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Hugo Grotius e a laicização do direito natural: um resgate das contribuições teóricas do autor para a afirmação do direito internacional dos direitos humanos

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TAMIRES DE LIMA DE OLIVEIRA

HUGO GROTIUS E A LAICIZAÇÃO DO DIREITO NATURAL: UM RESGATE DAS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS DO AUTOR PARA A AFIRMAÇÃO DO DIREITO

INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

IJUÍ (RS) 2017

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TAMIRES DE LIMA DE OLIVEIRA

HUGO GROTIUS E A LAICIZAÇÃO DO DIREITO NATURAL: UM RESGATE DAS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS DO AUTOR PARA A AFIRMAÇÃO DO DIREITO

INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Dissertação apresentada ao Mestrado em Direitos Humanos, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin

IJUÍ (RS) 2017

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Catalogação na Publicação

Gislaine Nunes dos Santos CRB-10/1845. O48h Oliveira, Tamires de Lima de.

Hugo Grotius e a laicização do direito natural: um resgate das contribuições teóricas do autor para a afirmação do direito internacional dos direitos humanos / Tamires de Lima de Oliveira. – Ijuí, 2017. –

115 f. ; 29 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Direitos Humanos.

“Orientador: Gilmar Antonio Bedin”.

1. Direitos humanos. 2. Direito natural. 3. Justiça internacional. 4. Direito internacional dos direitos humanos. 5. Hugo Grotius. I. Bedin, Gilmar Antonio. II. Título. III. Título: Um resgate das contribuições teóricas do autor para a afirmação do direito internacional dos direitos humanos.

CDU: 342.7

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UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Programa de Pós-Graduação em Direito

Curso de Mestrado em Direitos Humanos

A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação

HUGO GROTIUS E A LAICIZAÇÃO DO DIREITO NATURAL: UM RESGATE DAS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS DO AUTOR PARA A AFIRMAÇÃO DO DIREITO

INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

elaborada por

TAMIRES DE LIMA DE OLIVEIRA

como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin (UNIJUÍ): ________________________________________

Prof. Dr. Noli Bernardo Hahn (URI): _____________________________________________

Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas (UNIJUÍ): __________________________________________

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Dedicada a todas as “gentes” que reconhecem a importância do pensar reflexivo e da revisita a história do conhecimento na jornada do saber humano.

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AGRADECIMENTOS

Sinceros agradecimentos a todos que comigo compartilharam vivências e relembraram o valor do humanismo e da solidariedade no tempo em que me dediquei a este estudo.

Em especial, ao Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin, por todos os anos de orientação e amizade, cujo exemplo de dedicação e eticidade perviverá não apenas nesta caminhada acadêmica, mas para toda a vida.

À Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), enquanto instituição e comunidade humana, pelo acolhimento e incentivo nestes anos de aprendizado.

Ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa integral de estudos, imprescindível para a realização desta pesquisa.

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“O passado traz consigo um índice misterioso...Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?... Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera... Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’” (Walter Benjamim, Sobre o conceito de História).

“A sociedade não pode subsistir senão pelo amor e pela proteção recíproca das partes de que se constitui” (Sêneca, Da Ira)

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo resgatar as contribuições teóricas de Hugo Grotius para a formação do Direito Internacional e afirmação dos Direitos Humanos. Situa-se no plano da Filosofia do Direito, em especial no âmbito da teoria clássica do Direito Internacional, assim entendida a que se situa a partir da teoria do jus gentium (direito das gentes) do período de transição intelectual da tradição teológica medieval para o pensamento secularizado moderno, contexto histórico-político também relacionado aos movimentos renascentistas e ao advento dos Tratados da chamada Paz de Vestfália. A investigação concentra-se nas principais obras de Hugo Grotius, através de uma abordagem hipotético-dedutiva e historiográfica. A hipótese desenvolvida suscita que a construção teórica clássica do Direito Internacional ainda tem muito a ensinar à ciência jurídica contemporânea. Sob este viés, o tema insere-se também no contexto de questões atuais, como a retomada do ideal de justiça internacional, o atual fenômeno de humanização do Direito Internacional e a ressignificação do papel do indivíduo perante a Sociedade Internacional. Conclui-se que a filosofia clássica do Direito Internacional, guardadas as proporções de contexto, permanece viva e indispensável ao estudo do Direito Internacional que, a partir da afirmação e da consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos constitui o direito das gentes dos dias atuais.

Palavras-Chave: Hugo Grotius; Direito Natural; Direitos Humanos; Justiça Internacional; Direito Internacional dos Direitos Humanos.

