecto a ninguna rama de la filosofia; podemos desarrollar la filosofia de las matemáticas, la filosofia de la ciencia, la metafísica, o cualquier cosa que nos interese, sin tener que realizar primero una investigación epistemológica. Es este cambio de perspectiva, más que ninguna otra cosa, lo que constituye la diferencia principal entre la filosofia contemporânea e sus antecessoras y, desde este punto de vista, Frege fue el primer filósofo moderno” (Dummet, M. La verdad y otros enigmas; trad. Patiño, A. H. Pg. 159)

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querela entre realismo, nominalismo ou conceitualismo28, problemas esses que estão

relacionados de forma mais íntima com as discussões medievais do que com as modernas. Mais adiante retomaremos esse ponto com maior destaque, mas é importante ter clara a conexão existente entre o um suposto retorno aos medievais e às suas discussões que visavam a relação entre nomes e coisas, com a filosofia entendida como análise lógica da linguagem. E, se essa hipótese é verdadeira, então talvez deveríamos, ao menos o partir deste ponto de vista específico, entender a filosofia moderna e seu espírito epistemológico e subjetivista como uma espécie de hiato. Para ir adiante foi necessário dar um passo atrás; para avançar à contemporaneidade foi necessário retornar aos medievais. E sua preocupação prioritária com a linguagem fez com que Mill desse tal passo.

I.2.3. Nomes e proposições

Mill aponta uma razão importante para ter iniciado seu System of logic pela análise da linguagem e, mais especificamente, dos nomes: o significado das palavras (ou, no caso, dos nomes) que compõem uma proposição determina o significado das próprias proposiçãos29; e a proposição, esta sim, é o objeto primeiro da lógica, pois

tudo o que pode ser verdadeiro ou falso deve assumir a forma proposicional:

28 Conceitualismo, como veremos no capítulo II é, segundo Mill, uma espécie de nominalismo no qual, entretanto, os nomes são nomes de idéias e não das coisas mesmas: “A third doctrine arose, wich endeavoured to steer between the two (nominalism and realism). According to this, which is know by the name of conceptualism, generality is not an atribute solely of names, but also of thoughts” (An examination... XXVII)

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Tudo o que pode ser objeto de crença ou não crença deve expressar-se por palavras, e tomar a forma de uma proposição. Toda verdade e toda falsidade jazem numa proposição. O que nós chamamos, por um cômodo abuso de um termo abstrato, de uma verdade, significa simplesmente uma proposição verdadeira, e as falsidades são proposições falsas30.

Como podemos notar, Mill, claramente, está atrelando três conceitos que são absolutamente caros à sua lógica: crença, verdade e proposição. A crença deve supor necessariamente algo que é crido, um objeto intencional ao qual se refira. Quem crê, crê em algo, e esse objeto é o conteúdo objetivo expresso pela proposição. E no que consiste essa referência intencional do ato da crença? Consiste no reconhecimento de um conteúdo objetivo como sendo verdadeiro, consiste na atribuição do valor de

verdade verdadeiro a um conteúdo proposicional. Assim, a fundamentação da lógica

milliana deve possuir os seguintes estágios: a) uma análise dos nomes, ‘matérias primas’ das proposições; b) uma análise da proposição, portadora da verdade e c) uma análise do raciocínio, mecanismo pelo qual determinadas verdades são inferidas a partir de outras verdades dadas. É esse o caminho seguido por Mill no seu Systemof

logic e é com vistas a alcançar esses objetivos que devemos compreender a

preocupação prioritária de Stuart Mill para com a linguagem. Ao contrário do que ocorre no modelo lockeano, Mill procura analisar e fundamentar o papel da linguagem a partir de um ponto de vista eminentemente lógico-veritativo. Por isso, a análise da linguagem deve ter por objetivo prioritário a fundamentação sintática e, sobretudo, semântica daquilo que se estabelece como um sentido proposicional, uma vez que é esse sentido o portador da verdade - ou o objeto da crença, como Mill prefere dizer.

