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Infância e deficiência: um estudo antropológico sobre os desdobramentos da epidemia do Vírus da Zika na vida de crianças potiguares

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

THAIS MARIA MOREIRA VALIM

Infância e deficiência: um estudo antropológico sobre os

desdobramentos da epidemia do Vírus da Zika na vida de

crianças potiguares.

Natal - RN 2020

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Infância e deficiência: um estudo antropológico sobre os

desdobramentos da epidemia do Vírus da Zika na vida de

crianças potiguares.

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestra em Antropologia Social.

Orientadora: Profa. Dra. Rozeli Maria Porto

Natal-RN 2020

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Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Valim, Thais Maria Moreira.

Infância e deficiência: um estudo antropológico sobre os desdobramentos da epidemia do Vírus da Zika na vida de crianças potiguares / Thais Maria Moreira Valim. - Natal, 2020.

108f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Pograma de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientadora: Profa. Dra. Rozeli Maria Porto.

1. Deficiência - Dissertação. 2. Desenvolvimento infantil -

Dissertação. 3. Crianças - Dissertação. 4. Zika Vírus - Dissertação. I. Porto, Rozeli Maria. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 39-053.2

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

Natal-RN 2020

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Infância e deficiência: um estudo antropológico sobre os

desdobramentos da epidemia do Vírus da Zika na vida de

crianças potiguares.

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestra em Antropologia Social.

Aprovado em: 11/03/2020

BANCA EXAMINADORA

__________________________

Profa. Dra. Rozeli Maria Porto (Presidente) PPGAS/DAN/UFRN

__________________________

Prof.a. Dra. Ângela Mercedes Facundo Navia (Avaliadora) PPGAS/DAN/UFRN

______________________________ Prof.a. Dra. Soraya Fleischer (Avaliadora)

PPGAS/DAN/UnB

______________________________ Prof.a. Dra. Elisete Schwade (Suplente)

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Como todo e qualquer esforço humano, essa dissertação foi construída a muitas mãos, ouvidos, bocas e cabeças. Agradeço, em primeiro lugar, a minha mãe, Dona Neusa e a meu pai, seu Zé. Obrigada pelo apoio, pelo incentivo e por toda a paciência que um processo acadêmico como esse exige daqueles que estão ao nosso redor.

Agradeço à minha querida orientadora Rozeli Porto, que me acompanhou ao longo desses dois anos de mestrado, me ensinando muito sobre como conduzir responsabilidades com leveza, seriedade e pulso firme. Essa jornada foi, sem dúvidas, bem mais fácil com seu apoio e dedicação;

Não poderia deixar de citar o nome de Fernanda Moura, também orientanda de Rozeli e minha parceira de pesquisa de campo. Essa foi a segunda vez que participei de uma pesquisa coletiva e digo com segurança que a coletividade fortalece – e muito – a potencialidade de nossos esforços acadêmicos;

Ao meu irmão de orientação, Ricardo Ximenes, pelo companheirismo e eternas “pancas” e por sempre me ajudar a manter a alegria diante das tarefas e exigências da vida.

À Raquel Lustosa, amiga querida de quem o mestrado me aproximou. Que nossos laços permaneçam se estreitando, e a gente se visite na casa uma da outra em vários cantos desse país.

Aos meus irmãos e irmãs do quadradinho: André Justino, Mateus Andre, Mateus Siqueira, Pedro Barreto, Samyra Schernikau, Camila Medeiros, Luiza Chaves e Carol Bertanha. Brasília está sempre comigo, de uma forma ou de outra, assim como vocês. Agradeço pelo apoio, por se animarem com minhas novidades, pelas leituras, escutas e sugestões.

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Correa e Jessika Rufino.

Às professoras e pesquisadoras Soraya Fleischer e Ângela Facundo Navia, pelas contribuições a este trabalho e por aceitarem participar da banca.

Às professoras e professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em especial ao professor Paulo Vitor Leite Lopes e a professora Elisete Schwade.

À Geíza Macedo, secretária do nosso departamento, pelos informes, comunicados e mensagens com valiosas informações burocráticas – sem as quais ninguém se forma. Obrigada!

À CAPES, pelo apoio financeiro ao longo desses dois anos, absolutamente essencial para o desenvolvimento de nossas pesquisas – que são, afinal, nosso trabalho.

Ao Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi, pela acolhida dessa pesquisa dentro do instituto.

E, finalmente, agradeço à todas as mulheres e crianças que conheci ao longo dessa pesquisa. Este trabalho é para vocês. Obrigada pela gentil acolhida de uma estranha em suas vidas.

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Um cenário epidêmico envolve a participação e articulação de diversos atores e atoras sociais: pesquisadores, profissionais de saúde, cuidadoras e cuidadores, gestores de políticas públicas, autoridades, setores da mídia. Uma epidemia atravessa a vida de todos que nela estão diretamente implicados. Nesta dissertação etnográfica procuro colaborar com a seara de materiais e estudos produzidos em torno dos desdobramentos da epidemia do Vírus da Zika ao longo destes quatro anos. O trabalho pretende refletir sobre infância, deficiência e a vida das crianças a partir das experiências de meninas e meninos implicados na epidemia no Rio Grande do Norte, sendo dividido em duas partes. Na parte I, me dedico a refletir sobre a noção de desenvolvimento infantil, pensando nos efeitos dessa categoria sobre o imaginário social da infância, bem como sobre a vida e experiência das crianças e cuidadoras conhecidas ao longo da pesquisa. A pesquisa mostra como narrativas desenvolvimentistas podem impactar negativamente a experiência e vivência das famílias que participaram do estudo. A parte II, por sua vez, procura acompanhar as transformações, vivências e experiências de crianças que tiveram irmãos nascidos com o que convencionou-se chamar de Síndrome Congênita do Vírus da Zika. Procurando entender suas demandas e percepções, a pesquisa mostra como o convívio com um irmão com deficiência transforma a vida das crianças. A partir de um debate interseccional sobre infância e deficiência, a dissertação mostra como classe, gênero e raça se conjugam na experiência das irmãs e dos irmãos.

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During an epidemic, many social actors get involved: researchers, health professionals, carers, public policies makers, authority figures, media sectors. In this dissertation, I try to contribute with the on-going research and studies dealing with the unfolding of events related to the Zika Virus epidemics in Brazil over the last 4 years. This ethnographic work aims to think about childhood, disability and the lives of children affected and implicated in the epidemics in Rio Grande do Norte. This work is divided in two parts. In part I, I pursue the notion of “child development”, trying to evaluate the effects of this category in the conception of childhood, as well as in the lives and experiences of the children met during research and their carers. In this sense, the research shows how a developmental perspective has negative effects on the experience of the families. Part II is dedicated to the experiences, transformations and impressions of children who have become siblings to a child born with the Congenital Zika Syndrome. By trying to keep up with their understandings, feelings and needs, the research shows how having a sibling with a disability influences their daily lives. The research also shows how gender, class and race are transversal to the experience of the children. This work, as a whole, discusses the different articulations between disability, childhood and the lives of children in times of Zika.

