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ESTUDOS AFRICANA OU NOVOS ESTUDOS AFRICANOS: Um campo em processo de consolidação desde a diáspora africana no Brasil

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Academic year: 2021

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CAPOEIRA

Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354 Vol. 3 | Nº. 2 | Ano 2017

Bas´Ilele Malomalo

UNILAB

ESTUDOS AFRICANA OU NOVOS

ESTUDOS AFRICANOS: Um campo em

processo de consolidação desde a

diáspora africana no Brasil

_____________________________________

RESUMO

O artigo faz parte dos trabalhos que vêm refletindo sobre as epistemologias que sustentam o pensamento africano e afro-diaspórico. Objetiva destacar a diferença existentes entre os Estudos Africanos e os Estudos Africana, revelando criticamente algumas falácias dos primeiros. Apresenta os principais elementos que constituem o que o autor denomina de Novos Estudos Africanos, ou seja, os Estudos Africana produzidos desde a diáspora brasileira: o dispositivo da bioepistemologia na produção de conhecimentos afrocentrados ntuístas (ubuntuista ou bisoista); os lugares dos sujeitos de investigação, as relações estabelecidas entre o pesquisador e o colaborador da pesquisa e o campo de investigação. Discute os princípios éticos e teórico-metodológicos que orientam os Novos Estudos Africanos numa perspectiva da epistemologia do Ntu/Força-da-Vida. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e que tem como ponto de partida as epistemologias negras do Sul global subalterno e os estudos críticos da branquitude. O argumento defendido é que os esforços dos agentes hegemônicos dos Estudos Africanos relativos à periodização dos saberes africanos, concentrando-se no século XX; e a sua negação em incorporar a diáspora africana, como parte indispensável de suas investigações sobre a África e africanos, são jogos de poder para a manutenção dos privilégios da branquitude no campo científico.

Palavra-chaves: Estudos Africana; Estudos Africanos; Epistemologia;

Filosofia do Ntu; Branquitude.

____________________________________

ABSTRACT

The article is part of the work that has been reflecting on the epistemologies that sustain African and Afro-diasporic thinking. It aims to highlight the difference between African Studies and Africana Studies, critically revealing some fallacies of the former. It presents the main elements that constitute what the author calls New African Studies, that is, the African Studies produced since the Brazilian diaspora: the device of bioepistemology in the production of ntuístas (ubuntuista or bisoista) Afro-centric knowledge; the places of the research subjects, the relations established between the researcher and the research collaborator and the field of research. It discusses the ethical and theoretical-methodological principles that guide the New African Studies from the perspective of the Ntu / Life-Force epistemology. It is a bibliographical research whose starting point is the black epistemologies of the subaltern global South and the critical studies of whiteness. The argument is that the efforts of the hegemonic agents of the African Studies related to the periodization of African knowledge, concentrating on the twentieth century; and their refusal to incorporate the African Diaspora, as an indispensable part of their research on Africa and Africans, are games of power for the maintenance of the privileges of whiteness in the scientific field.

Key-words: Africana Studies; African Studies; Epistemology; Philosophy of

Ntu; whiteness.

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br capoeira.revista@gmail.com

Editores deste número:

Bas’Ilele Malomalo

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ESTUDOS AFRICANA OU NOVOS ESTUDOS

AFRICANOS: Um campo em processo de

consolidação desde a diáspora africana no Brasil

Bas´Ilele Malomalo1

Introdução

Introduzo meus leitores e minhas leitoras na minha escrita com essas belas palavras de Marzui, Ajayi, Tshibangu e Bohen, extraídas do seu texto “Tendências da Filosofia e da Ciência na África”, da História Geral da UNESCO.

A ciência tradicional

O reconhecimento e a apreciação do conjunto dos conhecimentos e das capacidades, sobre o quais se apoiam as sociedades pré‑coloniais, em matéria de agricultura, saúde, artesanato e indústria, encontram‑se ainda na esfera das boas intenções. À época colonial, este corpo de saberes e capacidades não era julgado digno do nome “ciência”; ele era rebaixado ao nível das superstições pré-científicas. A educação ocidental e o cristianismo, eventualmente, as leis coloniais e políticas deliberadas, inclusive, dedicaram‑se a solapar a estrutura destes saberes tradicionais. Os estabelecimentos cuja educação obedecia ao perfil ocidental ensinavam aos seus alunos a desconsiderarem e rejeitarem o saber tradicional. Este saber transmitido em escala pessoal −“boca a boca”−

1 Doutor em Sociologia, Docente no curso de Bacharelado em Humanidades e no Programa de Mestrado

Interdisciplinar em Humanidades, Instituto de Humanidades e Letras/Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, São Francisco do Conde, Bahia, Brasil; líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento, Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global; pesquisador do Centro dos Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN-Unesp), da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano/Brasil, Member of United Nations - Harmony with Nature e integrante e fundador do Instituto da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB). Contato: basilele@unilab.edu.br.

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subsistiu, no entanto, segundo diversas modalidades, em meio a população. Constata‑se hoje que, apesar do impacto da medicina, da agricultura, da ciência e da tecnologia ocidentais, as reservas tradicionais de saberes e capacidades, em respeito à agricultura, bem como no campo das práticas e crendices terapêuticas, este legado de saber continua presente no cotidiano vivido pela maioria do povo africano (MARZUI; AJAYI; TSHIBANGU; BOHEN, 2010, p. 765-766).

O texto “Estudos Africana ou Novos Estudos Africanos: Um campo em processo de consolidação desde a diáspora africana no Brasil” faz parte de meus trabalhos que têm o propósito de colaborar na construção de uma epistemologia africana desde a diáspora africana contemporânea no Brasil. Levaram, ou levam frequentemente, o nome de epistemologia da macumba (MALOMALO, 2016c, 2017c); ou ainda há momentos que a denomino de epistemologia de macumba-ubuntu-bisoidade (MALOMALO, 2017d) com intuito de agrupar três categorias filosóficas dentro de uma única proposta científica. Prefiro chamar o meu projeto epistemológico, que talvez viria mais tarde se constituir em um paradigma, de epistemologia do Ntu2 (Força, Vida ou Força vital) (DIAGNE, 2013; JAHN, 1970; TEMPELS, 2016) pela extensão que comporta essa categoria sobre macumba, ubuntu e bisoidade.

Quando comecei a escrever este texto, pensava em apresentar somente alguns elementos de minhas reflexões em torno do que chamava, desde 2013, de Novos Estudos Africanos. Na busca de mais fundamentos teóricos, dei-me a conta que os

Estudos Africana (Estudos Negros; ou Estudos Afro-Americanos), produzidos nos

Estados Unidos, já realizavam um trabalho semelhante, o que me leva a afirmar que os Novos Estudos Africanos são sinônimos de Estudos Africana. A única diferença é que talvez seja o primeiro a utilizar, no Brasil, o termo Novos Estudos Africanos.

O uso que faço do termo Novos Estudos Africanos é bem distante da maioria dos textos que trata de Estudos Africanos, pois nossas problematizações a respeito dessa área de investigação tendem a ser bem diferentes. Isso ocorre porque a maioria dos/as autores/as não enxerga problemas ou pensa que se livrou da colonialidade e do seu racismo. Nossa hipótese é que muitas estruturas de Estudos Africanos, de gestão do pessoal, de distribuição de recursos, de criação de aparatos teórico-metodológicos e

2 MALOMALO, Bas’Ilele. Epistemologia do Ntu: Meu (s) diálogo (s) com Dagoberto José Fonseca. In:

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publicações sobre a cultura africana continuam assente na branquitude. Nossa posição é uma crítica aos Estudos Africanos do ponto de vista dos Estudos das relações raciais e dos Estudos críticos da branquitude (CARDOSO, 2014; LABORNE, 2017). Não analisarei cada texto que eu li nem tampouco faço uma análise sobre os conteúdos de textos escritos por estudiosos afrocentrados ou eurocentrados.