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Como já foi mencionado, Mill comunga ainda do instrumental lógico-sintático proveniente da silogística aristotélica. Para ele, portanto, numa proposição, um nome (predicado) é sempre afirmado ou negado de outro nome (sujeito); os termos sujeito e predicado são conectados pela cópula (‘é’, ‘não é’, ou qualquer outra inflexão do verbo ser), que tem também a função de determinar se o predicado é afirmado ou negado do sujeito31. Torna-se evidente, assim, que, para determinar os

tipos de proposições com os quais o pensamento trabalha, é necessário conhecer os tipos de nomes que se compõem em proposições, para, em seguida, poder ser realizado um inventário das próprias proposições. Como veremos, Mill romperá com a tese lockeana de que os nomes referem-se a idéias; portanto, a unidade do sentido proposicional não pode ser estabelecida em termos psicológicos, a partir de processos de associação de idéias. Por isso, o sentido proposicional deverá constituir-se exclusivamente por meio da carga significativa dos nomes que compõe a proposição. A Proposição (entendida enquanto o significado das sentenças) deixará de ser uma ‘entidade psíquica’ como as proposições mentais lockeanas32 para se tornar uma

‘entidade lógica’ cuja fundamentação deve ser exclusivamente semântica. Por isso, para compreendermos como se estabelece o sentido proposicional, uma vez que esse sentido é um complexo obtido a partir da síntese de duas ‘entidades’ que não são mais idéias, é necessário investigar no que consiste a ‘carga significativa’ dos nomes, pois é a partir dela que a proposição irá se estabelecer enquanto unidade de sentido. Certamente, estamos diante de um ponto de vista, em princípio, diametralmente oposto ao de Frege com respeito à relação do sentido proposicional com suas partes. Em Frege, clara e explicitamente, o sentido proposicional é, digamos assim, ‘anterior’

31 “Every proposition consists of three parts: the Subject, the Predicate, and the Copula. The predicate is the name denoting the person or thing which something is affirmed ou denied of. The copula is the sign denoting that is an affirmation or denial; and thereby enabling the hearer or reader to distinguish a proposition from any others kind of discourse” (idem: I, i, 2)

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aos significados das palavras, que só devem ser estabelecidos no contexto da proposição, como a contribuição que realiza na constituição do sentido proposicional33. No entanto, assim acreditamos, tal oposição é, senão falsa, ao menos

apenas parcialmente verdadeira. Há elementos suficientes nos textos de Mill capazes de demonstrar que ele, embora certamente não tenha visto isso com toda a clareza que poderíamos esperar, já antevê a prioridade do sentido proposicional. Mas, seja como for, o que deve ser considerado é que Mill retira do universo psicológico o papel de ser o responsável pela constituição da unidade do sentido proposicional. A proposição se estabelece no âmbito da significatividade dos termos conotativos; é na maneira como os nomes apresentam seus referentes, naquilo que eles conotam, que se encontram os elementos constitutivos do sentido proposicional. No capítulo II, retomaremos este problema a partir da pergunta pelo status da unidade do sentido proposicional em Mill. Mas, por ora, essas considerações nos bastam e nos levam à teoria da conotação.

I.3. A teoria da conotação

Uma contribuição decisiva de Stuart Mill ao advento daquilo que se acostumou chamar de virada lingüística na filosofia do século XIX, e cujos desdobramentos vieram a determinar os ditames teóricos e metodológicos da filosofia contemporânea, foi a elaboração de uma teoria semântica na qual o processo de significação é explicado não a partir de causas psicológicas e com recurso a entidades subjetivas, mas a partir de categorias objetivas e inerentes aos próprios nomes em sua significatividade. Num modelo semântico-psicólogico como o de

(39)