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ABSTRACT

This dissertation aims to recover the theoretical contributions of Hugo Grotius for the formation of International Law and affirmation of Human Rights. It is situated at the level of Philosophy of Law, especially within the framework of the classical theory of International Law, understood as that which is situated from the theory of jus gentium (law of the people) of the period of intellectual transition from medieval theological tradition to Modern secularized thinking, historical-political context also related to Renaissance movements and the advent of the Treaties of the Peace of Westphalia. The research focuses on the main works of Hugo Grotius, through a hypothetical-deductive and historiographic approach. The hypothesis developed suggests that the classical theoretical construction of international law still has much to teach contemporary legal science. Under this bias, the theme is also part of current issues such as the resumption of the ideal of international justice, the current phenomenon of humanization of international law and the re-signification of the role of the individual before the International Society. It is concluded that the classic philosophy of international law, preserved in the proportions of context, remains alive and indispensable to the study of international law, which, from the affirmation and consolidation of International Human Rights Law, constitutes the right of the people of the present day.

Keywords: Hugo Grotius; Human Rights; International Justice; International Human Rights Law; Natural Law;

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

1 O PENSAMENTO DE HUGO GROTIUS E AS BASES PARA UMA TEORIA JURÍDICA HUMANIZADA ... 13

1.1 Hugo Grotius e o Pensamento Grego e Estoico ... 13

1.2 A Superação da Proeminência Religiosa na Formação Intelectual de Hugo Grotius: A obra De veritate religionis christianae ... 19

1.3 A Renovação de Hugo Grotius para a Teoria do Direito Natural ... 27

2 HUGO GROTIUS E O DIREITO DA SOCIEDADE INTERNACIONAL ... 43

2.1 A Sociedade Civil e a Sociedade das Gentes: Uma Teoria Renovada da Soberania .. 43

2.2 Estado, Poder Soberano e Direito: A Institucionalização Jurídica do Uso da Força 52 2.3 Relações Intergentes, Direito e Conflito: A moderna teoria da guerra justa de Hugo Grotius ... 57

3 O DIREITO DAS GENTES, O DIREITO INTERNACIONAL E OS DIREITOS HUMANOS ... 67

3.1 O Resgate da Noção de Justiça Internacional ... 67

3.2 O Indivíduo enquanto Sujeito de Direito Internacional: Possibilidades e Limites a partir da Jurisdição Internacional em Direitos humanos ... 70

3. 3 O Jus Gentium Contemporâneo: o Direito Internacional dos Direitos Humanos ... 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 92

REFERÊNCIAS ... 97

ANEXOS ... 101

EXORTAÇÕES DE HUGO GROTIUS: “AOS PRINCIPES E ÀS NAÇÕES LIVRES E INDEPENDENTES DO MUNDO CRISTÃO”... 102

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INTRODUÇÃO

Ao modo que a interpretação confere vida à palavra escrita, a reinterpretação é forma de preservar vivas àquelas fontes de conhecimento qualificadas como clássicas, tamanha sua importância no arcabouço dos saberes humanos. Assim, estudar o pensamento daqueles que já precederam o tempo presente é essencial para que a humanidade possa valorar os erros e acertos da sua história, se não para obter respostas, ao menos para refletir e fazer justiça para com a esta “herança que nos foi deixada sem testamento”1. A história da racionalidade ocidental dos últimos séculos deixou sinais que demonstram a necessidade de recolocar algumas das grandes questões da humanidade, entre elas o resgate de uma legitimidade e fundamentação verdadeiramente humanas em relação ao Direito.

Nesse contexto, o estudo de conhecimentos históricos e tradições de pensamento precedentes não implica em uma sinonímia com um passado esquecido. Com efeito, no que tange à formação do pensamento e do conhecimento humano, as categorias de antes e depois não guardam sempre um potencial de perpetração reflexa e de ressignificação? É em resposta a esta indagação que se objetiva, com a argumentação aqui proposta, reviver o pensamento de Hugo Grotius, considerado não por acaso um dos grandes expoentes da teoria fundadora do Direito Internacional. Isto se faz no sentido de revisitar o percurso do desenvolvimento de noções primordiais de grande importância à Ciência Jurídica, ao Humanismo Jurídico e à Teoria de Estado, a partir da extensa bagagem filosófica que constitui a obra de Grotius.

