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CORPO E PENSAMENTO: ENTRE A ALTITUDE E A BEATITUDE

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Academic year: 2021

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CORPO E PENSAMENTO: ENTRE A ALTITUDE E A

BEATITUDE

Marcos Guilherme Belchior de Araújo

Michel Serres, no livro Variações sobre o corpo1, consegue transmitir algo que, para o objetivo do presente escrito, constitui a experiência fundamental de um exercício afirmativo do pensamento e de sua perspectiva de diferenciação. Já nos agradecimentos, percebemos a orientação de sua empreitada, quando se refere aos seus professores de ginástica, treinadores e guias de montanhismo como aqueles que o ensinaram a pensar. No que parece estranho à primeira vista, mas revelando uma complexidade sutil que justifica tais relações, Serres passa a desdobrar os saltos e as vertigens de seu pensamento numa abertura a sensibilidades diferenciantes e plurais acionadas na experiência que seu corpo vive em práticas corporais, em especial no montanhismo. A caminhada por terrenos irregulares, a escalada em rochas, o cálculo minucioso e inventivo dos movimentos, o aroma e a visão das alturas, o peso do equipamento e o peso dos hábitos. Tudo isto produzindo assombros e interferências, um turbilhão de sensações misteriosas e pululantes que mergulham o corpo em outras dimensões, povoadas por devires inumanos, animais, ancestrais. E Serres se permite o desafio de capturar, no exercício da escrita, as ressonâncias desses devires em seu próprio corpo e em seu próprio pensamento. Resgata potências corporais adormecidas, esgarça-se por todos os lados e se (re-)individua num processo em que já não é mais possível dizer-se através de um “eu”: “Eu nunca soube explicar o eu nem descrever a consciência. Quanto mais penso, menos sou; quanto mais eu sou eu, menos penso e menos ajo”.2

Contudo, por qual motivo trago esse texto curioso para explanar o que nos interessa, que seria um esboço das mútuas interferências entre corpo e pensamento? E como articular essa perspectiva a um plano de imanência que lhe é constituinte? Quais seriam as implicações da minha aventura em lidar com questões e conceitos tão abrangentes como os que saltam aqui?

Primeiramente, compartilho com o autor a paixão pelo montanhismo e pelo contato com a floresta. Nas trilhas e escaladas que faço, percorro dezenas de quilômetros mata adentro em três ou quatro dias numa imersão absoluta com outros

1

SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

2

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insondáveis e desconhecidos devires (animais, tribais etc.) que, através de meu corpo, falam outras línguas, compreensíveis somente num nível espiritual e intensivo pré-linguístico, pré-individual, e cujo abalo me contorcem e me fazem construir outras relações com o mundo. A princípio, o que acontece é uma abertura aos “mais ínfimos limites do sensível”, uma exposição do corpo e dos hábitos nele contraídos a situações que forçam o pensamento a se desestruturar e a tomar novos contornos, novas processualidades metaestáveis.

Além da provocação pessoal, o texto de Michel Serres suscita a presença de um outro plano que denomino de ‘corporeidade do pensamento’ que, apesar da distinção semântica entre os termos, fazem referência antes de tudo a domínios que comparecem perturbando e interferindo um no outro, mergulhados em movimentos, lutas, contágios, afecções que constituem uma zona de indiscernibilidade entre ambos, seu plano de imanência. Mas vamos devagar.

Quando utilizo a expressão ‘corporeidade do pensamento’, refiro-me à dimensão potencial e nutridora do pensamento, à superfície de contato com a alteridade-mundo e meio de impregnação pelos afectos e perceptos na ação do pensar, pois é através do corpo e das forças que o interpelam que somos coagidos a pensar, a agir, a criar. Serres observa que em “qualquer atividade a que nos dedicamos, o corpo é o suporte da intuição, da memória, do saber, do trabalho e, sobretudo, da invenção. Um procedimento maquinal pode substituir qualquer operação do entendimento, jamais as ações do corpo”.3

Nietzsche, no seu Zaratustra, faz referência ao corpo como aquele que experiencia o mundo e que dá sentido a todas as nossas vertigens de pensamento, de juízo, de valor. A alma é um produto determinado de devires corporais particulares: “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas ‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão”.4 E é esta grande razão que produz o orgulhoso “Eu”, uma vez que proporciona ao “Eu” a intensidade da experiência: “O ser próprio diz ao eu: ‘Agora, sente dor!’ E, então, o eu sofre e reflete em como poderá não sofrer mais – e para isto, justamente, deve pensar. O ser próprio diz ao eu: ‘Agora, sente prazer!’ E, então, o eu se regozija e

3

Ibid., p. 36.

4

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 9a ed. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. Pp. 51.

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reflete em como poderá ainda regozijar-se muitas vezes – e para isto, justamente, deve pensar”.5

Nietzsche sugere que, no encontro com o mundo, é nosso corpo que apreende e registra afectos e perceptos a partir dos diversos campos de forças atuantes na realidade, é ele também que conduz a energia que estimula o pensamento e que o incita a se exercer enquanto tal, na sua diferença mesma. O filósofo alemão apreciava caminhadas por bosques e montes. A vida é como uma trilha na montanha, uma escalada: o terreno é irregular, cada passo exige uma performance díspar; movimentos repetitivos e desconectados de sua corporeidade equivalem à queda, à morte. (E é na morte que o “eu”, esse ícone da interiorização racional encontra sua maior expressão; para alguns, haveria um paradoxo em conjugar o verbo morrer em primeira pessoa = eu morro, isto é, seria inconjugável. Contudo é na primeira pessoa que o verbo morrer encontra seu maior aliado. É quando o ‘eu’, o sonho identitário, atinge seu auge e repousa quieto e absoluto na sua plenitude mesma, serena, interior, sem vida, sem alteridade, só eu, agora, morto!).