Hobbes e Locke, como veremos no Capítulo II, a relação do símbolo com aquilo que é simbolizado somente pode ser dada por meio de uma mera convenção arbitrária. E para isso, não é necessária propriamente uma teoria semântica; basta que se explique a relação do nome com a idéia nomeada a partir de elementos psicológicos, com referências a processos mentais, como leis psicológicas de associação. Como o que é nomeado, segundo aquele modelo, são as idéias e não as coisas mesmas, a relação do nome com um suposto objeto real (segundo Locke, nós não conhecemos as coisas mesmas, mas somente supomos tacitamente sua existência real) explica-se por meio da psicologia e não da semântica propriamente dita. E já que os nomes não se relacionam com coisas, mas somente com idéias, a relação das idéias com as coisas mesmas se estabelece pela explicação de como as idéias são produzidas nos sujeitos a partir da percepção sensível do mundo exterior. Ou seja: a psicologia explica a produção de idéias a partir da observação e também a relação convencional existente entre os signos da linguagem e as idéias que são seus referentes. E, ainda de acordo com nossa hipótese, o que Mill ‘colocou no lugar’ da explicação psicológica acerca do processo de significação foi justamente sua teoria da conotação. As seguintes seções terão, pois, o objetivo de apresentar essa teoria dentro do seu contexto sistemático.

(40)

concepção de nome absolutamente abrangente. Um nome pode ser tanto um nome próprio como “João”, “Brasil”, “Lulu”, quanto nomes complexos como “o maior pico localizado na região sudeste do Brasil”; além disso, adjetivos como “branco”, “velho”, “sábio”, são também considerados nomes; são nomes que denotam todas as coisas que podem ser ditas brancas, velhas ou sábias. E, como um bom nominalista, Mill entende que uma proposição tem por objetivo imediato atribuir nomes, e não propriamente propriedades. Porém, a novidade que apresentou com relação a esse mesmo nominalismo é a tese de que as propriedades são, de fato, atribuídas na proposição, mas não em virtude daquilo que a proposição diretamente afirma, mas em virtude da maneira como os nomes que a compõem significam34.

No decorrer deste capítulo, essas afirmações se tornarão mais claras. Passemos, agora, à classificação dos nomes propriamente dita.

I.3.1. Nomes gerais e singulares

A primeira distinção que nos interessa divide os nomes em singulares e gerais.

Um nome singular é aquele que somente pode ser predicado verdadeiramente e com

o mesmo sentido de um único objeto. Por oposição, um nome geral pode ser predicado verdadeiramente e com o mesmo sentido de um número indeterminado de objetos35. Nomes próprios, tais como “João”, “Maria”, “São Paulo”, “Pelé” são

claramente nomes singulares. Já os nomes que tomam a forma de adjetivos, que aparecem na maioria das vezes como predicados de proposições, tais como “branco”,

34 ver: I.4.3.

(41)

“velho”, “sábio”, são exemplos de nomes gerais. Há, certamente, uma infinidade de objetos dos quais se pode predicar verdadeiramente e no mesmo sentido cada um desses três nomes, e isso porque cada um deles determina um critério que os objetos em geral devem obedecer para poderem ser deles predicados; tal critério consiste em que os objetos possuam um determinado atributo (exatamente o mesmo atributo), no caso, a brancura, a velhice e a sabedoria.

Os nomes singulares, por sua vez, não se resumem aos nomes próprios, aos

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convencional que não guardam nenhuma referência aos fatos do mundo, somente possa ser predicado de um único objeto.

Não se pode também tomar por nome geral um nome coletivo. O XV

regimento de infantaria do exército britânico é um nome singular embora o próprio

regimento seja composto por um grande número de indivíduos; trata-se, no entanto, de um único regimento e é ao regimento que o nome se refere. Nomes gerais referem-se a uma pluralidade de objetos e nunca a um objeto determinado , mesmo que este seja, em sua natureza, coletivo e, assim, composto por uma série de indivíduos. O soldado João não é o XV Regimento, mas um membro desse regimento.

A distinção entre nomes singulares e nomes gerais, nos remete a uma outra definição importante: entre nomes conotativos e nomes não-conotativos; isso porque

é a conotação quem garante, no universo conceitual milliano, a generalidade aos

nomes gerais.