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BPC - Benefício de Prestação Continuada CHIK - Chikungunya Vírus

DENV - Dengue Vírus

ESPIN - Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional OMS - Organização Mundial da Saúde

PNEM - Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia SCVZ - Síndrome Congênita do Vírus da Zika

SES/PE - Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco UPA - Unidade de Pronto Atendimento

ZIKV - Zika Vírus

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Introdução geral ao tema: de onde parte essa dissertação? ... 1

Caminhos de pesquisa: conexão Brasília-Recife-Natal ... 4

Apresentação dos capítulos e suas principais temáticas ... 13

PARTE I CAPÍTULO 1. Desenvolvimento infantil: localizações históricas ... 21

1. Estudos sobre deficiência: uma introdução direcionada ... 21

2. “Essa criança aqui… ela nem mexe” ...26

3. Modelos maturacionistas e desenvolvimentistas: uma apresentação...30

4. Desenvolvimento: o projeto político do progresso ocidental ... 33

5. Desenvolvimento infantil em contexto ... 35

6. Crianças com deficiência e desenvolvimento infantil hegemônico: cenas de hierarquia e classificação ... 37

CENA 1: Desenvolvimento universal e hierarquização de corpos ... 38

CENA 2: Desenvolvimento infantil e universalização da infância ...39

CENA 3: Desenvolvimento infantil e (des)humanidade ... 41

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AO BEM ESTAR-PARTICULAR ... 44

1. Perspectivas alternativas: afinal, de que maneiras podemos entender o desenvolvimento infantil? ... 45

2. Desenvolvimento infantil e aprendizagem nas terapias de estimulação precoce ... 46

3. Produzindo o desenvolvimento ... 54

4. Desenvolvimento, afinal, é a vida querendo perseverar ... 60

PARTE II CAPÍTULO 3. MARIA E LUCAS - A EXPERIÊNCIA DOS IRMÃOS ... 63

1. Maria Paula ... 64

1.1 Saber cuidar: conhecimento e responsabilidade ... 65

1.2 Saber aceitar: “eu boto a muléstia neles” ... 71

2. Lucas Antônio ... 74

2.1 Ciúme, timidez e insegurança: questões interseccionais ... 76

PROPOSIÇÕES FINAIS ... 82

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Introdução geral ao tema: de onde parte essa dissertação?

Era dia 10 de dezembro de 2015, uma quinta-feira de sol no município de São Gonçalo do Amarante/RN, quando Ana Júlia veio ao mundo. Filha da paulista Leilane e do potiguar Carlos, a pequena Júlia nasceu em meio a um surto que ficou conhecido no Brasil inteiro como a epidemia do Vírus da Zika, um arbovírus de linhagem africana que chegou aos trópicos brasileiros no final do ano de 2014, sendo majoritariamente transmitido para humanos por meio de um vetor já popular entre brasileiras e brasileiros: o mosquito Aedes Aegypt.

O arbovírus, no entanto, não fora fácil ou rapidamente identificado: as pessoas infectadas chegavam aos postos de saúde queixando-se de sintomas semelhantes aos da dengue - como manchas na pele, dores nas articulações e cansaço. Sem um diagnóstico preciso, passaram a chamar arbovirose de “alergia medonha” ou ainda de “dengue branda” (Diniz, 2016). Os casos foram se avolumando e as investigações etiológicas não apontavam para a presença do vírus da dengue (DENV), tampouco de outros arbovírus reconhecidos na época, como o Chikungunya (CHIKV).

Depois de alguns meses de investigações, contradições e conflitos - história que Débora Diniz recupera e conta magistralmente -, o Ministério da Saúde (MS) divulga, em abril de 2015, uma nota oficial revelando que o agente etiológico da “alergia medonha” era o Zika Vírus (ZIKV).

O alvorada científica, no entanto, não durou muito tempo. Poucos meses depois da nota oficial do MS sobre o novo agente infeccioso que sobrevoava os trópicos, pronunciada em abril de 2015, um novo mistério despertaria a atenção dos profissionais de saúde e preocuparia toda a população: em setembro daquele mesmo ano, a Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco (SES/PE) passou a receber uma quantidade atípica de notificações de recém-nascidos diagnosticados com microcefalia: 27 novos diagnósticos de microcefalia foram registrados na capital Pernambucana, número que impressiona diante da média anual de 9 ocorrências que vinham sendo identificados até então (Vargas et al, 2016).

Além do volume de registros ser maior, os exames realizados para as causas geralmente atribuídas à microcefalia congênita - como sífilis, toxoplasmose,

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citomegalovírus e rubéola - voltaram, em sua maioria, com resultado negativo. Assim, tínhamos, no Brasil, um enorme contingente populacional de bebês diagnosticados com microcefalia sem conseguir apontar a causa.

Outras investigações, exames e tensões aconteceram enquanto os índices de recém-nascidos com microcefalia só aumentavam. No final de novembro de 2015, o Ministério da Saúde aponta então que os novos casos de microcefalia advinham da infecção pelo Vírus da Zika durante a gestação de mulheres contaminadas com a arbovirose, configurando uma situação de transmissão vertical (Brasil, 2015; Diniz, 2016; Valim, 2017; Lira, 2017).

A pequena Ana Júlia - que introduzi brevemente acima -, nascida em dezembro de 2015, foi uma das crianças diagnosticadas com microcefalia na época do surto. Atualmente, especialistas - tanto entre médicos quanto entre as mães e cuidadoras - entendem a microcefalia como um dos sintomas possíveis da infecção pelo vírus da Zika na formação fetal, identificada atualmente como a Síndrome Congênita do Vírus da Zika (SCVZ). Além da “micro”, como é corriqueiramente chamada por muitas famílias, as crianças podem apresentar espasticidade muscular, distúrbios cardíacos, quadros convulsionais, entre um amplo espectro de manifestações (Campos Neta et al, 2016).

Inicialmente, a questão do surto de microcefalia no país estampou jornais, foi tema de pauta nas agendas de grandes emissoras de TV e ponto de atenção nos pronunciamentos oficiais do Estado (Porto e Costa, 2017), um cenário potencializado pela definição da epidemia enquanto uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) pelo MS. Inúmeros políticos sinalizaram apoio a epidemia, visitando hospitais e organizações não-governamentais voltadas para as crianças com SCVZ, e até mesmo pessoas da sociedade civil se engajaram, a partir das avolumadas reportagens que cobriam o surto - realizadas a nível nacional e internacional- o que resultou em um período de muitas doações e apadrinhamentos.

O quadro de efervescência e a comoção inicial, no entanto, não teriam uma longa sobrevida: pouco tempo depois, as grandes mídias passaram a se afastar do assunto, priorizando em seus canais a cobertura do processo do golpe em cima de então presidenta Dilma Rousseff, movimento que enfraqueceu o apelo da epidemia

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no imaginário de comoção nacional. Em seguida, potencializando uma já crescente invisibilidade do surto e das famílias afetadas, o MS revogou a ESPIN, justificando que a epidemia não preenchia mais os critérios de enquadramento em emergência pública elencados pela OMS1.

Embora a questão tenha deixado de ser compreendida como uma crise epidêmica aos olhos da vigilância sanitária, as demandas em torno dos desdobramentos da epidemia seguiram avançando: muitas crianças precisavam de leites especiais, de complexos arranjos medicamentosos para gerenciar as crises convulsivas, de órteses, bottons, equipos de sonda, fraldas, óculos, cadeiras de rodas, além de permanecerem em intensivas rotinas terapêuticas, muitas vezes rodando entre instituições em busca dos serviços de estimulação precoce (Carneiro e Fleischer, 2018) de segunda a sexta.

Toda essa movimentação em torno do cuidado das crianças nascidas com a Síndrome Congênita do Vírus da Zika engendra discussões dos mais variados âmbitos: desde a relação das famílias com o Estado e com a biomedicina até os marcadores de gênero, classe e raça que atravessam toda a trama epidêmica, passando por explicações e processos terapêuticos vinculados à religião, pelo uso de medicamentos e fármacos, pelo impacto na vida de outras crianças da família, pelo direcionamento e reflexão sobre a deficiência e a infância: enfim, uma complexa rede de atores e práticas compondo os desdobramentos da epidemia.

Com parte dessa trama, estamos também nós mesmas, antropólogas e antropólogos que passaram a conviver com essas famílias; é nesse contexto que me insiro e foi dele que essa dissertação surgiu. A seguir, apresentarei melhor as trajetórias de pesquisa que me trouxeram até aqui, mostrando também os caminhos metodológicos que se delinearam para a escrita da dissertação, expondo uma breve introdução ao trabalho, seus capítulos e partes.

1 Dentre os critérios elencados como importantes para a decisão de revogação da ESPIN, encontram-se: respostas científicas sobre a emergência (informação), progressão dos casos (incidência) e controle a nível local. Esses elementos são analisados por meio de um algoritmo que pode ser encontrado no Plano de Resposta às Emergências em Saúde Pública, liberado pelo Ministério da Saúde no ano de 2014. Acesso em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/plano_resposta_emergencias_saude_publica.pdf

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Caminhos de pesquisa: conexão Brasília-Recife-Natal

Em muitos sentidos, a epidemia do vírus da Zika descortinou a realidade da deficiência dentro das ciências sociais: desde o advento do surto, dezenas de projetos de pesquisa foram desenhados e elaborados e em muitos deles há eixos direcionados especificamente aos estudos sobre deficiência, num movimento que Anahi Guedes Mello identifica como uma “virada defiça”. A primeira vez que eu entrei em contato com a deficiência desde uma perspectiva acadêmica foi, inclusive, em decorrência de um desses projetos.