Esta empreitada se realiza em sentido similar ao exemplificado por Michel Miaille2, quando afirma que aquele que introduz um conhecimento a outrem está em analogia a um guia que tem a tarefa de apresentar uma casa a visitantes. A apresentação da casa é condicionada a determinados imperativos e não necessariamente visa dar um completo conhecimento do edifício, até porque, do lugar do visitante, esse conhecimento ocorre sempre da maneira de quem desconhece, diferentemente do que seria conhecê-la como habitante, ou seja, de uma perspectiva interna. Logo, a tarefa do guia é repleta de responsabilidade e o conhecimento aferido nunca é universal, mas sempre de uma certa maneira. De fato, mesmo que não houvesse a figura do guia, o visitante sozinho empreenderia determinada escolha, entre muitas possíveis, para conhecer a casa e a conheceria, mas essa escolha igualmente produziria um conhecimento

1 Conforme René Char, poeta francês (1907-1988). Da expressão original: “Notre héritage nést precede d’aucun

testament”. In: CHAR, René, Feuillets d’Hypnos, Paris, 1946.

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de uma certa maneira. A ideia que transparece dessa analogia de Miaille, e que se toma emprestada no presente introito, é a de que a aferição do conhecimento nunca ocorre de forma única ou neutra.

Realmente, o conhecimento que constitui o aprendizado humano é o arcabouço de diferentes concepções ao longo da história3, que constituídas em modelos de referência específicos passam a denominar paradigmas. Estes paradigmas não são fenômenos estanques, que se encerram como que em um recorte temporal definitivo, mas sempre, de uma forma ou outra, subsistem nas transições das tradições de pensamento que encerram4. De fato, não apenas subsistem, mas por vezes são imprescindíveis para que um novo modo de pensar seja possível. Sob o ânimo acima exposto, a hipótese norteadora deste trabalho evidencia que as tradições do pensamento fundador do Direito Internacional ainda têm muito a ensinar. A construção desta hipótese, desta forma, ocorreu sob a metodologia de uma análise não apenas filosófica, quanto histórica. Através do método hipotético-dedutivo das ciências sociais, com a técnica da pesquisa bibliográfica, a busca pelos objetivos propostos, organizou-se à maneira de possibilitar tanto uma pesquisa histórica, quanto uma crítica atual. Por esta razão, a abordagem do tema é remetida constantemente a momentos e pensamentos passados e presentes (em uma não linearidade dialogada), o que não olvida de compor igualmente uma crítica, justamente por intentar, de uma parte, reviver a importância desse pensamento clássico e, de outra parte, por reconhecer que muito do que foi dito outrora se encontra, ainda que recolocado por outras denominações, nas principais pautas do estudo do Direito Internacional contemporâneo.

Neste sentido, busca-se primeiramente relembrar a construção do direito das gentes de Hugo Grotius destacando-se as influências mais relevantes de sua teoria o que, para além do objetivado, demonstra que esta revisita ao pensamento de outrora, que o autor emprega em toda

3 Nesse sentido também Michel de Certeau na obra A escrita da História: “Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos lavradores de antanho – mas, sobre o solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casas -, os leitores são viajantes: eles circulam sobre as terras de outrem, caçam, furtivamente, como nômades através de campos que não escreveram, arrebatam os bens do Egito para com eles se regalar. A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar, e multiplica a sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não se protege contra o desgaste do tempo (nós nos esquecemos e nós a esquecemos); ela pouco ou nada conserva de suas aquisições, e cada lugar por onde ela passa é a repetição do paraíso. (CERTEAU, 2008, p. 66).

4 De acordo com Thomas Kuhn (1962, p. 219), "Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma", o que, em analogia ao referido por Edgar Morin (1987, p.24), denota a necessidade de que “[...] o nosso pensamento [regresse] às origens, num anel interrogativo e crítico. Senão a estrutura morta continuará a destilar pensamentos petrificantes”.

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sua obra, pode efetivamente tornar-se novamente útil quando recolocada na pauta de discussões da humanidade em momentos de crise.

Em um segundo momento, aborda-se a formação da noção sociedade internacional, que Grotius assimilou como “sociedade dos seres dotados de razão”, momento no qual se apresenta a filosofia política do autor denotando-se que a compreensão do direito das gentes, bem como o reconhecimento de um Direito Internacional autônomo, não teriam sido possíveis no pensamento moderno sem que antes as bases epistemológicas do próprio Estado fossem realocadas.

Em um terceiro momento, argumenta-se acerca de algumas das “novas” questões do Direito Internacional, relacionando-as com problemáticas que, de certa forma, encontram raízes ainda naquela formação do direito das gentes moderno e que, na evolução da sociedade humana constituíram (e constituem) crises essenciais para o desenvolvimento desse direito, em prol de uma maior eficiência e efetividade.