I.3.2. Nomes conotativos e não conotativos

A segunda distinção entre os nomes que será mencionada é também a mais importante que Mill realiza, pois é nela que se encontra o coração de sua semântica. Trata-se da distinção entre nomes conotativos e não-conotativos. Um nome não-conotativo é aquele que se refere a um sujeito ou a um atributo somente; um termo conotativo designa um sujeito e implica um ou mais atributos36. Devemos,

aqui, entender por sujeito tudo aquilo que possua atributos. Exemplos de nomes

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conotativos são: João, São Paulo, Brasil; exemplos de nomes conotativos são: virtuoso, branco, grande. A diferença fundamental existente entre essas duas classes de nomes reside no fato de que uma delas, a primeira, compreende nomes que são atribuídos aos indivíduos arbitrariamente, com o único objetivo de distinguí-lo dos demais, sem, no entanto, apresentar nenhuma informação acerca de seus referentes; são os chamados nomes próprios. A outra classe compreende nomes que referem-se aos indivíduos dos quais podem ser verdadeiramente predicados não por mera associação arbitrária, mas porque determinam um ou mais atributos que os indivíduos em geral devem possuir para que possam ser por eles nomeados37. Um

indivíduo é chamado João por uma livre escolha de seus pais que assim resolveram chamá-lo para distingui-lo das demais pessoas. Em princípio, porém, poderia receber qualquer outro nome sem prejuízo de sua própria natureza, pois o nome “João” não nos informa nada acerca desta natureza. É bem verdade – e Mill deixa isso claro – que pode ter havido algum motivo positivo para que lhe pusessem esse nome, mas ainda assim não se pode dizer que um tal nome seja conotativo:

Um homem pode se chamar João porque esse era o nome de seu pai; uma vila pode se chamar Dartmouth porque está situada na embocadura do Rio Dart; Não há, porém, nada na significação da palavra João que implique que o pai do indivíduo assim chamado também possua esse nome; nem, tampouco, na palavra Dartmouth que esta vila esteja situada na desembocadura do rio Dart. Se a areia viesse a obstruir a desembocadura do rio (...) nem por isso o nome da vila mudaria necessariamente38.

37 Da relação entre a generalidade dos nomes conotativos e a singularidade dos nomes próprios, cuidei em outro lugar: Nomes próprios gerais no contexto da semântica de J. S. Mill; in: Revista Trans-Form-Ação; vol. 28(1), 2005, pp.67- 83.

(44)

Isso não acontece com os nomes conotativos. Um indivíduo é chamado virtuoso não porque este nome lhe tenha sido atribuído arbitrariamente, mas porque o nome

“virtuoso” implica, compreende, indica ou, como Mill prefere dizer, conota um

determinado atributo que todo indivíduo deve possuir para que o nome virtuoso possa dele ser predicado verdadeiramente, a saber, a virtude. Pode-se afirmar, em última instância, que os nomes conotativos são criteriais (segundo Skorupski:

criterial names39) na medida em que fornecem um critério bem determinado que

deve ser obedecido pelos indivíduos que por eles são nomeados. Possuem, pois, uma carga semântica que vai muito além da mera associação arbitrária de palavras aos seus referentes, defendida pelo nominalismo clássico. Nomes conotativos referem-se a indivíduos, mas o fazem através da afirmação de algo que positivamente esses indivíduos possuem. O que existe em comum entre todos os indivíduos denotados pelo nome “homem” não é somente o nome “homem”, mas a posse de uma série de atributos conotados por esse nome. Toda vez que se pronuncia a palavra “homem”, além de se referir diretamente aos indivíduos dos quais essa palavra é nome, refere-se também, indiretamente, a todos os atributos relacionados à humanidade: vida animal, racionalidade, mortalidade etc.. E sabemos que somente a posse de todos esses atributos em conjunto garante a predicação verdadeira desse nome a qualquer indivíduo.

A teoria da conotação traz consigo uma conseqüência bastante significativa no que diz respeito à semântica milliana: que somente os nomes

conotativos propriamente têm significação ou, o que vem a ser o mesmo, que a

significação dos nomes é determinada por aquilo que eles conotam e não pelo que

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eles denotam40. O significado da palavra “homem”, por exemplo, não depende e não

se relaciona aos indivíduos que são verdadeiramente chamados de homem, mas à carga semântica que o nome carrega consigo, determinada justamente pelos atributos que conota. O significado de um nome conotativo é a sua conotação. O argumento para a sustentação desta tese baseia-se no fato de que nomes de diferentes conotações podem ter a mesma denotação e, no entanto, não têm o mesmo significado41.