Todavia, deixo o registro de que o texto, como o de Schlickman (2016)3, mesmo trazendo uma seção com o título “Novas perspectivas para os estudos africanos [no Brasil] - 1980”, não critica a branquitude dessa “nova perspectiva”. Essa falha se estende a muitos outros textos produzidos por historiadores/as que se dizem ‘donos/as’ de Estudos Africanos, dentre outros motivos, por se recusarem assumir a raça como uma categoria analítica na investigação dos fenômenos sócio-históricos africanos. Em sendo, em princípio, os Estudos Africanos e Estudos Africana críticos à branquitude e negritude, campos de investigação inter e transdisciplinares, este meu trabalho se dirige a pesquisadores/as inter e/ou transdisciplinares, e não aos estudiosos disciplinares que se perdem na torre de marfim da área de sua especialização. Este texto trata de epistemologia africana, partindo das áreas de formação de seu autor, que são a filosofia africana e a sociologia.

O meu primeiro objetivo, neste texto, é destacar a diferença entre o que se chama de Estudos Africanos e os Estudos Africana/Novos Estudos Africanos, revelando criticamente algumas falácias dos primeiros. O segundo objetivo visa apresentar os elementos de Estudos Africana/Novos Estudos Africanos produzidos desde a diáspora brasileira. Dessa forma, apresento alguns conceitos básico da epistemologia do Ntu; destaco a importância da bioepistemologia na produção de conhecimentos afrocentrados ntuístas (ubuntuistas ou bisoistas); problematizo as questões relativas aos

Intelectualidade coletiva negra: Memória, educação e emancipação. Porto Alegre: Editora Fi, 2018; em

prelo.

3 Alguns desses outros estudos percebem a necessidade de usar a crítica contra os Estudos Africanos,

porém não empregam a teoria social da branquitude em suas análises: EUSTÁQUI, Vitor. Desafios epistemológicos em Estudos Africanos: Da colonialidade do poder às epistemologias descoloniais. Paper submetido em março de 2011 e aprovado em junho de 2011 pela comissão científica do curso de doutoramento em Estudos Africanos do ISCTE-IUL, Lisboa; FERREIRA, Roquinaldo. A institucionalização dos Estudos Africanos nos Estados Unidos: advento, consolidação e transformações.

Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 30, nº 59, p. 73-90 – 2010; SLENES, Robert W.. A

Importância da África para as Ciências Humana. Texto apresentado no seminário “Respostas ao racismo: produção acadêmica e compromisso político em tempos de ações afirmativas” realizado em 3 de dezembro de 2009 no IFCH/UNICAMP; VALDEMIR, Zamparoni. Os Estudos Africanos no Brasil: Veredas. Ciência e Cultura, vol. 59, no 2, São Paulo, Abr./Jun. 2007, p. 46-49.

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sujeitos de investigação: pesquisador/a e colaborador/a da pesquisa e ao campo de investigação. Faço uma discussão sobre os princípios éticos e teórico-metodológicos dos Estudos Africana/Novos Estudos Africanos numa perspectiva da epistemologia da macumba-ubuntu-bisoidade.

Algumas noções básicas da epistemologia do Ntu

Quero aqui deixar claro alguns termos que fazem parte dos Novos Estudos Africanos e dos Estudos Africana, como os emprego em meus trabalhos. O primeiro deles é o adjetivo “Africanos/as” ou “Africana”, que nos remete à noção de África. Esta deve ser entendida como um espaço, no sentido físico e simbólico, onde os primeiros seres humanos, que se convencionou a chamar de africanos, surgiram, e a partir do qual se realizaram as primeiras migrações populacionais. Das migrações africanas, forçadas ou voluntárias, desde a Antiguidade, povoaram-se outros territórios fora do continente africano, formando o que chamamos de diásporas africanas – e que usualmente é usada no singular: diáspora africana (MALOMALO, 2016a, 2017a; MANNING, 2012).

O uso que faço do termo “africano” está muito ligado aos Estudos Africana do paradigma da Afrocentricidade de Asante (2009) com as anuências que lhe dão Karenga (2009) e Rabaka (2009). Isso significa que “africano/a” refere-se às populações africanas do continente e das diásporas. Na escrita desses últimos autores, toma-se cuidado sempre de diferenciar “africanos do continente” dos “africanos da diáspora”. Dentro dos africanos/as das diásporas é preciso igualmente levar em conta as particularidades de experiências de vida dos africanos, cujas identidades foram forjadas pelo tráfico do Atlântico e da escravidão, e dos/as africanos/as da diáspora africana contemporânea que começaram a emigrar do continente no período colonial ou pós-colonial (HALL, 2003; MALOMALO, 2014, 2016; MANNING, 201). Alguns/algumas autores/as chamam a diáspora africana, que nasce da experiência da escravidão do século XVI nas Américas, de “diáspora histórica” (VENEY, 2002).

Inicialmente era formada por africanos/as escravizados/as ou seus descendentes. Prefiro chamar essa última diáspora de diáspora moderna, uma vez que todas as diásporas, independentemente de seu período histórico, são históricas; ou ainda, acompanhar o termo diáspora moderna de um adjetivo referente às populações

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descendentes de africanos/as de um determinado território: diáspora afro-americana; diáspora afro-brasileira, por exemplo. A diáspora africana contemporânea é nomeada por alguns/algumas autores/as de nova diáspora africana (OKPEWHO; NZEGWU, 2009). Interessa aos Estudos Africana estudar a diáspora africana em suas conexões com a África, sendo ela inegavelmente parte da história mundial (DUFOIX, 2014; MANNING, 2012; CHRISTIAN, 2009).

Os ancestrais desses/dessas africanos/as inventaram a cultura africana ancestral, que seus descendentes remanescentes e descendentes da diáspora moderna e/ou da diáspora contemporânea reproduzem e reinventam no próprio continente e em suas diásporas. Os Estudos Africana, que têm a cultura africana (FALOLA, 2008) – devem ser sempre interpretados no plural e, levando-se em conta o desenvolvimento de suas particularidades no continente e na diáspora – como campo de investigação, fazem parte dela como uma de suas construções culturais. Em um dos meus textos, inspirando-me em Silva (2005), chainspirando-mei a cultura negra de africanidades africanas4 e brasileiras

(MALOMALO, 2016a, 2016b, 20017a). Afrocentricidade, epistemologia de macumba-ubuntu-bisoidade, como parte dos Estudos Africana, são suas metalinguagens.

O ato de escrever tem muito a ver com a vida do autor. Este pode até negar essa ligação, mas no fundo é assim que se passam as coisas. Há uma tradição ocidental que quer nos iludir que se pode praticar a arte pela arte e a ciência pela ciência. Esse individualismo ou anarquismo científico, salvo quando se trata de um gesto de liberdade, não tem cabimento em outras culturas, como a africana, onde todo ato de produção artística e científica compromete, geralmente, pessoal e coletivamente o seu autor.

A fim de compreender esses elementos na produção da ciência, venho trabalhando com a noção da bioepistemologia, uma ideia que significa que, ao olhar pela cultura africana, toda ciência é feita a partir, mediante e para o Ntu, a Vida em suas diversas manifestações. Vida como resultado de forças energéticas (HAWKING, 2015) é o que os povos africanos bantu chamam de Ntu: o Pré-Existente; o Ser-Primordial de que tudo veio à existência (BILOLO, 1986); a Força vital (TEMPELS, 2012). A sua manifestação é o Ub-Ntu; Ub, ser; e Ntu, Força-vida; é dessa forma que

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Ramose (1999) define Ubuntu como Ser-sendo; ou seja a movimentação do Ser-Força-Vida (Ntu) que se manifesta em seres particulares, que estão ontologicamente ligados: Ki-ntu (Coisa-Força-Vida), Ku-ntu (Modalidade-Força-Vida), Ha-ntu (Tempo-Espaço-Força-Vida), Muntu (Pessoa-Força-Vida).

Ontologicamente, o Ser é a manifestação da multiplicidade e da diversidade dos entes. Essa é a pluriversalidade do ser, sempre presente. Para que essa condição existencial dos entes faça sentido, eles são identificados e determinados a partir de particularidades específicas. Assim, a particularidade assume uma posição primária a partir da qual o ser é concebido. Essa assunção da primazia da particularidade como modo de entender o ser é frequentemente mal colocada como a condição ontológica originária do ser. O mal-entendido se torna a substituição da pluriversalidade original ineliminável do Ser (RAMOSE, 2011, p. 11).