Por fim, conclui-se que o pensamento dos autores clássicos do Direito Internacional na construção do que outrora se chamou jus gentium, guardadas as proporções de contexto, constituem uma bagagem teórica indispensável à teoria jurídica contemporânea. Não no sentido de um retorno ao jusnaturalismo ou ao pensamento metafísico, mas sim no sentido de uma tomada de consciência para a importância do reconhecimento de valores éticos pelos quais se possa avaliar criticar e maleabilizar o direito positivo, especialmente em matéria de Direitos Humanos.

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1 O PENSAMENTO DE HUGO GROTIUS E AS BASES PARA UMA TEORIA JURÍDICA HUMANIZADA

O presente capítulo apresenta uma releitura das fontes teórico-filosóficas que compõe a matriz da formação intelectual moral, humanista e religiosa de Hugo Grotius e que, em consequência, perpassam a sua concepção de Direito e de Justiça. A organização dessa incursão foi estruturada em três momentos. No primeiro, apresentam-se os elementos do pensamento grego e estoico que de alguma forma influenciaram as principais concepções de Hugo Grotius. No segundo, aborda-se o pensamento teológico medieval, especialmente sob a ótica do próprio Grotius, em sua renomada obra apologética, “A verdade da religião cristã”. Por fim, o terceiro momento apresenta a transição do pensamento medieval-renascentista para o pensamento moderno, contexto em que se destaca a obra de Hugo Grotius, especialmente no movimento filosófico que buscou um novo fundamento para o Direito e para a Justiça.

1.1 Hugo Grotius e o Pensamento Grego e Estoico5

A filosofia clássica, em especial a desenvolvida na Grécia pelas Escolas Pré-Socráticas e Sofistas, abordou a inquietação do conceito e fundamento do humano em termos de ser e homem, atrelado a uma existência cósmica e política, mas não conhecia o termo humano como o filósofo moderno o compreendeu, tampouco assimilava a qualidade de sujeito enquanto pessoa. O termo sujeito grego significava o próprio fundamento do mundo, a totalidade da existência. Ao lado da natureza e dos deuses, na imensidão do cosmos, a preocupação do homem pré-socrático era compreender as leis da organização universal da vida e ali encontrar seu lugar. Foi apenas partir do século V ou VI AEC, especialmente, que o paradigma de completa imanência da natureza começara a ser gradualmente substituído por uma consciência humana, uma explicação da origem da vida e da universalidade em processos de racionalização (WOLKMER, 2008).

5 São inúmeras as fontes de Hugo Grotius. Nesta oportunidade optou-se por referenciar um número mínimo delas, consideradas mais relevantes na composição do que se irá chamar, por diversas vezes, de “renovação” do pensamento grotiano. A escolha das fontes gregas de Grotius, para além das aqui mencionadas, incluem ainda, dentre outros os historiadores Tito Lívio e Plutarco, o poeta Eurípedes e o filósofo judeu helenista Fílon de Alexandria.

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A partir de então, a filosofia grega passou a formular a grande problemática do conhecimento: a distinção entre conhecimento racional e conhecimento sensível. Nas palavras de Odete M. Oliveira (2006, p. 49),

Os filósofos antigos, que precederam a Parmênides, haviam tentado buscar um princípio eterno e universal do devir e da multiplicidade das coisas. Parmênides, ao contrário, sinalizou o princípio de que só o Ser é. Logo, pensar é pensar algo. Não há pensamento sem um objeto do próprio pensamento. Só o pensamento do objeto será aquilo que é, portanto o objeto do pensamento é o Ser e somente o conhecimento do Ser é o conhecimento verdadeiro. O Ser, sendo princípio eterno e imutável de todas as coisas, é igualmente o fundamento do conhecimento. Dessa forma, nada há ou haverá fora do Ser, pois o Ser é.

É de se recordar que a filosofia pré-socrática grega era permeada por uma visão não apenas cosmológica do mundo, mas também de uma transcendência mítica, onde o ser existia em subordinação ao universo mais amplo dos deuses e do cosmos. O homem, no contexto do pensamento pré-socrático, estando no mundo, poderia indagar-se das coisas ao seu redor, mas não era capaz de efetivamente “olhar o mundo” e colocar-se na posição metafisica dos deuses.

Ainda assim, ao se preocupar com a natureza, com o mítico e com o cosmos, os pré-socráticos abriram caminho para a questão do homem nos séculos ontoteológicos que sucederiam. Após a vitória sobre os persas, o cenário político grego influenciou a transformação de orientação do pensamento pré-socrático para a adoção de princípios para a vida prática do homem. As preocupações já não se voltavam tanto à busca por um Princípio-Primeiro da existência (arché) em que o homem era incidente do mundo, mas ocupavam-se com os homens no mundo, com sua vida prática, seus problemas jurídicos, morais, políticos, estéticos (OLIVEIRA, 2006).