Portanto, o significado não pode ser relacionado, utilizando uma expressão fregeana, à referência do nome, àquilo que o nome propriamente denota. Ao contrário disso, significação é algo que se relaciona à maneira como o referente é denotado. Significar é um processo que depende, agora, de elementos objetivos e eminentemente semânticos, e não mais da mera associação arbitrária. É a carga semântica que o nome efetivamente trás consigo em sua conotação quem efetivamente possibilita e determina a relação dos nomes com as coisas nomeadas. Não se trata mais de postular uma instância psíquica mediado a relação do signo com o mundo real (ou um suposto mundo real, como quer Locke). Não se trata mais de submeter a semântica à psicologia, mas de dotar a semântica de uma autonomia até então incomum na história da filosofia.

Vale apontar também que o elemento de arbitrariedade existente e determinante na semântica lockeana42 perde toda sua força no contexto milliano. Os

nomes são, de fato, escolhidos ao acaso e a relação do nome com a coisa nomeada não é absolutamente natural e necessária, mas arbitrária e contingente.

40 “From the preceding observations it will easily be collected, that whenever the names given to objects convey any informations, that is, whenever they have propely any meaning, the meaning resides not in what they denote, but in what they connote. The only names of objects which connote nothing are proper names; and these have, strictly speaking, no signification” (idem; I, ii, 5)

41 Salta aos olhos, aqui, o parentesco entre a posição de Mill e a teoria fregeana do sentido e referência. Infelizmente, não foi possível incluir nesse volume um capítulo tratando desta relação. Espero, porém, no momento oportuno, poder publicar algum material sobre este tema.

(46)

Determinados objetos do mundo são referidos pelo termo geral “mesa” mas, em princípio, poderia ser qualquer outro termo – e, de fato, em outros idiomas isso ocorre. Mas isso - a escolha dos nomes - só é realmente muito relevante numa semântica da substituição, como a de Locke, na qual o nome é uma marca sensível que substitui uma idéia não sensível. Já no caso de uma teoria semântica como a de Mill, baseada no conceito de conotação, o que menos importa é qual o termo, o símbolo, utilizado como nome geral e as leis psicológicas da associação que explicam a relação entre um nome e seu referente, mas o que propriamente esse nome conota. Se o termo é “mesa”, “table”, “bicicleta” ou “tatatá”, isso é o menos importante para sua sigificatividade. O que realmente importará e determinará a significação do nome serão os atributos que ele conota. E uma vez identificados esses atributos conotados, podemos dizer, o nome significa ‘por si só’, pois exprime seus próprios critérios objetivos de nomeação, sem referência a processos psíquicos de associação.

Há uma característica da teoria milliana da conotação que será apenas mencionada aqui, mas que, infelizmente, não será explorada como deveria: teoria milliana da conotação promove uma espécie de ‘revolução copernicana’ na maneira como os nomes se relacionam com seus nomeados. Numa semântica da substituição, como parece natural, os nomes são, digamos assim, atribuídos aos seus referentes. Usando uma imagem, são os nomes que ‘vão’ até seus referentes, são atribuídos e adicionados a eles como um rótulo é adicionado a uma garrafa ou uma marca de giz é colocada na fachada da casa, tal como ocorre nas mil e uma noites43. Coisas (ou, no

caso de Hobbes e Locke, idéias) recebem nomes, e isso se deve exclusivamente àquele elemento de arbitrariedade mencionado a pouco. Ora, no caso dos nomes

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conotativos, não é isso o que acontece. Uma vez determinada a carga semântica pela conotação dos nomes, serão os objetos que, de acordo com sua própria determinação ontológica, de acordo com os atributos que positivamente possuem, quem se adequam ou não ao nome. São os objetos que ‘vão até o nome’ e não o contrário. Um nome conotativo determina por si só, ou seja, pela sua significação, que objetos podem ou não ser ‘atribuídos’ a ele. Isso que acabamos de apontar, talvez mereça ser analisado com mais cuidado (certamente em outro lugar) porque, ao que parece, ela possui uma característica, em certo sentido, similar à maneira como funciona, na lógica de predicados fregeana, a relação entre conceitos e objetos. Conceitos, em Frege, são entidades insaturadas que precisam ser preenchidas por algum objeto para que se estabeleça um sentido proposicional: conceitos são preenchidos por objetos. Aqui, os nomes conotativos impõem critérios objetivos capazes de permitir que as coisas do mundo sejam abarcadas pelo nome. O nome conotativo ‘contém’ na forma de possibilidades todos as coisas que são aptas a serem por ele nomeadas, tal como o

conceito fregeano ‘contém’, a partir da generalidade que expressa, os objetos que

caem sob ele. Tal problema, no entanto, não será desenvolvido aqui; foi apresentado somente enquanto uma hipótese a ser pesquisada futuramente.

