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CENA 4: Desenvolvimento infantil e estruturas sociais

2. Desenvolvimento infantil e aprendizagem nas terapias de estimulação

O desenvolvimento infantil, como vimos, vem atrelado à noção de habilidades e competências; para uma perspectiva naturalista, essas etapas surgem natural e biologicamente, já estando programadas no organismo humano. Há, contudo, perspectivas sociais que entendem o desenvolvimento também como parte da aquisição e assimilação de cultura, num processo conhecido como internalização, socialização ou enculturação (Parsons, 1984; Kroeber, 1952 [43] Mead, 1963; Benedict, 1934).

Tais teorias, embora tenham a vantagem de levar em conta o contexto cultural, também reproduzem a ideia de que há uma trajetória pré-definida a ser seguida, mas

no lugar de ser um caminho pré-definido pela natureza, é um caminho pré- estabelecido pela cultura, sendo o sucesso na passagem do estado natural para o estado social uma garantia de um status pleno de humanidade.

Ambas as teorias trabalham com modelos conhecidos como genealógicos, que, nas palavras de Tim Ingold, podem ser definidos pela premissa de que “um indivíduo é especificado a partir de sua essência genética e constituição cultural independentemente e anteriormente a sua vida no mundo” (2011:2, tradução-livre). Novamente, aqui, crianças que não correspondem aos modelos exigidos esbarram em classificações de anormalidade, atraso e pouco desenvolvimento. Além disso, teorias de socialização clássicas também partem de um pressuposto do aprendizado como um esquema vertical, de cima para baixo, em que adultos ensinam e crianças são tábulas-rasas onde a cultura é inscrita (Pires, 2008), o que acaba mascarando a participação e o engajamento ativos que a própria criança tem em seu crescimento e no mundo ao seu redor.

A pressuposição de que o aprendizado envolve uma internalização de um conhecimento anterior e exterior ao aprendiz oblitera o fato de que entre o ensinar e o aprender há vários sujeitos envolvidos, que, como já colocamos aqui, possuem trajetórias próprias que lhes fazem compreender o mundo de determinada maneira. O que é ensinado é reinterpretado à luz da trajetória e dos caminhos vividos por quem está aprendendo, não há um conjunto uniforme de informações idênticas sendo padronizadamemte replicadas. Se esse fosse o caso, seríamos todos iguais.

Felizmente, não o somos, e considero de especial importância enfatizar esse ponto porque crianças com deficiência são geralmente posicionadas num lugar de “más-aprendizes”: por não replicarem ou não “terem capacidade” de replicar a informação que lhes está sendo ensinada de maneira satisfatória.

Contudo, o que as crianças que conheci fazem o tempo todo é aprender: aprendem a interagir com pessoas desconhecidas que vasculham seus corpos e depois se tornam conhecidas e então aprendem a brincar com elas; aprendem a interagir com agulhas, gases anestesiantes, órteses, fitas de compressão. Aprendem, como sugere Tim Ingold (2011), não a partir de uma internalização de fatos externos, mas

aprendem se mesclando elas mesmas nas situações, se misturando nesses conhecimentos, nessas interações.

O conhecimento não é fruto de assimilação, mas sim de vivência, de experiência, de relações sociais; não se trata, portanto, de adquirir conhecimento, mas de gerá-lo e regenerá-lo enquanto participamos do mundo da vida (Ingold, 2010).

Essa foi uma questão que nos chamou atenção durante o acompanhamento das sessões de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia na bexiga4 que pudemos observar nos encontros da pesquisa. Era evidente para mim que havia uma técnica sendo socializada entre terapeuta e criança, mas a técnica não era simplesmente “transmitida” como em modelos clássicos de aquisição de cultura vertical, havia sempre uma negociação, havia experimentação por parte da criança, por parte do terapeuta, por parte da mãe, e até mesmo de minha parte que às vezes entrava no jogo; todos ali faziam a terapia acontecer, todos em processo de aprendizado e desenvolvimento.