Para Ntumba (2014), há uma complementaridade radical entre essas realidades particulares que se dá no que se chama de Solidariedade Cósmica ou Biso Cósmico. Biso (Nós, em Lingala) é uma a consciência coletiva de muitos povos africanos de que como seres humanos (Bantu, plural do Muntu), pertencentes à Comunidade-dos-Bantu, suas vidas só têm sentido porque participam na Comunidade-do-Divino-Ancestral e na Comunidade-Natureza-Universo. Essas Comunidades-de-Ntu-Particulares, interagindo reciprocamente forma a Realidade-Total processual, multiforme e global, ou seja, a participação processual solidária da vida. Essa proposta de Ntumba (2014) é chamada de filosofia de Bisoidade, pois parte do pressuposto do Nós/Coletivo sobre o eu/individual das culturas africanas.

Um dos primeiros princípios da ética ubuntu é a libertação do dogmatismo. É flexibilidade orientada para o equilíbrio e para a harmonia no relacionamento entre seres humanos, e entre os últimos e o mais abrangente ser-sendo ou natureza (RAMOSE, 2002, p. 4).

O meu contato com o poema de Solano Trindade, “Macumba”, foi um momento decisivo para uma movimentação na construção de uma epistemologia da macumba-ubuntu-bisoidade.

4 Cf. MAFEJE, Archie. The africanity: a combative ontology. In: DEVISCH, Rné; NYAMNJOH, Francis

B. The post-colonial turn: re-imagining the antropology and Africa. Bamenda/Leiden: Langaa/Center African Studies, 2011, p. 31-44.

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MACUMBA

Noite de Yemanjá Negro come acaçá Noite de Yemanjá Filha de Nanan Negro come acaçá Veste seu branco abebé Toca o águe O caxixi O agogô O gã O engona O ilu O lê O ronco O run O rumpi Negro pula Negro dança Negro bebe Negro canta Negro vadia Noite e dia Sem parar

Pro corpo de Yemanjá Pros cabelos de Obá Do Calunga Do mar Cambondo sua Mas não cansa Cambondo geme Mas não chora Cambondo toca Até o dia amanhecer Mulata cai no santo Corpo fica belo Mulata cai no santo Seus peitos ficam bonitos Eu fico com vontade de amar... (TRINDADE, 2007, p. 76-77)

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O meu trabalho, para elaborar um projeto epistemológico a partir da categoria macumba, obrigou-me a ler a filosofia da força vital, a filosofia de Ubuntu e a filosofia da Bisoidade. Afinal de contas, servindo-me da poesia de Solano Trindade, descobri que a macumba, em seus textos, toma o sentido de encantamento do mundo do Outro: é um processo de amortização que se faz numa perspectiva cósmica, isto é, do ponto de vista da cultura africana apela à participação das três Comunidades que compõem a Realidade-Total (MALOMALO, 2016b).

Críticas às falácias dos Estudos Africanos

Lancei, em 2013, o conceito de Novos Estudos Africanos por ter observado as falácias que os ditos Estudos Africanos comportavam: o poder da branquitude que eles carregam. Fiz tudo isso sem saber que Archie Mafeje (2011), no contexto africano, já decretava alguns anos antes a morte dos mesmos. Tudo isso vinha sendo feito dentro de um processo de participação em mesas de debates onde minhas ideias eram defendidas na minha comunicação que tinha este título: “Reflexões sobre Novos Estudos Africanos: Ciência e Emancipação”, no V Colóquio Internacional Saberes, Práticas e I Encontro Internacional de Filosofia Africana, na Universidade Federal da Bahia, em 2013; no I Colóquio do AFROUNEB: Estudos Africanos no Brasil: análise e projeções, na Universidade Estadual da Bahia; e no I Seminário Internacional de Estudos Africanos, na Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNIAB), organizado pelo Centro Interdisciplinar de Estudos Africanos e da Diáspora (CIÁFRICA), em 2017.

O meu argumento é que os Estudos Africanos criaram a sua própria narrativa, que se distanciam dos afrocentrismos eurocencistas (OBENGA, 2001), isto é, estudos brancos racistas sobre os povos não europeus. Todavia, quando olhar as realidades de suas estruturas (seus centros, departamentos, cursos, revistas, associações, gestão de pessoal, etc.) que nasceram no século XX, de forma geral, a partir de 1960 (FERREIRA, 2010; SCHLICKMANN, 2016), num esforço da descolonização de saberes, o que se percebe é que há uma disputa racial no processo de produção de conhecimentos sobre a África continental e diaspórica. Só que a branquitude não assume esse problema da hegemonia branca publicamente (CARDOSO, 2014; BENTO, 2002).

Parto da ideia central de que o surgimento de Estudos Africana, no Brasil, cujas ideologias, metodologias e teorias se expressam nos trabalhos realizados nos espaços não acadêmicos negros, dentro das organizações sociais do Movimento Negro (por exemplo, Teatro Experimental de Abdias Nascimento no passado e outras organizações negras da atualidade) e

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Estudos Africana ou Novos estudos africanos

nos espaços acadêmicos negros (Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros - NEABs), Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as - ABPN), Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB), como demostrarei ao longo deste texto, tem a ver com a sua recusa em relação à supremacia branca que sempre dominou os centros de africanismos eurocentistas (OBENGA, 2001, 2008; CHRISTIAN, 2009) do período colonial e até os anos de 1950 (tomando aqui os Estudos das relações raciais da UNESCO como marco histórico) (MALOMALO, 2017b) e a maioria de centros dos Estudos Africanos que emergiram a partir dos anos de 1960.

As reflexões desenvolvidas por Guerreiro Ramos (1995), denunciando a brancura que predominava nas instituições acadêmicas e os primeiros Congressos Afro-Brasileiros dirigidos por Gilberto Freire e companhia; ou a crítica de Bento (2000) e Cardoso (2014) em relação aos privilégios que gozam os intelectuais brancos que estudam a cultura africana continental e diaspórica e o fenômeno de reprodução de comportamentos racistas entre alguns deles, deve ser levada a sério para se compreender o que aparece normalmente como simples divisão social de campos científicos dirigidos, de um lado por intelectuais brancos/as, e de outro lado por intelectuais negros/as. Ramos, Bento e Lourenço têm o mérito de nos chamar a atenção sobre o funcionamento da brancura/branquitude nos espaços acadêmicos brasileiros, mesmo se tratando de espaços dirigidos por intelectuais brancos/as de esquerda ou progressistas. Intelectuais negros não letrados/as no paradigma dos Estudos Africana à brasileira e intercontinental e não comprometidos com o seu povo podem cair nas mesmas armadilhas da branquitude racista que caracterizam os Estudos Africanos (CHRISTIAN, 2009).

Ferreira (2010) argumenta que essa disputa racial, no contexto dos Estados Unidos, fez com que os/as intelectuais negros/as passassem a liderar os centros de Black Studies ou

Afro-American Studies (Estudos Negros), e os/as brancos/as passaram a coordenar os African Studies

(Estudos Africanos). O que estava na base dessa divisão social de produção de conhecimento era e continua sendo a disputa de recursos, de status e de poder sobre a construção de narrativas de história de africanos/as e d seus descendentes. Então, a primeira falácia da maioria dos Centros de Estudos Africanos é que se dizem espaços democráticos, mas de fato não os são, pois se estabeleceram como espaços de hegemonia branca (MAFEJE, 2011; OBENGA, 2001).

Na tentativa de explicar o surgimento da proposta da Afrocentricidade dentro dos

Estudos Africana, Frinch III e Nascimento (2009) trazem o contexto histórico dos campi

universitários norte-americanos, no final dos anos 1960 e início de 1970, que passaram a ser agitados pelos movimentos estudantis acerca da Guerra do Vietnã e o Apartheid na África do Sul. Da mesma forma, trazem o impacto de resistência negra através dos Panteras Negras e dos

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movimentos de direitos civis sobre os intelectuais negros que queriam descolonizar os Estudos Africanos dominados pelos/as intelectuais brancos/as.

