Porque sou cessacionista
Rev. Misael Batista do Nascimento, DMin – 20/12/2011 http://www.misaelbn.com/2011/12/porque-‐sou-‐cessacionista/
O presente texto não resulta de cogitações teóricas de gabinete, mas de prática pastoral.
O contato cotidiano com os crentes exige, repetidas vezes, a resposta à pergunta:
“Pastor, qual é a posição de nossa igreja sobre os dons espirituais?”
Ao longo de minha caminhada cristã eu escrevi três textos sobre este assunto, o primeiro em 1997, enquanto pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana Central do Gama, no Distrito Federal. Um segundo texto, intitulado O Cristão Frutífero, surgiu em 2001
(editado em 2002 e 2004). O terceiro foi iniciado em 2008-‐2009 – um trabalho em quatro partes, (1) O Espírito Santo e o Discípulo no Pacto; (2) Os Ofícios Extraordinários e
Temporários; (3) O Pastor-‐Mestre e (4) A Prática dos Dons Espirituais (este último ainda não finalizado).
Quem me conhece ao longo destes anos verifica, por um lado, consistência na tese fundamental: Os dons espirituais são importantes; Deus capacita sobrenaturalmente os crentes para a realização de sua obra. Por outro lado, ocorreu uma mudança radical na direção do cessacionismo, decorrente de minha compreensão de que os dons devem ser entendidos dentro da moldura do pacto e à luz da doutrina dos ofícios (figura 01).
Figura 01. Mesma tese, mudança do continuacionismo ao cessacionismo.
Alguns conceitos resumidos
A fim de estabelecer um correto entendimento da matéria, informo os significados de alguns termos.
Restauracionismo: Neste artigo, o termo restauracionismo é usado significando a
crença em que Deus está restaurando, nos dias de hoje, uma igreja semelhante à do 1º
século, segundo o modelo do livro de Atos.
O termo continuacionismo significa a crença de que todos os dons espirituais do Novo Testamento (NT) continuam à disposição para uso da igreja atual.
O termo cessacionismo indica a crença de que os dons espirituais citados no NT estão ligados não apenas ao serviço dos crentes em geral, mas também ao exercício dos ofícios de apóstolo, profeta, evangelistas, pastores e mestres, citados em Efésios 4.11.
Os três primeiros ofícios são extraordinários e temporários, ao passo que o ofício de pastor e mestre é ordinário e permanente.
1O trabalho dos apóstolos e profetas é temporário porque eles lançaram um fundamento – o conjunto de escritos do Antigo Testamento (AT) e NT (Ef 2.20; cf. 1Co 3.10-‐11). Uma vez terminado o fundamento, cessou o trabalho dos apóstolos e profetas, bem como dos evangelistas (que eram assistentes dos apóstolos – cf. Tt 1.5 et seq.). Uma vez que não há mais o ofício do
profeta, cessou o dom de profecia e, por conseguinte, cessaram as revelações, bem como o dom de operação de milagres e curas, ligados ao serviço apostólico. Comentando a “tão grande salvação” citada em Hebreus 2.3-‐4, Lloyd-‐Jones argumenta:
Primeiramente, ela [esta salvação] começou pela proclamação do próprio Senhor, e a seguir foi confirmada por aqueles que a ouviram, isto é, pelos apóstolos. Deu testemunho a eles (os apóstolos), através de “sinais” e “prodígios” – a sugestão sendo, com toda certeza, que esses dons e manifestações particulares lhes foram dados a fim de atestar sua autoridade
apostólica, e, portanto, uma vez feito isso, e uma vez possuindo nós seu ensino como o temos aqui, não há mais necessidade de tais dons.
2Sendo assim, o cessacionismo, tal como colocado aqui, não nega que Deus cure ou faça milagres hoje, nem que ele responda às orações, ou mesmo que distribua dons espirituais à igreja. O que se afirma é que, uma vez finalizada a escrita dos 66 livros da Bíblia e consolidada a igreja, absoluta e definitivamente cessaram as revelações proféticas.
3Entenda-‐se ainda, como cessacionismo, neste trabalho, o entendimento de que o dom de línguas do NT é a capacidade de falar idiomas humanos não estudados. Dentre os
1
Além do ofício de pastor e mestre exercido no presbiterato, temos ainda, como ordinário e permanente, o ofício de diácono (1Tm 3.8-‐13). Cf. BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 538-‐540.
2
LLOYD-‐JONES. Grandes Doutrinas Bíblicas: Deus o Espírito Santo. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 347; grifo nosso.
3
Ainda que haja menção a “carismas proféticos” no 2º século (JUSTINO MÁRTIR. Diálogo Com Trifão, 82. In:
JUSTINO MÁRTIR, Santo Justino de Roma: I e II Apologias: Diálogo Com Trifão. São Paulo: Paulus. 1995, p.
238. [Série Patrística]), o argumento cessacionista é que, com a consolidação da igreja, no 3º século, o dom
profético cessou (WARFIELD, Benjamin B. Counterfeit Miracles. New York: Charles Scribner’s Sons, 1918,
passim).
estudiosos que concordam com este ponto de vista, podemos citar João Calvino,
4Simon Kistemaker,
5Abraham Kuyper
6e Sinclair Ferguson.
