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CENA 4: Desenvolvimento infantil e estruturas sociais

1. Maria Paula

Era uma tarde quente no município de São Tomé, no interior do Rio Grande do Norte. Maria Paula, então com 6 anos de idade, olhava para o seu irmão caçula, que nascera há pouco mais de uma semana. “Ele chora muito”, pensou a garota, enquanto observava sua mãe aflita, embalando o garoto e procurando acalmá-lo. “Definitivamente”, ela seguiu pensando, “chora mais do que as outras crianças…”. Três dias depois, sem sinal de que o choro fosse diminuir, a mãe da garota tomou o carro da prefeitura do município em direção a capital, iria levá-lo ao hospital. Maria foi para a escola, mas mesmo as tarefas e brincadeiras com a amiga Gabriela não conseguiram distrair por completo a menina de suas preocupações.

De volta para São Tomé, sua mãe parecia ainda mais abatida do que antes. Ela reuniu os dois filhos mais velhos na sala: “Preciso falar com vocês”. Nesse dia, Maria recebeu a notícia de que seu irmão era, afinal, “especial”. Ela não havia entendido o que aquilo significava ainda, mas as lágrimas que correram pelo rosto de sua mãe ao longo da semana a deixaram muito preocupada. “Mainha só faz é chorar, o que será que é isso que José tem? Será que é perigoso?”, refletia a menina.

Com o passar do tempo, contudo, as lágrimas de sua mãe foram diminuindo e a rotina da família se movimentando. José tinha que tomar remédios, fazer consultas, ir a terapia. Maria até acompanhava sua mãe algumas vezes. Foi a partir do dia a dia

que Maria foi compreendendo o que era ter um irmão especial e o que isso envolvia. E foi com Maria que aprendi muito também sobre o que é ter um irmão “especial”. Nas próximas sessões, compartilho com vocês o que Maria me ensinou sobre duas coisas: cuidar e aceitar.

1.1 Saber cuidar: conhecimento e responsabilidade

Já se passaram 4 anos desde aquela primeira semana ensolarada em que o irmão de Maria chorava e não se entendia o porquê. Desde então, a família, a partir do convívio, pôde entender melhor o que significava a “Síndrome Congênita do Vírus da Zika”. Para Maria, o entendimento da síndrome veio atrelado a um entendimento de que ela teria um novo papel no arranjo familiar, prestando auxílio nos cuidados de José e cuidando melhor de seus próprios rastros.

Como indica Burke (2004), em estudo realizado com irmãos de pessoas com deficiência, também enfocado em crianças, muitas famílias consideram que não conseguem distribuir atenção na mesma intensidade para todos os filhos, sendo a atenção dispensada ao filho com deficiência maior do que a dispensada aos outros filhos. Maria sente essa diferença de muitas maneiras, mas escolheu um exemplo da rotina para me falar sobre as transformações: “Tipo, antes mainha fazia arroz, salada, mas hoje em dia faz só cuscuz com mistura, é quase sempre isso, falta tempo”.

A falta de tempo observada por Maria também vem associada a questões financeiras: desde o nascimento do irmão caçula, a família de quatro vive exclusivamente da renda oriunda do Benefício de Prestação Continuada. Lucinha, mãe das crianças, precisa fazer um malabares para dar conta das necessidades básicas de três filhos, especialmente das demandas de saúde do caçula: remédios, órteses, cadeiras de roda, leite, fralda.

Maria, aos 9 anos, entende o quanto a mãe se esforça para poder criá-los, e diz que por isso não se incomoda em ajudar em casa, revelando que considera a situação justa: “Tipo, eu ajudo minha mãe e minha mãe faz as coisas que eu quero, que eu preciso”. Maria, segundo ela e sua amiga, Gabriela, já aprenderam muitas coisas

ajudando em casa: “Eu sei passar um pano, ligar o bujão de gás, cozinhar carne, ovo, fazer macarrão…”, me disse, orgulhosa de si.

Já Nelson, o irmão mais velho, de 11 anos, não “sabe fazer nada”, segundo a irmã. Maria me disse isso enquanto caminhávamos pelas ruas de paralelepípedo da cidade, acompanhadas de Gabriela, sua melhor amiga: “lá em casa é assim também, sobra tudo pras meninas!”, completou Gabriela.