Parte importante desse esforço se deu no campo da História, culminando no conflito ocorrido entre historiadores e negros reunidos nas 11a e 12a Convenções da Associação

de Estudos Africanos (ASA), realizadas respectivamente em Los Angeles (1968) e Montreal (1969). O conflito, de acordo com o historiador afro-americano John Henrik Clark (1975, p. 5), um dos seus destacados protagonistas, “e sobre quem vai interpretar a história africana. Os estudiosos brancos, mais que os negros, sempre entenderam a importância de controlar o pensamento histórico e social. A melhor maneira de controlar um povo é controlar o que ele pensa sobre si mesmo”. Com efeito, John Henrik Clarke foi um dos grandes expoentes da fundação da Associação dos Estudos da Herança Africana (AHSA), organização de estudiosos da história africana que romperam com ASA no intuito de criar um instrumento para os intelectuais negros poderem protagonizar e definir suas abordagens e pesquisas. A criação da AHSA, pare eles, significava exercer o poder de definir os termos e abordagens desse campo – como protagonistas, e não como objeto das respectivas pesquisas. A referência à “herança” é a chave diferencial que caracterizou a AHSA, pois os Estudos Africanos até aquele momento focavam a África como se ela passasse a existir em função da colonização europeia e não possuísse uma milenar tradição de produção de uma cultura e conhecimento em liberdade e soberania (FRINCH III; E. L. NASCIMENTO, 2009, p. 60-61).

A segunda falácia tem a ver com a narrativa em torno da genealogia dos Estudos Africanos. A maioria dos textos situa a genealogia desses estudos no século XX. Nossa crítica é que se trata de uma perspectiva ocidental, reducionista, de se contar a história da produção dos saberes e conhecimentos sobre a África. Ao contrário, a forma decolonial de contar essa história é considerar a genealogia dos saberes africanos, levando-se em conta a concepção histórica africana pelos/as próprios/as africanos/as continentais e diaspórico/as. O caso paradigmático é a perspectiva da História Geral da África da UNESCO5 (BARBOSA, 2012a, 2012b). Essa obra interdisciplinar, que contou com a maioria de intelectuais africanos continentais e da diáspora para a sua produção, traz, desde o seu primeiro volume e o nono ainda em construção, elementos centrais para (re)construção de uma narrativa não tendenciosa sobre a história de povos africanos do continente e das diásporas.

O primeiro elemento que quero destacar aqui diz respeito aos ingredientes de construção da história africana, ou seja, seus pressupostos epistemológicos. A interdisciplinaridade é a regra de ouro. Revisitando a História Geral da África do ponto de vista dos Estudos Africana deve-se dizer que qualquer campo científico africano contemporâneo sai ganhando, uma vez que

5 Importante é ler essa obra como uma posição científica e política. Disponível em (versão franção inglesa; francesa e

árabe): http://www.unesco.org/new/fr/social-and-human-sciences/themes/general-history-of-africa/volumes/;

http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/education/inclusive-education/general-history-of-africa/gha-ninth-volume-elaboration/#c1437359. Acessado em: 10 abril 2018; Disponível (versão portuguesa):

http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/education/inclusive-education/general-history-of-africa/gha-ninth-volume-elaboration/#c1437359. Acessado em: 10 abril de 2018.

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Estudos Africana ou Novos estudos africanos

estabelece um diálogo sério com os modos ancestrais de construir metodologias e conceitos para a interpretação do mundo, isto é, a perspectiva holística ou bisoística.

Outro elemento importante da história africana tem a ver com a periodização dessa própria história. Além do alerta sobre as particularidades regionais e de zonas culturais, há um cuidado de processar os conteúdos dessa história numa perspectiva de encruzilhadas, isto é, o estabelecimento de diálogos entre o local com o global, ou seja, entre o local, regional, nacional, continental com o mundial. O tempo é abordado numa perspectiva de longo alcance, e o espaço tratado a partir da multidimensionalidade. Dessa forma, é que o segundo volume da História Geral da África que trata da África Antiga, começa a explorar a história deste continente a partir de 9 mil anos antes da nossa era.

O presente volume da História Geral da África refere-se ao longo período que se estende do final do Neolítico – isto e, em torno do VIII milênio antes da Era Crista – até o início do século VII da Era Crista.

Esse período da história africana, que abrange cerca de 9 mil anos, foi abordado, depois de alguma hesitação, considerando-se quatro zonas geográficas principais:

• o corredor do Nilo, Egito e Nubia (capítulos 1 a 12); • a zona montanhosa da Etiópia (capítulos 13 a 16);

• a parte da África comumente denominada Magreb e seu interior saariano (capítulos 17 a 20);

• o restante da África, inclusive as ilhas africanas do oceano Indico (capítulos 21 a 29). Essa divisão e determinada pela compartimentação que atualmente caracteriza a pesquisa em história da África. Poderia parecer mais lógico organizar o volume de acordo com as principais zonas ecológicas do continente, oferecendo cada uma delas condições de vida semelhantes a todos os agrupamentos humanos que as habitam, sem que haja barreiras naturais a impedir o intercâmbio (cultural ou de outro tipo) no interior de uma mesma região. (MAKHATAR; VERCOUTTER, 2010, p. XXXIII)

Todo discurso científico é um posicionamento político. Interessa-nos a perspectiva pan-africana presente na História Geral da África, mesmo não sendo ela a única (BARBOSA, 2012b), e em outras agências africanas de produção de conhecimentos e políticas públicas, por exemplo, a do Conselho para o Desenvolvimento de Ciências Sociais na África (CODESRIA), do Centro de Estudos das Religiões Africanas (CRA) da Universidade Católica no Congo, do

International Journal of African Renaissance Studies: Muli-, Inter- and Transdisciplinarity. University of South Africa. É essa perspectiva que inspira os Estudos Africana e a nossa proposta

teórica, uma vez as questões metodológicas e de periodização são reabilitadas do ponto de vista dos próprios povos africanos.

Resta mencionar o terceiro elemento que tem a ver com os conteúdos a serem narrados. Nesse sentido, é preciso lembrar que um outro princípio fundamental que permeia essa obra e que acompanha a escrita dos intelectuais africanos pan-africanistas é tratar a África sempre em sua unidade e diversidade. Essa proposta está presente, por exemplo, nas obras de Diop (1981,

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1982) e Ki-Zerbo (2006)6. Os/as intelectuais eurocêntricos/as, que se escondem no manto de Estudos Africanos, não conseguem aceitar essa concepção africana e, para tanto, o que lhes interessa é desqualificar qualquer abordagem pan-africana que alguns deles rotulam de afrocentrismo ou de pensamento essencialista.

Outra armadilha dos Estudos Africanos é dissociar os africanos da diáspora dos africanos do continente. Essa divisão aparentemente científica esconde as intenções de uma dominação política do campo científico e da sociedade pela branquitude. A História Geral da África reconheceu as histórias das diásporas africanas como parte da história dos povos africanos. E essa última história como parte importante da história mundial. Esses reconhecimentos têm a ver com o movimento da libertação e liberdade intelectual, cultural, econômica e políticas liderados pelos africanos do continente e da diáspora. O pan-africanismo é o maior movimento social mundial para os africanos e seus descendentes (LE MOUVEMENT PANAFRICANISTE AU XXe SIÈCLE, 2004).

Reconhecendo que toda a escrita científica está sujeita a imperfeições, o comitê científico da História Geral de África da UNESCO vem realizando, dentro das tensões, revisões e correções dos oito volumes. Elaborou, em 2010, igualmente, algumas recomendações para a utilização dos conteúdos pedagógicos desses manuais nas escolas africanas.

Talvez não agrade aos/ás críticos/as da escola da egiptologia africana diopiana o fato de que muitas descobertas feitas por Diop e a escola de egiptologia africana desenvolvida por ele foram recomendadas para o ensino pelo Comitê da UNESCO.