Levando-se em conta que a corporeidade do pensar equivale a conceber o corpo como produtor de sensações díspares que mobilizam o pensamento, ora desterritorializando-o, ora reterritorializando-o, e que tais sensações se referem a um campo vital-intensivo acionado pela presença do outro em sua singularidade, logo concluímos que, na atualidade em que vivemos, o corpóreo do pensamento, essa conectividade, esse nosso espaço vital, encontra-se ameaçado. A cada dia, deixamos de ocupá-lo, de vivê-lo, de sê-lo. Estamos incorporando, naturalmente, um processo de inquilinato para conosco. Por um lado, estamos abandonando nossa experiência vibrátil-corporal consigo e com o mundo. Por outro lado, tal abandono nos conduz a processos de dependência em relação a determinadas formas de poder que nos privam de viver e pensar em nosso plano, em detrimento do conforto de viver e pensar nos mundos criados a serviço do consumo. Uma relação de inquilinato estabelece que não somos proprietários do espaço onde habitamos e que temos que pagar de alguma maneira os custos desse espaço estranho. Acontece que o espaço que está sendo tornado estranho é a nossa própria carne, colonizada e cafetinada a serviço do capital e de suas estratégias de captura.

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Entretanto, se o corpo-subjetividade trafega em zonas cujas forças são movidas para a repetição, a conservação e a manutenção do mesmo, há necessariamente forças que perpassam o mesmo corpo-subjetividade e que comportam propriedades diferenciantes. A possibilidade de tecer um plano de singularização, de estilização, a partir de um domínio dessas forças em si constitui o que Deleuze chama de dobra da força, ou processo de subjetivação para Foucault6.

Em última instância, trata-se não de enfatizar o corpo mesmo, nem a infinita gama de possibilidades experimentais que o corpo permite e comporta. O que nos interessa é destacar uma determinada zona que viabiliza experiências de singularização não-subjetivadas e não-objetivadas, zona essa que dota o pensamento de uma propriedade mais visceral e ao mesmo tempo imaterial, mais singular e ao mesmo tempo coletiva. Ou seja, a relação de imanência que há entre pensamento, corpo e vida.

Deleuze7 caracteriza a imanência como um plano em si, um plano impessoal, não individuado, definido como UMA VIDA. Não se trata de imanência para a vida, mas do imanente que existe absoluto em si, “ele próprio, uma vida”. Trata-se de pensar a imanência em sua plena impessoalidade, em sua total e apriorística condição de ser anterior a qualquer plano subjetivante ou objetivante, sem contudo deixar de ser-lhes co-extensivos. Não é a vida que valida o plano de imanência, pois correríamos o risco de apontar “que vida?”, e de procedermos a uma reatualização do ontológico-universal. É que o plano de imanência, em sua propriedade de não mais se remeter a um Ser, não cessa de se situar em uma vida (expressão cujo artigo indefinido demarca seu não-lugar, sua singularidade, contudo imanente e absoluta).

Segundo Deleuze, uma vida está presente em todos os lugares, ocasiões e acontecimentos que habitam os sujeitos vivos e objetos vividos, vida imanente que “transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos”. Atualização esta que sinaliza seu nomadismo, seu movimento de devir: abertura e construção de possíveis. Princípio que não se encontra regido pelos eventos de um passado-presente transformados em gravuras, registros, arquivos, algo que não sou mais [atual]; trata-se, antes, de um plano processual que aponta na direção do que somos em devir.

6

DELEUZE, G. (1987). Foucault. Trad. de José Carlos Rodrigues. Lisboa: Vega.

7

Publicado originalmente em Philosophie, número 47, 1995: 3-7. Utilizo a tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Disponível em: http://www.ufgrs.br/faced/tomaz/imanencia_i.htm

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A vida impessoal, segundo Deleuze, não se confunde nem comporta os campos do já adquirido e do atual, não há uma ligação do tipo ‘o que sobrevém ou o que sucede’, mas na sua profundidade a-temporal, essa vida indefinida se estende no acontecimento por vir e no já ocorrido. “As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes d’a vida correspondente, mas não se agrupam nem se dividem da mesma maneira”. O que difere um do outro é o modo como se comunicam. Por um lado, temos a passagem de intensidades entre devires, comunicação inumana, molecular; por outro lado, as comunicações circulam entre formas compostas e forças disruptivas, que sempre estão interagindo com planos definidos, individuados. Singularidades e acontecimentos impessoais circulam à vontade, por exemplo, nas crianças bem pequenas.

Entre comunicações inevitáveis, o pensamento ressoa na vida e vice-versa, num movimento cadenciado pelo acaso, sem sujeitos e sem objetos, só em puro acontecimento. Aqui, o pensamento, tecido por partículas impessoais, forma corporeidades e vidas que lhe são correspondentes. Livre do jugo de quaisquer pronomes pessoais, conjuga-se a si mesmo, destrói mundos, constitui outros. Creio ser nosso desafio compor com esse tipo de pensamento-acontecimento estilos que resgatem nossa corporeidade para a vida. Pensar a partir de si e construir zonas de diferença significam um risco e uma violência que se exercem primeiro para consigo, numa viagem incerta rumo ao desconhecido, fora dos limites tranqüilizadores e à mercê de todas as vertigens de altitude e de beatitude.

Marcos Guilherme Belchior de Araújo é psicólogo e mestrando pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade / Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC/SP.

Referências

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