Muitos pensadores gregos assumiram a reflexão como profissão, uma profissão de sábio (Sofista), de “Mestre das virtudes”, ofício que ensinavam mediante o recebimento de honorários. A partir de então o homem se constituiu como objeto de conhecimento e passou a ocupar o primeiro lugar na reflexão grega. Apesar das críticas a tal forma de filosofia, não se pode olvidar que os sofistas colocaram em xeque a questão do homem e incitaram profundas alterações nas ordens éticas, morais e jurídico-políticas das instituições gregas, substituindo valores cosmológicos – características divinas religiosas e tradicionais – por novos conceitos e convenções propriamente humanos, onde a vida do homem passou a ser apresentada “como a vida é – realismo – e não como deveria ser – idealismo” (OLIVEIRA, 2006, p. 59).

Neste ponto, em um primeiro momento, passou a compreender-se que seria da natureza humana buscar sempre o seu interesse individual, a utilidade das coisas, pressuposto segundo

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o qual a verdade constituir-se-ia em uma categoria variável ligada ao indivíduo. É importante compreender que, até então, a verdade, na filosofia grega, era característica que estava, por assim dizer, impregnada no objeto. Estava determinada na natureza real das coisas e não condicionada, ou seja, acreditava-se que o real poderia desvelar-se ao homem, mas não que o homem poderia criar o real.

Nesse contexto, passou a ganhar notoriedade o pensamento do filósofo Sócrates que destacou a importância da descoberta do homem pelo próprio homem para a consolidação de um verdadeiro conhecimento humano (OLIVEIRA, 2006). É nesse sentido que na alegoria da caverna narrada por Platão em A República vê-se o homem sair da escuridão de um conhecimento reflexo donde via nada além de “sombras” do real, para o exterior, para o mundo, onde pôde apreender de forma inteligível, dar nome (conceitos) àquelas sombras e mesmo refutar aquilo que antes tinha por verdade. Nesse contexto, o homem da alegoria de Platão (talvez o próprio Sócrates), seria aquele que saiu do paradigma de escuridão do pensamento e conheceu a verdade como que por primeiro, de modo que sabia, antes de qualquer outro, qual era o melhor caminho para a verdade. É possível afirmar que esta verdade da filosofia, ou o verdadeiro conhecimento, carregariam assim um certo grau de arrogância daquele que o “desvelaria”.

Interessante perceber que esta noção foi bem aproveitada séculos depois pelas escolas teológicas e para a própria legitimação do poder do clero, em uma espécie de sobrescrição daquela clarividência da verdade socrática para outro personagem, Cristo.

Realmente, a investigação dos conceitos de Sócrates veio a tornar-se a “questão” da filosofia platônica, que alargou a reflexão socrática para além do raciocínio indutivo, adentrando na investigação dedutiva, matemática e capaz de estabelecer verdades objetivas. Na filosofia platônica, que inaugura o período ontológico do pensamento grego,

Além das qualidades particulares mutáveis e contingentes, a experiência mostra que toda coisa tem uma essência pela qual se define – é o que é –, comum a todas as coisas da mesma espécie. Logo, as essências não são somente conceitos – entidades lógicas –, têm elas igualmente uma objetividade. Além de possuírem um sistema lógico, têm também um sistema ontológico de entidades reais (OLIVEIRA, 2006, p. 68). Se para Platão a ideia era o ser, em Aristóteles a ideia passa a designar a espécie (a essência das coisas imanentes nela) donde o ser não pode ser mera ideação, mas tão somente o real. Há assim, no pensamento aristotélico uma diferenciação entre o ser, que só pode ser o ser do real, e a ideia, lógica pela qual seria impossível dizer o ser e o não-Ser de uma mesma coisa (nascimento da ambiguidade). O indivíduo, o humano de Aristóteles era, portanto, uma criatura

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singular, síntese dos elementos inteligíveis e do real, e não o produto de causas – um conceito quase orgânico de humano, visto que informa a relação entre matéria e forma como o elemento principal (OLIVEIRA, 2006).