Em conexão com os diferentes capítulos:

Com base no Capítulo 1, História das formações políticas criadas pelos negros começa com o antigo reino do Egito (ainda ensinamos nas escolas Africanos que Gana era o mais antigo estado negro conhecido) formados no final do quarto milênio a.C. Com base nos argumentos desenvolvidos por C. A. Diop pode-se afirmar, segundo Babacar Sall, que os autores das civilizações africanas e do reino do Egito eram negros.

O Capítulo II deveria incluir uma análise do processo que levou ao advento do Reino do Egito.

O papel da violência é descrito nos documentos proto-históricos deve ser colocado neste processo7.

Diga-se de passagem, essas recomendações foram feitas levando-se em conta sempre o processo de uma educação africana crítica. A violência, como também parte da história africana,

6 O texto de Issiaka-P. Latoundji Lalèlê, na parte que aborda a unidade e pluralidade das religiões da África

tradicional, é interessante para aprofundar essa discussão. (LALÈLÊ, Issiaka-P. Latoundji. Les religions de l´Afrique traditionnelles: interrogations majeures et pistes des recherches actuelles. In: ___ (Dir.). Culture et religion em Afrique u seuil du XXe siécle: Cosncience d´une Renaissance?. Dakar: CODERSIA, 2015, p.243-257).

7 Conférence régionale sur l’utilisation pédagogique de l’Histoire générale de l’Afrique dans les écoles africaines

Tripoli, Libye, 10 – 17 juin 2010 REVUE DES CONTENUS DE L’HISTOIRE GENERALE DE L’AFRIQUE (Recommendations) Coordinateur scientifique: Professeur Doulaye KONATE. Disponível em:

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Estudos Africana ou Novos estudos africanos

deve ser abordada, mesmo quando cometida pelos próprios povos africanos. Como é sabido, os comitês da UNESCO da escrita da História Geral de África são heterogêneos do ponto de vista racial e metodológico. Doulaye Konaté é uma das figuras da historiografia pan-africana presente na comissão de revisão da HGA da UNESCO. A diferença entre as críticas feitas por intelectuais africanos/as pan-africanistas e não pan-africanistas, especificamente eurocentristas, não se limitam somente à arrogância inerente à razão indolente (SANTOS, 2003a; SANTOS; MENESES, 2010) que conduz os trabalhos destes últimos, mas igualmente na branquitude acrítica8 que condiciona sua tomada de posição política e teórica.

Tomo como exemplo as críticas de Amadiume (2001) e desses autores eurocêntricos: Elikia M’Bokolo, Appiah e Farias9. M’Bokolo10 é aquele tipo de teórico negro que, perante a questão da negritude dos faraós das primeiras dinastias, não quer tornar explícita a sua posição em nome do que ele entende como algo polêmico. A crítica de Christian (2009) dirigida a Gilroy11 vale igualmente para Appiah12. Esses autores negros pós-modernistas fazem uma leitura seletiva do uso da categoria de raça nas obras de pioneiros do pan-africanismo, tal o caso de Du Bois, que eles acusam de essencialista.

Paulo Farias13 alinha-se aos estudos africanos eurocêntricos, escreve com raiva contra estudiosos negros e escapa-lhe apreender o essencial de suas escritas. Falha ao confundir o afrocentrismo ou a afrocentricidade, presentes nos textos de Diop, Obenga, Asante e Mafeje, com o dogmatismo. Nesses autores, esses conceitos servem para o uso de um paradigma africano que se quer ser mais uma perspectiva ou localização de interpretação do que dogmas. São “centros”, lugares que servem como ponto de partida para a produção de saberes africanos (ASANTE, 2009; FRINCH III, 2009; KARENGA, 2009). Ademais, a recusa desses autores eurocêntricos em encarar a raça como categoria analítica revela o pacto narcísico da branquitude nas suas produções que são suas tomadas de posições teóricas e políticas. Todos/as teóricos/as

http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CLT/CLT/pdf/General_History_of_Africa/GHA_Content %20review%20recommandations%20FR.pdf. Acessado em 1000 abril de 2018.

8 Para Cardoso (2014), branquitude acrítica é a identidade branca que assume publicamente o seu racismo; já a

branquitude crítica é aquela que repudia, em tese, publicamente o racismo. Todavia, alerta o autor que nos espaços privados de brancos, onde se conta os segredos de brancos para brancos, a branquitude crítica tende a reproduzir comportamentos racistas. O conceito de pacto narcísico de Bento (2002) pode auxiliar a compreender esse tipo de comportamento no meio de brancos de esquerda, ou que se auto-proclamam praticantes da decolonialidade.

9 Nossa posição teórica não visa desmerecer a enorme contribuição desses autores.

10 M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Tome 1 (até o século XVIII). Salvador: EDUFBA; São

Paulo: Casa das Áfricas, 2009, p. 327-391; ler: “O embrólio do Egito faraônico” (p. 45); “A racialização da questão egípcia” (p. 57).

11 GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora 34: 2001.

12 APPIAH, Kwame Antony. Na casa de meu pai: A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto,

1997.

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dos estudos críticos da branquitude concordam que a superação do racismo começa pelo reconhecimento dos privilégios que a branquitude concede aos sujeitos brancos. Em outras palavras, trata-se de assumir a raça como categoria analítica e se dispor a combater o racismo em todas suas manifestações estruturais, institucionais e subjetivas (MBEMBE, 2014; CARDOSO, 2014; MALOMALO, 2017c; LOPES, 2016).

Nossa posição sobre o uso da raça como categoria analítica equivale à posição teórica e política de Guimarães quando desvenda as falácias de Appiah.

Devo observar, entretanto, que Appiah parece acreditar que essa “essência racial” tem características absolutas que, para ele, coincidem com a definição norte-americana de “raça”. Para mim, ao contrário, essa “essência” é definida pela cultura, utilizando diferentes regras para traçar filiação e pertença grupal, a depender do contexto histórico, demográfico e social (GUIMARÃES, 2004, p. 28).

Diferentes dos/as africanistas eurocêntricos/as, Amadiume, antropóloga e feminista nigeriana pan-africanista, reconhece a importância teórico-metodológica de Diop no estudo da história e sociedades africanas; mas, ao mesmo tempo, critica o autor por não evidenciar as violências de gênero existentes. A ciência, para essa autora, não é o instrumento de desumanização do outro. Reconhece que Diop14 é o estudioso africano que interpretou melhor a partir de uma perspectiva africana os fenômenos sociais africanos: estruturas de famílias, estruturas políticas. Critica, com respeito e sem arrogância que caracteriza a burguesia eurocentrista, Valentin Mudimbe15 e o considera como um africano que critica o eurocentrismo sem sair do mesmo. Ou seja, denuncia as armadilhas de suas proposições teóricas. Dito em outros termos, negros/as e brancos/as eurocêntricos situam-se no paradigma branco da interpretação da África. É uma questão de perspectiva teórica e que comporta suas consequências políticas subjetivas e estruturais.

O nono volume da História Geral da África é igualmente uma crítica contra a branquitude acrítica que marca os Estudos Africanos brancocentricos ou eurocênticos. A comissão continua sendo intercultural e interdisciplinar (KI-ZERBO, 2010). Haverá uma ênfase especial na história da África contemporânea, a partir de 1990 e o início do século XXI, marcada pela libertação de Mandela, a criação da União Africana e a confirmação do pan-africanismo como ideologia política dessa organização e de muitas instituições continentais com foco no tema de renascimento africana.

