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A ESPECIFICIDADE DA PSICANÁLISE. Waldemar Zusman

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Academic year: 2021

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A ESPECIFICIDADE DA PSICANÁLISE

Waldemar Zusman

Nossa ciência acaba de alcançar e ultrapassar seu primeiro centenário sem ter, no entanto, podido assinalar de forma mais rigorosa e menos equívoca o

elemento definidor de sua singularidade no concerto das ciências universais. Veio ao mundo pelas mãos de Freud quando as chamadas ciência naturais, a física e a química, já tinham alcançado seus padrões mínimos de

confiabilidade experimental. A medicina já se proclamava uma ciência experimental e lutava para expulsar do seu campo as práticas mesmeristas e xamanistas que se apoiavam nos princípios vitalistas do fim do século XIX. Freud já era um adepto da experimentação científica. Trabalhava no

laboratório de Brücke, um renomado centro de fisiologia experimental, ligado à Escola de Hemholtz.

Coube-lhe,no entanto,ao lado de Breuer, defrontar-se com os fenômenos da histeria e reconhecê-la como entidade nosológica, ainda que lhe faltassem os substratos orgânicos da patologia celular recomendada por Virchow e aceita pela comunidade científica desse tempo.

Freud, no entanto, não se deixou vencer pela ausência de uma histopatologia definidora dos sintomas clínicos das enfermidades com que se defrontava e procurava tratar. Refinou cada vez mais seus processos de investigação pondo de lado progressivamente a abreação que aprendeu com Breuer e a

sugestilidade hipnótica que lhe transmitiram Charcot e Bernheim.

Seus notáveis talentos intuitivos e sua invulgar capacidade de observação levaram-no a um refinamento semiológico da narrativa de seus pacientes, aos quais ele terminou por deixar falar à vontade e, em seguida passou a solicitar-lhes que não direcionassem o pensamento. Uma de suas pacientes, Ana O., a quem atendia junto com Breuer, reclamou uma vez que Freud a interrompia com suas perguntas. E foi ela mesma que chamou o seu tratamento de “cura pela fala” (talking cure). A “livre associação de idéias” tomou, então, o lugar da ab-reação ou catarse (como também se chamava), e abriu o caminho para novas e mais extraordinárias descobertas como a transferência, a resistência. e o Complexo de Édipo. O refinamento progressivo de suas técnicas de

observação e tratamento levou Freud a recomendar ainda dois preceitos fundamentais : a “regra da abstinência” e a postura da neutralidade.

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A otimização do exercício destas recomendações terminaram por criar um setting, um conjunto de normas e um espaço externo correlato, dentro qual as referidas normas eram aplicadas.

Estas mesma normas, cujas características básicas subsistem ate os dias de hoje para a maioria dos analistas, vêem ao longo dos tempos passando por algumas transformações, que em certo número de casos decorrem do fato de que alguns pacientes não conseguem se submeter a todas as regras

estabelecidas por Freud, como por exemplo deitar-se de costas para o analista e não poder fita-lo enquanto falam. Em outras circunstâncias uma elevada freqüência ao consultório torna-se proibitiva por razões de distancia ou de remuneração.

A modificação de qualquer dos itens determinados por Freud gera em muitos analistas um considerável desconforto. Muitas vezes um paciente deixa de ser atendido pelo temor de que faze-lo represente uma traição à psicanálise.

Se, no entanto, o paciente é atendido o próprio analista renomeia. o tratamento chamando-o de psicoterapia, o que muitas vezes contribui para que a relação do analista com o paciente e com o tratamento passem por um certo grau de leniencia que rebaixa o padrão da relação.

Entendo que uma das razões da crise por que passa a psicanálise no mundo inteiro tem muito a ver com o fato de que ela não conseguiu alcançar a essência de sua própria substância e de não ter podido se definir como tal. Não que faltassem a Freud os elementos necessários e essenciais a esse

vislumbre. Há que se admitir, no entanto, que o medo de que suas descobertas fossem lançadas na vala comum das teorias ocultistas ou desqualificada como ciência judia levou.Freud a atrelar a psicanálise ao paradigma das ciências naturais.

É certo que protegeu a psicanálise de um desaparecimento precoce, mas deixou-a desatrelada de um vínculo geracional, capaz de lhe conferir, desde o início. a especificidade necessária e a definição precisa.

Todas as definições da psicanálise, começando por Freud, dizem que

psicanálise é tudo o que utiliza os conceitos de transferência e resistência para interpretar comunicações do paciente obedecendo às “regras de abstinência”, a partir da neutralidade. Uma definição de métodos, que contorna o problema da essência. A isto foram se somando ao longo do tempo caracterizações

circunstanciais como duração das sessões, número de sessões por semana e mobiliário básico do setting analítico.

