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O perfil de Helena Morley em minha vida de menina e a condição das mulheres oitocentistas no final do século XIX

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO

DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURAS VERNÁCULAS ANDRESSA CURTI DOS REIS

O PERFIL DE HELENA MORLEY EM MINHA VIDA DE MENINA E A CONDIÇÃO DAS MULHERES OITOCENTISTAS NO FINAL DO SÉCULO XIX

Florianópolis 2019

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ANDRESSA CURTI DOS REIS

O PERFIL DE HELENA MORLEY EM MINHA VIDA DE MENINA E A CONDIÇÃO DAS MULHERES OITOCENTISTAS NO FINAL DO SÉCULO XIX

Trabalho de Conclusão do Curso de Letras, Língua Portuguesa e Literaturas apresentado ao Departamento de Língua e Literatura

Vernáculas da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Bacharel. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosana Kamita

Florianópolis 2019

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha família, especialmente a minha mãe, Janne Cristina Curti, por todo o amor e incentivo durante minha graduação. Agradeço às melhores amigas Mariana Barmart de Almeida e Sinara Teixeira Rodrigues, pelos inúmeros conselhos e apoio incondicional em todos os momentos, principalmente na fase final do curso. Gostaria de agradecer também a minha grande professora e orientadora Rosana Cássia Kamita, por compartilhar sua sabedoria, seu tempo e sua dedicação. Agradeço a todos os professores pelos conhecimentos adquiridos ao longo do curso e pela contribuição com minha trajetória acadêmica. Meu muito obrigado a todos que me ajudaram e acreditaram em mim, sem vocês, eu não chegaria aonde cheguei. Meu eterno agradecimento a todos.

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RESUMO

Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant) é a personagem principal da obra Minha vida de menina, publicada em 1942 e estruturada em forma de diário. Por meio de uma linguagem simples, o diário relata diversos acontecimentos vividos pela adolescente Helena Morley entre os anos 1893 e 1895 na cidade mineira de Diamantina. Com base no estudo desse texto, o objetivo deste trabalho é analisar o perfil da personagem Helena no diário, considerando aspectos regionais, familiares e religiosos na obra, como também será feito um estudo sobre as condições das mulheres oitocentistas, a partir da personagem, conforme seu diário.

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ABSTRACT

Helena Morley (pseudonym of Alice Dayrell Caldeira Brant) is the main character of the work My girl life, published in 1942 and structured as a diary. Through simple language, the newspaper reports several events lived by the adolescent Helena Morley between the years 1893 and 1895 in the city of Diamantina. Based on the study of this text, the objective of this work is to analyze the profile of the Helena character in her diary, considering regional, family and religious aspects in the work, as well as a study on the conditions of nineteenth-century women, including the Helena Morley character, who belongs to this period, according to her diary.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7

1 MINHA VIDA DE MENINA: O DIÁRIO ... 11

1.1 QUEM É ALICE DAYRELL CALDEIRA BRANT? ... 11

1.2 A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA DE HELENA MORLEY ... 16

2 MINHA VIDA DE MENINA: A PUBLICAÇÃO ... 21

2.1 OS PERSONAGENS EM MINHA VIDA DE MENINA ... 21

2.2 A PERSONAGEM HELENA E A CONDIÇÃO DAS MULHERES E DAS ESCRITORAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XIX ... 22

2.3 O PERFIL DE HELENA MORLEY ... 24

2.4 A FORMAÇÃO DA JOVEM HELENA NO DIÁRIO ... 26

3 FORTUNA CRÍTICA ... 29

4 FILME VIDA DE MENINA, DE HELENA SOLBERG ... 33

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 35

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INTRODUÇÃO

Neste trabalho, apresenta-se uma análise do livro Minha vida de menina (2016), publicado em 1942 pela editora José Olympio, de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant. O livro, um diário, foi escrito no final do século XIX, entre os anos de 1893 e 1895, após a abolição da escravatura e durante o período da Proclamação da República.

A personagem protagonista e narradora do diário, Helena Morley, escreve sobre suas experiências de vida no interior do Estado de Minas Gerais, na cidade de Diamantina. O diário Minha vida de menina traz relatos do cotidiano da adolescente Helena entre seus 13 e 15 anos, em que ela observa acontecimentos em sua família e em sua cidade e os registra por meio de um olhar crítico.

O diário se inicia no ano de 1893 e segue sucessivamente até o ano de 1895. A narrativa é apresentada por entradas seguidas pelo dia da semana e pelo ano. O diário apresenta uma linguagem simples e prazerosa, recheada de recordações e acontecimentos vividos pela personagem Helena e sua família.

Minha vida de menina se tornou um clássico da literatura. A autora Alice Dayrell Caldeira Brant não tinha intenção de publicar seus escritos, que ficaram durante longo período guardados e esquecidos, sendo publicados apenas em 1942, com o incentivo de Mário Caldeira Brant, marido de Alice. No entanto, a publicação foi condicionada ao uso de pseudônimos tanto para a autora como para os personagens.

A leitura do diário chama a atenção pela personalidade forte de Helena, que se mostra a frente de seu tempo, apresentando características não condizentes com ascondições das mulheres da época. Helena é uma menina rebelde, incapaz de obedecer e que não gosta de estudar. Diante das condições vividas pelas mulheres à época, Helena tece críticas, rejeita costumes e se posiciona, conforme mostrado em seus relatos.

Para este estudo, será feita uma breve contextualização da biografia da autora Alice Dayrell Caldeira Brant e de sua respectiva obra. Com base em pesquisa bibliográfica, reuniremos diferentes autores e obras para tratar do recorte proposto nesta pesquisa. Entre os autores estudados, destacam-se: Penha Lucilda de Souza Silvestre, com sua tese Diário de uma vida de menina: cinema e literatura no Brasil (representações da personagem feminina) (2011) e o artigo

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“Lembranças e memórias: uma leitura do diário de Minha vida de menina, de Helena Morley” (2009); Edivana Berganton, com seu trabalho de conclusão de curso Helena Morley: escrita de si e visões de mundo de uma garota no final do século XIX (2016); Philippe Lejeune, e seu livro O pacto autobiográfico: de Rosseau à Internet (2014); Guacira Lopes Louro, com o artigo “Mulheres em sala de aula” (1997); Michelle Perrot, com a obra Minha história das mulheres (2017); Rosana Kamita, por meio de seu livro Resgates e ressonâncias: Mariana Coelho (2005); Mary del Priori, com sua História das mulheres no Brasil (1997); Roberto Schwarz, e o livro Duas meninas (1997), entre outros.

O estudo se divide em oito partes: a) biografia de Alice Dayrell Caldeira Brant; b) leitura e análise do gênero autobiográfico de Helena Morley; c) análise interpretativa dos personagens do diário Minha vida de menina; d) leitura e análise histórica das condições de mulheres e escritoras no século XIX; e) análise do perfil da personagem Helena; f) análise da formação escolar de Helena Morley no diário; g) fortuna crítica de Minha vida de menina; e h) análise interpretativa do filme Vida de menina (2004) de Helena Solberg, além das considerações finais.

Esses estudos são importantes para compreendermos a condição feminina e o papel da mulher no século XIX por meio dos registros feitos pela protagonista. A leitura do diário Minha vida de menina, de Helena Morley, abre espaço para a análise das relações sociais, históricas e políticas que permeiam o universo da personagem Helena no ambiente em que ela viveu.

Por meio da observação da realidade existente em sua família e cidade, a personagem apresenta questionamentos sobre papéis atribuídos às mulheres, tais como o destino no casamento e o zelo pela família. Naquele contexto, havia poucas mulheres que podiam se dedicar a uma profissão. No diário, Helena nos apresenta como exceção a figura da tia Madge, que, por não ter filhos nem marido, podia se dedicar ao trabalho na profissão de professora.

Além de nos oferecer essas experiências, os relatos no diário de Helena também contribuem para fazermos um retrospecto da historiografia e da condição das mulheres na sociedade atual.