Nesse sentido é que o nono volume tem esses principais objetivos:

14 DIOP, Cheikh Anta. Civilisation ou barbarie. Anthropoliie sans complessance. Paris : Presse Africaine,

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Estudos Africana ou Novos estudos africanos

• Atualizar o conteúdo dos volumes da HGA à luz dos recentes desenvolvimentos nas diversas áreas da investigação científica, nas mudanças políticas, socioeconômicas e ambientais e nos desenvolvimentos culturais do continente desde o último volume da HGA;

• Analisar as diferentes Diásporas africanas e suas diversas contribuições para a construção das sociedades modernas, bem como a emancipação e o desenvolvimento da África;

• Identificar e analisar os novos desafios que a África confronta, incluindo questões da UA, o Pan-africanismo e a integração regional, a educação e a cultura, a juventude, as questões de igualdade de gênero, os cuidados com a saúde, a diversidade cultural, a cria-tividade, as artes, a cultura e o desenvolvimento, o diálogo intercultural entre os países da África, as questões da paz e do meio ambiente, as alterações climáticas, a urbaniza-ção;

• A pesquisa científica e a inovação, o desenvolvimento sustentável, a boa gover-nança, a cooperação Sul-Sul, as relações com a diáspora etc. as diásporas africanas e as mulheres africanas da diáspora e do continente16.

Dois temas importantes já começaram a ser tratados pelos/as africanos/as do continente e da diáspora, o da diáspora e da igualdade de gênero. A UNESCO, para responder a essas demandas, estabeleceu a Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024)17 e vem construindo conteúdos didáticos voltados às mulheres africanas da diáspora e do continente para suprir as falhas da História Geral da África18. Esse olhar política e cientificamente

pan-africanistas é que alimenta a nossa abordagem dos Estudos Africana. Ser adepto do paradigma pan-africanista não significa descompromisso com a crítica, autocrítica e a objetividade. Pelo contrário, são ingredientes essenciais para o avanço do pensamento africano (RABAKA, 2009).

O desafio da crítica sobre a narrativa única do Ocidente sobre a história da África é que qualquer crítica contra essa posição pode levar a ser acusado/a de anacrônico/a, essencialista e/ou inimigo/a de brancos/as. Para tanto, é preciso afirmar que o que diferencia os Estudos Africanos dos Africanismos eurocêntricos (OBENGA, 2001, 2008) é que os primeiros nascem no contexto pós-colonial antirracista, e os segundos são estudos racistas. Porém, a branquitude institucional dos primeiros fazem com que, muitas vezes, guardem ainda seus traços da branquitude acrítica, isto é, com a sua produção os brancos continuam a fazer a manutenção de seus privilégios com roupagens acadêmicas. E mesmo quando se assumem publicamente como

15 The Invention of Africa: Gnose, Philosophy, and the Order of Knowlwdge. Bloomington/Indianopolis : Indian

University Press/James Currey, 1988.

16 Reunião do Comitê Científico do Volume IX da HGA - Nota de apresentação. UNESCO/Salvador, 21 a 24 de

novembro de 2013. Disponível em:

http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/FIELD/Brasilia/pdf/brz_ed_IX_vol_GHA_presentation_note_ Brazil_pt_2013.pdf. Acessado em 10 abril de 2018; Reunião do Comitê Científico internacional do volume IX da

História geral da África (HGA). Disponível em:

http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/FIELD/Brasilia/pdf/brz_ed_IX_vol_GHA_experts_meeting_a genda_Brasil_pt_2013.pdf. Acessado em: 10 abril 2018.

17 Disponível em: http://decada-afro-onu.org/. Acessado em: 22 dez. 2017.

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pessoas guiadas pela branquitude crítica, isto é, antirracista, nos espaços privados de brancos acabam reproduzindo o racismo (CARDOSO, 2014).

A manutenção da branquitude acrítica nos Estudos Africanos se apresentam, então, na forma de estabelecer a genealogia desses estudos e de concentrar o seu campo de estudo somente sobre a África dissociada de suas diásporas. A falácia da construção da genealogia dos saberes africanos pelos Estudos Africanos funciona como dispositivo de compreender esses saberes somente a partir do surgimento dos seus centros no Ocidente. Para quebrar esse estratagema, os intelectuais negros têm trabalhado no sentido de se reconhecer a genealogia dos saberes negro-africanos desde a Antiguidade até a contemporaneidade africanas. Essa maneira de interpretar a história da África está presente, por exemplo, na História Geral da África (MAZRUI, et. al., 2010; BARBOSA, 2012b); e na maioria dos centros de Estudos Africana.

Além disso, para confrontar a estratagema divisionista de africanos e seus descendentes da diáspora, recorremos às proposições teóricas africanas presentes em Diop (1981, 1982) e no pensamento pan-africanista: tratar sempre a África na sua unidade e diversidade; e quando se fala de africanos/as como sujeitos produtores desses saberes e conhecimentos, compreende-se, com isso, que são os/as africanos/as do continente e da diáspora. A África, como território de investigação, é vista igualmente em sua dimensão mais ampla: inclui o continente e suas diásporas. A Afrocentricidade é um dos paradigmas de Estudos Africana que radicalizou e trabalha nessa perspectiva (ASANTE, 2009). Essa visão se firmou ainda no continente africano com a retomada do debate sobre o “renascimento africano”, que anda de par com a consideração, pela União Africana, da diáspora africana como a sexta região. Não se trata somente de um debate político dos/as políticos/as, mas igualmente dos/as intelectuais (MAFEJE, 2011; MALOMALO, 2018, no prelo; SALL, 2008; GUTTO, 2006; GTENF, 2017).

O pan-africanismo foi um dos primeiros campos teórico e político dos movimentos negros a sugerir essa dimensão plural dos sujeitos produtores dos saberes e conhecimentos africanos e seus/suas beneficiadores/as (LE MOUVEMENT PANAFRICANISTE AU XXe SIÈCLE, 2004). Os Estudos Africana e Novos Estudos Africanos trabalham com o mesmo entendimento. De fato, o que se quer afirmar é que as práticas de produção de conhecimentos africanos antecederam historicamente os chamados centros ou institutos de Estudos Africanos. Além disso, há conexões históricas entre os saberes endógenos pré-coloniais e contemporâneos, apesar de a África ter passado por processo de dominação árabo-islâmica ou ocidental. Afirmar isso não significa ignorar as mudanças decorrentes nesse continente desde os tempos remotos. África é um lugar de trocas e mudanças.

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Estudos Africana ou Novos estudos africanos

A História Geral da África é um exemplo vivo que traduz os princípios de saberes africanos que os Estudos Africana destacam. O capítulo de Mazrui, Ajayi, Tshibangu e Bohen (2010) sobre as tendências da filosofia e ciência no continente africano retrata isso. Muitos centros de investigação no continente africano que trabalham nessa lógica nem sempre levaram os nomes de Estudos Africanos (HOUNTONDJI, 2008; MAFEJE, 2011); e não precisam disso. Eles o são de fato, embora sejam poucos os que faziam a ligação com as diásporas negras, sem necessariamente ignorar esses territórios.

O GTENF – Grupo de Pesquisa em Educação Não Formal, de ideologia pan-africanista, publicou, em 2015, um dossiê chamando a atenção sobre a necessidade de incorporar os saberes endógenos no ensino, e isso seria um caminho para a promoção de um desenvolvimento sustentável. Essa posição tem a ver com o entendimento que os estudiosos africanos têm das conexões complexas que existem entre a tradição e modernidade (KONATÉ, 2008), o seu passado, presente e futuro na produção de conhecimentos na África contemporânea (HOUNTONDJI, 2012; MAFEJE, 2011).

Os Estudos Africana, especialmente da Afrocentricidade, a partir de 1980, sistematizaram, tendo como ponto de partida a diáspora afro-americana, um novo paradigma que trabalha dialeticamente a África e suas diásporas (NASCIMENTO, 2009a). Quando comecei a me interessar sobre os Estudos das Relações Raciais e Estudos Africanos no Brasil sempre reivindiquei que era preciso realizar estudos que tratassem da população negra, tendo um olhar, de forma recíproca, na África e em suas diásporas. Oportunamente, a minha leitura de Estudos

Africana, especialmente da Afrocentricidade, convenceu-me de que era viável tal projeto

epistemológico. Nesse sentido, considero os Novos Estudos Africanos como uma versão de

Estudos Africana produzidos desde o Brasil. No meu caso, minhas raízes teóricas e

metodológicas passam pela Filosofia Africana de Ntumba (2014) e hoje faço uso das bibliotecas africanas e afro-diásporicas brasileiras para viabilizar uma nova epistemologia da macumba-ubuntu-bisoidade.