Júlia, por exemplo, faz terapias no “Anita” duas vezes por semana: nas quartas e quintas-feiras pela manhã, ela reveza entre dois fisioterapeutas, além de também realizar alguns exames e consultas médicas. Como eu havia combinado com Leilane anteriormente, fui até o Anita para acompanhar uma das sessões de fisioterapia da semana. Cheguei bem cedo, antes mesmo do carro da prefeitura deixar as duas no local. Quando elas chegaram, ajudei Leilane com as bolsas e apetrechos de Júlia e fomos esperar em um corredor próximo à ala de reabilitação especializada, onde são ofertados os serviços para idosos e para crianças e adultos com deficiência.

Cerca de quinze minutos de espera se passaram quando uma moça jovem, branca, de cabelos curtos e óculos de armação grossa e escura aproximou-se de nós, cumprimentando Leilane e Júlia e me estendendo também os cumprimentos. Era Aline, fisioterapeuta com quem Julinha, como foi por ela chamada, teria sua sessão naquele dia: “Vamo lá, Julinha? Como você está hoje?”, perguntou Aline que, em seguida, direcionou-se para Leilane, comentando que ainda vestiria o jaleco, mas

4 Muitas das crianças diagnosticadas com a SCVZ apresentam distúrbios na bexiga em decorrência das calcificações cerebrais, condição conhecida como bexiga neurogênica, podendo causar retenção de líquido na bexiga ou incontinência urinária.

poderíamos seguir para a sala de fisioterapia que logo ela nos encontraria lá. Assim o fizemos, Leilane nos conduzindo com Júlia em seus braços.

A sala de fisioterapia era ampla. Na parede central, de frente para a porta, havia um longo espelho que acompanhava toda a sua extensão. Do lado direito, estava posicionado um tablado com acolchoamento em tons escuros e, à esquerda, um complexo terapêutico com duas escadinhas, uma firme e uma de corda, e um escorregador, todos interligados, fazendo um caminho que poderia ser percorrido pelas pacientes. A parede, magnética, também contava com ímãs em formato de bichos e plantas da floresta, dando um ar de ludicidade à sala de terapia das crianças.

Leilane sentou-se com Júlia no tablado enquanto esperávamos por Aline. Quando a fisioterapeuta chegou, foi a vez de Leilane ir para uma cadeira enquanto a profissional tomava seu lugar segurando Júlia no colo, que estava ainda um pouco sonolenta: “Vamo lá, Julinha?”, dizia Aline, aclimatando a menina ao ambiente da terapia. Aline colocou-a deitada de costas e, com uma faixa, fez uma camada de proteção em volta da mão direita da criança, como se fosse uma luvinha de boxe. Depois, ergueu a menina. A luva, Aline me explicou, era para estimular Júlia a fazer movimentos com a outra mão, referente ao lado esquerdo do corpo, mais afetado pela espasticidade muscular e por isso menos utilizado pela garota, que tem preferência destra.

Leilane estava atenta e, quando Júlia se sentou, pegou uma caixa que estava ao lado do tablado e despejou o conteúdo sobre a superfície: vários bloquinhos coloridos em formato de triângulos, círculos, quadrados. Júlia se empolgou e animadamente bateu palmas enquanto sorria para a mãe, demonstrando que conhecia o brinquedo, que tinha familiaridade com a tarefa que viria. Aline pegou a tampa da caixa que Leilane havia manuseado, que possuía furos no mesmo formato dos blocos em questão.

“Vamos encaixar, Julinha?”, disse Aline, incentivando Júlia a pegar um dos blocos. A menina sorria e esticava as mãos em busca de um dos bloquinhos. Alcançou um triângulo e foi incentivada por Aline a encaixá-lo no buraco do mesmo formato que havia na tampa: “Esse aí é o que? É o triângulo? É… Vamos encaixar o triângulo Júlia?”, dizia para a menina, orientando-a. Aline não simplesmente passava

informação adiante para Júlia, que a recebia passivamente. Aline, por meio de um processo de redescoberta guiada (guided-rediscovery), nos termos de Ingold (2011), participava da experiência da habilidade com Júlia.

Embora Aline tenha aprendido durante as longas horas de estudo uma metodologia padrão para treinar a habilidade de segurar, soltar e encaixar, durante a terapia não são esses movimentos genéricos que são utilizados. Não se trata de um esquema mecânico de regras e representações apresentadas nos livros, mas de articulação, correspondência e interação no momento vivido (Ingold, 2011) da terapia, que envolve reações e negociações para se concretizar. É uma abordagem da formação e do desenvolvimento de tipo ecológica (Ingold, 2010), que considera a ação como parte de um organismo-no-mundo e não como uma projeção de informações já assimiladas por estruturas mentais sobre o mundo.