O trabalho se divide em quatro capítulos principais. No primeiro, apresentaremos uma breve explanação sobre a autora Alice Dayrell Caldeira Brant, além de discorrer sobre o seu diário Minha vida de menina, que acabou se tornando uma publicação literária. Em seguida, iniciaremos um estudo sobre a escrita autobiográfica, com base na obra O pacto autobiográfico:

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de Rousseau à Internet (2014), do crítico francês Philippe Lejeune, de onde trazemos a definição de autobiografia, o conceito de diário e suas funções.

No segundo capítulo, realizaremos a descrição e a análise dos personagens do diário. A seguir, faremos a contextualização da condição das mulheres e das escritoras literárias no século XIX, a partir do ensaio “Escritoras, Escritas, Escrituras” (1997), de Norma Telles. Analisaremos também o perfil de Helena Morley e sua formação, com base nos pressupostos teóricos do ensaio “Mulheres em sala de aula” (1997), de Guacira Lopes Louro. Ambos os textos compõem o livro História das mulheres no Brasil (2006), de Mary Del Priore, Resgates e ressonâncias: Mariana Coelho (2005), de Rosana Kamita, e Minha história das mulheres (2007), de Michelle Perrot.

No terceiro capítulo, apresentaremos a fortuna crítica da obra a partir das considerações de Roberto Schwarz, Lucilda de Souza Silvestre e Cristal Recchia, com destaque para a discussão levantada sobre a ausência de consulta aos textos originais na publicação.

No quarto capítulo, passaremos a comentar a adaptação fílmica Vida de menina (2004), de Helena Solberg. Da adaptação, traremos cenas relevantes do diário em relação ao contexto das mulheres e das mulheres escritoras no século XIX.

Por fim, teceremos considerações finais a respeito dos estudos apresentados neste trabalho de conclusão de curso.

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1 MINHA VIDA DE MENINA: O DIÁRIO

Neste capítulo, apresentaremos a autora de Minha vida de menina, Alice Dayrell Caldeira Brant, que publicou seu diário em 1942 com o pseudônimo de Helena Morley. A seguir, discutiremos acerca do conceito de diário e de escrita autobiográfica a partir dos pressupostos de O pacto autobiográfico (2014), de Lejeune.

1.1 QUEM É ALICE DAYRELL CALDEIRA BRANT?

Alice Dayrell Caldeira Brant foi uma escritora brasileira que nasceu em Diamantina, interior de Minas Gerais, em 28 de agosto de 1880, e faleceu no Rio de Janeiro, em 20 de junho de 1970, aos 90 anos. Com o pseudônimo de Helena Morley, escreveu seu diário provavelmente no final do século XIX, com o título Minha vida de menina.

Era filha de Felisberto Moirell Dayrell, minerador e descendente de ingleses, e de Alexandrina Brandão Dayrell, de família tradicional mineira. Foi neta de Dona Teodora, uma senhora viúva e rica, que tinha um carinho especial por Alice, e esta, um grande apreço por sua avó materna. O avô de Alice foi o Dr. John Dayrell, protestante de origem inglesa. Helena discorre em seu diário sobre a figura do avô, que lhe trouxe muitas atribulações. Por ter sido protestante, o corpo do avô não foi sepultado no cemitério, mas na porta da casa da caridade. A protagonista do diário diz: “Na escola de Mestre Joaquina eu não podia ter a menor briguinha com uma menina, que ela não dissesse logo: ‘Meu avô não é como o seu que foi para o céu dos ingleses.” (MORLEY, 2016, p. 56). Helena tinha mais três irmãos, Felisberto, Tereza e João. Ela frequentou a Escola Normal e, no ano de 1900, casou-se com Augusto Mário Caldeira Brant, seu primo, e juntos tiveram seis filhos: Mário, Paulo, Caio, Flávio, Ignez, Sarita e Yolanda.

No diário, os nomes de seus familiares foram substituídos por pseudônimos: a mãe Alexandrina Dayrell por Carolina, o pai Felisberto Morley por Alexandre, os seus irmãos Felisberto Dayrell Junior por Renato, Tereza Dayrell por Luizinha e João Brandão Dayrell por Nhonhô, e seu primo e marido Mário Brant por Leontino. Na nota introdutória à primeira edição, a protagonista Helena diz: “Nesses escritos nenhuma alteração foi feita, além de pequenas

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correções e substituições de alguns nomes, poucos, por motivos fáceis de compreender.” (MORLEY, 2016, p. 13).

Dos 13 aos 15 anos, entre 1893 e 1895, escreveu o diário, que foi publicado somente em 1942, na sua fase adulta, aos 62 anos de idade. Ela foi incentivada pelo pai, Felisberto Dayrell, a registrar em um diário os acontecimentos vivenciados em torno de sua família e nos arredores de Diamantina. Além do pai, teve incentivo também do professor de português da Escola Normal, que exigia das alunas uma composição diária sobre o que se dava com cada uma. Na nota introdutória à primeira edição (1942), a autora explica como surgiu o diário:

Em pequena meu pai me fez tomar o hábito de escrever o que sucedia comigo. Na Escola Normal o Professor de Português exigia das alunas uma composição quase diária, que chamávamos ‘redação’ e que podia ser, à nossa escolha, uma descrição, ou carta ou narração do que se dava com cada uma. Eu achava mais fácil escrever o que se passava em torno de mim e entre a nossa família, muito numerosa. Esses escritos que enchem muitos cadernos e folhas avulsas, andaram anos e anos guardados, esquecidos. Ultimamente pus-me a revê-los e ordená-los para os meus, principalmente para minhas netas. Nasceu daí a idéia, com que me conformei, de um livro que mostrasse às meninas de hoje a diferença entre a vida atual e a existência simples que levávamos naquela época. (MORLEY, 2016, p. 13)

Na fase adulta, Alice resolveu transformar os seus escritos do diário em um livro. Vera Brant aponta como surgiu a ideia da publicação da obra, que se deu da seguinte forma:

Em 1941 a família Brant morava num apartamento, enquanto a sua casa estava sendo construída na Lagoa Rodrigo de Freitas, perto do Corte Cantagalo onde existe, hoje, o Edifício Helena Morley. Alice detestava morar em apartamento. Certa tarde de sábado, para distrair os filhos, pegou dentre os seus guardados o diário que havia escrito quando menina e resolveu ler para eles e para o marido. Todos escutavam encantados. Ao final da leitura o marido Augusto Mário, sugeriu: Por que não publicamos esse diário? Muita gente iria ter a oportunidade que estamos tendo de ouvir histórias tão interessantes de uma menina inteligente numa cidadezinha mineira, no final do século passado. Alice não achou muita graça na ideia. Ignez, sua filha, adorou. Depois de muita discussão, Alice concordou em transformar tudo aquilo num livro, desde que fosse com pseudônimo, do contrário Diamantina inteira iria brigar com ela. Pensaram vários nomes. Alice preferiu Helena porque achava um nome muito bonito. E o sobrenome Morley, de sua avó materna. Assim nasceu Helena Morley. (BRANT, 2003)

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O diário Minha vida de menina, logo após sua primeira edição, em 1942, repercutiu no país e no mundo, ganhando muitas edições, isso o tornou uma obra de sucesso e um clássico. Segundo Berganton (2016, p. 12), a obra repercutiu muito nacionalmente, o que acabou surpreendendo a escritora Alice, que não esperava tamanho sucesso. Ainda conforme Berganton (2016, p. 12), o livro foi traduzido para o francês, por Marlyse Meyer, para o italiano, por Giuseppe e Giovani Visentin, e para o inglês, por Elisabeth Bishop. Mais tarde, no século XXI, o diário recebeu adaptação fílmica, com o título Vida de Menina (2004), dirigido por Helena Solberg.