Os Novos Estudos Africanos ou Estudos Africana que pratico desde o Brasil são uma crítica ferrenha aos Estudos Africanos brancocentristas e eurocêntricos no mundo e no Brasil, que trabalham, silenciosamente, pela manutenção do poder branco dentro desse campo. O reconhecimento dessas falácias seria um caminho de sua descolonização, portanto, de sua própria emancipação.

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Estudos Africana/Novos Estudos Africanos desde a diáspora brasileira

O livro Afrocentricidade: Uma abordagem epistemológica inovadora, organizado por Elisa Larkin Nascimento (2009) tem muitos méritos. Gostaria de mencionar somente dois relativos aos objetivos desse trabalho: o primeiro é que ele faz uma síntese das principais ideias do paradigma da Africentricidade dentro dos Estudos Africana; o segundo revela de que forma a prática de afrocentricidade está presente nas agências negras brasileiras, como Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) (NASCIMENTO, 2009a), nos textos “Quilombismo: Um conceito emergente do processo histórico-cultural da população afro-brasileira”, de Abdias Nascimento (2009b), e “A identidade contraditória da mulher negra brasileira: bases históricas”, de Vânia Maria da Silva Bonfim (2009).

A leitura minuciosa dos textos que compõem o livro de Larkin Nascimento, convenceu-me igualconvenceu-mente de que a minha tentativa em noconvenceu-mear o projeto epistemológico Novos Estudos Africanos, que tento construir para superar as falhas dos Estudos Africanos, é válido. E há esforços similares desde 1980. Esse campo de investigação, nos Estados Unidos, é chamado

Estudos Africana, e a Afrocentricidade é um dos seus paradigmas. O meu caso é parecido aos da

maioria de intelectuais críticos/as que produziram obras dentro do campo de estudos sobre a África e suas diásporas sem, necessariamente, nomear-se afrocentrados/as.

Bioepistemologia no fazer da epistemologia do Ntu

Para se compreender a identidade da corrente afrocentrada do meu projeto epistemológico, da atualidade, que denominei de epistemologia da macumba ou de macumba-ubuntu-bisoidade, é preciso fazer a sociogênese de minha trajetória intelectual (MALOMALO, 2017, 2014), isso que chamo de bioepistemologia. Fui introduzido nos saberes populares africanos, desde que nasci, em 1973, na etnia ndengese, na R.D. do Congo. Essa fase pode ser considerada como a da educação africana não escolar. O meu processo de alfabetização (1980-1986), educação no ensino médio (1987-1992) e a minha primeira graduação em Filosofia africana (1993-1995) dão-se dentro do processo de reafricanização dos currículos nacionais. Dessa forma, estudei as obras literárias e filosóficas africanas, pan-africanistas e da negritude desde o ensino médio. Na graduação em Filosofia li os principais pensadores africanos,

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Estudos Africana ou Novos estudos africanos

francófonos e anglófonos, entre outros, como Diop, Ki-Zerbo, Krumah, Nyerere, etc.; e tornei-me especialista na filosofia da bisoidade de Ntumba.

A minha afrocentricidade era construída a partir do debate filosófico africano. A cultura africana ancestral e contemporânea têm me servido, desde então, como os lugares de construção do meu ativismo social e de meus trabalhos acadêmicos. Era um afrocentrado bisoita. Conhecia mais a África, a sua cultura e intelectuais, e tinha pouco conhecimento da diáspora africana.

Cheguei em 1998 ao Brasil para realizar meus estudos de Teologia (1998-2002); depois prossegui com mestrado (2003-2005) e doutorado (2006-2010); e desde que iniciei a minha carreira de docente universitário e pesquisador (a partir de 2009), o racismo à brasileira me levou a tomar posição como ativista e intelectual. A minha consciência sobre a necessidade de se tomar posição para defender os interesses do povo negro vinha desde a R. D. do Congo. Minhas vivências nas organizações religiosas, sociais e acadêmicas negras e africanas (Pastoral Afro-Brasileira da Igreja Católica, Instituto do Negro Padre Batista, Grupo Atabaque Teologia Negra e Cultura, Nupe, Família Amani, IDDAB) contribuíram para a ampliação de minha atuação como intelectual e ativista da e na cultura africana. Meus trabalhos desde então começaram a se construir dentro, a partir e com a cultura africana continental e diaspórica afro-brasileira (MALOMALO, 2014, 2017b). A minha entrada na Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira radicalizou e ampliou o meu olhar sobre a cultura africana.

Dito em outras palavras, desde 1998, a diáspora africana contemporânea no Brasil é o lugar de construção social do meu ativismo e epistemologia dos Estudos Africana. Não produzo, a partir dos Estados Unidos, como faz Asante e outros colegas. Minhas bibliotecas continuam sendo as culturas negras ancestrais, populares e acadêmicas, e não importa o território de sua localização. Nesse sentido, para mim, a investigação é um trabalhado de descobertas de conhecimentos, de instrumentos políticos para a libertação pessoal e coletiva.

Entre os pontos comuns existentes entre a Afrocentricidade e a epistemologia da macumba-ubuntu-bisoidade, que venho propondo, destaco esses elementos: princípios de investigação; sujeitos produtores e beneficiadores de pesquisa cientifica; a metodologia; campo de investigação.

Sujeitos e campo de investigação

Uma das críticas que os Estudos Africana trouxeram contra as ciências dominantes tem a ver com a definição do lugar de sujeitos que realizam a investigação, os/as pesquisadores/as e os

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sujeitos investigados/as. Asante (2009), na teoria de Afrocentricidade, interpreta isso como o controle de agências negras pelos agentes negros. Em outras palavras, significa, para mim, que a luta de pessoas negras é que sejam vistas como seres humanos, portadores de direitos. Dessa forma é que se deve compreender a luta de pessoas negras pelo seu reconhecimento nos espaços acadêmicos, como parte de luta pela sua liberdade pelos pares não negros que os discriminam e desqualificam permanentemente. Dessa forma é que cientistas africanos/as querem ser tratados como cientistas a pé de igualdade, e não como meros auxiliares de pesquisadores brancos e ocidentais (ADESINA, 2012; MAFEJE, 2011).

A mesma luta pelo reconhecimento de sua humanidade e competência no mundo da ciência, feita pelos intelectuais negros, estende-se às pessoas negras investigadas pelos cientistas. Aqui os Estudos Africana não exigem somente uma nova linguagem no tratado com elas, mas uma nova postura ética da prática da ciência: os considerados “selvagens”, “primitivos”, “objetos” da ciência racista ocidental, devem ser tratados como sujeitos colaboradores no processo da produção acadêmica, pois muitos deles são mestres dos conhecimentos e saberes de suas áreas que comportam lógicas diferentes do mundo acadêmico.

A discussão sobre o campo da investigação tem igualmente a ver com o assunto que levantei anteriormente: o lugar do pesquisador e colaborador da pesquisa; porém, pretendo introduzir um novo elemento insistindo no que a ciência tradicional denomina de “objeto”. De fato, trata-se de recorte que o cientista faz sobre o campo de investigação através da delimitação de seus objetivos e a metodologia adotados. Nesse espaço, ele/ela deixa explícito se vai investigar ou coletar seus dados com e a partir de pessoas investigadas, ou se fará isso a partir de recursos não humanos: um arquivo, biblioteca, um território, etc.

Os Estudos Africana definiram a África como seu campo de investigação e africanos como sujeitos colaboradores em suas investigações.

O termo Estudos Africana usa a forma plural em latim para indicar dois aspectos de sua polivalência: a múltipla abrangência do campo, que se estuda os povos africanos e afrodescendentes em todo mundo, e com essa orientação plural, a disciplina explora a história, as instituições, os movimentos políticos e culturais, as economias, as culturas, a criatividade e as identidades dos africanos e da diáspora em suas expressões históricas, econômicas, políticas, artísticas, literárias, teóricas e epistemológicas. A pluralidade do conceito se reflete também na acepção da palavra “africano”. No âmbito dos estudos Africana e da afrocentricidade, o termo “africano” se refere aos afrodescendentes e ao seu legado cultural no continente e na diáspora em qualquer parte do mundo (NASCIMENTO, 2009, p. 29).