Era o segundo semestre de 2016, e eu estava matriculada na disciplina de Antropologia da Saúde, oferecida pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e ministrada pela profa. Soraya Fleischer. Logo no início das atividades letivas, Soraya deu uma aula voltada para a epidemia, perguntando às estudantes se tinham recordações do surto e colocando algumas questões que ela e seu grupo de pesquisa vinham pensando, já que haviam conseguido aprovar um projeto desenhado para acompanhar o cotidiano de famílias diretamente implicadas na epidemia ao longo de quatro anos (2016-2019). Concluí a disciplina e, no ano seguinte, em 2017, me juntei a equipe, então formada pelas estudantes Mariah Albuquerque, Lays Lira, Thais Souza, Yazmin Safatle, Beatriz Milhomem, e pelas professoras Rosamaria Carneiro e Soraya Fleischer.

No grupo, haviam pesquisadoras interessadas na interface entre a epidemia e a biomedicina (Fleischer, 2017), entre a epidemia e religião, entre a epidemia e as redes de mulheres que regulavam a manutenção do cuidado e da vida (Lira,2017), entre a epidemia e os reflexos sobre a saúde mental das mulheres (Alves e Fleischer, 2018; Alves e Safatle, 2019). Eu já havia sinalizado interesse em trabalhar diretamente com os bebês, procurando tecer reflexões sobre a epidemia desde uma antropologia da infância, mas não havia, inicialmente, um recorte estipulado.

Combinamos, então, que eu leria os diários de campo produzidos na primeira temporada de campo do grupo na cidade pernambucana do Recife, escritos por Fernanda Vieira, Lays Lira e Soraya Fleischer no ano de 2016. No total, o arquivo era um compilado dos diários das três pesquisadoras durante 10 dias, contendo 267

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páginas. Esse material, é importante frisar, havia sido previamente editado pelas autoras. Assim, antes de circular pelo grupo, certos trechos e diálogos mais íntimos entre pesquisadoras e interlocutoras foram retirados como forma de proteger a intimidade de ambas as partes. Em minha monografia de graduação (Valim, 2017), apresento como foi o manejo e a metodologia para trabalhar em cima desse material de dados secundários.

Conforme ia lendo os diários, embora muitas das cenas transcorressem em meio a terapias e hospitais, reforçando imagens medicalizadas e patologizantes da síndrome - muito evidente, por exemplo, nas narrativas da mídia, em reportagens e também em pronunciamentos oficiais -, outras facetas da epidemia foram aparecendo.

Fui notando a refinada comunicação que mães e bebês constroem entre si; ou como a deficiência vai sendo negociada e reinterpretada nas conversas do dia a dia; ou ainda sobre o lugar particular da infância nas práticas terapêuticas, com botas ortopédicas de personagens infantis e cadeiras de rodas cor de rosa pink que se somavam aos painéis coloridos, com desenhos de animais, plantas e outros elementos da natureza que frequentemente estampavam as salas reservadas para as terapias com crianças e que contavam também com caixas que guardavam chocalhos, brinquedos de encaixe, tambores, bolas de gude.

Uma narrativa sobre o lugar da infância enquanto uma posição específica ia aparecendo em meio àqueles materiais, em meio às entonações das profissionais de saúde diante dos bebês, também narradas por minhas colegas em seus detalhados diários de campo. As bolsas, que guardavam órteses, panos, fraldas, mamadeiras, remédios, seringas, mangueira extra de sonda, todos esses materiais iam contando histórias também, iam apresentando elementos da vida cotidiana; e muitas vezes carregando essas bolsas, fui notando a presença de outras crianças, irmãs e irmãos que acompanhavam a família e faziam as vezes de ajudantes.

Foi a infância, portanto, e suas várias interseccionalidades com a tessitura dessa epidemia, que me chamaram atenção nos diários. Era um aspecto presente nos mais diversos âmbitos: desde a interface com a biomedicina, até os encontros e desencontros com o Estado, as crianças e seu bem-estar eram, no limite, o que mobilizava a ação das famílias, dos fisioterapeutas.

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Partindo disso, escrevi a monografia de graduação pensando em dois pontos principais: primeiro, investigando a comunicação e linguagem desenvolvidas entre mães e bebês - tentando trazer uma discussão sobre agência infantil - e, em segundo, pensando no próprio status ontológico da criança com deficiência, refletindo sobre inclusão e exclusão, preconceito, fronteiras entre normal e patológico e como são

negociadas no dia a dia.

Continuei no grupo de pesquisa após a defesa, dessa vez como bolsista CAPES de Apoio Técnico (AT) em uma modalidade para pessoas recém-formadas, e segui tendo acesso aos diários escritos pelas pesquisadoras do grupo que iam ao Recife. Durante a participação nesse projeto, também entrei em contato com outras redes de pesquisadoras e pesquisadores que vinham trabalhando com a questão do zika vírus, como o grupo “Etnografando Cuidados e Pensando Políticas de Saúde e

Gestão de Serviços para Mulheres e Seus Filhos com Distúrbios Neurológicos Relacionados com Zika em Pernambuco, Brasil (2016 - atual)”, vinculado ao FAGES

(Núcleo de Família, Gênero e Sexualidade da Universidade Federal de Pernambuco). O projeto, que conta com uma extensa rede de integrantes, aborda assuntos como o Benefício de Prestação Continuada e outros processos referentes às políticas públicas e aos direitos das famílias observando suas articulações com o Estado; as celeumas e negociações diretas com as instâncias públicas responsáveis pelo transporte e deslocamento das crianças e cuidadoras; as experiências das mulheres enquanto exercem o papel de cuidadoras de crianças com deficiência, entre outras temáticas.

A partir dessas experiências, conversas e conexões, veio a vontade de dar continuidade a pesquisa, dessa vez no mestrado. Primeiro fiz a seleção do PPGAS da Universidade de Brasília, mas não fui aprovada. Fiz então uma procura por editais abertos, verificando as linhas de pesquisa de cada programa e o programa de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGAS/UFRN) despertou minha atenção.

Decidi que tentaria a seleção, que já estava aberta, aproveitando o engajamento com a pesquisa da UnB para desenhar um projeto sobre a epidemia do Zika vírus, desta vez localizando as investigações no Rio Grande do Norte. Ingressei, então, na

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turma de mestrado de 2018 do PPGAS/UFRN. Já sabia que Rozeli Porto, professora do departamento, vinha trabalhando com a epidemia (Porto e Costa, 2017) e coordenava um projeto intitulado “Doenças Endêmicas e Saúde: Zika Vírus, dengue,

Chikungunya e os Itinerários Terapêuticos de mulheres no Rio Grande do Norte, Brasil (2016 - ATUAL)”.

Como eu já tinha interesse tanto em estabelecer relação de orientação com Rozeli Porto, quanto de participar do projeto, oficializamos o vínculo junto à coordenação do PPGAS e, em junho, comecei a participar de reuniões voltadas para a pesquisa, sempre acompanhada de Fernanda Moura, estudante de graduação também orientanda de Rozeli Porto.

Naquele momento, Moura e Porto estavam finalizando os trâmites e requisitos do comitê de ética via Plataforma Brasil para poderem conduzir pesquisa no Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi, em Macaíba/RN (Moura, 2019). Enquanto essa parte da pesquisa não era adiantada, mantivemos alguns encontros esporádicos com mulheres e crianças que as duas já haviam alcançado: participamos de uma festa junina e de dois cafés da manhã, em encontros que reuniam em média 10 mulheres e suas crianças - exceto pela festa junina, que juntou uma quantidade considerável de pessoas, incluindo figuras políticas da cidade.