7O presbiterianismo da IPB é cessacionista
O entendimento da Igreja Presbiteriana do Brasil, quanto aos ofícios e dons espirituais, é cessacionista. Isso é confirmado pelas seguintes evidências:
Primeiro, a IPB adota a Confissão de Fé de Westminster (CFW) como “sistema
expositivo de doutrina e prática”.
8A CFW é cessacionista, como lemos logo em seu início:
“Isso torna indispensável a Escritura Sagrada, tendo cessado aqueles antigos modos de revelar Deus a sua vontade a seu povo”.
9Há quem tente complicar o que é simples, argumentando que esta afirmação trata da cessação da revelação sobre a soteriologia. “Acerca da salvação e santificação”– dizem –
“está tudo na Bíblia; não há mais revelação. No entanto, para a direção cristã diária, há novas revelações; eu creio no texto da CFW – afirmam com convicção – mas com esta observação: Nosso Senhor ainda concede à igreja o dom de profecia, além de todos os outros dons do NT”. Confesso que já pensei assim; cheguei mesmo a propor, em O Cristão Frutífero, uma posição que denominei erroneamente “contemporaneidade reformada”.
Ledo engano.
A segunda evidência de cessacionismo da IPB é o texto da Forma de Ordenação de Ministros do Evangelho:
Os apóstolos, os profetas e os que possuíam o dom de línguas, de curar e fazer milagres foram oficiais extraordinários empregados, a princípio, por nosso Senhor e Salvador para reunir seu povo de entre as nações, conduzindo-‐o à família da fé. Esses oficiais e dotes miraculosos cessaram há muito tempo.
10O texto do Manual do Culto da IPB não dá margem a dúvidas. Com a cessação dos ofícios extraordinários, cessaram também os dons de profecia, línguas, de curar e fazer milagres. Uma vez que o Manual de Culto é um documento oficial da IPB, quem disser que não há documento oficial da igreja assumindo o cessacionismo desconhece ou
desconsidera a verdade.
4
CALVINO, João. Comentário à Sagrada Escritura: 1Coríntios. São Paulo: Edições Paracletos, 1996, p. 409.
5
KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento: 1Coríntios. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 616.
6
KUYPER, Abraham. A Obra do Espírito Santo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 162-‐167. Observe-‐se que Kuyper situa o milagre das línguas na audição além da fala.
7
FERGUSON, Sinclair B. O Espírito Santo. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2000, p. 291-‐294.
8
CAMPOS, Silas (Org.). Manual Presbiteriano: Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil – CI/IPB. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Capítulo I. Art. 1º, p. 9.
9
CFW 1.1. Grifo nosso.
10
IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL. Manual do Culto. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 79; grifo nosso.
A terceira evidência da posição cessacionista da IPB é o seu conjunto de publicações.
Sabe-‐se que as denominações investem em casas publicadoras com o objetivo de edificar e doutrinar seus membros. Uma verificação nas obras traduzidas e publicadas pela igreja demonstrará o cuidado do Conselho Editorial da Cultura Cristã de publicar livros sobre o assunto sempre defendendo o cessacionismo.
Uma última evidência do cessacionismo da IPB é o seu digesto – o corpo de decisões de seu Supremo Concílio – que repudia, em termos conceituais, práticos e litúrgicos, tanto o pentecostalismo quanto o neopentecostalismo. Aqueles que argumentam que não há qualquer decisão do Supremo Concílio condenando o continuacionismo, normalmente deixam de observar as decisões concernentes ao pentecostalismo e neopentecostalismo.
Ademais, apesar das constantes críticas e condenações do pentecostalismo e
neopentecostalismo, não existe unicamente uma linha, nos textos das decisões conciliares da IPB, defendendo a posição continuacionista ou restauracionista.
Alguns perigos do continuacionismo e restauracionismo
Por qual razão devemos ser contrários ao continuacionismo e restauracionismo dentro da IPB?
A Bíblia deixa de ser suficiente para dirigir a igreja e o indivíduo
Em primeiro lugar, o restauracionismo e continuacionismo coloca em risco a suficiência da Escritura em dirigir a igreja e o indivíduo. Como afirmou um estudioso reformado:
A implicação lógica da suficiência da Escritura consiste em que não há mais necessidade de qualquer revelação adicional para a igreja ou para o indivíduo. O de que se necessita é de iluminação. Daí a doutrina da reforma, sola Scriptura.
11O mesmo autor afirma:
O perigo carismático é confundir iluminação com revelação de tal sorte que a diferença entre revelação apostólica e nossa compreensão e resposta a ela corre o risco de, de facto,
desmoronar. Se a revelação especial de Deus continua de uma maneira extrabíblica, há uma probabilidade psicológica de que a mesma venha a exercer uma função canônica.
12Apesar de apregoar a autoridade da Bíblia, a Igreja Católica Apostólica Romana aceita novas revelações (publicadas pelo magistério da igreja).
13O que ocorre na prática? A autoridade da tradição suplanta a autoridade da Bíblia (naquilo que a tradição contradiz a Bíblia, por exemplo, o dogma da assunção de Maria, a maioria dos fiéis acata a tradição).
11
FERGUSON, op. cit., p. 318.
12
Ibid., p. 322; grifo nosso.
13