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Estudos Africana ou Novos estudos africanos

Essa concepção do campo é diferente da proposta pelo Hountondji (2008)19, no seu texto “Estudos Africanos e africanos”. Isso dá-se não pelo fato desse autor não se servir da teoria crítica da branquitude para criticar as armadilhas dos Estudos Africanos, mas especialmente na definição que ele elabora sobre a filosofia africana e a crítica dele sobre a vertente culturalista da Filosofia africana, que ele nomeia de “etnofilosofia”. A sua concepção de filosofia africana é eurocêntrica e elitista. Ademais, entende que a Filosofia africana é composta pelos textos produzidos somente pelos filósofos africanos do continente. Esse olhar é problemático, tendo-se em conta a nossa compreensão da diáspora africana como parte do continente africano. A crítica que Amadiume (1995) lança contra Mudimbe vale igualmente contra Hountondji: criticam o paradigma eurocentrista sem sair dele. Essas falhas estão presentes em muitas produções de Estudos Africanos. Por isso, Obenga (2009) denomina a maioria deles de Africanismos eurocentristas.

O campo de investigação, na perspectiva da epistemologia de macumba-ubuntu-bisoidade, é composto de cientistas e não cientistas. O cientista macumbista tem as africanidades, isto é, as culturas negras do continente e da diáspora como suas bibliotecas, lugares ou centros para a construção de voo afro-filosóficos, entendido no sentido mais amplo de elaboração de reflexões teóricas. Chamei isso de bibliotecas africanas e afro-diásporicas. Claro, as bibliotecas de outros povos lhes são úteis igualmente para a construção de conhecimentos multiculturais, mas não devem ser apropriados de forma acrítica (MALOMALO, 2016).

Os saberes endógenos e populares, aos quais pertencem às culturas africanas, são lugares de aprendizagem contínua do cientista macumbista. Aqui, ele aprende a construir seus arcabouços teóricos, pedagógicos, estéticos, políticos e metodológicos com sintonia com as lutas históricas de seu povo. Por pertencer a um ofício que exige a crítica permanente, como parte de um critério essencial para o avanço do seu ofício, portanto, de sua comunidade e humanidade, ele deve zelar por ela.

Dito em outras palavras, os Estudos Africana lutaram para o reconhecimento dos saberes ancestrais, endógenos, como saberes válidos na resolução dos problemas da África, de suas diásporas e da humanidade. Os esforços de cruzamento desses saberes ancestrais e acadêmicos africanos apontam para a renovação e consolidação recíprocas desses saberes.

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Princípios éticos e teórico-metodológicos dos Estudos Africana na perspectiva da epistemologia do Ntu

Os princípios e regras do campo científico são criações humanas culturalmente localizadas para assegurar a sobrevivência da ciência e, para os praticantes da ciência emancipatória, para preservar a reprodução da ciência e do planeta. Aparecem, em termos éticos, deontológicos e/ou estritamente em termos técnicos e/ou metodológicos, por exemplo, um princípio que recomenda que se trata os pares do campo científicos com igualdade, e os sujeitos colaboradores da investigação como colaboradores/as na investigação e não como objetos. Esse mesmo princípio se estende aos campos de investigação não humanos: territórios, sítios sagrados e não sagrados, rios, aldeias, que devem ser tratados com respeito, com a ética do cuidado.

Dois traços da ciência tradicional são notáveis. Primeiramente, o papel dos pensadores e inventores individuais estava subordinado aquele desempenhado pela sociedade, como um todo, em respeito à elaboração do saber e das capacidades no seio da cultura. A perda de autonomia e soberania própria ao período colonial não podia, por conseguinte, senão desencadear profundas repercussões, no transcurso do desenvolvimento e da maturação deste saber. Em segundo lugar, as sociedades tradicionais não distinguiam os saberes ao considerá-los como produtos da razão, da experimentação, da imaginação ou da fé. Não havia dicotomia entre a ciência e a religião, a ciência e a filosofia, ou a ciência e a arte. O conhecimento cientifico não se reduzia a abordagem quantitativa e mecanista. A ciência ocidental não pode, contudo, apreciar o método ou o valor da ciência tradicional na África, antes de atingir o estádio da relatividade, durante o qual ela tomou como objeto (sic) principal de estudo, não mais entidades discretas, mas as complexidades da natureza e do universo, e iniciou, por esta mesma ocasião, o requestionamento dos paradigmas ocidentais do progresso e do desenvolvimento (MAZRUI et al., 2010, p. 766).

Trata-se de uma crítica contra a ciência racista, patriarcal, machista, que trata o outro (seres humanos e não humanos) como objetos. Todavia, Mazrui, Ajayi, Tshibangu e Bohen (2010), por terem escrito o seu texto em um período em que a linguagem da ciência positivista ocidental era forte, fazem o uso do termo “objeto”.

Para além da crítica feita, depreende-se os elementos como o esforço pela humanização da ciência que tanto se fala; em nossa perspectiva, falamos da “macumbização” “bisoisização” ou “ubuituisização” da ciência, posto que os/as cientistas modernos/as devem se apropriar criticamente da consciência africana ancestral, no que tenha de útil, para praticar a ciência numa perspectiva cósmica ou holística: todos os seres humanos e não humanos, nessa direção, merecem respeito. Ou seja, a ciência é uma criação cultural, portanto, humana, que deve levar a humanidade para o encanto do outro, isto é, a Comunidade-Sagrado-Divino,

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Comunidade-de-Estudos Africana ou Novos estudos africanos

Bantu e a Comunidade-Universo-Natureza. No mesmo trecho percebe-se o respeito que se deve aos cientistas tradicionalistas ou populares.

Desse princípio maior deriva o segundo, que é o acordo entre os praticantes dos Estudos

Africana de que estes são um campo de investigação multidisciplinar, interdisciplinar ou

transdisciplinar. Não podem ser disciplinares. Além disso, são multiculturais. Diop (1981) continuará sendo uma das figuras de cientistas dos Estudos Africana, como individuo, que praticou a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade nas suas últimas consequências, pois sua produção soube estabelecer um diálogo entre as ciências humanas e ciências da natureza para se estudar a África. Vejo a mesma tendência nos grupos da egiptologia africana deixado por Diop e liderado atualmente por Théophile Obenga (OBENGA, 2005; MACEDO, 2016; FINCH III, 2009). Diop continua inspirando outros centros pan-africanistas, no continente africano, motivados pela inter e transdisciplinaridade (GUTTO, 2006).

Tratando das tendências mais importantes no âmbito dos Estudos Africana, nos Estados Unidos, Marenga (2009, p. 334) destaca essas suas áreas de investigação: 1) as organizações profissionais da disciplina; 2) a metodologia da afrocentricidade; 3) os estudos das mulheres negras; 4) os estudos multiculturais; 5) os estudos da África clássica.

No Brasil, a minha universidade, a UNILAB, nasceu com a missão de praticar interdisciplinaridade e comporta um potencial da prática da transdisciplinaridade. Porém, a disputa do poder pelo poder não a permite cumprir com a sua missão como deveria. Essa universidade, em suas Diretrizes (2008), idealizou organizar a produção de saberes sobre a África, os países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), maioria países africanos, a partir desses Institutos:

- ICEN – Instituto de Ciências Exatas e da Natureza: cursos de Licenciaturas em Biologia, Química, Física e Matemáticas; Mestrado Profissional em Matemáticas;

- ICSA – Instituto de Ciências Sociais Aplicadas: curso de bacharelado em Administração pública;

- ICS – Instituto de Ciências da Saúde: curso de bacharelado em Enfermagem; Curso de Mestrado em Enfermagem;

- IDR – Instituto do Desenvolvimento Rural: Curso de bacharelado em Agronomia; - IED – Instituto de Engenharia e Desenvolvimento Sustentável: curso de bacharelado em Engenharia de Energia; Mestrado Acadêmico em Sociobiodiversidade e Tecnologias Sustentáveis (Masts);

Referências

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