Segundo McHale e Gamble (1987), é possível observar que há um impacto maior na vida de garotas que têm irmãos com deficiência no que na de garotos: é sobre elas que a ideia de cuidadora repercute com maior intensidade. Evans (2012), em trabalho realizado entre irmãos e irmãs cuidadores em Uganda e na Tanzania também notou um envolvimento maior e mais direto de meninas nas atividades cotidianas do cuidado, e também Rumeu (2009), em uma revisão da literatura sobre irmãos de pessoas com deficiência, indica que, entre os aspectos mais recorrentes das bibliografias que revisou, a propensão de meninas serem mais afetadas aparece com nitidez.

No caso de Maria Paula e Nelson, pude verificar também uma grande assimetria de tarefas. Além de não participar da rotina doméstica, deixando suas roupas e demais badulaques espalhados pela casa, Nelson também mantém uma participação indireta nos cuidados do irmão caçula, atuando como um auxiliar de Maria, que ocupa efetivamente o lugar de cuidadora do irmão nos momentos em que a mãe não pode estar presente. Há uma diferença entre o auxílio e participação absolutamente comum da participação dos irmãos nos arranjos familiares e a atuação enquanto jovem cuidadora ou cuidador.

A Associação Nacional dos Cuidadores do Reino Unido define a situação de jovem cuidadora como:

Qualquer pessoa com menos de 18 anos cuja vida é, de alguma maneira, restrita devido a necessidade de tomar responsabilidade pelo cuidado de uma pessoa que está doente, tem uma deficiência, está em perturbação mental, é afetada por abuso de substâncias ou convive com HIV/AIDS. (Burke, 2010:67, tradução-livre).

O nível de restrição refere-se, entre outros elementos, ao tempo de lazer, necessidade de faltar aulas para prestar atividades de cuidado, problemas com estigma e até problemas físicos (Becker et al. 2001). Há ainda definições que englobam o tipo de cuidado prestado - como manejo de medicamentos, cadeiras de rodas, órteses - e o tempo de cuidado dispensado durante o dia.

Sem dúvidas, a rotina de Nelson também se transformou com a chegada do irmão caçula: Nelson também falta aulas para acompanhar a mãe e o irmão nas terapias, teve que fazer exame de sangue, o que rendeu um desabafo com a irmã: “Paula, você deu foi sorte de eu ir hoje mais mainha que tiveram que tirar meu sangue, não gostei não”, me relatou sua irmã. Contudo, na distribuição geral de tarefas e tempo, é Maria Paula quem se responsabiliza mais.

A própria Lucinha me revelou isso uma vez enquanto conversávamos no Anita sobre os dois rebentos mais velhos:

Como você sabe, Thais, José chora demais, né, e eu não consigo deixar ele chorando e ir cuidar, eu preciso ter com ele. Quando Paula tá perto eu deixo, vou fazer o que preciso, quem mais me ajuda em casa é ela, eu deixo ele com ela.

A descrição de Lucinha se tornou perceptível para mim quando fui passar um fim de semana na casa da família. Durante os dias que estive lá, vi Maria ministrar remédios, dar banho, varrer a casa, ao passo que Nelson tinha atuações pontuais, como esquentar a água do banho para que Maria terminasse a atividade. Embora Nelson seja o mais velho, é Maria quem dá conta das responsabilidades: “Eu tenho medo de deixar ele cair”, me contou Nelson, explicando sobre por que não dava banho no irmão.

Mesmo quando a atividade não envolve “riscos” para o irmão, a encarregada é Maria Paula. No fim de semana que passei com a família, iríamos para um concurso de garota caubói 6do município, no qual Maria desfilaria na ala infantil. Enquanto Nelson brincava na porta de casa com os primos, Maria, já enfeitada para o desfile, foi quem arrumou todos os itens da bolsa de José: “Primeiro vou dar o Depakene pra

6 Durante o mês de junho, há várias festividades ligadas a vaquejada. O concurso de garota e garoto

ele, que ajuda nas crises”, me disse a garota, nomeando o remédio e me descrevendo para o que servia.

