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CENA 4: Desenvolvimento infantil e estruturas sociais

2. Lucas Antônio

Lucas é um rapaz negro de pele retinta, cabelos raspados e olhos grandes que se parecem com duas jaboticabas. Completará 10 anos em agosto de 2020. É alto e esguio. Assim como Maria Paula, Lucas também teve uma irmã com microcefalia no

ano de 2015 e, também como Maria Paula, passou por um processo específico de compreensão sobre o diagnóstico da irmã, Ana Júlia. Júlia, ao contrário de José, não chorava tanto. No entanto, nascera com um perímetro cefálico bem menor do que o do irmão de Maria: “A cabeça dela era do tamanho de uma laranja”, me disse sua mãe.

Ela era uma bebê quieta, e, como foi comentado no início do Capítulo 1, a primeira avaliação global da garota foi um soco no estômago da família: ouviram das profissionais que a menina seria uma criança parada, com poucas ou mínimas chances de se mexer. O episódio desanimou muito Leilane, que passou a se isolar do convívio com outras pessoas, resguardando-se em sua casa, na zona rural de um município próximo à capital potiguar.

Na época, Carlos, pai das duas crianças e marido de Leilane, também havia acabado de perder o emprego e entrou em uma depressão profunda: “Primeiro foi o emprego, depois o povo falando assim de Júlia, sem nóis saber o que ia acontecer com ela. Foi difícil demais, difícil demais”, me contou Carlos, enquanto conversávamos sentados no sofá de sua casa.

Carlos me contou que só saiu do fundo do poço por causa das crianças: “Eu vi que eu precisava estar ali pra eles. Pra Júlia e Lucas. E aí primeiro eu comecei a jogar bola com o pessoal aqui, depois arrumei esses passarinhos pra mim cuidar, hoje em dia Lucas ajuda, tem jeito com os bichinhos”, me disse, contextualizando melhor sua experiência. Depois, a própria Leilane resolveu “correr atrás” de terapias novamente para a filha, com a ajuda da assistente social do município e, aos poucos, uma nova rotina foi se implementando na vida da família.

Lucas observava tudo, percebendo a tristeza dos pais, o isolamento da mãe. Quando a irmã começou nas terapias, Lucas mantinha-se vigilante e atento sobre as atividades cotidianas de Júlia: terapias, consultas, idas e vindas no carro da prefeitura. Curioso, perguntou a mãe: “Mainha, quando eu era pequeno assim igual Júlia eu ia em terapia também?”, quis saber.

Burke, nos estudos conduzidos ao longos de sua ampla experiência com irmãos de pessoas com deficiência, propõe uma tipologia de 5 reações comportamentais à experiência na fratria, indicando, em cada tipologia, quais crianças em seus estudos poderiam ser classificadas de acordo com cada uma das cinco tipologias, sendo elas:

1. reações negativas altas, 2. reações negativas baixas, 3. comportamento de aceitação, 4. reação positiva baixa e 5. reação positiva alta (Burke, 2004). Cada comportamento era identificado com um estágio de ajustamento, baseado nas fases elencadas por Kübler-Rosss, sendo a 1. raiva associada ao estado de reação negativa alta, passando por 2. negação, 3. culpa, 4; proteção e 5. aceitação, associada ao comportamento de reação positiva alta.

Num primeiro impulso classificatório, tomei Lucas como um menino negativamente afetado pela realidade de ter um irmão com deficiência: era tímido, passou a ter problemas na escola, expressava ciúmes da irmã. Contudo, ao longo da experiência de campo, pude perceber que há uma oscilação muito grande entre vários estágios em uma mesma criança. Foi assim com Lucas, Nelson, Paula, Elias e Andrielle.

Não há uma reação fixa identificada no comportamento das crianças; elas variam e se modulam conforme variam as interpretações das crianças, as necessidades da vida. Não é possível definir uma essencialização da reação de cada criança, mas as tipologias são interessantes na medida em que nos mostram diferentes tipos de reação a partir dos quais podemos pensar as situações concretas com as quais nos deparamos.