Ademais, o pensamento de Aristóteles constitui uma das mais importantes teorias da justiça caras ao pensamento moderno. Em Ética a Nicômaco, obra referenciada por Grotius, Aristóteles apresenta a conceituação básica de justiça, apresentando-a sob duas espécies: a justiça distributiva e a justiça corretiva. Conforme Aristóteles (1996, p. 197), a justiça de distribuição seria “a que se manifesta na distribuição de funções elevadas de governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da cidade”, enquanto a justiça corretiva ou de retribuição, “é a que desempenha função corretiva nas relações entre as pessoas”, que se divide em relações voluntárias (relacionadas aos direitos civis de contratar em geral) e outras involuntárias (relacionadas aos crimes em geral). Nesta perspectiva,

O justo nesta acepção é, portanto o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade. Neste último caso, um quinhão se torna muito grande e outro muito pequeno, como realmente acontece na prática, pois a pessoa que age injustamente fica com um quinhão muito grande do que é bom e a pessoa que é tratada injustamente fica com um quinhão muito pequeno. No caso do mal o inverso é verdadeiro, pois o mal maior, já que o mal menor deve ser escolhido em preferência ao maior, e o que é digno de escolha é um bem, e o que é mais digno de escolha é um bem ainda maior (ARISTÓTELES, 1996, p. 199).

Embora Grotius tenha sido um crítico da justiça aristotélica (especialmente nos Prolegômenos da obra O direito da guerra e da paz), esta concepção da proporcionalidade lhe foi cara, tendo-a ressignificado no tratamento da questão da justiça retributiva em âmbito internacional, como se exporá mais adiante. Ademais, esta forma quase matemática de sistematizar e fundamentar a argumentação, própria de Aristóteles – leia-se, a preocupação primordial com a metodologia do saber e da eticidade –, certamente marcou os primeiros passos para o que mais tarde veio a constituir a concepção moderna de conhecimento científico.

Observa-se que ao tempo em que Aristóteles faleceu, a filosofia grega entrava em declínio. Surgiam, contudo, no mundo ocidental, correntes de pensamento menores, já envoltas no paradigma da conquista romana e da expansão do cristianismo, entre elas as Escolas Cínica, Estoica e Epicuréia. Após a conquista dos povos gregos pelos romanos, a expansão da concepção monoteísta cristã passou a ressignificar as reflexões humanistas, marcando um momento de sincretismo religioso e filosófico, no qual, nas palavras de Oliveira (2006, p. 83) “destruídas as buscas da verdade pela razão, apelava-se, então para a fé religiosa,

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projetando-se escassa originalidade filosófica e com tendências rígidas voltadas para a dogmática e para a sistematização”.

Das escolas que se constituíram nesse paradigma, menciona-se oportunamente a Escola Estoica (séculos IV a I AEC) que, fundada por Zenão de Cítio, ensinava que o fundamento da filosofia era a sabedoria, enquanto ciência das coisas humanas e divinas, necessária para o homem atingir seu fim último: a felicidade. Dentre os pensadores de destaque desta escola encontra-se Sêneca, bastante referido por Grotius, especialmente sua obra De beneficiis, quando trata do cuidado humano pela vida social e a obra Da ira ao tratar da justiça.

Antagonicamente a esta escola, a Escola Cética apegava-se à negação de tudo, inclusive da fé. Uma das suas Academias, a chamada “Nova ou terceira Academia”, fundada por Carnéades de Cirene, chegava a tal ponto de negação que pregava a extinção de qualquer juízo de valor. Interessante notar que a escola cética, especialmente considerada no pensamento de Carnéades é criticada por Grotius quando este trata da questão da justiça e do direito:

Esse filósofo [Carnéades], empenhado em combater a justiça, especialmente esta de que nos ocupamos agora, não encontrou argumento melhor para tanto que este: os homens se impuseram, em vista de seu interesse, leis que variam de acordo com os costumes e que, entre os mesmos povos, muitas vezes mudam de acordo com as circunstâncias. Quanto ao direito natural, este não existe; todos os seres, homens e outros animais, se deixam arrastar pela natureza em função de suas próprias utilidades. Deduz-se, pois, que não há justiça ou, se houvesse uma, não passaria de suprema loucura, porquanto prejudica o interesse do indivíduo, preocupando-se em proporcionar vantagem a outrem (GROTIUS, 2005, p. 36).

Em contra-argumentação a Carnéades, Grotius aponta dois argumentos para sustentar a existência de justiciabilidade no agir humano. Inicialmente, afirma que os humanos não simplesmente se deixam arrastar pela natureza em função de suas próprias utilidades. Pelo contrário, afirma que a atuação humana aponta para uma espécie de sociabilidade racional, uma appetitus societatis ciceroniana por uma vivência comunitária pacífica e organizada de acordo com os dados de sua inteligência e que os estoicos chamavam de “estado doméstico”, sociabilidade esta que, por sua vez, é o fundamento de existência do próprio Direito. Aduz que,

De fato, mesmo que ele [Carnéades] o afirme, não é louco o cidadão que em seu país se conforma às leis civis, mesmo que para respeitar essas leis tivesse que deixar de lado certas coisas que lhes seriam vantajosas. De igual modo, não é louco o povo que não preza tanto seu interesse particular a ponto de negligenciar os direitos comuns a todas as nações. A razão é, de fato, a mesma nos dois casos. Assim como o cidadão que infringe o direito civil em vista de sua utilidade presente, destrói o germe que contém seu interesse futuro e o de toda a sua posteridade, assim também o povo violador do direito da natureza e das gentes derruba para sempre os anteparos que protegiam sua própria tranquilidade (GROTIUS, 2005, p.44).