Deu o DEPAKENE® com a ajuda de uma seringa que inseriu na boca do irmão e foi pressionando para que o líquido do medicamento chegasse a boca de José. Fez uma massagem no irmão e seguiu arrumando a bolsa. Havia uma sequência própria utilizada por Maria para não esquecer de nada; “Primeiro a gente pega a fralda, o lenço umedecido e o pano. Esses são os principais”, me falou. “Depois, os remédios. Os remédios... os remédios dependem do horário e quanto tempo a gente vai ficar fora pra saber quais a gente precisa levar ou não. Hoje a gente vai levar o fenobarbital e o clonazepan7”, concluiu a garota, mostrando familiaridade e conhecimento refinado sobre os cuidados do irmão.

Embora Nelson ajude Maria, é ela quem se identifica com o papel de cuidadora do irmão: “tipo, eu ainda brinco, né, mas brinco menos, já o Nelsinho continua brincando igual e eu… eu cuido, né?”, me revelou, enquanto conversávamos sobre suas percepções. Há outros sinais sutis que nos ajudam a entender como Maria visualiza a sua posição de irmã de forma distinta da de Nelson. Naquele mesmo fim de semana em que estive em São Tomé, estávamos todos na sala, assistindo o programa do Luciano Huck e batendo papo.

Como eu havia lido em múltiplas fontes que frequentemente irmãos de crianças com deficiência tendem a desejar profissões que poderiam auxiliar os irmãos no futuro, resolvi perguntar às crianças quais profissões elas gostariam de ter. Estávamos eu, Maria, Nelson e Gabriela, e todos começaram animadamente a me responder, ao mesmo tempo. Passada a empolgação inicial, perguntei um a um.

Gabriela foi ligeira: eu quero ser veterinária. Nelson, animado, me disse que seria jogador de futebol ou vaqueiro, fazendo um gesto de quem monta um cavalo. Já maria foi assertiva em suas opções: ou fisioterapeuta, ou advogada, para poder ajudar o seu irmão.

Segundo Becker et. al (2001), a definição de jovem cuidador deve passar também pela percepção da própria criança ou adolescente sobre sua posição. A identidade de cuidadora é algo que habita a localização de Maria no mundo, enquanto 7 Patenteado sob o nome de Rivotril®.

Nelson parece não dividir essa responsabilidade da mesma maneira. Castro e Moreira (2018), em uma pesquisa voltada para a experiência de mães de pessoas com deficiência, indicam que há uma ressignificação do que significa ser mãe, do que esse papel envolve, quais habilidades são exigidas. Assim:

(...) A presença dessas crianças vivendo com condições complexas e raras produz “novas” mães que aprendem a falar de seus filhos incorporando avaliações técnicas, dominando conhecimentos sobre tecnologias, parâmetros e sinais. (Castro e Moreira, 2018:9)

Tomando as devidas proporções, é possível pensar que a convivência com José, o laço de parentesco e a forma como ele é atualizado e mantido gerou em Maria Paula uma nova concepção do que significa ser irmã, do que essa relação demanda e produz. Maria domina técnicas, sabe o nome de remédios, sabe ministra-los, aprendeu a manejar cadeiras de rodas, órteses, a fazer seu mingauzinho, a identificar e nomear outras deficiências. A todo momento a identidade de irmã de José é acionada na vida de Maria, nas mais variadas situações.

No dia que eu estava indo embora de São Tomé, Maria foi quem me acompanhou até o terminal rodoviário onde eu pegaria meu ônibus de volta para Natal. Enquanto esperávamos, um cachorro felpudo em tons caramelo passou por nós. Maria apontou para ele, observando que era bonito. Perguntei se ela tinha vontade de ter um cachorro: “Ah, tipo depende, né, eu não sei se faria mal pro José”, me respondeu, novamente levando em consideração a presença de José em sua vida e em sua tomada de decisões.

No campo de estudos da infância, o conceito de “responsabilidade” vem sendo considerado como um elemento chave para uma abordagem mais acertada das infâncias modernas (Lara e Castro, 2016). Em teorias do desenvolvimento clássicas, abordadas na primeira parte deste trabalho, a responsabilidade é mais uma das questões cronologicamente marcadas, sendo assim identificada com o processo de maturação. As crianças, dentro de uma lógica desenvolvimentista maturacional, seriam ainda incapazes de responsabilidade, sendo identificadas com a passividade, a inércia.