O diário de Helena Morley, na publicação de 1942, tem introdução escrita por Alexandre Eulálio, que o considera um “livro que nasceu clássico”. Cito algumas outras considerações de Eulálio:

Minha vida de menina ocupa uma posição especial entre os livros escritos no Brasil. Diário de uma adolescente, composto sem intenção de arte, em fenômeno por todos os títulos curioso, amanheceu clássico, vindo a conquistar imediatamente, sem alarde, um lugar de destaque em nossas estantes. (EULÁLIO, 2016, p. 7)

Após a introdução de Alexandre Eulálio e a nota introdutória à primeira edição feita por Helena Morley já na sua fase adulta, inicia-se o diário, em que a escritora e personagem registra diversos acontecimentos vividos por ela e seus familiares e vizinhos na cidade mineira de Diamantina.

Os escritos no diário são feitos em ordem cronológica, divididos em entradas, entre os anos de 1893 e 1895, período em que ela vive a adolescência, conforme já mencionado. Como se pode observar, há uma descontinuidade nas datas das entradas do diário, que não seguem dia após dia, havendo intervalos na escrita, deste modo: 05/01, 10/01, 18/01, 21/01. A explicação para a descontinuidade pode ser lida em uma das passagens em que Helena escreve: “Eu estava com a pena na mão pensando o que havia de escrever, pois há dias não acontece nada”. (MORLEY, 2016, p. 167). Mas, mesmo assim, a autora registra em seu diário que sua “escrita é quase diária”, em decorrência das sequências dos seus registros.

Helena inicia o diário em 5 de janeiro de 1893, quinta-feira, “o bom dia da semana”. A personagem Helena descreve os afazeres desenvolvidos por ela, sua mãe e seus irmãos durante o

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dia. Os seus irmãos Nhonho e Renato vendem peixes e passarinhos, enquanto sua mãe e irmã, Luisinha, cuidam da roupa ou dos afazeres domésticos. O crítico Roberto Schwarz, em seu ensaio intitulado “Outra Capitu”, no livro Duas meninas (1997), descreve a rotina de Helena e seus familiares do seguinte modo:

Segundo explica Helena, quinta-feira é o bom dia da semana: a família levanta cedo, sob as ordens da mãe, arruma a casa e vai ao campo trabalhar, no que é “o melhor lugar de Diamantina”, aliás “sempre deserto” [...]. Os meninos levam a bacia de roupa na cabeça, e as panelas e a comida no carrinho. Depois irão catar lenha, pegar passarinhos com visgo e pescar. As meninas lavam roupa embaixo da ponte, junto com a mãe, que cuida também do almoço. Na segunda parte do dia tomam banho e lavam o cabelo no rio, enquanto sua mãe vigia se não vem ninguém. Depois estendem a roupa para secar, e todos correm para o campo atrás de frutas, ninhos de passarinho, casulos de borboleta e “pedrinhas redondas para o jogo”. Na volta, por cima da roupa dobrada e das panelas os meninos trazem a lenha e o mais que apanharam, que vendem na cidade no mesmo dia. (SCHWARZ, 1997, p. 51)

No final dessa primeira entrada, Helena lamenta por não poder ir à lavra todos os dias com o pai e por sua mãe ter que trabalhar muito em casa, a menina também menciona a escassez da mineração nas lavras. Nesse período, final do século XIX, “Diamantina começava a enfrentar um período de decadência econômica bastante grave, devido à escassez de minérios na região.”, segundo Alexandre Eulálio na nota introdutória de Minha vida de menina (2016, p. 9).

No final da entrada inicial do diário: Quinta-feira, 5 de janeiro, Helena diz:

Que economia seria para mamãe, agora que a lavra não tem dado nem um diamantinho olho de mosquito, se pudéssemos ir á ponte todos os dias, pois Renato e Nhonhô vendem tudo que trazem, no mesmo dia. Ainda se pudéssemos ficar na lavra com meu pai, ela não precisava trabalhar tanto. Mas nossos estudos atrapalham tanto a vida de mamãe, que eu morro de pena dela. (MORLEY, 2016, p. 19)

Os escritos feitos por Helena Morley prosseguem até o ano de 1895. A obra Minha vida de menina é subdividida em três seções, marcadas em anos consecutivos: 1893, 1894 e 1895. Vejamos a seguir outro exemplo de entradas do diário.

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Eu acho que a pior invenção da vida é mingau de fubá. Não compreendo para que ele serve. Se a gente está com fome, toma mingau e a fome aperta mais. Se não está com fome, bebe mingau e a fome abre. (MORLEY, 2016, p. 26)

Quinta-feira, 23 de fevereiro:

Leontino veio nos convidar para irmos assistir á inauguração do telégrafo, que eles fizeram em casa, e que tia Aurélia esperava mamãe e a família toda com muito acarajé, chocolate e sequilhos. Fomos todos e Dindinha também. Ficamos, a metade das pessoas, na sala de visitas e a outra metade na sala de jantar, no fim do corredor, que é muito comprido. (MORLEY, 2016, p. 27)

Penha Lucilda de Souza Silvestre (2009) assinala que a jovem Helena, no diário, na maneira de apresentar os fatos, demonstrava uma postura crítica e inconformada, pois se preocupava com a condição da vida familiar. Ainda conforme Silvestre (2009), Helena registrava diversos acontecimentos, envolvendo familiares, amigos e vizinhos e há evidência de “aspectos religiosos, históricos aliados à necessidade e ao desejo de ascensão social da personagem” (SILVESTRE, 2009, p. 4).

A personagem Helena vive os acontecimentos ocorridos em sua volta e registra-os no diário de maneiras marcadas por contradições, dúvidas e conflitos. Em uma das entradas, ela apresenta conflitos em relação ao seu mundo restrito:

È sina minha todo o mundo que gosta de mim me infernar a vida. Todas as minhas primas são governadas só pelos pais. Ah, se eu também fosse assim! Meus pais é que menos me amolam. Não tivesse eu o governo de vovó e tia Madge, teria ido ao baile de máscara do Teatro. (MORLEY, 2016, p. 24)

O diário se encerra no dia 31 de dezembro de 1895. No final da obra, as condições familiares da personagem Helena tenderam a melhorar: o pai foi trabalhar em uma empresa que chegara em Diamantina e a família recebeu uma herança, após o falecimento da avó. Nos apontamentos finais, diz Helena:

O dinheiro que vovó deixou para mamãe foi pouco e meu pai pagou todas as dívidas e continuou na mineração. Mas logo as coisas mudaram e nossa vida tem melhorado tanto, que eu só posso atribuir à proteção da alma de vovó. Meu pai entrou para a Companhia Boa Vista e tudo dos estrangeiros é com ele, por que é o único que fala inglês e conhece bem as lavras. Agora não vamos sofrer mais

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faltas, graças a Deus. Não é mesmo proteção de vovó lá no Céu? (MORLEY, 2016, p. 324)

1.2 A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA DE HELENA MORLEY

A narrativa autobiográfica de Helena Morley escrita em forma de diário registra, por meio de uma linguagem simples, informações íntimas ou ligadas ao seu cotidiano. Entende-se por autobiografia, como define o crítico francês Lejeune, “qualquer texto em que o autor parece expressar sua vida ou seus sentimentos, quaisquer que sejam a forma do texto e o contrato proposto por ele.” (LEJEUNE, 2014, p. 62). Já o termo “diário” pode significar em “primeiro lugar, que é uma escrita quotidiana: uma série de vestígios datados.” (LEJEUNE, 2014, p. 299). Furtado e Tabak (2017) apontam que:

No século XIX era comum as meninas serem estimuladas a escrever em um diário o que se passava com elas, como forma de resgatar os acontecimentos para si e para sua tutela. Enquanto o homem dispunha de mais liberdade, com a mulher acontecia totalmente o contrário, seu espaço era mais limitado, por isso o diário pode ser visto como um espaço de introspecção, mais favorável ao exercício da mulher. (FURTADO; TABAK, 2017, p. 5)

Um diário pode ser escrito por qualquer pessoa, e pode ser começado em qualquer fase da vida. No entanto, conforme acentua Lejeune (2014), há mais chances de se começar um diário na adolescência e, principalmente, por meninas: “o diário é para as meninas uma cultura de grupo e um rito de iniciação, ao passo que a maioria dos meninos vê a prática com indiferença ou hostilidade.” (LEJEUNE, 2014, p. 289).