De um ponto de vista antropológico, podemos pensar, por exemplo, como determinadas questões estruturais influenciam a experiência de irmãos com deficiência, localizando e reconhecendo cada uma das crianças como sujeitos com trajetórias específicas e posições histórico-políticas específicas também. Na próxima sessão, procuro pensar, com Lucas e suas experiências, quais atravessamentos se articulam em sua vivência enquanto irmão de Júlia.

2.1 Ciúme, timidez e insegurança: questões interseccionais

Desde que conheci Lucas, ele se mostrou, para mim, um menino tímido. Era discreto em suas maneiras, de voz baixa, calmo. De todos os irmãos que conheci no Anita, é o único que também é paciente por lá, frequentando sessões com a psicóloga da instituição. Quando conheci a família, inclusive, era um dos dias de Lucas se

consultar: “Ele já faz acompanhamento tem um tempinho, sabe, é que ele ficou com ciúme, sabe quando ela nasceu…”, me contou sua mãe.

O ciúme, segundo Leilane, se manifestou no que a mãe chamou de uma aparente “regressão” dos hábitos de Lucas: “Eu sinto que ele tá regredindo às vezes, sabe, por exemplo, ele não chupava bubu, não tomava mingau, nem papa ele queria quando era mais novo, mas agora ele fica pedindo, querendo, tudo por causa de Júlia”, me informou.

Lucas, ao que parece, sente-se muito diferente da irmã, mas não aloja essa diferença nela, e sim em si mesmo. Como mencionei acima, para ele o normal está vinculado às experiências de cuidado e bem-estar que a irmã vive e a sua própria experiência parece diferente. Assim, em certos momentos, Lucas procura emular as ações da irmã, um tipo de atitude identificada em Hames (1998), em estudo conduzido entre crianças do primário cujo irmão ou irmão possuíam alguma deficiência cognitiva.

Assim como no caso desta sessão, boa parte do material de Hames (1998) foi produzido a partir do discurso e de lembranças dos pais. No caso de Hames, as crianças do estudo tinham até dois anos e eram irmãs mais novas de crianças com deficiência. Sua pesquisa indica que mais da metade dos relatos de mães e pais envolviam o filho caçula imitando ou buscando por similaridades no irmão.

Embora Lucas seja o mais velho, Leilane recupera lembranças de quando o filho buscava por similaridades na irmã, indicando que a deficiência não era necessariamente percebida como alteridade absoluta, como diferença. Inclusive, enquanto falávamos sobre o “início” - como Leilane identifica o nascimento de Júlia e as várias mudanças que daí sucederam - ela lembrou-se também de uma prima sua com deficiência, comentando que entendia Lucas:

Eu me vejo muito nele, sabe, quando eu era menor, eu tinha uma prima que não andava nem ouvia nem falava, é até hoje assim, mas eu lembro que perguntava também pra minha mãe por que minha tia saia tanto com minha prima e ela não saía assim comigo. Falava que também não queria andar, que também queria andar na cadeira, que tinha duas rodas que era legal.

Embora Lucas procurasse emular os comportamentos da irmã, as diferenciações seguiam se intensificando, e o garoto, segundo a mãe, passou a apresentar mais ciúmes, uma maior insegurança e timidez. Nos estudos de Burke (2009), com quem aqui procuro dialogar, muitas das crianças passam a perceber uma assimetria no tempo dispensado a si e ao irmão.

Os irmãos recebem mais atenção, mais cuidado, mais tempo, e até mesmo os recursos financeiros acabam sendo concentrados nas necessidades dos irmãos, que precisam de remédios, fraldas especiais, órteses e outras parafernálias que variam de caso a caso. As crianças percebem isso e algumas vezes constroem identidades negativas em torno dessa diferenciação, já que tudo parece ser direcionado para o irmão.

Essa é uma situação que quase todas as famílias que conheci reconhecem, sendo inclusive um dos assuntos das mães na muretinha do Anita:

Pronto, mulher, até roupinha, sabe, quando eu fui ver, nunca mais tinha comprado nada pra mim e pros meninos, era tudo Maite, Maitê Maitê… até o dia que meu menino do meio veio me falar, né, falar que podia comprar uma blusinha e foi aí que caiu minha ficha. Ai agora eu me policio, pra dar certo pra Gabriel, pra Gustavo, pra Maitê e pra mim também né.