As famílias que conhecemos nesses encontros moram majoritariamente em bairros periféricos de Natal ou em municípios próximos, como São Gonçalo do Amarante/RN. Mais da metade das famílias vive com a renda exclusiva do Benefício de Prestação Continuada (BPC), um direito da criança com deficiência. Nesses encontros, fui novamente notando a presença de irmãos e irmãs acompanhando e ajudando suas mães e fui me convencendo de que eram elas quem eu gostaria de escutar.

Além disso, em setembro de 2018, estive pela primeira vez no Recife, em companhia de Soraya Fleischer e da equipe de pesquisa à época: Raquel Alves, Aissa Simas e Amandas Antunes. Pude, nesta ocasião, conhecer muitas das mulheres e crianças que até então existiam em meu imaginário por meio de fotos e das detalhadas descrições de minhas colegas em seus diários, e lá também observei a forte e

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interessada presença de irmãs nas terapias, acompanhando em ONGs, dando suporte nas atividades de casa.

Redesenhei o projeto elaborado para a seleção de mestrado, dessa vez estipulando o recorte apenas na experiência dessas outras crianças da família: como suas vidas haviam mudado? O que aprenderam nestes quatro anos de epidemia? O que entendem e como abordam a diferença e a deficiência em seus cotidianos? Essas eram algumas questões que eu me colocava. Após a construção do projeto, passei algum tempo sem encontrar com as famílias.

Os encontros eram com frequência desmarcados e ainda estávamos aguardando a aprovação do Comitê de Ética da Plataforma Brasil, questão que foi resolvida somente no final de abril de 2019, quando finalmente pudemos passar a frequentar o Centro de Saúde regularmente e formalmente identificadas com nossos crachás de “visitantes” (Moura, 2019).

A partir daí, passei a frequentar o “Anita” - como é popularmente chamado pelas pessoas que ali convivem - semanalmente, indo para lá de duas a três vezes por semana. O deslocamento até o espaço, partindo de Natal, exige, no mínimo, dois ônibus: um que vai para a rodoviária central de Macaíba (R$ 4,45) e um segundo que vai até a UPA do município (R$3,45), bem próxima do Centro de Saúde onde estávamos pesquisando. Há uma condução que faz o trajeto entre Natal e a UPA diretamente por R$3,00, mas não era sempre que conseguia acertar os horários para ir com ela.

Logo no início de minhas incursões no Anita, conheci Leilane, mãe de Ana Júlia e de Antônio, que citei brevemente na introdução deste trabalho. Família negra de moradores da zona rural de São Gonçalo do Amarante, município próximo à capital potiguar. Eu e Fernanda Moura apresentamos a pesquisa, falamos um pouco sobre nossas trajetórias.

Leilane sempre foi muito solícita e disposta: logo nos atualizou sobre os horários da filha, que fazia fisioterapia no Anita, em um programa voltado para as crianças com microcefalia e que contava com um grupo de apoio chamado Florescer: “Quando tiver reunião, vocês deveriam ir. Todas as mães e crianças com a micro vão, acontece na primeira segunda-feira de todo mês”, ela gentilmente nos indicou. “Para

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vocês que fazem pesquisa”, ela seguiu, dando continuidade as boas dicas, “é bom irem também na Secretaria do Idoso e da Pessoa com Deficiência do meu município conversar com a secretária”.

Perdi a conta de quantas vezes situações semelhantes ocorreram entre nós e Leilane, pensei em todos os livros e longas monografias que havia lido e sobre como cada interlocutora ou interlocutor muitas vezes têm papeis cruciais no andamento da pesquisa (Whyte, 2005 [1943]; Turner, 2005). A pesquisa, na realidade, só existe por conta dessas pessoas que gentilmente nos concedem seu tempo, compartilham suas histórias.

A interação inicial com Leilane foi muito importante para me lembrar das nossas próprias responsabilidades enquanto pesquisadoras: muito embora tudo estivesse aprovado diante do Comitê de Ética, era um encargo meu explicar sobre a pesquisa, era um compromisso nosso continuar averiguando e garantindo consentimento no dia a dia, nas práticas corriqueiras de pesquisa.

Um termo de livre consentimento não engloba todos os aspectos negociados e vivenciados no desenvolvimento de nossas pesquisas em Antropologia, e certas reflexões que Claudia Fonseca (2008), Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2003) e Alcida Ramos (2004) teceram sobre ética e pesquisa iam ganhando maior materialidade e fazendo mais sentido para mim, num evidente contraste com minha experiência anterior, quando as interlocutoras eram mulheres e bebês de papel (Oliveira, 1996) com quem eu nada negociava (Valim, 2017).

Expliquei para Leilane por que vivia com meu caderninho amarelo de anotações para cima e para baixo, indicando que, na antropologia, primeiro nós anotávamos obsessivamente para, em um segundo momento, refletirmos sobre as teorias à luz das experiências vividas e histórias contadas. Fui notando, naquelas interações, uma boa oportunidade para explicar e falar sobre a ciência, discutir conhecimento com quem de fato nos proporciona nossos materiais.

O caderno, com o tempo, acabou virando um elemento de humor e cumplicidade: “Você abre esse caderninho que hoje eu vou te dar material, viu…”, me dizia Leilane, em sua entonação sempre delicada, de voz baixa e gentil. O diário, esse elemento que tanto fetichizamos na antropologia, foi fazendo parte cada vez mais

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diretamente das minhas experiências de interlocução e compondo não só a minha percepção de identidade profissional (Jackson, 1990), mas também o imaginário que as pessoas que eu ia conhecendo no âmbito da pesquisa construíam sobre mim: ele operou como um elemento de elucidação mútua entre mim e minhas interlocutoras.

Fui também me familiarizando com outras mães e famílias no Anita, e em todos os casos repetia esses procedimentos de cuidado e apresentação de pesquisa. Outra interlocutora que conheci no Anita, Lúcia, é mãe de três crianças: José, o caçula, diagnosticado com a Síndrome Congênita do Vírus da Zika, tem 4 anos; Maria Paula, filha do meio, de 9 anos; e Nelson, o “Nelsin”, primogênito de 12 anos.

Certa feita, fui visitar a família em São Tomé, cidade com cerca de 10.000 habitantes no interior do RN. Estávamos todos reunidos na sala: Eu, Lúcia, Maria Paula, Nelsin e José. Além de nós, várias outras pessoas ocupavam aquele espaço conosco, entre amigos e familiares de Lúcia. Estávamos sentados conversando, e inicialmente não me senti à vontade para sacar o caderno. Em pouco tempo, Lucinha, como é chamada, me direcionou a palavra, em tom faceiro: “Oxi, mulher, não vai anotar hoje não é?”. Tomei a interpelação como uma autorização e me pus a anotar.

Boa parte do material que será apresentado nessa dissertação, portanto, é fruto de experiências de observação participante aliadas à uma rotina intensiva de anotações em campo (Ellen, 1984), que eram posteriormente refeitas/expandidas/detalhadas digitalmente. Durante o mês de observações, transcorrido em encontros com as famílias entre maio e junho, a rotina de trabalho seguia o padrão de um ou dois turnos de campo, seguido imediatamente pelo turno de escrita expandida de diários no computador.

A maioria das interações tomaram lugar no Anita Garibaldi, mas, além da frequência semanal no instituto, participei de outras atividades: uma reunião com as famílias afetadas por Zika no RN promovida pelo ANIS-Instituto de Bioética; acompanhamento de aulas de natação de duas crianças com “micro” no bairro do Alecrim, em Natal; viagem para Fortaleza para acompanhar uma competição de paratletismo na qual Ana Júia foi participante; visita à São Tomé/RN, onde passei o fim de semana na casa de Lucinha e duas visitas à casa de Leilane.

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Durante todo esse período, a interação via WhatsApp com as interlocutoras também foi intensa, e procurei acrescentar os trechos de conversas nos diários de campo, bem como transcrever os áudios recebidos. Com relação a transcrição, fui percebendo como ter o áudio espontaneamente gravado pelas minhas interlocutoras ia me ajudando a lapidar a própria forma como eu registrava as conversas, evidenciando usos de linguagem, gírias favoritas, tons e formas de falar. Eu notava a forma como falavam nos áudios e depois comparava com a maneira que havia anotado algumas frases no caderno de campo, e, embora percebesse semelhanças, havia claramente ali uma camada de autoria de minha parte.