No diário, as anotações são feitas no presente, para no futuro serem retomadas pelo autor, segundo Lejeune (2014). Isso se dá em forma de publicação para Helena, ou Alice, que seleciona e organiza suas lembranças com consciência da função que a memória desempenha no seu diário, como se pode notar nos fragmentos abaixo:

Cada dia acho mais razão no conselho de meu pai de escrever no meu caderno o que penso ou vejo acontecer. Ele me disse: “Escreva o que se passar com você, sem precisar contar às suas amigas e guarde neste caderno para o futuro as suas recordações”. Se eu não tivesse este caderno poderia guardar na memória o caso tão engraçado que vi ontem? (MORLEY, 2016, p. 67)

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Segundo Lejeune, o gênero diário é permeado de recordações e lembranças que, por meio da escrita, são guardadas na memória: “Um diário tem a função de construir ou exercer a memória de seu autor” (2014, p. 301).

Lejeune aponta em O pacto autobiográfico (2014) algumas utilidades do diário: conservar a memória, sobreviver, desabafar, conhecer-se, deliberar, resistir, pensar e escrever. Sobre conservar a memória, além de indicar que a escrita do diário é feita no presente para, posteriormente, ser retomada no futuro pelo autor, Lejeune também salienta que, mesmo que não haja uma releitura das anotações diárias, o diário possui a função de construir a memória.

A segunda utilidade, apresentada como sobreviver, refere-se ao que um diário guarda, à memória do passado, que sedissipa atrás de nós e que:

[...] é um apelo a uma leitura posterior: transmissão a algum alter ego perdido no futuro, ou modesta contribuição para a memória coletiva. Garrafa lançada ao mar. E também investimento: o valor de informação de um diário aumenta com o tempo. (LEJEUNE, 2014, p. 303)

A terceira utilidade é desabafar. O diário serve como confidente, por meio dele, podemos expressar nossas emoções e alegrias de uma forma livre, sem intimidar os outros (LEJEUNE, 2014). Os relatos de Helena Morley exprimem desabafo e confidência, que permitem à autora expressar suas ideias livremente, sem intervenção do meio social. Segundo Lejeune, “o diário é um espaço onde o eu escapa momentaneamente à pressão social, se refugia protegido em uma bolha onde pode se abrir sem risco, antes de voltar, mais leve, ao mundo real.” (LEJEUNE, 2014, p. 303). Nas entradas do diário de Helena, a função desabafo e confidência se faz presente na voz da jovem, conforme os trechos a seguir:

Haverá na vida suplício maior do que este que temos de aguentar todos os sábados e domingos? Temos de ficar sentadas á mesa uma horinha inteira ouvindo os casos de meu pai. Já ouvimos todos mais de vinte vezes. E quando ele está contando e Luisinha olha para mim e rimos, já vem descompostura. “Insuportáveis! Sirigaitas!” De todos o mais engraçado, a primeira vez, é o caso de seu Laje. Mesmo esse, eu desejo ser surda quando meu pai começa a contar. (MORLEY, 2016, p. 51)

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Vou escrever aqui o que eu fiz com ela e não tenho vergonha, porque é só o papel que vai saber. Ela vinha guardando, há meses, cinqüenta mil-réis que o padrinho lhe deu pra comprar um vestido. Desta vez eu achei que devia festejar meu aniversário com um jantar às amigas, pois todas elas me convidam quando fazem anos. As negras da Chácara são todas muito boas para mim. Generosa, que é muito boa cozinheira, já me tinha falado que se eu arranjasse uns cobres ela faria um jantar muito bom, sem eu me incomodar com coisa alguma. Na imaginação sou sozinha na família. Já tenho fama disso. Veio-me logo à idéia o dinheiro de Luisinha. Mas, não querendo entristecê-la, eu preparei as coisas bem e lhe disse: “Você me dê seus cinqüenta mil-réis para meu jantar. Se você fizer o vestido, é só você que lucra. Se me der o dinheiro, eu faço o jantar, ganharei muitos presentes e nós dividiremos tudo”. Luisinha concordou. Dei o dinheiro a Generosa. Ela preparou um banquete que tinha peru. Ganhei de presente: dois vestidos, um vidro de perfume, um de água-de-colônia, uma dúzia de lenços, uma caixa com seis sabonetes, três pares de meias, uma lata de biscoitos, afora os pudins e doces. (MORLEY, 2016, p. 67)

A quarta utilidade do diário, segundo, Lejeune, é conhecer-se. O diário “pode ser um espaço de análise, de questionamento, um laboratório de instrospecção.” (LEJEUNE, 2014, p. 304). Os registros no diário de Helena Morley demonstram seus questionamentos e suas análises sobre o que ela ouve e registra. Como exemplo, há a entrada do dia 12 de agosto de 1893: “Se há uma casa aonde eu não gosto de estudar é na de tia Aurélia. Não aguento o método e a ordem de tio Conrado com hora certa para tudo. Isso só dá certo para o estudo dos primos, mas para mim é enjoadíssimo!” (MORLEY, 2016, p. 71).

A quinta utilidade é deliberar. Lejeune diz que “o diário está voltado para o futuro. Fazer o balanço de hoje significa se preparar para agir amanhã.” (2014, p. 304) e também aponta que o diário serve como suporte para a tomada de decisões. Em algumas entradas do diário de Helena, temos alguns relatos que mostram decisões tomadas pela jovem. Na entrada Domingo, 25 de novembro, temos:

Já refleti muito desde ontem e vi que o único meio de ter o vestido é vendendo o broche. Vou dormir ainda esta noite com isto na cabeça e vou conversar com Nossa Senhora tudo direitinho. Se ela não me tirar da cabeça a ideia, está tudo certo que terei o vestido para o exame. Todos da casa dormem e só fico acordada até as onze horas. (MORLEY, 2016, p. 199)

A sexta utilidade é resistir. De acordo com Lejeune, “o diário pode trazer coragem e apoio” (2014, p. 305), principalmente nos momentos difíceis. Ele cita como exemplo o escritor

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Johann Heuchel, que iniciou seu diário para suportar a chegada de um transplante, sua única esperança de vida.

A sétima utilidade é pensar. Lejeune diz que “a forma do diário desloca a atenção para um processo de criação, torna o pensamento mais livre, mais aberto a suas contradições, e comunica ao leitor a dinâmica da reflexão tanto quanto seu resultado.” (2014, p. 305).

A oitava utilidade é escrever. A escrita do diário é livre. Segundo o autor, “qualquer um se sente autorizado a manejar a língua como quiser, escrever sem medo de cometer erros. Pode se escolher as regras do jogo.” (LEJEUNE, 2014, p. 306). Helena Morley usa uma linguagem simples e próxima a sua fala mineira. Nos fragmentos do diário, temos esse uso de linguagem, como se mostra a seguir:

Esta amizade ficou forte com a parecença de Luisinha, minha irmã, com a sobrinha deles que estava fora. A mulher, Dona Mariquinha, dizia sempre que nos via: "Que saudades da Quitinha! Vendo a sua menina, parece que estou vendo a outra Dona Carolina. É cara duma, cara doutra, sem tirar nem pôr. Ainda hei de juntar as duas para a senhora ver". Mamãe dizia: "É pena mesmo a sua não estar aqui". Ela dizia: "O dia chegará, Dona Carolina". (MORLEY, 2016, p. 20)

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2 MINHA VIDA DE MENINA: A PUBLICAÇÃO

Neste capítulo, faremos uma explanação sobre os personagens de Minha vida de menina, especificamente sobre a personagem Helena Morley, bem como sobre a condição das mulheres e das escritoras literárias no século XIX e sobre o perfil de Helena e sua formação no diário.

2.1 OS PERSONAGENS EM MINHA VIDA DE MENINA

A narrativa Minha vida de menina realiza-se em torno do âmbito familiar. Nos escritos do diário de Helena Morley, há a presença das figuras materna e paterna, embora o pai fosse pouco presente no cotidiano da jovem. Há também a presença incessante da avó Teodora, que tinha um grande zelo pela menina, da irmã Luisinha, personagem suprimida da história, de tia Madge, mulher letrada, que tinha forte domínio sobre Helena, de Siá Ritinha, apelidada de “a ladrona de galinhas da Cavalhada”, que tinha fama de roubar galinhas.