Leilane também reconhece essa mudança na vida do primogênito: “Tipo...tem reunião na escola e nesses três anos eu não fui em nenhuma, não tive como ir, ele fica chorando, falando que a mãe dele não foi”. Com a rotina apertada entre terapias diárias, natação, consultas, aplicações de botox, idas a prefeitura, presença em eventos e grupos de apoio relacionados a síndrome congênita do Zika, Leilane não conseguiu manter o foco também em Lucas, que se sente diferente da irmã.

A questão, contudo, não possui uma especificidade intrinsecamente relacionada à deficiência. O problema maior, no caso, é que a figura que cuida exclusivamente de Júlia é Leilane, não recebendo apoio ou auxílio para dividir atividades do cotidiano do cuidado. Há um modelo de maternidade integral que posiciona a mulher como cuidadora exclusiva dos filhos (Badinter, 2011). No caso de

filhos com deficiência, esse cuidado se torna ainda mais exclusivo, passando a haver uma dedicação maior à criança com deficiência.

Além disso, podemos incluir aqui questões da ordem de serviços e transporte: a maioria das terapias de Júlia são distantes de sua casa, a família depende do transporte da prefeitura, que, embora cubra as necessidades de deslocamento da garota, não possui grande flexibilidade de horários e opções, o que acaba restringindo ainda mais qualquer possibilidade da família reorganizar o tempo. Vejam, não é algo que está diretamente implicado pelo fato da irmã ter uma deficiência, mas como a deficiência se encaixa em um quadro maior de atravessamentos e estruturas.

Contextualizemos, pois, um pouco mais. Lucas, desde que a irmã nascera, vem lidando com menos atenção da mãe, viu o pai cair em depressão, experimentou uma redução na renda familiar. Em meio a esse cenário, Lucas passou a ser apelidado na escola de chocolate preto por meninos que dele zombavam e riam:

Tipo...tem reunião na escola, né, e nesses três anos eu não fui em nenhuma, não tive como ir, ele fica chorando, falando que a mãe dele não foi. E além disso parece que começaram a apelidar ele lá na escola de chocolate preto, algo assim. Ele ficou abalado, até eu descobrir o que era… foi uma semana sem querer ir pra escola de jeito nenhum. Eu perguntava ‘meu filho, o que houve’ e ele só me dizia que não iria mais pra lá. Até que ele me falou, né, me contou o que tava acontecendo. Ai eu perguntei se ele não tinha falado pra professora, ele disse que sim mas que não fez a menor diferença, ela simplesmente ignorou. Eu fui lá né, falar com essa professora. Ela ainda veio me falar que Antônio não tinha dito nada a ela. Mas ele disse, ele disse e eu fui lá na diretora, na supervisora resolver a situação. Falaram alguma coisa pras crianças, porque os comentários pararam. Mas depois quando virou o ano eu mudei ele de escola, coloquei ele aqui em Macaíba.

O racismo tem implicações diretas na construção da identidade e na subjetividade dos indivíduos. E, no caso de Lucas, é um estigma que se instala nesse quadro relatado de pouca atenção, de dificuldades com a adaptação a rotina familiar. É importante entender que a experiência de lidar com um irmão com deficiência não se instala sobre uma tábula-rasa. Como coloca James: “Ainda que as crianças tenham

vivido, comparativamente, um período curto de vida, é importante considerar que as crianças possuem trajetórias de vida, sendo sujeitos autobiógrafos e capazes de reflexão’ (James, 2005:259, tradução-livre).

As crianças que conheci todas já possuíam trajetórias e experiências de vida próprias, que refletem suas escolhas, interpretações e entendimentos enquanto agentes individuais, mas também passam por especificações políticas, históricas, simbólicas. E essas questões estão direta e urgentemente ligadas às diversas experiências infantis. Burke (2004), neste trabalho com o qual venho dialogando, traz a experiência de dois irmãos, Rani e Ahmed que participaram da pesquisa que pode nos ajudar a pensar melhor a experiência de Lucas. Rani é uma garota de 12 anos que não possui diagnóstico de deficiência, e Ahmed, seu irmão caçula de 9 anos possui Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). A fratria vem de uma família paquistanesa que mora no Reino Unido.