A comparação me serviu como alerta, como um sino de atenção sobre como todo aquele material estava inelutavelmente ligado à minha própria subjetividade (Marcus e Cushman, 1982), aspecto que muitas vezes se embaralhava em meio a ansiedades sobre ilusões de registros realistas e transparentes da realidade. Muito embora, enquanto disciplina, a Antropologia tenha passado por revisões críticas de suas premissas descritivas, ainda convivemos, sob muitos aspectos, com o mito Malinowskiano do observador onisciente.

Além da metodologia clássica de produção de dados por meio de registro e observação e das interações que as tecnologias atualmente nos permitem experienciar com os interlocutores, também recorri ao desenho para estabelecer conexões. Como foi aqui assinalado, minha intenção inicial em campo era dar preferência para as interações com irmãs e irmãos de crianças diagnosticadas com a SCVZ. Em muitas ocasiões, eles estavam presentes nas terapias, acompanhando e auxiliando a mãe nas tarefas de cuidado com os caçulas e aproveitei as longas horas de espera que passávamos no Anita para me aproximar de algumas crianças. Todas as vezes que ia ao Anita, levava um conjunto com giz de cera, lápis de cor, canetinhas hidrocor e papéis A4 coloridos.

O plano, traçado a partir da experiência de Flávia Pires (2007) e outras antropólogas brasileiras que vem trabalhando com crianças, era me aproximar das crianças com temáticas de desenho livres para depois pedir que desenhassem sobre questões específicas - por exemplo, sugerir o tema “família” (Pires, 2007). Não cheguei a colocar a segunda etapa do plano em prática, mas, como sugere Azevedo

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(2016), o desenho é também uma forma de interação e aproximação e, com relação a isso, a estratégia serviu bem seus propósitos, me aproximando muito de Maria Paula, irmã de José Luiz. Depois, quando passei o fim de semana em São Tomé, me senti mais à vontade para realizar uma pequena entrevista semi-estruturada com ela.

O tempo específico com os irmãos, contudo, não foi algo que alcancei na proporção que havia desenhado no início da pesquisa. Durante minhas tentativas iniciais de estabelecer encontros com as famílias, não obtive muitos retornos positivos. A agenda de terapias e demais atividades era intensa, e, enquanto grupo de pesquisa, tínhamos receio de acompanhar as famílias em espaços institucionais de saúde sem as autorizações e aprovações necessárias.

À época, aguardávamos o retorno do parecer do Comitê de Ética da Plataforma Brasil, que nos autorizaria a frequentar o Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi. Fernanda Moura narra os caminhos e etapas percorridos pela equipe em sua monografia de graduação (Moura, 2019). Recebemos o retorno em maio, quando passamos a frequentar o instituto.

O Anita ou CEPS, dois dos nomes mais utilizados pelas pessoas para se referirem ao instituto, é um centro de saúde vinculado ao Instituto Santos Dumont, organização social coordenada pelo professor Miguel Nicolelis. O centro, partindo de uma proposta de atenção humanizada em saúde, possui forte vínculo com a UFRN e acolhe muitas pesquisas e pesquisadoras.

Conforme passei a conviver com o grupo de crianças e famílias, procurei marcar encontros aos finais de semana, sugerindo visitas domiciliares. Os irmãos e irmãs, embora acompanhassem as cuidadoras principais em algumas ocasiões, não podiam fazer a atividade uma parte de suas rotinas, já que a ida às terapias significava um dia de falta nas atividades escolares. Com isso, tentei marcar algumas visitas para poder conversar e acompanha-los em um dia fora dos hospitais.

Embora, em geral, as pessoas que participaram da pesquisa tenham se demonstrado abertas às visitas, muitos imprevistos coincidiam com nossas tentativas de encontro. Muitas vezes as crianças adoeciam e a agenda precisava ser reelaborada. Consegui fazer visita a duas famílias, sendo que uma delas visitei em duas ocasiões, mas a interação entre mim e as crianças, tanto as diagnosticadas com a síndrome

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quanto suas irmãs e irmãos, aconteceram majoritariamente durante o mês que frequentei o Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi, o que gerou interferências na ideia de focar a dissertação exclusivamente nos irmãs e irmãs. Como passei muito tempo com as próprias crianças em terapia e reabilitação, o campo foi se desdobrando em novas possibilidades e perguntas, que apresentarei a seguir.

Apresentação dos capítulos e suas principais temáticas

Fui convivendo com um mesmo grupo de mulheres e crianças no CEPS. Frequentava a instituição sempre nos mesmos dias da semana, já que havia outras demandas profissionais encaixadas em minha rotina de trabalho na época. Acompanhei regularmente quatro famílias de crianças que faziam estimulação precoce no Anita: Sarah (32), mãe de Maitê (4), Gustavo (12) e Gabriel (18); Ângela (35), mãe de Otávio (1), Mauro (6) e Geíza (15); Lucinha (33), mãe de José (4), Maria Paula (9) e Nelsinho (11) e Leilane (30), mãe de Ana Júlia (4) e Lucas Antônio (9).

Optei por trocar os nomes e embaralhar alguns contextos. Fiz isso por dois motivos: primeiro, por ter conversado com as mães e crianças e algumas terem optado pelo anonimato, e, em segundo, por acreditar que a troca de nomes e de contextos não diminui a qualidade ou autenticidade do material. Há muitas camadas de edição em qualquer empreendimento científico, da química à biologia. Nós somos, talvez, um pouco mais explícitos com relação isso.

Não acredito que o anonimato seja uma solução genérica para toda e qualquer pesquisa. Como aponta Fonseca (2008), há áreas, como na antropologia jurídica, em que a necessidade de construção da verossimilhança passa pela conferência de localidades e espaços. No caso desta pesquisa, contudo, há fofocas, intimidades e momentos de angústia que me foram confiados.

Assim, ainda acionando Fonseca, é importante pontuar que nossa ética deve estar vinculada não a um padrão nacional de pesquisa, e sim as demandas, necessidades e exigências das pessoas que nos recebem e aturam nossas perturbações: onde em um ponto o anonimato pode parecer uma omissão, em outros ele é justamente

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uma ação de compromisso e respeito. No caso dessa pesquisa, a opção coletiva apontou para o anonimato.

Fora o grupo de microcefalia e seus irmãos e cuidadoras, também conheci outras famílias que eram atendidas nos mesmos dias em que eu acompanhava minhas interlocutoras, como Antônia, uma meiga garotinha de quatro anos, diagnosticada com hidrocefalia, ou Gabi, de oito anos, que pilotava sua cadeira de rodas cor de rosa por toda a instituição e dividia sala com Ana Júlia durante algumas sessões de fisioterapia.

No CEPS, as consultas, exames e terapias têm início às 8h, mas o portão da instituição abre às 7h, quando as famílias são liberadas para entrar e retirar uma senha para serem atendidos na recepção - onde são registrados os serviços do dia e a presença do paciente nas terapias/consultas agendadas. Lucinha e José Luiz, no entanto, chegam no local às cinco horas da manhã, único horário disponível pelo carro da prefeitura lá de “seu interior”. Às vezes, vêm acompanhados de um dos irmãos, Maria Paula ou Nelson.

Assim que comecei a frequentar a instituição, soube que muitas famílias chegavam com um bom tempo de espera pela frente, e passei a ir para Macaíba no primeiro ônibus disponível, chegando no CEPS por volta de 6h20, 6h30 da manhã. Ficava aguardando com as pessoas, ouvindo suas conversas. Quando os portões abriam e as famílias se dirigiam para seus compromissos específicos, ia com Lucinha ou com Leilane para o setor de reabilitação específica, onde ocorrem as terapias para crianças diagnosticadas com microcefalia e lá pude participar e estar presente durante muitas conversas de famílias “de micro”.