A mãe de Helena tinha um forte sentimento pelo marido e sofria por ele estar sempre distante de casa, no ofício das lavras. Ela vivia uma vida em função do marido e dos filhos. Assim como Helena, sua mãe tinha um riso franco e solto. Foi uma mulher que casou por amor, sem intermédio do pai, pois o fez após sua morte. Tentava ajudar a família com as despesas, mas sempre acabava fracassando nos negócios.

O pai de Helena, Alexandre, foi seu grande incentivador na escrita dos seus diários. Vivia sempre nas lavras, na mineração, a procura de minérios, mas nunca encontrava nada; e, quando encontrava algum metal precioso, o lucro era pouco para a subsistência da família. Permanecia sempre longe do seu domicílio, como consequência, cultivava pouca proximidade com sua esposa e seus filhos.

Dona Teodora tinha um grande zelo por Helena, e ela tinha grande admiração por sua avó materna. Ela era uma senhora viúva e rica, que não se importava em ajudar os necessitados e distribuir suas riquezas, assim como em ajudar financeiramente sua filha Carolina, pois a família de Helena Morley era desprovida de dinheiro. Tinha muito orgulho dos registros da neta, e fazia com que a jovem Helena lesse os apontamentos diariamente para ela. Helena explica no seu diário que a avó era muito inteligente, apesar de não saber ler e escrever, como se pode ler no trecho a seguir:

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Coitada, ela é muito inteligente, mas mal aprendeu a ler e escrever e por isso fica pensando que é uma coisa de outro mundo contar as coisas com a pena. Engraçado é que ela não se admira de eu contar com a boca. É que ela pensa que escrever é mais custoso. (MORLEY, 2016, p. 111)

Luisinha era a sua irmã mais nova e, apesar de gostar muito dela, Helena não deixa de se aproveitar de sua bondade. Foi afilhada de dona Teodora, que não tinha muito reconhecimento por ela, e sim por Helena, sua neta preferida. Luisinha era bem diferente, era sossegada e não tinha a rebeldia de sua irmã.

Siá Ritinha tinha fama de roubar galinhas, apelidada de “a ladrona de galinhas da Cavalhada”. Ela gostava muito de Carolina, e fazia às vezes de mãe de Helena, embora quando pequena Helena tivesse raiva do governo de Siá. Depois de um tempo, quando cresceu, Helena passou a ser mais afetuosa com Siá Ritinha, sobretudo quando Carolina ficou doente, e era cuidada com zelo por Siá. A jovem Helena começou a notar a bondade de Siá Ritinha e decidiu não mais acreditar nas histórias do roubo das galinhas.

2.2 A PERSONAGEM HELENA E A CONDIÇÃO DAS MULHERES E DAS ESCRITORAS LITERÁRIAS DO SÉCULO XIX

As mulheres no século XIX exerciam seu lugar em casa, cuidando do marido e dos filhos, eram dependentes e subordinadas ao pai e ao marido, ensinadas desde cedo a serem mães e esposas, sendo propriedades dos homens e comumente silenciadas por eles.

Segundo Telles (1997, p. 408), as mulheres foram naquele período:

Excluídas de uma efetiva participação na sociedade, da possibilidade de ocuparem cargos públicos, de assegurarem dignamente sua própria sobrevivência e até mesmo impedidas do acesso à educação superior, as mulheres do século XIX ficavam trancadas, fechadas, dentro de casas ou sobrados ou mocambos e senzalas, construídos por pais, maridos, senhores. (TELLES, 1997, p. 408)

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No século XIX, as mulheres não podiam exercer nenhuma autoridade ou poder, já que o status de posse era destinado ao homem; o homem era o provedor da subsistência familiar, enquanto à mulher cabiam os papéis de dona-de-casa, submissa, de um ser inferior ao homem.

No campo literário, as mulheres se mantiveram por um extenso período longe da escrita. Conforme Kamita (2005, p. 48), em seu ensaio intitulado “Mulher e literatura: uma relação tão delicada”:

Até o século XIX, o mundo [literário] era habitado quase que exclusivamente por homens, logo os padrões estéticos literários partiam desse paradigma, de uma literatura eminentemente masculina, que, como analisa Elaine Showalt, passa a equivaler como a literatura universal. (KAMITA, 2005, p. 48)

Durante esse período, os textos masculinos ficavam fora do alcance das mulheres. A elas pertenciam os gêneros de tom mais intimista como o diário, as memórias e epístolas. A escritora Norma Telles (1997, p. 409) fala sobre os “cadernos-goiabada”, denominados por Lygia Fagundes Telles como “os cadernos em que as mocinhas escreviam pensamentos e estados de alma, diários que perdiam o sentido depois do casamento, pois a partir daí não mais se podia pensar em segredo”. Ou seja, a escrita desses diários era permitida somente às mulheres solteiras, às mulheres casadas, não.

A historiadora Michelle Perrot (2017), no livro Minha história das mulheres (2017), afirma que, no século XIX, houve uma grande atuação de mulheres que tentaram ganhar a vida por meio da escrita, ela evidencia que isso não foi uma tarefa fácil para elas. Perrot (2017) acrescenta ainda que a escritura das mulheres “ficava restrita ao domínio privado, à correspondência familiar ou à contabilidade da pequena empresa” (PERROT, 2017, p. 97).

Foi somente a partir desse período que as mulheres começaram a publicar seus textos, antes disso, o ofício da escrita era feito de maneira secreta pelo público feminino. Perrot (2017) apresenta os gêneros escritos publicados pelas mulheres: “obras de educação, tratados de boas maneiras, biografias de ‘mulheres ilustres’, gênero histórico muito em voga e romances” (PERROT, 2017, p. 97).

A personagem Helena Morley está inserida nesse contexto histórico, pertencente às mulheres no século XIX. Através dos seus escritos no diário, observa-se uma dura crítica à

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condição das mulheres que permeia o seu universo. Em um dos relatos, Helena critica sua mãe Carolina pelo seu modo de viver, que segue um padrão de mulher submissa e de uma vida voltada somente para a família. Além de Carolina, quase todas as mulheres da história seguem esse modo de vida. Cito um trecho do diário:

Ninguém se preocupa consigo. Todas as minhas tias só se ocupam dos maridos e dos filhos. A pessoa delas não vale nada. Nunca vi mamãe ou qualquer de minhas tias comer uma coisa antes dos maridos e dos filhos. Se alguma coisa na mesa é pouco, elas nem sabem o gosto. (MORLEY, 2016, p. 218)

Em outras passagens do diário, Helena rejeita as condições das mulheres sujeitas a ficarem em casa, “quem não é visto não é lembrado”. Diz Helena:

Poucas são as vezes que eu entro em casa que mamãe não repita o verso: A mulher e a galinha

Nunca devem passear, A galinha bicho come A mulher dá o que falar.

E depois diz: “Era por minha mãe nos repetir sempre este conselho, que fomos umas moças tão recatadas. Vinham rapazes de longe nos pedir em casamento pela nossa fama de moças caseiras”.

Eu sempre respondo: “As senhoras eram caseiras porque moravam na lomba. E depois, a fama foi o caldeirão de diamantes que o vovô encontrou. Moça caseira, a senhora não vê que não pode ter fama? Como? Se ninguém a vê?” (MORLEY, 2016, p. 229)

Como se pode observar no diário de Helena, ela não se contenta com seu destino de gênero e questiona a condição das mulheres no seu contexto. Diferentemente das mulheres em seu entorno familiar, Helena Morley não aceita os padrões femininos impostos às mulheres. A personagem Helena, através de um olhar observador, questiona e avalia essas condições.