A distinção entre nomes conotativos e não conotativos e, mais especificamente, o conceito de conotação como associado à posse, por parte dos objetos, de determinados atributos conotados, leva-nos a uma outra importante distinção milliana com respeito aos nomes: nomes concretos e abstratos.

I.3.3. Nomes concretos a abstratos

Mill apresenta, no System of logic, a distinção entre nomes concretos e

(48)

entendo que as razões que justificam a necessidade de se utilizar esta distinção estão diretamente relacionadas à teoria da conotação. Por isso, creio que ficará mais clara exposta neste momento.

Como apontamos, dentro do universo sistemático de Mill as categorias morfológicas adjetivo e substantivo, bem como as categorias sintáticas sujeito e

predicado não determinam diferenças lógica ou ontologicamente relevantes quanto

àquilo que denotam. Por exemplo, na proposição “Sócrates é filósofo” não é caso de que o nome “Sócrates” denote um determinado objeto e que o termo “filósofo” denote um atributo que é predicado desse objeto na proposição. Tanto “Sócrates” quanto “filósofo” denotam o mesmo objeto, são nomes de uma mesma coisa. Assim sendo, torna-se necessário que haja uma classe de nomes que tenha por objetivo denotar os atributos, aqueles que são conotados pelo nome conotativo. Nesse sentido, Mill utilizará o termo “nome concreto” para referir-se aos nomes que denotam objetos e “nome abstrato”, para referir-se aos atributos dos objetos44. Todos

os nomes conotativos, por conotarem atributos, devem possuir um ou mais nomes abstratos que lhe sejam correspondentes. Por exemplo: o nome geral “branco”, como vimos, denota todas as coisas que possuem um determinado atributo por ele conotado, a saber, a brancura. Assim, “brancura” é o nome abstrato correspondente ao nome geral conotativo “branco”; “brancura” é o nome do atributo conotado pelo nome “branco”, denota aquilo que o outro conota. Alguns nomes conotativos, no entanto, podem possuir vários nomes abstratos a eles relacionados. Isso, porque existem nomes conotativos que conotam mais de um atributo: “racionalidade”, “mortalidade”, “animalidade” são todos nomes abstratos relacionados aos nome geral conotativo “homem”.

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Mill afirma estar recuperando o sentido medieval primitivo da expressão “nome abstrato”45. Essa expressão teria perdido seu sentido original de referir-se a

nomes de atributos para ser utilizadas como sinônimo de “nome geral”. Tal fato se deveu ao comprometimento quase que inevitável que a expressão “abstrato”, tão metafisicamente ‘carregada’, manteve com a teoria da abstração. De acordo com isso, nomes abstratos seriam nomes atribuídos àquilo que é obtido por meio da abstração; por meio da desconsideração de todas as qualidades diferentes de determinados objetos tomados em conjunto e a consideração de somente de alguma(s) propriedade(s) que tenham em comum.

O que importa aqui, todavia, é salientar simplesmente que a teoria da conotação e, mais precisamente, o fato de que os nomes conotativos denotam objetos porque conotam propriedades desses objetos exige a estipulação de uma classe de nomes que tenha como referência não os objetos mesmos, mas as propriedades, aquilo que os nomes conotativos estabelecem como critérios objetivos para que os objetos em geral devem obedecer para serem nomeados. Nomes abstratos denotam a mesma classe de ‘entidades’ que os nomes conotativos conotam.

I.3.4. Nomes relativos e absolutos.

De acordo com Mill, nomes relativos são aqueles que não conotam uma propriedade somente, mas conotam uma relação. Em outras palavras, é um nome

Referências

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