Frequentei a terapia com as crianças, ministrei remédios, cuidei enquanto as mães aproveitavam a companhia para desenrolar alguma pendência burocrática no centro de saúde, estive com os irmãos enquanto esperavam, brinquei de tica-tica2 quando eram liberados de auxiliarem nas terapias. A forma final de nossos trabalhos é reflexo de nossas interações, escolhas e caminhos de campo. No caso das páginas seguintes, os caminhos do campo me levaram a dividir este trabalho em duas partes,

2 Brincadeira que Lucas me ensinou onde um dos participantes precisa correr atrás do outro e,

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sendo a primeira composta pelos Capítulos 1 e 2 e a segunda parte sendo constituída pelo Capítulo 3.

Os capítulos 1 e 2 dialogam entre si compondo a parte I por dois motivos: primeiro, por terem como interlocutores “diretos” ou “principais” as crianças diagnosticadas com a SCVZ que conheci durante a pesquisa de campo no Anita e por terem como tema transversal a categoria de desenvolvimento infantil. Já a última parte se aproxima com mais atenção das experiências e interações vivenciadas em com as irmãs e irmãos, em suas casas e no centro de saúde.

No caso dos capítulos 1 e 2, o interesse pela noção de desenvolvimento infantil vem como resposta a uma grande circulação e utilização desta categoria no dia a dia, seja na fofoca da espera de corredor, nas interações com profissionais de saúde, nas expectativas e projeções para o futuro: “desenvolvimento” é uma palavra central à gramática cotidiana das pessoas que conheci ao longo da pesquisa.

No que se refere a epidemia, a ênfase na evolução do desenvolvimento das crianças nascidas com a SCVZ teve início já em uma das primeiras respostas do Estado à epidemia, materializada no Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia (doravante, PNEM), desenvolvido pelo Ministério da Saúde em 2015.

Uma das ações previstas no PNEM incluiu a produção das “Diretrizes de Estimulação Precoce: crianças de zero a 3 anos com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor” (Brasil, 2016), um guia para o tratamento da síndrome visando o desenvolvimento auditivo, visual, motor, orofacial, cognitivo e de linguagem das crianças.

O intervalo de observação sugerido pelo PNEM - até os três anos - se baseia na ideia de que nesse período o cérebro humano é dotado de imensa plasticidade, ou seja, é extremamente suscetível e reativo aos estímulos externos. As crianças diagnosticadas com a microcefalia, portanto, deveriam receber o máximo de estimulação possível nesse ínterim.

Assim, no final de 2015 e início de 2016, as terapias de estimulação precoce apareceram como o Santo Graal do cuidado das crianças. Na época, muitas das reportagens e matérias de jornal que cobriam a epidemia sinalizavam também a

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importância das terapias, recorrendo à especialistas como pediatras, neurologistas e outros profissionais da biomedicina.

Desenvolvimento, então, adquire centralidade na gramática cotidiana das famílias diretamente implicadas na epidemia do vírus da zika, aparecendo como um grande mobilizador de ação: é com o objetivo de que os filhos se desenvolvam que mães e demais cuidadoras enfrentam a burocracia estatal para adquirir remédios e suprimentos, que deslocam-se diariamente até sessões de fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, hidroterapia - muitas vezes percorrendo longas distâncias entre suas casas e os centros de saúde que ofertam os serviços- que acompanham palestras, que “correm atrás” de informação e de recursos.

Pensando na centralidade do assunto entre os atores sociais envolvidos na trama epidêmica, tento refletir mais a fundo sobre o desenvolvimento infantil. No próprio título das Diretrizes acima mencionadas, a categoria é precedida pela palavra “atraso”. No caso de crianças com deficiência, portanto, o desenvolvimento é percebido como atrasado com relação às outras crianças.

O que esse atraso, afinal, significa? O que essa diferenciação significa e o que materializa? Como se dá a classificação entre um corpo cujo desenvolvimento é normal e outro cujo desenvolvimento é atrasado? Quais os valores atribuídos a cada uma e como repercutem nas representações acerca das crianças e da infância?

Para encarar essas perguntas, traçarei um diálogo com o campo dos Disability Studies, que produziu excelentes “arqueologias” da construção da deficiência na sociedade Ocidental, localizando algumas das premissas epistemológicas da compreensão moderna do desenvolvimento. Além disso, procuro pensar, dialogando com Foucault, como a categoria desenvolvimento classifica e produz hierarquicamente pessoas e certos tipos de sujeito, homogeneizados em perfis populacionais com atributos específicos. Facundo Navia (2014), que também estabelece diálogo com Michel Foucault, vai adiante, indicando que:

(...) Poderíamos, inclusive, afirmar que essa elaboração cuidadosa de indicadores populacionais é parte de um conjunto maior de saberes e práticas que configuram um regime de verdade, capaz de produzir em si mesmo um corpo passível de intervenção. Em outras palavras, um

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regime capaz de fazer com que um conjunto de sujeitos possa ser pensado e tratado como um corpo social ou um “corpo-espécie”, habilitando o desdobramento de um conjunto de práticas que buscam regular e decidir sobre a vida e a morte não somente dos sujeitos individualmente mas também de coletividades (Facundo Navia, 2014:22)

Bill Hughes (2005) sugere que durante toda a história da dita modernidade, pessoas com deficiência foram representadas enquanto passivas, indesejáveis, sujeitas ao confinamento e ao encarceramento, construídas como “a população dócil par

excellence” (Hughes, 2005:80, tradução-livre), alvo de supervisão, policiamento,

reabilitação, esquadrinhamento. O corpo lesionado foi construído como um corpo debilitado e defeituoso e pessoas com deficiência foram agrupadas dentro da construção de população vulnerável, ora um fardo, ora exotizadas sobre o manto de proteção da caridade cristã.

Embora os antigos cárceres que serviam para isolar as pessoas com deficiência (Martins, 2008) do restante da sociedade causem, atualmente, espanto e repulsa, o cárcere subjetivo ao qual as pessoas com deficiência são submetidas continua se atualizando na prática e nos discursos.

A deficiência, como sugerem Raynna Rapp e Faye Ginsburg (2001), é, muitas vezes, alojada na esfera do extraordinário, do extramundano, não fazendo parte da vida comum e das interações sociais. Mesmo estando presente no cotidiano, há uma negação da existência das pessoas com deficiência enquanto sujeitos plenos. Pensemos, por exemplo, na manifestação organizada por frequentadores da praia de Cabo Branco, em João Pessoa/PB, que pediram pelo fim do projeto Acesso Cidadão, que levava pessoas com deficiência até a praia3. A reação gerou polêmicas, mas evidencia o posicionamento à margem da pessoa com deficiência.

Além de reações violentas, há, também, reações de invisibilização, quase como uma negação da relação com pessoas com deficiência. Gail Chödrön (2015), filósofa canadense e mãe de uma criança com paralisia cerebral, sugere que a deficiência, em muitos sentidos, não é reconhecida, não é articulada nos engajamentos e situações

3 noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/08/22/pedido-para-vetar-grupo-com-deficiencia-de-usar-praia-gera-polemica-na-pb.htm

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sociais de pessoas que não convivem diretamente com ela, por mais que esteja presente constantemente no cotidiano.

Como me falou uma das mães que conheci no âmbito da pesquisa: “Eu sempre digo, Thais, que só sabe o que é deficiência e só dá atenção quando você convive em casa, na família”. Assim, há um confinamento subjetivo da própria existência de pessoas com deficiência, colocadas à margem do trabalho, da vida sexual, da cultura, da sociabilidade.

Mesmo enquanto pesquisadora e tendo minha atenção “reeducada”, senti, muitas vezes, dificuldades em estabelecer relações de interlocução em campo. Não sabia como falar, como me dirigir às pessoas, imaginava que talvez não fossem me entender, projetando já um preconceito meu com relação às capacidades sociais de meus interlocutores, colocado em prática o enclausuramento subjetivo.

A antropologia usa a interação verbal como uma de suas grandes fontes de reflexão. Embora a diferença entre um tique nervoso e uma piscadela amistosa estejam pautadas em nossas densas descrições (Geertz, 1973), há uma preferência pelo uso de conversas, entrevistas e relatos verbais.

O próprio nome que damos atualmente às pessoas que contribuem com nossas pesquisas sugerem essa preferência: chamamo-las de interlocutoras, pessoas que compartilham conosco uma locução, palavra cuja etimologia pode ser traçada ao grego loqui, ou: falar. No caso de alguns tipos de deficiência, a interação se dá de outras maneiras, a partir de outras formas de estabelecer linguagem e compartilhar significados.