2.3 O PERFIL DE HELENA MORLEY

A personagem Helena se caracteriza por ser uma garota astuta, inteligente, muito observadora e crítica. Vive a vida ao redor de sua família, entre o meio rural e a cidade. No entanto, ela prefere o campo, a chácara de sua avó Teodora, onde gosta de estar em sua

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companhia. Na casa dos pais, tenta conciliar os estudos com os afazeres domésticos, compartilhados entre ela e seus irmãos para ajudar a mãe.

Com relação à escola, diz ser uma garota vadia e preguiçosa, que não gosta de estudar, mas diz ser boa em decorar e gostar de escrever e ler histórias. Considerada pela família como a mais inteligente, ela diz que não tem esse perfil. No entanto, sente-se orgulhosa quando sua avó, seu pai e tia Madge assim a consideram.

A personagem Helena segue os princípios religiosos católicos por influência de sua mãe. Há vários registros no diário em que a jovem narra sobre festividades religiosas, igrejas, devoção aos santos e solenidades cristãs, como a Quarta-feira de Cinzas e o Domingo da Ressurreição, entre outras. Em uma das entradas, Helena diz:

Sexta feira da paixão foi dia de jejum de todos em casa. Eu sou infeliz nas horas de sacrifício. Não gosto de fazer sacrifício. Como sabia que era obrigada, eu tive que jejuar. De manhã, as sete horas, só se toma uma xícara de água de saco, rala, que nada vale. Ás dez horas, almoço: bacalhau, feijão e angu: coisas que a gente come para mexer mais com a fome. Durante o dia a mesma água com café, fraca. Jantar às quatro horas e mais nada. (MORLEY, 2016, p. 41)

Helena Morley observa e registra em seu diário histórias vividas, acontecimentos, faz confissões, dia após dia, e reflete sobre o que escreve, tendendo a se posicionar criticamente, colocando discussões pertinentes em suas anotações diárias, como a condição das mulheres na sociedade em que vive.

Como se pode notar na obra, a personagem Helena foge dos padrões das mulheres no século XIX. No diário, ela se define como uma garota rebelde, impaciente, respondona e incapaz de obedecer. Na entrada Terça-feira, 29 de agosto de 1893, Helena descreve suas características em comparação com sua irmã Luisinha:

Eu e minha irmã nem parecemos filhas dos mesmos pais. Eu sou impaciente, rebelde, respondona, passeadeira, incapaz de obedecer e tudo o que eu quiserem que eu seja. Luisinha é um anjo de bondade. Não sei como se pode ser como ela, tão sossegada. Nunca sai de casa sem ir empencada no braço de mamãe. Não reclama nada. Se eu disser que já a vi reclamando um vestido novo minto. E se ganha um vestido e eu quiser lhe tomar, não se importa. Pois todos me chamam de menina rebelde e ninguém elogia Luisinha. (MORLEY, 2016, p. 76)

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No diário, todos da família gostam de Helena, especialmente Tia Madge, superprotetora, que às vezes incomoda a jovem com o excesso de cuidados, e sua avó Teodora, que todos os dias a esperava na janela chegar da escola para almoçar com ela.

No desenrolar da história, Helena se torna moça e começa a atrair olhares masculinos. Conhece seu primo Leontino, filho de Tio Geraldo, que teria vindo a Diamantina depois de concluir seus estudos em Direito, na cidade do Rio de Janeiro, e se apaixona por ele. Os dois vêm a se casar. Leontino (pseudônimo de Mário Caldeira Brant) foi quem incentivou Alice Dayrell Caldeira Brant, com o pseudônimo de Helena Morley, a publicar seu diário.

2.4 A FORMAÇÃO DA JOVEM HELENA NO DIÁRIO

A personagem Helena é incentivada pelos pais a frequentar a escola. Cursou a escola primária, que compreendia as séries iniciais, e a Escola Normal, que tinha como função formar professores e professoras para a atividade docente. Guacira Lopes Louro (1997), em seu artigo intitulado “Mulheres na sala de aula”, publicado no livro História das mulheres no Brasil (1997), apresenta um estudo sobre as Escolas Normais, no qual faz uma abordagem histórica dessas instituições de ensino.

Elas surgiram em meados do século XIX, em decorrência da falta de professores e professoras com uma boa formação, devido ao abandono da educação nas províncias brasileiras, conforme Louro (1997). Segundo a autora, as Escolas Normais:

Foram abertas para ambos os sexos, embora o regulamento estabelecesse que moças e rapazes devessem estudar em classes separadas, preferentemente em turnos ou até escolas diferentes. Vale lembrar que a atividade docente no Brasil como em muitas outras sociedades, havia sido iniciada por homens aqui, por religiosos, especialmente jesuítas, no período compreendido entre 1549 e 1759. Posteriormente, foram homens que se ocuparam do magistério com mais frequência, tanto responsáveis pelas “aulas regias” oficiais quanto como professores que se estabeleciam por conta própria. Agora, no entanto, as mulheres eram também necessárias e, como vimos, as classes de meninas deveriam ser regidas por “senhoras honestas”. (LOURO, 1997, p. 448)

Após o término do curso secundário, mulheres e homens já estariam aptos para exercer a carreira docente no ensino primário. Cabe salientar que a atividade docente se constituiu numa

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atividade exclusivamente feminina, devido à evasão do público masculino nas instituições de ensino, e isso fez com que o magistério se tornasse profissão de mulher. No entanto, no século XIX, a profissão docente foi uma ocupação transitória, como cita Louro (1997), que explicita que ela “deveria ser abandonada sempre que se impusesse a verdadeira missão feminina de esposa e mãe, e que o trabalho só seria aceitável para as moças solteiras até o momento do casamento, ou para as mulheres que ficassem sós – as solteironas e viúvas.” (LOURO, 1997, p. 453).

Nesse contexto, podemos analisar a figura da personagem Helena no diário, que relata em um dos seus registros que não precisará dar aula se encontrar um marido. Na entrada Domingo, 7 de janeiro, Helena diz:

Hoje, quando chegamos a casa de Júlia, ela disse a mamãe: “Os planos de Helena já se vão por água abaixo, Dona Carolina. A senhora já soube que vou me casar breve? Já arranjei até substituta. Agora vai ser mais difícil para Helena”. Respondi: “Eu também não tenho esperança de tirar meu titulo tão cedo, Júlia. Se no primeiro ano já encalhei, avalie nos outros. Também a gente não sabe do futuro. Quem sabe se eu também, quando ficar moça, não vou encontrar como você, um rapaz de quem eu goste e não vou ter precisão de dar escola?”. Júlia disse: “Isto é que vai ser o mais certo.” (MORLEY, 2016, p. 116) No conjunto familiar da jovem Helena, temos a figura da tia Madge, que exerce a profissão de professora, e podia se dedicar à função por não ter marido e filhos, condição estabelecida às mulheres que quisessem exercer o ofício do magistério. A personagem Helena Morley considerava-se sem vocação para a docência, como mostra uma das passagens, em que Helena registra o dia em que ela teve que substituir sua tia Madge na escola e não conseguiu se sair bem na apresentação das aulas, por causa da falta de postura diante dos alunos. Mais adiante, não precisou seguir a carreira de mestre, pois se casou.

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3 FORTUNA CRÍTICA

A obra Minha vida de menina, de Helena Morley, levantou muitas questões de interesse para a crítica brasileira. Roberto Schwarz escreveu o ensaio Duas meninas (1997), em que fala sobre a narrativa de Helena Morley e faz algumas reflexões sobre a autoria e a escrita do diário. Schwarz dedica o capítulo denominado “Outra Capitu” para analisar a personagem Helena. Nesse ensaio, Schwarz faz referência aos manuscritos originais que, segundo o autor, “haviam sido queimados, e aliás, nunca existiram pois a obra na verdade seria o rearranjo de um anedotário familiar – além de estarem a salvo, guardados no baú.” (SCHWARZ, 1997, p. 46).

Schwarz faz menção à inglesa Elisabeth Bishop, que traduziu o livro nos anos de 1950 e conta que nunca conseguiu ver os escritos originais da jovem Helena, escondidos pela família, cujas caligrafia e ortografia causariam vergonha. Há, portanto, algumas dúvidas em relação à autoria da obra de Helena Morley.