Há, aqui, um deslocamento importante da epistemologia ocidental: as situações, em uma perspectiva ecológica, não são avaliadas em termos de relações causais, lineares, onde há uma cadeia de acontecimentos que se dispõe em uma sequência cuja origem pode ser traçada a partir de causa e efeito. Nesse tipo de raciocínio, as pessoas, os indivíduos, são tomados como entidades separadas (Fogel, King e Shanker, 2007).

Numa abordagem ecológica, pelo contrário, os elementos, as coisas, as pessoas tomam forma à medida que se relacionam, não sendo indivíduos/coisas/elementos já pré-definidos que se encontram e produzem algo. É uma outra relação com a própria noção de materialidade como ela é pensada no Ocidente. Vejam, temos por costume epistemológico considerar a materialidade como algo fixo, rígido, cuja forma já foi terminada. É o que pensamos sobre a materialidade de nossos corpos, cada indivíduo sendo um todo autocontido.

Mas a matéria, seguindo os argumentos que Judith Butler coloca em seu seminal Corpos que Importam (2019), precisa ser materializada. Esse processo de materialização da matéria envolve um conjunto de forças que se “ancoram”, que precisam entrar em relação e continuamente serem co-(re)produzidas. A matéria, embora sólida, é menos fixa do que parece.

Em um diálogo crítico com a formulação de Geertz sobre os humanos terem um equipamento natural que lhes permitiria viver milhares de vidas, mas acabam por viver só uma, Ingold responde que, au contraire, os humanos não nascem pré- fabricados para coisa nenhuma: “em vez disso, o equipamento que possuem se constitui por meio de um processo de desenvolvimento à medida que eles vivem suas vidas” (2011:9); É o que uma abordagem relacional nos permite conceber: não somos entidades prontas; antes, tornamo-nos constantemente à medida que interagimos como organismos-no-mundo. São as relações que vão nos demandando e nos exigindo transformações.

No dia ao qual estou me referindo, Júlia inicialmente respondeu bem à atividade, interessou-se em se movimentar junto de Aline, em estar numa interação com a fisioterapeuta. Depois de um tempo, contudo, começou a reclamar, cansou-se da atividade. Aline insistiu mais algumas vezes, negociou com Júlia algumas tentativas, mas passados alguns minutos Júlia deu o tom: soltou os blocos que estavam na mão livre e, com a ajuda da mão que estava enfaixada, quase derrubou a caixa com tudo no chão. Era hora de mudar de atividade. Júlia havia ganhado a negociação.

Em diversas outras terapias que pude acompanhar, fui notando que havia certos elementos padronizados, certas técnicas e exercícios que começavam de maneira semelhante, mas que dependiam inteiramente da interação prática para terem continuidade, resultando em distintas sessões de terapia. A ideia de uma criança genérica e de um desenvolvimento padrão deve ser superada para que as demandas das crianças em carne e osso sejam atendidas.

Uma abordagem ecológica é interessante por dar conta da imanência das condições materiais da interação, essenciais para o desenvolvimento. Além disso, o enfoque no desenvolvimento como interação permite que as crianças não sejam vistas como sujeitos passivos da reabilitação, mas como sujeitos ativos que a constroem cotidianamente:

Júlia… assim, hoje em dia ela vai com Aline numa boa, gosta da terapia, mas quando ela chegou aqui, pelas caridade, foi um processo, viu? Ela não podia nem ver a cara dela que começava a chorar. Aos poucos ela foi confiando nela e a terapia foi melhorando…

Esse menino aqui… é uma ginástica, viu? Nos exames, que o indicado é ele tá dormindo, ele fica desperto, espertinho, agora na terapia, que é o contrário, que é pra ele ficar acordado, ele vai lá e me dorme. Faz o que quer mesmo!