Essa especificidade, contudo, não é adequadamente direcionada, seja dentro ou fora de âmbitos de pesquisa. Assim, muitas pessoas sequer imaginam ter amizade, estabelecer trocas ou reconhecer pessoas com deficiência como pares, como humanos, como, enfim, pessoas. Essa negação da subjetividade, segundo Chödrön (2015), tem muitas formas de se atualizar e se ancora em uma ontologia negativa sobre a deficiência na história das sociedades ocidentais modernas, como indiquei acima, em diálogo com Hughes (2005).

No caso do PNEM, que trouxe no início desta apresentação, a gramática do atraso vem corroborando e atualizando definições desabonadoras da deficiência. O

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que procuro investigar no capítulo 1 é se e de que formas a narrativa hegemônica de desenvolvimento infantil se articula a tal ontologia negativa da deficiência. Para tanto, me pergunto pelo lugar histórico das teorias do desenvolvimento infantil, acompanhando criticamente algumas de suas premissas, procurando entender qual noção de infância é promovida e embutida nas teorias de desenvolvimento infantil hegemônicas, que tipo de corpo infantil é o corpo normal e que tipo de corpo infantil constitui o corpo anormal, e quais as consequências disso para crianças com deficiência.

No Capítulo segundo, por sua vez, me pergunto por outras formas de perceber e entender o desenvolvimento infantil. Um discurso, afinal, pode ser hegemônico, mas ele nunca será exclusivo. No capítulo, procuro me deslocar da ideia do desenvolvimento enquanto desenrolar natural da vida para pensar no desenvolvimento enquanto um processo microhistórico, que envolve relações, interações, mediações.

Para tanto, reflito sobre o que é aprender e o que é se desenvolver, procurando posicionar as próprias crianças enquanto engajadas e participantes ativas do próprio desenvolvimento. Enquanto no capítulo 1 a discussão se refere à infância, o capítulo segundo se volta para crianças específicas, localizadas, ‘de carne e osso’, apoiando-me etnograficaapoiando-mente nas experiências oriundas da pesquisa no Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi.

Já na parte II, me volto para as experiências que tive com as irmãs e irmãos no Anita e nas visitas pontuais. Partindo do pressuposto de que crianças são atores sociais plenos, localizados histórica e politicamente (James e Prout, 1990; Pires, 2007; Cohn, 2016) me pergunto sobre sua atuação na dinâmica familiar, sobre a forma como a chegada do irmão com a SCZV se instala em suas trajetórias de vida, sobre suas impressões e reações acerca da deficiência.

Como mencionei acima, alterações do desenho metodológico inicialmente proposto acabaram por diminuir o tempo de convívio com as irmãs e irmãos em questão e, por isso, durante o capítulo procuro acompanhar mais de perto a vivência de duas crianças em particular: Maria Paula, de 9 anos, irmã de Jose e Nelsin; e Lucas Antônio, também com 9 anos, irmão de Ana Júlia.

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Há, no capítulo, duas estratégias metodológicas de reflexão. No caso de Maria Paula, a quem pude acompanhar mais de perto, me apoio na ideia de que, para compreender as experiências e necessidades das crianças é preciso, sobretudo, escutá-las diretamente: saber suas opiniões, desejos, gostos e desgostos, buscando ativamente uma abordagem que leve em consideração os próprios discursos e ações das crianças, e não apenas narrativas de adultos sobre crianças.

Contudo, devido aos percalços metodológicos já mencionados, também recorro à compreensão e memória de Leilane, mãe de Lucas, para compor a sessão em que me debruço sobre as experiências do garoto. Embora não recaia propriamente em um “adultocentrismo” (Pires, 2018), é importante notar que, com uma maior temporada em campo, procuraria ajustar essa estratégia.

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PARTE I CAPÍTULO 1

DESENVOLVIMENTO INFANTIL:

LOCALIZAÇÕES HISTÓRICAS

1. Estudos sobre deficiência: uma introdução direcionada

Historicamente marcadas como décadas de rebuliço, agitação e organização social em torno de pautas identitárias, os anos 60 e 70 foram palco de inúmeras manifestações e lutas do povo: no movimento negro, no movimento de mulheres, no movimento gay, as ruas se encheram de pessoas que marchavam pelo fim de políticas e práticas opressoras, em especial no norte global. Foi também durante esse período que pessoas com deficiência se organizaram politicamente contra os processos de exclusão e discriminação por elas vivenciados, demandando participação e reconhecimento enquanto sujeitos sociais de plenos direitos.

A Academia, embora nem sempre tenha facilidade de estabelecer diálogos com a militância (Machado, 2014), foi profundamente impactada pelos movimentos sociais e lutas políticas daquele período, absorvendo - muitas vezes sem o devido reconhecimento - novas gramáticas e significados em torno de questões como corpo, identidade, reconhecimento.

No campo da deficiência, uma organização política em particular teve importantes desdobramentos para os estudos sobre deficiência (disability studies). Me refiro à UPIAS, Union of the Physically Impaired Against Segregation, ou, na tradução de Débora Diniz (2007), Liga dos Lesados Físicos contra a Segregação, consolidada no Reino Unido durante os anos 70 e organizada majoritariamente por sociólogos com deficiência.

A liga tinha como objetivo ser uma organização representativa dos interesses políticos das pessoas com deficiência feita e pensada por pessoas com deficiência, e não somente para elas, caso de todas as instituições voltadas para deficiência até então

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- como o Royal National Institute of Blind People, fundado em 1868 no Reino Unido ou o Instituto Nacional de Educação para Surdos no Brasil, fundado em 1857 (Diniz, 2007). Tais institutos, embora se voltassem para as especificidades de inclusão e educação de pessoas com alguma deficiência, davam continuidade ao modelo médico de deficiência que, para os sociólogos ligados à UPIAS, deveria ser superado ou, no mínimo, repensado.

Segundo este modelo, a deficiência seria um desvio da natureza, uma desordem biológica (Barnes, 2016) alojada em uma pessoa (Siebers, 2008), correspondendo, portanto, a questões físicas pertinentes a biomedicina. É um modelo que identifica lesão e deficiência, e coloca o corpo lesado como um corpo patológico que deve ser reabilitado ou curado.

Como contraponto a essa visão e promovendo uma nova gramática sobre a deficiência, os ativistas e intelectuais da UPIAS lançaram, no ano de 1976, o

Fundamental Principles Document, texto que consolidou a organização política e

apresentou oficialmente um novo modelo de compreensão da deficiência (Oliver, 1996:31). O modelo social, como foi chamado, vinha para negar a equação de igualdade imediata entre lesão e deficiência, ressaltando que a esta última ocorre quando as dinâmicas e estruturas sociais não são adequadas para acolher a diversidade corporal. O modelo “não nega a especificidade da deficiência, mas a enquadra precisamente na sociedade” (Oliver, 1996:32, tradução-livre minha):

Assim, deficiência, de acordo com o modelo social, é tudo aquilo que impõe restrições a pessoas deficientes; desde preconceito individual à discriminação institucional, de prédios públicos sem portais de acessibilidade à sistemas de transporte inutilizáveis; de uma educação segregada à arranjos de trabalho excludentes, e daí por diante. Ademais, as consequências dessas falhas não recaem aleatoriamente sobre os indivíduos, mas são sistematicamente aplicadas sobre pessoas com deficiência enquanto grupo que experiência essas falhas enquanto uma discriminação institucional por toda a sociedade (Oliver, 1996:33, tradução-livre).

Os pensadores ligados à UPIAS possuíam, em sua maioria, orientações profundamente inspiradas em Marx e em Engels, vislumbrando o modelo social a

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partir de suas leituras do materialismo-histórico. Assim, a maior demanda do documento lançado em 1976 reivindicava por alteração da estrutura excludente para que a deficiência não fosse vivenciada como opressão (Diniz, 2007).