Roberto Schwarz também dialoga com o prefácio de Alexandre Eulálio, que faz algumas considerações a respeito da narrativa. Na introdução de seu ensaio, Schwarz diz:

No prefácio notável que escreveu para ‘Minha vida de menina’, Alexandre Eulálio a certa altura observa que nada impede o leitor de imaginar que a escrita tão espontânea da guria seja obra da autora já adulta, e que se trate de uma impostura literária. (SCHWARZ, 1997, p. 45)

Schwarz também cita Guimarães Rosa, que dizia que, neste caso, o diário seria até mais extraordinário, “pois, que soubesse, não existia em nenhuma outra literatura mais pujante exemplo de tão literal reconstrução da infância.” (SCHWARZ, 1997, p. 45).

Em relação à autoria e ao modo como foi escrito o diário, há então muitas dúvidas a serem esclarecidas. Schwarz diz que, quando os manuscritos originais estiverem disponíveis, as incertezas em relação à obra talvez se desfaçam. Ele situa a obra de Helena Morley como uma boa literatura, comparando-a com Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis. Assim, observa:

Minha vida de menina é um dos livros bons da literatura brasileira, e não há quase nada à sua altura em nosso século XIX, se deixarmos de lado Machado de Assis. [...] A despeito das muitas edições e dos grandes elogios que lhe comprovam o sucesso, a sua posição permaneceu secundária, algo assim como o

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presente certo para encantar estrangeiros curiosos e mocinhas que prometem. (SCHWARZ, 1997, p. 47)

Lucilda de Souza Silvestre (2011) relata que a narrativa Minha vida de menina, inicialmente, na sua primeira publicação em 1942, era conhecida pelo título Minha vida de menina: cadernos de uma provinciana nos fins do século XIX, publicada pela editora José Olympio, no Rio de Janeiro, até a sua sétima edição e, mais adiante, conforme a autora:

Em 1998, o livro passou a ser editado pela Companhia das Letras, de São Paulo, e conhecido como Minha vida de menina (diário de Helena Morley). O livro foi lançado nos Estados Unidos e no Canadá, em 1957, na Inglaterra, em 1958, e também na França, Itália e Portugal. O diário obteve repercussão significativa, confirmada pelas traduções, reflexões dos estudos de Alexandre Eulálio, Aires da Mata e Roberto Schwarz, e mobilizou diversos escritores, como Gilberto Freyre, Rachel de Queiróz, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, dentre outros que expressaram admiração pelo livro. (SILVESTRE, 2011, p. 20)

Alexandre Eulálio, na conclusão de suas hipóteses a respeito da obra de Helena Morley, disse que: “os escritos são de Helena Morley, porém foram sabiamente editados pela publicação” (EULALIO, 1993, p. 43 apud RECCHIA, 2008, p. 46-47). Ainda segundo Eulálio: “Não resta senão louvar a leveza da mão experiente que preparou para o prelo os velhos cadernos da mocinha sem deturpar em um nada o caráter genuíno deles.” (EULALIO, 1993, p. 43 apud RECCHIA, 2008, p. 46).

De acordo com Recchia (2008), houve uma suposta participação de Mário Brant, marido de Helena, na escrita do diário, na publicação da obra e na escolha do pseudônimo de Helena Morley para Alice Dayrell Caldeira Brant. Recchia, com base nos apontamentos feitos por Elizabeth Bishop, comenta: “A participação do Sr. Augusto Mário Caldeira Brant foi muito mais significativa do que se pode pensar de início, foi ele que por ter muito orgulho da esposa; [...] se dispôs a juntar os velhos papéis e cadernos e prepará-los para publicação.” (BISHOP, 1996, p. 108 apud RECCHIA, 2008, p. 47). Sobre os questionamentos feitos por Bishop acerca da autoria do diário, Recchia comenta:

que Mário Brant nunca permitiu que ela pudesse ver os originais, e que foi ele quem acompanhou o processo de tradução fazendo correções (que não foram

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incorporadas à obra), e resgatou a identidade de muitos personagens que aparecem nas inúmeras notas de rodapé da edição em língua inglesa. (RECCHIA, 2008, p. 47)

A narrativa Minha vida de menina teve alguns admiradores, entre eles Gilberto Freire, Raquel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, George Bernanos, entre outros escritores. Cristal Recchia (2008), com base em Brant (2007), faz algumas reflexões a respeito dos admiradores da obra. Em relação ao escritor Gilberto Freire, diz que ele classificava a narrativa de Helena Morley como uma “história natural da vida da família brasileira” (BRANT, 2007, p. 33 apud RECCHIA, 2008, p. 28).

Raquel de Queiroz vê o diário como um retrato de Diamantina feito a bico de pena, uma obra extraordinária, “um caso único na literatura brasileira” (BRANT, 2007, p. 33 apud RECCHIA, 2008, p. 28).

Guimarães Rosa escreve uma carta a Helena Morley em 15 de julho de 1958:

À ilustre conterrânea e admirável escritora D. Alice Brant, muito e vivamente agradeço o gentil oferecimento de “Minha vida de menina” – que já lera e relera, em outra ocasião, com encantamento e amor, considerando-o como um dos maiores livros brasileiros, dos mais importantes. E em grata e cordial homenagem beija-lhe as mãos o Guimarães Rosa. (BRANT, 2007, p. 32 apud RECCHIA, 2008, p. 28)

Sobre o escritor George Bernanos, Recchia, em seus estudos críticos, diz: “Georges Bernanos, que, na ocasião do lançamento do diário, estava exilado no Brasil, leu o livro e presenteou muitos amigos com a obra de Morley.” (RECCHIA, 2008, p. 28). E, em carta a autora de Minha vida de Menina, em 30 de maio de 1945, Bernanos diz:

Prezada Senhora: Muito me emocionou a gentileza de enviardes a mim o vosso livro, pois na verdade acredito que já sabeis quanto o admiro e amo. Escrevestes um desses livros raros em todas as literaturas, livros que nada devem à experiência, ao talento, mas tudo devem ao ingenium, ao gênio, pois não se deve ter medo dessa palavra tantas vezes desviada do seu significado, ao gênio considerado em sua própria fonte, ao gênio da adolescência. É que aí as recordações de uma simples menina de Minas apresentam o mesmo problema que os fulgurantes poemas de Rimbaud. Por mais prodigiosamente diferentes que pareçam aos imbecis, sabemos que essas recordações pertencem à mesma parte misteriosa – mágica – da vida e da arte. É provável que ignoreis o valor do

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que nos destes. Eu, que o sinto tão profundamente, não saberia defini-lo. Conseguis que nós vejamos e amemos tudo o que vistes e amastes naqueles dias distantes, e cada vez que fecho o vosso livro convenço-me de que o espírito dessa narrativa me escapa. Mas que importa? É bem emocionante que se diga que a menina que fostes, bem como o pequeno universo em que ela viveu, não morrerão nunca. Peço-vos que aceiteis as minhas homenagens. (BRANT, 2007, p. 31-32 apud RECCHIA, 2008, p. 29).

Schwarz, em Duas meninas, no capítulo “Outra Capitu”, relata que a admiração pelo diário de Helena Morley provavelmente surgiu por causa da “vivacidade da menina, e pela coleção de anedotas memoráveis da vida familiar da província.” (SCHWARZ, 1997, p. 47).

Cabe destacar aqui que a obra Minha vida de menina recebeu muitos elogios e foi alvo de questões apontadas por muitos escritores, as quais continuam até hoje sendo discutidas em debates feitos pela crítica brasileira, principalmente em relação à autoria.