O acompanhamento etnográfico da vida das crianças, contudo, vem revelando a ativa participação social das crianças em atividades em que a responsabilidade é um elemento central. Elizabeth Such e Walker (2003), em uma pesquisa de quatro semanas de convívio com crianças do primário, indicam que, além de serem encarregadas de atividades cotidianas de manutenção da vida doméstica, as crianças possuem narrativas e percepções próprias sobre a responsabilidade.

Para as crianças do estudo de Such e Walker (2003), ser responsável significa ser honesto, justo, assumir seus próprios atos. Em geral, esse tipo de conduta foi identificado pelas crianças como uma forma positiva e aprovada de ser criança. As responsabilidades e tarefas fazem parte do próprio senso de localização e identificação das crianças no mundo. É a partir do que podem ou não fazer que circulam ou não por certos espaços, podem ficar mais ou menos tempo na rua, podem ou não ficar sozinhos. E essa construção identitária que passa pelas práticas e atividades diárias também é vislumbrada pelas outras pessoas com quem as crianças se relacionam.

O reconhecimento de Maria como cuidadora, por exemplo, não vem apenas da própria menina. Durante as atividades de cuidado e outras tarefas nas quais ela participa, Maria vai também ocupando um lugar de destaque nas relações familiares e de vizinhança: é nela que a mãe confia para resolver pendências relativas a contas no mercadinho, dívidas com vizinhos. Maria sai acompanhada de sua inseparável amiga Gabriela e juntas as duas rodeiam São Tomé, atualizando suas relações com outras crianças e adultos, ganhando um status diferenciado.

Seguindo o argumento de Hopkins e Pain (2007) o acesso das pessoas a determinados ambientes, lugares e interações vem cortado pelo fator geracional, mas, no caso de Maria, as habilidades e confiança oriundas de seu zelo exemplar pelo irmão lhe permitem acessar situações que Nelson, por exemplo, embora seja mais velho, não acessa.

Não deixam de ser crianças, mas são crianças que possuem, ao mesmo tempo, saberes infantis, relativos à cantigas, brincadeiras, mitos e histórias (Corsaro, 2003), e também saberes “de adulto”. É um conhecimento que ajuda no processo de diferenciação e identidade da própria Maria, revelando-nos que a identidade geracional não é algo fixo, e sim dinâmico (Belisário, 2016).

Quando ela me disse que “Nelsinho não sabe fazer nada”, ela estava implicitamente falando sobre as coisas que ela sabia, sobre os conhecimentos que ela detinha. Maria permanece se identificando como criança, mas ao mesmo tempo procura se diferenciar, de forma positiva, como uma criança responsável, habilidosa.

Embora o status diferenciado seja apreciado por Maria, ela também sente falta de poder brincar a vontade, de passar a vez de cuidar do irmão com a liberdade que Nelson o faz. Assim, conquanto seja importante não confinar Maria num lugar de vítima, é preciso entender que a desigualdade de gênero e a distribuição sexual do cuidado possuem efeitos diretos sobre a experiência de Maria, negativos e positivos.

Saber cuidar, portanto, além de “dar comida, porque ele fica com fome, dar comida, trocar fralda, dar banho… tipo… fazer mingauzinho pra ele…”, como ela me disse, é também tecer relações, negociar identidades, posicionar-se no mundo. É ter conhecimentos específicos e responsabilidade. Saber cuidar faz parte do entendimento de Maria sobre o que significa ter um irmão com necessidades especiais e nos elucida o fato de que crianças não apenas reagem a situações de maneira passiva, mas interpretam e procuram avaliar de que forma estão vinculadas a determinada questão.

1.2. Saber aceitar: “eu boto a muléstia neles”

Além das transformações na rotina advindas do “saber cuidar”, José Luiz também modificou algumas visões de mundo de Maria. No sábado em que eu estava em São Tomé e haveria o concurso de garota caubói, pude conversar muito com Maria e com Gabriela. Fomos na vendinha do lado pegar um dinheiro que uma “comadre” de Lucinha estava devendo, passamos na casa da tia de Maria em busca de esmaltes para o evento, rodamos pelo supermercado principal do município.