Os dois modelos acima apresentados - médico e social - são conhecidos como os modelos clássicos de representação da deficiência (Mello, 2009), e, embora o modelo social tenha fornecido elementos importantes para um alargamento do modelo médico, que congelava a deficiência em dimensões trágicas/individuais/biológicas, outros aspectos em torno da deficiência foram sendo apontados desde os anos 70: modelo psicológico, modelo caritativo, modelo administrativo. Michael Oliver chega a citar, de forma irônica, que havia mais modelos de deficiência do que modelos na Agência de Modelos de Lucy Clayton (Oliver, 1996:31).

Apesar da ironia com relação aos muitos alargamentos e direcionamentos do modelo social inicialmente proposto por Michael Oliver, Paul Hunt, Paul Abberley e Vic Finkelstein no documento de 1976, algumas críticas e ponderações a ele referentes traziam importantes questões que passaram ao largo das preocupações e encaminhamentos não da primeira geração de teóricos da deficiência.

O movimento norte-americano Independent Living Movement (ILM), uma das fontes de inspiração para a elaboração do modelo social, postulava e demandava

independência para as pessoas com deficiência por meio de alterações estruturais que

permitissem, por exemplo, a livre circulação de cadeiras de roda; outro grupo, este de origem sueca, pregava em seu nome a ideia de que as pessoas com deficiência deveriam advogar por si mesmas, ter autonomia em suas decisões (Self-Advocacy Movement). Inicialmente, portanto, os ideais de independência e autonomia atravessaram a luta política da época, pontuada pela noção de que: “1) as desvantagens resultavam mais diretamente das barreiras que das lesões; e 2) retiradas as barreiras, os deficientes seriam independentes” (Diniz, 2007:26)

Aqui, é importante ter em mente que os pensadores vinculados à elaboração do modelo social clássico eram, em sua maioria, homens de camadas médias com lesões medulares. Para eles, a retirada de barreiras poderia coincidir com uma vida mais autônoma e independente. Contudo, mulheres, sobretudo mulheres cuidadoras de pessoas com deficiências mais complexas, colocaram luz sobre o fato de que há certas

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especificidades corporais que demandam assistência e cuidado ao longo de todo uma vida, por mais acessível que se façam os parques, as escolas, as redes de comunicação. A sugestão é de que, ao se afastarem do enclausuramento biológico do modelo médico, os primeiros teóricos da deficiência acabaram recaindo sobre um enclausuramento subjetivo da independência como valor.

Eva Kittay, uma das autoras responsáveis pela crítica feminista sobre o modelo social clássico (Kittay, 1999), indica que a demanda por independência, presente em basicamente todos os manifestos e documentos iniciais sobre os estudos em deficiência, pode ser localizada na teoria da justiça ocidental: a independência, ela diz, é divulgada como um valor e um atributo de integridade e dignidade humana; a dependência, do outro lado da relação binária, apareceria então como uma qualidade exclusivamente negativa e indesejável, incompatível com o sujeito soberano ocidental (Kittay, 2011).

Assim, para Kittay e demais mulheres envolvidas na crítica feminista, como Anne Finger e Adrienne Asch, o modelo social precisava passar por uma revisão que conseguisse abarcar outras experiências de deficiência, que desse conta da subjetividade do corpo deficiente, evidenciando processos ligados à dor, ao cuidado, a dependência, todos elementos que outrora haviam sido descentralizados da discussão por representarem aspectos negativos no imaginário social - que poderiam, segundo os primeiro teóricos da deficiência, perpetuar estereótipos desabonadores.

Acredito, contudo, me alinhando às teóricas feministas da deficiência, que é somente iluminando tais aspectos que podemos imaginar novas representações, mais justas e acolhedoras, de vivências marcadas pela opressão. Ignorar a diferença, muitas vezes, significa aumentá-la, e por isso mesmo é preciso estar atenta para como os aspectos subjetivos da deficiência estão atrelados também à outros marcadores sociais, como classe, raça, gênero e geração, numa perspectiva atualmente conhecida como interseccional (Mello e Nuernberg, 2012).

É, então, a partir da noção de interseccionalidade que procuro pensar, no capítulo que se segue, a interface entre infância e deficiência. E é também com esta categoria que sigo para o capítulo terceiro. Segundo dados da European Disability

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difícil mensurar estatisticamente a deficiência à nível global, tendo em vista que as definições e enquadramentos variam muito de país para país, cerca de 78% a 85% da incidência de deficiência no mundo refere-se à crianças, concentradas sobretudo no sul global (Mello, 2009).

Essas crianças, em geral, moram em zonas periféricas com parco acesso à educação, à moradia, à alimentação, à água, à segurança e ao lazer, dinâmica que contribui para o que Werneck (apud Mello, 2009) chama de “ciclo da invisibilidade”, ou seja, os silenciamentos subjetivos denunciados pelas teóricas feministas são extremamente presentes no cotidiano de muitas crianças e suas famílias.

A ideia de evidenciar os processos subjetivos relacionados à infância também dialoga criticamente com alguns aspectos semelhantes ao modelo médico, já que a infância foi durante muito tempo compreendida enquanto uma questão de maturação biológica e de pontos universais de desenvolvimento. Pensar na infância como socialmente construída (Aries, 1973; James e Prout, 1999) permite uma observação mais realista de como as infâncias são diretamente influenciadas pelos marcadores sociais acima citados.

Muito embora tanto a deficiência quanto a infância tenham sido pensadas a partir de novas gramáticas e representações, ambas as categorias são constantemente perpassadas por uma compreensão biologizante, especialmente no caso de crianças com deficiência, que passam boa parte da rotina em hospitais e terapias, necessitando de medicamentos e tecnologias médicas que ampliam a qualidade de vida, fazendo com que famílias e crianças estejam em contato direto com a biomedicina.

No capítulo que segue, inclusive, irei orientar as reflexões a partir das experiências etnográficas vivenciadas enquanto acompanhava a rotina de terapias de crianças diagnosticadas com microcefalia no Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi. Para a reflexão, tomarei como fio condutor do capítulo a noção de desenvolvimento infantil, que aparece como uma importante categoria tanto no discurso médico quanto no discurso das famílias, procurando apresentar etnograficamente os diferentes caminhos e negociações em torno da noção de desenvolvimento e como essa categoria atravessa as representações e construções sobre crianças com deficiência.

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2. “Essa criança aqui… ela nem mexe”

Estávamos eu e Fernanda Moura no Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi. Era a segunda vez que visitávamos o espaço, então ainda não havíamos nos familiarizado com a equipe de terapeutas, com as usuárias e os usuários e com outras funcionárias e funcionários do local. Já estávamos, no entanto, autorizadas por Fabrício, fisioterapeuta responsável pela supervisão de pesquisas e outros estudos realizados no centro de saúde.

Assim, com a presença autorizada mas ainda sem ter nossa identidade pessoal negociada e apresentada às pessoas que frequentavam aquele espaço, eu e Fernanda não tínhamos muitas escolhas além de fazer o que antropólogas muitas vezes fazem quando ainda não conhecem ninguém: vagar e perambular com nossos cadernos embaixo do braço, tomando notas sobre o espaço, ainda ocupando uma posição de pessoas-pela-metade, quase-invisíveis, como coloca Clifford Geertz sobre a experiência que teve com Hildred Geertz quando haviam acabado de chegar em uma das aldeias balinesas onde desenvolveram suas pesquisas. Felizmente, eu e Fernanda não nos recuperávamos da malária, como foi o caso de Hildred e de Clifford Geertz (Geertz, 1973).

Seguimos, então, na nossa condição de “sopro de vento” (Geertz, 1973:186), pelo espaço, registrando onde cada serviço era disponibilizado: havia um corredor específico para a maternidade, um para reabilitação de pessoas com deficiência - espaço de interesse maior para nossos objetivos no escopo do que havíamos nos proposto a investigar -, uma outra ala reservada para exames de tomografia, um outro espaço disponível para os muitos estudantes que frequentam o instituto, com mesas de estudo e computadores.

Demos uma rodada por essas alas e em seguida Fernanda sugeriu que fôssemos para a parte externa do prédio, sentar em uma mureta de mármore onde muitas pessoas se recolhem para esperar por suas caronas, transportes da prefeitura, aguardar pela hora do ônibus ou simplesmente mudar um pouco o ambiente durante as longas horas de espera pelo atendimento.

Referências

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