Rani, embora não tivesse diagnóstico de deficiência, foi transferida para uma escola para pessoas com necessidades educacionais específicas porque na escola tradicional ela não conseguia fazer nenhum amigo. Segundo Burke, “a família expressa que eles vêm sendo discriminados devido a sua raça e cultura e que o diagnóstico de Ahmed exacerbou a situação. A combinação dos dois efetivamente acabou “disabling” (Burke, 2004:57) sua filha mais velha. Assim, o atravessamento entre capacitismo e racismo tem implicações diretas não só na vida da criança com deficiência, mas de todos os seus familiares.

Há uma multiplicidade de marcadores que, conjugados, podem aumentar a experiência de opressão. Vejam, uma desigualdade de gênero perpassa a falta de tempo da mãe, que se entrecruza com questões de raça, classe, deficiência. Nesse sentido, uma perspectiva interseccional é basilar para dar conta das diversas experiências das irmãs e irmãos, como procurei demonstrar a partir de que aprendi com Lucas, da experiência de Rani e Ahmed, de Maria Paula.

No campo de estudos sobre deficiência, a interseccionalidade já vem sendo pensada como ferramenta de análise e pensamento muito importante. Anahi Guedes Mello e Adriano Nuernberg (2012), por exemplo, em diálogo com estudiosas vinculadas à crítica feminista dos Estudos da Deficiência, localizam a experiência da

mulher com deficiência como uma experiência de ‘dupla desvantagem’, devido a uma “complexa combinação de discriminação baseada em gênero e deficiência” (Mello e Nuernberg, 2012:639).

Como foi sugerido na experiência de Maria Paula, onde a distribuição de tarefas baseadas em gênero tem uma repercussão direta em seu dia a dia, cada experiência tem transversalidades específicas e insidiosas. Lucas, embora tenha enfrentado alguns momentos de dificuldade, não ocupa o papel de cuidador de Júlia, ainda que participe da rotina familiar.

Leilane, inclusive, me falou sobre a atuação do primogênito comparando-lhe com Maria Paula: “acho que se eu tivesse menina também ia ser do mesmo jeito, a mini-mãe, mas ele ajuda, sabe, um pouco, fica com ela enquanto eu lavo a louça, tira a roupa dela pro banho, leva toalha…”. Realiza, basicamente, atividades semelhantes às de Nelson no núcleo familiar, contudo, sua experiência é atravessada por processos e situações distintas.

Se quisermos dar conta das demandas e necessidades específicas das crianças, precisamos perguntar por esses contextos. É perguntando por eles que podemos traçar estratégias e ações práticas mais efetivas, que contemplem as demandas das crianças.

*

Tanto Maria Paula quanto Lucas Antônio tiveram irmãos diagnosticados com a Síndrome Congênita do Vírus da Zika. Contudo, cada um experiencia e vivencia a situação de maneiras que, como vimos, são muito diferentes. Além das variáveis estruturais, cada criança possui inclinações, preferências e interpretações próprias, o que revela a riqueza e complexidade do universo infantil. Neste capítulo, procurei dar conta de algumas dessas diferenças e semelhanças, contribuindo com uma maior compreensão sobre os fenômenos envolvidos na forma como a epidemia do vírus da Zika se desdobrou na vida desses atores em particular.

Embora tenha procurado direcionar algumas dessas vivencias, a pesquisa revela a necessidade de serem conduzidos estudos cada vez mais específicos sobre a vivência das irmãs e irmãos de crianças diagnosticadas com a Síndrome Congênita do Vírus da Zika.

PROPOSIÇÕES FINAIS

Uma epidemia, enquanto fato social total, atravessa todas as instâncias da sociedade, embrenhando-se em meio da vida. Neste trabalho, procurei refletir sobre a infância e as crianças a partir dos desdobramentos da epidemia do Vírus da Zika. Para tanto, uma reflexão conjugada entre infância, deficiência e crianças se mostrou necessária.