Nesse mesmo dia que caminhávamos pelas ruas de paralelepípedo da cidade, fomos à casa de uma das maquiadoras locais para Maria se enfeitar. Era junho, mês de vaquejada e época de matutar, e Maria, como já comentei, foi uma das crianças selecionadas para desfilar na ala infantil do concurso Garota Caubói do município, festa que aconteceria naquela noite. A casa estava lotada de mulheres, que ouviam som alto, fofocavam e davam gargalhadas enquanto enfeitavam o rosto e os cabelos

das demais participantes do evento. A casa estava, literalmente, uma festa. Achei tudo muito divertido e comentei isso com Maria Paula quando de lá saímos: “Elas são legais, né?”, pontuei. “O melhor de lá”, sugeriu Paula, “é que elas não têm preconceito com nada! Você pode ser gorda, ser lésbica, ser negra, lá é tudo normal, lá tudo pode!”.

Gabriela, que ainda nos acompanhava, comentou que se havia algo no mundo que tirava a amiga do sério era o preconceito. Maria concordou: “É verdade!” Aproveitei a brecha para perguntar se Maria havia sempre sido “cabrera” com preconceito: “Não, não… Antes do meu irmão nascer eu não ligava, eu ouvia o povo falar preconceito e eu não tava nem ai, não ligava mesmo não. Mas agora… Agora se alguém arengar o José com conversa de preconceito”, e ela pausou, pensando em possíveis consequências. “Aí o que?”, insisti. Maria Paula me olhou e com a voz firme disse: “Aí...eu boto a muléstia neles!”.

Foi a partir do convívio com a deficiência do irmão que Maria Paula passou a reparar também em outras diferenças, em outros tipos de preconceito e efetivamente se posicionar contrária a eles. A aceitação, para Maria Paula, é uma das questões basilares do convívio e da percepção da deficiência: “Tem irmão que não aceita, sabe?”, ela me disse, enquanto caminhávamos de volta para sua casa.

“Como assim?”, perguntei. Gabriela tomou a dianteira da resposta: “Ah, tipo, tem uma menina lá na nossa escola que o irmão dela nasceu com… com…”, dizia Gabriela, tentando lembrar o diagnóstico do garoto enquanto, gestualmente, erguia as mãos sobre a cabeça, querendo indicar que o garoto tinha uma cabeça grande.

“Hidrocefalia”, disse Maria Paula, mais familiarizada com termos técnicos, já que, além de cuidadora do irmão em casa, também vai com certa frequência às terapias e consultas, onde convive com outras deficiências além da SCVZ. Foi a própria Maria quem deu continuidade a história: “Sim, daí ele nasceu com hidrocefalia e ela [a menina da escola] é só choro… chora o tempo todinho, não aceita o irmão”.

Para Maria, aceitar o irmão significa “butar a muléstia” em quem vem atazanar José por conta de preconceito, mas significa também tratar como um normal: “o povo véve falando ‘bichinho, coitadinho’, e tipo… tem que tratar ele como um normal”, ela

arguiu. Isso não significa desconsiderar suas necessidades específicas, e sim acolhê- las, normalizá-las, entender que fazem parte da vida de José.

Ainda pensando na reação de Maria ao preconceito e a aceitação, pensei também em Goffman, que coloca, no célebre Estigma: notas sobre a manipulação da

identidade deteriorada, que é comum familiares e pessoas próximas de sujeitos

estigmatizados serem também vítimas da estigmatização, num processo de “difusão do estigma”, citando o relato de uma garota cujo pai havia sido preso e, por isso, tinha dificuldades para fazer amizade (2004).

Na literatura disponível sobre a relação de irmãos de pessoas com deficiência, a questão da difusão do estigma aparece com certa frequência, e costuma gerar dois tipos de reação: ou os irmãos sentem-se frustrados, queixosos e revoltam-se contra o diagnóstico da deficiência na família, isolando-se e apresentando quadros de depressão, ou tomam a questão como uma bandeira a ser defendida (Burke, 2004; McAdams, 2016).

Segundo Burke, as reações negativas estão associadas à desvalorização da deficiência, já apontadas em extensão no Capítulo 1 deste trabalho. Como as crianças são sujeitos efetivos, também imersas em um contexto histórico e político específico, elas estão expostas e são atravessadas por narrativas negativas em torno da

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