A ideia de que as crianças atuam no mundo de forma ativa e são sujeitos sociais plenos foi inicialmente propagada pela abordagem dos novos estudos da infância, ou

new studies of childhood, marcada pelo livro Constructing and Reconstructing

Childhood (doravante, CRC), organizado por Alan Prout e Alisson James. O livro, publicado em 1999, procura deslocar a infância de representações genéricas e essencializantes, altamente marcadas pelas teorias já apresentadas aqui que Hastrup (1993) denomina como uma “semântica da biologia” segundo a qual a criança é um ser em maturação e que toda sua participação social pode ser reduzida a processos biologicamente pré-determinados.

Partindo dessa premissa sobre a infância, as crianças aparecem como índices que recebem a cultura, lentamente adicionada sobre a tábula-rasa biológica, sem qualquer impacto sobre sua formulação. Assim, o comportamento infantil é alojado na esfera da natureza, pré-lógico, irracional, incompleto, confinando as crianças a um lugar de inatividade ou de atividade pré-determinada.

Com o CRC, as contribuições vieram no sentido de redirecionar historicamente a compreensão da infância, pautando suas experiências enquanto sujeitos posicionados social, histórica e culturalmente. O impacto da criança na vida pode ser percebido por múltiplos vieses. Em nossas experiências de campo, como falei, o espaço da terapia é diariamente renegociado, reinventado e reelaborado por e com elas. Mas, para além de tais negociações advindas das próprias crianças, o desenvolvimento da própria terapia depende do engajamento de todos os presentes. Muitas vezes me espantei com a grande trupe que se reunia em torno de algumas crianças para lhe estimularem durante a terapia:

“Hoje a terapia de Júlia foi com Gustavo no segundo pavilhão do CER [Centro Especializado de Reabilitação]. Ele queria testar uma nova forma de estímulo em Júlia a partir de eletroestimulação muscular. Antes de aplicar os eletrodos na criança, contudo, Leilane exigiu que o aparelho fosse testado nela: “preciso saber a sensação antes dela”,

comentou. Gustavo não se opôs e começou a colar os adesivos que vinham conectar aos fios estimuladores na perna de Leilane. Fizemos o teste e, ainda ressabiada, Leilane acabou topando. Eu também testei, por oferecimento de Gustavo. Chegara a hora de fazer em Júlia também. Gustavo vai pegar uma embalagem com “intensity electrodes” novos. Coloca na perna de Júlia, que olha, curiosa. Aproxima a menina do canto porque os fios do neuro-estimulador não são muito longos. Conecta tudo. Antes de ligar, Leilane coloca um forró outra vez, para distrair Júlia e Gustavo começa a estimulação. Júlia primeiro olha para a perna, percebe o formigamento, mas depois se concentra na música. Conforme Gustavo vai aumentando a potência, Júlia começa a olhar mais para a perna e eventualmente começa a reclamar. Olha para o aparelho, olha para Gustavo, olha para a perna, vai entendendo de onde está vindo. Ela reclama um pouco, mas logo Antônio fica dançando na frente da irmã, Leilane canta, Gustavo conversa com ela. Eu entro no balaio e danço também, todos engajados na terapia, todos atentos à Júlia” [Trecho de diário de campo]

Situações semelhantes aconteceram em outras terapias, com outras famílias. Em todos os casos, havia uma grande mobilização de pessoas em volta das demandas da criança, que embalavam situações, investimentos, estratégias. É por causa das crianças que as mães passam horas em ônibus e carros da prefeitura, é por causa delas que dinâmicas familiares são totalmente reestruturadas.

Como diz Lucia, mãe de José Luiz, outra criança com microcefalia que conheci no Anita e que passa por muitas crises convulsionais ao longo do dia e sente muitas: “Eu faço de tudo pra esse aqui parar de chorar”, sendo esse tudo um largo espectro de atividades e elementos que envolve remédios, fraldas, leites especiais, fisioterapia, carinho, atenção. Tudo isso implica em pessoas, em redes que se movimentam a partir das necessidades de José em territórios de cuidado.

São nesses territórios ecológicos do cuidado que as experiências de desenvolvimento se desenrolam, que são gerados e produzidos aprendizados, vidas, culturas. É nesse sentido que desejo pensar desenvolvimento nesse capítulo: como engajamento cotidiano na promoção e manutenção da vida, o que envolve uma atenção e um conhecimento refinado não de todas as crianças do mundo, mas das crianças em questão durante determinada interação.

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