No primeiro Capítulo, a reflexão se estruturou em torno da noção de desenvolvimento infantil. O conceito, segunda a pesquisa, está estreitamente vinculado à forma como a infância enquanto categoria estrutural é construída no imaginário social. Os modelos, etapas e fases do desenvolvimento estão diretamente relacionados a um modelo hegemônico de infância, circundado por expectativas e exigências informais sobre como deve ser uma criança.

Assim, modelos de infância ideal ou normal têm como efeito a marginalização e subalternização de corpos considerados “inadequados” diante de tais modelos. No caso de crianças com deficiência, como vimos, a diferença é localizada e identificada como algo ruim, indesejável, em alguns contextos até mesmo intolerável.

Contudo, como toda construção social, os modelos hegemônicos de infâncias e crianças não são essenciais, ou seja, não reproduzem uma verdade absoluta, fixa e imutável sobre a infância. Ao contrário, produzem uma verdade específica cuja força vem atrelada à movimentos históricos e políticos.

Porém, a verdade hegemônica está em circulação ao lado, atravessada e ao redor de outras construções e elaborações. A infância, enquanto categoria social, é também uma categoria em disputa (Szulc e Cohn, 2012). Por mais que modelos hegemônicos de infâncias e crianças possuam peso histórico, político e estrutural, há outras formas de pensar sobre a infância, sobre a deficiência e sobre o desenvolvimento e, assim como as narrativas hegemônicas tem efeitos sobre o desenrolar da vida, também novas narrativas podem gerar novas práticas, novas interações.

Nesse sentido, o segundo capítulo aparece como uma tentativa de pensar outras verdades construídas sobre o desenvolvimento. Trouxe algumas perspectivas teóricas, que aliei às narrativas e práticas vivenciadas em campo sobre o desenvolvimento das crianças, olhando para as práticas e procurando perceber como o desenvolvimento não é algo essencial ou natural, e sim parte do desenrolar da vida à medida que nos relacionamos, nos articulamos e participamos do mundo.

Procurei, então, trazer para o texto relações e práticas cotidianas que envolvem o engajamento na produção do desenvolvimento infantil, como também para diferentes quadros de discursos em jogo que elaboram a deficiência de outras maneiras. A ideia é que as interações e articulações cotidianas, embora possam reproduzir elementos de discursos globalizantes sobre a infância, também produzem e elaboram novas narrativas sobre infância e sobre deficiência que implicam em outras infâncias e deficiências.

Uma das mães que conheci no Anita, por exemplo, me contou que, se pudesse, colocaria a filha dentro de um potinho para lhe proteger. Achava que a deficiência lhe fragilizava. Não deixava a criança tentar andar sozinha, ficava o tempo todo ao seu lado. Com o tempo, contudo, e o convívio no Anita, passou a ouvir os conselhos dos profissionais, que pediam para que ela desse mais liberdade para a menina.

Em poucos meses as engatinhadas foram virando tentativas de passadas. Diferentes práticas e discursos produzem diferentes crianças e infâncias. Neste sentido, é interessante pensar, por exemplo, nas diferentes relações que médicos e profissionais de saúde podem desenvolver com seus pacientes a depender da forma como um entende e posiciona o outro, da forma como se enxergam, como se entendem, como, afinal, se articulam.

No Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi, os profissionais sempre sublinhavam a necessidade de conhecer cada criança, de não confina-la em algum estereótipo de anormalidade, em entender suas facilidades e dificuldades. É esse tipo de disputa sobre infância e deficiência que é importante de ser pautada. A forma como um indivíduo é simbolicamente compreendido e ontologicamente localizado irá influenciar diretamente nas vivências e interações dessa pessoa.

A disputa por narrativas é, sobretudo, uma disputa ontológica, uma disputa por mundos, uma disputa por espaço e acolhimento. A pesquisa revelou que outras formas de se engajar com a deficiência têm impacto direto na própria deficiência, já que, como vimos, restrição de participação e negação de relação são dois pontos centrais na desvalorização da pessoa com deficiência na sociedade. No caso das crianças, uma narrativa sobre desenvolvimento infantil que as leve a sério se revelou, durante a pesquisa, como parte essencial da garantia do bem-estar infantil.

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