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Esta resposta Grotius retira, especialmente, de uma racionalidade de equidade que certamente lhe foi apresentada pela leitura da obra de Cícero. Entre os extremos do pensamento estoico e cético, consagrou-se uma corrente de pensamento conciliador, cujo maior representante foi Cícero. Este filósofo afirmava que, mesmo nas posições mais extremas, é possível chegar a preceitos fundamentais e comuns a todas as filosofias – um verdadeiro consenso gentium (consenso entre as gentes), que Grotius veio a reinterpretar como um acordo comum entre os povos, o que constitui a filosofia de Cícero, não por acaso, na principal fonte de referência de Grotius.

Nesse sentido, tem-se que a filosofia ciceroniana apresenta seu pensamento de uma forma dialogada voltada para a orientação ética da argumentação. Esta eticidade ele retira do que chama reta razão, uma espécie de consciência orientadora do bem, inscrita na própria natureza humanidade:

A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações imutável eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandados, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica imponente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, em derrogada em parte, nem anulada não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo Senado (CICERO, 1973, p.178).

A absorção desta compreensão pela teoria grotiana é evidente. É justamente nesta razão aludida por Cícero que Grotius reconstrói a teoria do direito natural, como um direito elementar na humanidade natural. Um direito ao qual ambos os pensadores associam à noção de justo, um justo apreendido dos costumes e leis das nações.

Similarmente a esta compreensão, transitando entre o pensamento estoico e a tradição teológica da época, é possível observar ainda que a construção teológica agostiniana, em Cidade de Deus, passou a traçar os marcos iniciais de uma doutrina do Estado secular e a fornece os elementos teóricos para a restauração da igreja ocidental. A grande contribuição do pensamento agostiniano, neste sentido, é o reconhecimento de que para integrar a cidade de Deus não bastaria subordinar-se à Igreja, mas seria necessário igualmente fazê-lo em relação ao Estado e suas leis. Noção que é ampliada por Tomás de Aquino (WOLKMER, 2008).

A filosofia jurídica de Tomás de Aquino encontra-se em duas partes importantes da Suma Teológica representada pelo Tratado das Leis e pelo Tratado da justiça. Um dos grandes diferenciais desta filosofia reside em sua formulação do conceito de lei natural enquanto norma pertinente à razão. O direito, portanto, passa a ser classificado enquanto duas diferentes categorias, uma humana e outra divina: “O Direito não pertence às coisas divinas, senão as

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unicamente humanas, o sagrado é a lei divina, enquanto que o Direito é a lei humana” (AQUINO, 2002, p. 475).

Em certa leitura é possível afirmar que Agostinho e Aquino realizam o que Saldanha (1993, p. 42) refere como uma cristianização da filosofia grega, buscando adaptar noções aristotélicas e platônicas à jurisprudência romana e aos cânones do catolicismo. Isto porque, com o advento do Cristianismo passou-se a estabelecer uma gradual estruturação sistemática da teologia, cujo primeiro esquema adotado foi platônico e depois de algum tempo, aristotélico. Ademais, o surgimento da escolástica com seu método das sumas, dominou a cultura medieval, avocando a si uma vasta gama dos temas que a cultura clássica e o tempo impunham, especialmente problemas éticos e políticos. O método escolástico, que serviu a Ciência Jurídica inicial era, portanto, um método teológico, estático e hierática das coisas, o que permaneceu assim mesmo com surgimento do nominalismo – a partir de Occam, no século XIV.

A partir desta compreensão ciceroniana de notável influência platônica, reinterpretada por Aquino e ressignificada por Grotius, parece correto afirmar que se tornou possível ao pensamento grotiano apresentar um jus gentium associado com a própria humanidade, noção esta que permaneceu cara à teoria jurídica na novidade que inaugurou. De fato, é no humanismo que a noção de direitos subjetivos passa a ganhar vida, cujos contornos são delineados a partir da secularização definitiva dos elementos do direito e da política.