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4 FILME VIDA DE MENINA, DE HELENA SOLBERG

O filme Vida de menina (2004), de Helena Solberg, é uma adaptação do diário Minha vida de menina, de Alice Dayrell Caldeira Brant, sob o pseudônimo de Helena Morley. Helena Solberg abre o filme com imagens da cidade mineira de Diamantina, com fundo preto e branco, contextualizando o contexto histórico em que Helena viveu. Nessas imagens, aparecem como pano de fundo retratos de algumas pessoas com algumas descrições, tais como:

O Brasil acabara de abolir a escravatura. E Diamantina, centro de umas regiões mais ricas em diamantes do mundo, encontra-se em franca decadência. Em fins do século XIX, as lavras se esgotaram. E alguns estrangeiros, que vieram em busca de fortuna, ficaram. (SOLBERG, 2004)

Além das imagens da cidade de Diamantina, as cenas do filme trazem diálogos entre os personagens do diário e acontecimentos vividos pela protagonista. A narração do filme é feita pela voz da personagem Helena Morley, que relata suas experiências vividas, o seu cotidiano na cidade de Diamantina, a relação com seus familiares e as suas visões de mundo, na sua concepção de adolescente.

Solberg nos mostra várias cenas que contextualizam a vida de Helena Morley registrada em seu diário. Pretendemos relatar algumas das que mais chamaram a atenção na adaptação. Em umas das cenas iniciais do filme, Carolina, mãe de Helena, perde um broche de valor, e Helena encontra a joia presa no cabelo dela, e diz que um dia a joia pertencerá a ela.

Em outra cena, Alexandre, o pai da jovem, aparece e tira do bolso alguns diamantes, e mostra-os para a família; após disso, Helena encerra o capítulo dizendo: “Todos dizem que as lavras de Diamantina estão esgotadas, mas papai não pensa assim, e é um dos poucos que ainda sonha com diamantes”.

Em outro momento, Helena chega a sua casa e há um confronto com Carolina, sua mãe:

Carolina: A mulher e a galinha nunca devem passear. A galinha o bicho come, a mulher dá o que falar. A minha mãe sempre dizia isso e o resultado que os rapazes viam de longe me pedir em casamento, pela fama de moça caseira e recatada.

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Helena: Mas mãe a sua fama não era de recatada, era de rica, por causa do caldeirão que diamantes que seu pai encontrou. E como moça caseira vai ter fama se não sai de casa e ninguém a vê?

No filme, também aparece a figura do tio Geraldo, que resolve fazer uma visita à família dos Morley, por saber que seu afilhado Renato estava doente. Logo após a visita do tio, Helena diz: “Milagre! Vai ter festa no céu. O irmão rico visitou a irmã pobre e o Renato precisou ficar doente para ganhar presente do padrinho”.

Helena pertence ao conjunto pobre familiar, enquanto seu tio Geraldo pertence à parte mais rica. Geraldo era o filho preferido de Dona Teodora, e Helena tinha inveja de suas primas, que tinham melhores condições que ela. A divisão familiar de Helena Morley é marcada por diferenças financeiras, entre ricos e pobres, causando conflitos entre os membros.

Em outras cenas, Solberg mostra a jovem Helena a procura do broche para fazer um uniforme para ir à escola. Dizendo a si mesma que foi ideia de Nossa Senhora, a menina afirma que apanhar o broche não pode ser considerado um furto. Helena Morley vai ao empório do Mota e encomenda um tecido para fazer o vestido. Ao chegar a sua casa, há outro confronto com sua mãe, que não gostou da ideia de Helena vender o broche.

Nas cenas finais do filme, Dona Teodora, avó de Helena, fica doente, e a menina fica muito triste com o seu estado. Ela permanece doente durante muitos dias, até que um dia falece. A personagem Helena diz que seu aniversário foi um dos dias mais tristes, pelo estado de sua avó: “Hoje faço anos! Que aniversário triste! Vovó piorou e não tornou a melhorar. Vovó desde pequeninha me fazia uns agrados que mamãe nunca fez. Ela me diferencia tanto das outras, que fica parecendo que ela é a mãe e mamãe é a avó.” Após a morte da avó, a vida da família de Helena melhorou, tanto pelo recebimento da herança de Dona Teodora, quanto por um novo emprego para seu pai numa nova empresa que chegara a Diamantina.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo possibilitou fazer uma análise da personagem Helena Morley na obra Minha vida de menina, por meio de seus registros feitos no diário, como também das condições das mulheres no século XIX.

Inserida num meio social patriarcal, no final do século XIX, numa pequena província mineira chamada Diamantina, Helena Morley oferece-nos seus relatos escritos em seu diário, os quais nos permitem conhecer uma garota muito observadora e crítica, que, diante da realidade existente em sua família e sua cidade, apresenta-se como questionadora dessas relações e dos papéis atribuídos às mulheres na sociedade oitocentista em que viveu.

Para o desenvolvimento do estudo, o trabalho foi dividido em quatro capítulos: no primeiro, apresentamos uma breve descrição de Alice Dayrell Caldeira Brant, cujo pseudônimo Helena Morley assina a autoria do diário, além de analisarmos Minha vida de menina, publicado em 1942, quando a autora já se encontrava na fase adulta. A respectiva obra foi a primeira e única de sua autoria. A seguir, foi feito um estudo sobre a escrita autobiográfica, com base no Pacto autobiográfico, do crítico francês Philippe Lejeune, em que procuramos trazer definições do conceito de diário e suas funções bem como do conceito de escrita autobiográfica, com o diário de Helena Morley como exemplo.

No segundo capítulo, descrevemos os personagens da narrativa Minha vida de menina, entre eles: a figura da mãe, Carolina, e a figura do pai, Alexandre, a avó Teodora, a irmã Luisinha e Siá Ritinha, conhecida como “a ladrona de galinhas da Cavalhada”. Adiante, trouxemos para a discussão a condição das mulheres e das escritoras literárias no século XIX, a partir dos estudos feitos por Norma Telles, Rosana Kamita e Michelle Perrot. Verificou-se que, devido às condições a que eram submetidas e a sua quase inexistente inserção no campo literário, elas ficaram por um longo período à margem da pena. A seguir, fizemos uma breve descrição do perfil de Helena Morley, de suas características psicológicas e sua formação no diário, com base nos estudos feitos por Guacira Lopes Louro sobre a formação na Escola Normal, que tinha como função preparar professores e professoras para a carreira docente. A partir de seu diário, dos registros feitos, percebemos que uma das condições impostas às mulheres que quisessem seguir a atividade

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docente era não terem marido e filhos, como mostra a figura de Tia Madge, que podia seguir a profissão por não ter constituído uma família.

No terceiro capítulo, apresentamos a fortuna crítica da obra, a partir dos pressupostos teóricos de alguns escritores: Roberto Schwarz, Lucilda de Souza Silvestre, Cristal Recchia, entre outros, com destaque para a ausência de consulta aos originais da autora na ocasião de sua publicação.

No quarto capítulo, tecemos comentários também sobre o filme Vida de menina (2004), de Helena Solberg, em que buscamos apresentar algumas cenas que chamaram a atenção de acordo com os temas pertinentes a esta pesquisa.

O estudo de Minha vida de menina, de Helena Morley, permitiu conhecermos papéis atribuídos às mulheres no século XIX, tais como donas de casa, submissas e inferiores aos homens, destinadas à procriação, ao lar e ao agrado do outro.

Outro ponto importante se refere à educação feminina e à condição das mulheres no meio literário. Como vimos, a formação educacional da personagem Helena era destinada à carreira docente, como ocorreu com tantas outras mulheres durante aquela época, ao frequentar a Escola Normal, cuja formação pretendia preparar meninos e meninas para o magistério.

A partir desse estudo, podemos comparar aquela época com a época de hoje, perceber como os papéis das mulheres mudaram e como a visão masculina diante delas também mudou. As mulheres permaneceram por muito tempo lutando por direitos igualitários e, por meio de muitos esforços, conseguiram muitos direitos, como emprego, educação, independência financeira, inserção no campo da escrita, entre outros.

A análise da obra Minha vida de menina contribuiu, portanto, para a compreensão da história das mulheres no século XIX e no século XXI, a partir da visão de mundo de Helena Morley.

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REFERÊNCIAS

AGUIAR, A. S. A de. O retrato de uma educação: a formação da menina no diário Minha vida de

menina, de Helena Morley. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Pedagogia) – Universidade

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Referências

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