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Sabe-se hoje , e já o sabemos desde Freud, que a psicanálise não é um ramo da medicina..Ao defender Theodor Reik, analista leigo, de um processo penal, Freud deixou bem claro que, ser médico não era um requisito indispensável ao exercício da profissão. No entanto, e talvez porque ele fosse médico ,vários conceitos procedentes da medicina impregnaram seus escritos e ganharam franca circulação como: cura, prognóstico,reação terapêutica negativa, etc. A psicanálise, no entanto, é uma “talking cure”, como disse Ana O. Claro que não no sentido superficialmente referido por Berta Pappenheim (seu

verdadeiro nome) mas no conteúdo implícito do que ela possivelmente intuiu, sem decifrar.

A importância da palavra e de sua qualidade simbólica não eram estranhas a Freud. Seus estudos sobre a afasia levaram-no a lúcidas noções sobre o conceito de representação, de que depende essencialmente a vida mental do ser humano.

Em trabalhos subseqüentes ele definiu melhor os conceitos de representação de coisa e representação de palavra.

A representação de coisa é, acima de tudo, um fenômeno imagético, que depende da qualidade sensorial de sua recepção. O representante e o representado guardam uma necessária proximidade.

A representação de palavra, no entanto, tem uma transcendência conceitual. A imagem sonora da palavra nada tem a ver com a qualidade conceitual a que o som se refere. Excluídos os sons onomatopaicos, nenhuma palavra, por suas qualidades sonoras, qualquer que seja a língua, tem algo a ver com

significação intrínseca ao conceito a que ela se refere por seus sons.. Mas o conceito tem uma qualidade universal, globalizante. Quando digo sapato refiro-me ao conceito. O termo vale para qualquer tipo de sapato, novo ou velho, de qualquer forma, tamanho ou cor.

Esta qualidade universal define a conquista da palavra pelos seres humanos; faz parte do fenômeno da hominização : é o salto para o simbólico..

A hominização resulta de um conjunto de mutações de que fazem parte, entre outras, a bipedestação, a oponência do polegar, o coito face a face e a

aquisição da palavra, ou melhor dizendo, da capacidade de conceitualização, que transcende a limitação imagética.

Tudo o que perturba este percurso “adoece”o ser humano porque impede que se cumpra o caminho indicado por Freud, quando ele diz que: o que era id terá de ser ego.

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Em outros termos tudo que era ação, emoção, excreção e secreção terá de se tornar palavra (conceito). Emoções que não viram conceitos( palavras) ganham o caminho da atuação ou da somatização.

Esta é a função da interpretação: transformar emoções rejeitadas pelo super-ego em palavras( conceitos). A nomeação das coisas começa no período da “lalação” (Suzane Langer), quando a mãe ensina à criança o nome das coisas. Esta nomeação torna-se uma atividade constante para o resto da vida. Torna-se uma função. A transformação do pré-verbal( sígnico-como nomeia

Cassirer) em verbal é um exercício tão necessário e constante como a respiração, por exemplo.

A transformação sígnico/simbólica pode ser espontânea quando não ha conflitos. Pode ser súbita quando o conflito é finalmente superado como ocorre no insight. Essa é a função da interpretação da psicanalítica.

A meu ver esta é a qualidade específica da psicanálise. Promover ou ajudar a promover a transformação sígnico /simbólica. Seu vínculo básico é com o processo da hominização.

O exercício desta operação transformadora do sígno em símbolo requer condições específicas como as que se criam pela regra da abstinência e pela neutralidade. O conceito de neutralidade passou por inúmeros

desentendimentos. Freud, ele próprio, não conseguiu esclarecer bem a

natureza destes seus conceitos mesmo lançando mão dos modelos do espelho e do cirurgião. Melhor teria sido talvez dizer que a representação de coisa ganha a nova qualidade de representação de palavra se a atmosfera do lócus dessa transformação (o pré-consciente) for menos conflitado, por refletir a neutralidade do analista. Talvez nenhum outro conceito tivesse passado por tantas distorções.

Houve analistas que entenderam que usar todas os dias roupas da mesma cor e feitio definia sua neutralidade.Creio que foi Bion quem melhor ajudou a compreender que a disciplina de “abstenção de desejo e memória”abrem o caminho da neutralidade no sentido analítico.

Se a psicanálise pode definir sua essência a partir deste vinculo com o processo evolutivo, nos termos em que Darwin o concebeu, todas as demais caracterizações perdem o sentido categórico de ser um processo que só se realiza se for levado a cabo com um número determinado de sessões, por exemplo. Quando não há transformação sígnico/simbólica o número de sessões pouco importa. O uso adequado da transferência, a regra da

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abstinência e a neutralidade ajudam a criar o campo adequado para o salto para o simbólico. Creio ser esta essência do processo analítico. A psicanálise é um resgate do processo da hominização.

Referências

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