A história nos mostra, contudo, que esse não foi um processo simples, tampouco pacífico, cuja consagração necessitou ultrapassar, como diria Grotius, a barreira do “indizível” – a superação definitiva do postulado da vontade divina nos assuntos humanos – uma verdadeira “saída do Éden”6 para ambiguidade do excitante e doloroso exílio da racionalidade humana.

1.2 A Superação da Proeminência Religiosa na Formação Intelectual de Hugo Grotius: A obra De veritate religionis christianae7

No limiar da Modernidade, durante os séculos XVII e XVIII, conflitos religiosos ganharam destaque como fator decisivo em vários aspectos da vida social e política da sociedade ocidental. A descoberta de novos horizontes territoriais, comerciais e ideológicos,

6 Aqui faz-se referência à tragédia escrita por Grotius, Adamus Exul (O exílio de Adão), onde relata o processo de tomada de consciência do primeiro humano e sua consequente expulsão do paraíso divino, a partir do mito da criação de Adão e Eva – que em uma interpretação não-teísta parece mesmo uma boa analogia ao processo de tomada de consciência autônoma da humanidade no pensamento moderno, e às consequências nem sempre gratas que advém desta liberdade.

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incitada anos antes pela expansão marítima acentuou o grande ideal do Cristianismo pré-moderno: sua legitimação definitiva enquanto religião detentora oficial da Verdade divina no mundo humano.

Por outro lado, em face às novas pluralidades, o catolicismo romano iniciava a ruir e a sociedade das nações dava passos largos na direção da secularização da vida política e jurídica, bem como à imprescindível abertura à liberdade religiosa dos Estados. A busca daquele ideal homogeneizante transformou-se, então, em um paradoxo: ao passo em que se defendia a universalização dos valores cristãos, estes mesmos valores, como a união da fé e os princípios do amor, da solidariedade e do cuidado para com o Outro, foram substituídos por paixões beligerantes sem amparo da razão.

A esse respeito, conforme afirma Nélson Saldanha (1993, p. 23),

Parece aceitável que no período inicial de cada uma das grandes civilizações – há quem prefira dizer ‘sociedades históricas’ – ocorreu o predomínio de uma visão religiosa do mundo, que teve como correlato um modo teológico de pensar. Isto terá inclusive acontecido nas sociedades egípcia e babilônica, nas quais a burocratização, enquanto ‘racionalização’, veio com a crise da religiosidade inicial. [...] Na verdade o processo se relacionou com vários fatos históricos-sociais. O trânsito à racionalização, ou seja, à secularização, ocorreu exemplarmente na cultura europeia (ou seja, no ‘Ocidente’), com a queda dos modelos teológicos e com a gestação do iluminismo.

Hugo Grotius, vivenciou, sofreu e preocupou-se com este cenário. Suas percepções e pesquisas resultaram em duas grandes obras, os tratados De veritate religionis christianae (A verdade da religião cristã) e De jure belli ac pacis (O direito da guerra e da paz), nos quais, com o habitual tom consensualista e humanista, que marcam o pensamento grotiano, o autor apresenta um trabalho bastante imparcial e explícito de seu anseio por um consenso humanitário como resposta ao problema dos conflitos religiosos na sociedade europeia da época.

O Cristianismo de então se encontrava cada vez mais desafiado por movimentos da reforma ortodoxa e, principalmente, da reforma Protestante (em especial, o Calvinismo e o Luteranismo), que propunham novas interpretações das Escrituras Sagradas, pondo em xeque a suposta verdade dogmatizada pela tradição do catolicismo romano. Somado a isso, o confronto com a diversidade religiosa, a partir da conquista territorial de povos não cristãos, conferia maior densidade e relevância ao tema.

Neste cenário, o antigo fundamento da preeminência natural das instituições cristãs – a teoria da Igreja Natural – já não bastava para legitimar a destruição das instituições nativas, como observavam os próprios escolásticos, a exemplo de Francisco de Vitória. Era necessário

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que as tais situações pudessem ser vislumbradas a partir de uma nova compreensão da unicidade da fé cristã, um entendimento que pudesse ser ao mesmo tempo consensual e universalizante.

Entrementes, a nascente sociedade internacional da época passava por grandes transformações: o mundo medieval fundado no teocentrismo cedia espaço para um mundo moderno e laicizado, em um vislumbre das teorias que mais tarde trariam à tona a lógica das razões de Estado e os ideais da Soberania Estatal. Um cenário histórico marcado por intensas instabilidades políticas e religiosas, como a revolução dos Países Baixos contra o domínio da Espanha, a Guerra dos Trinta anos no Sacro Império Germânico e o início das rivalidades mercantis europeias (MACEDO, 2006).

O surgimento de grupos dissidentes dentro do próprio protestantismo produzia também um considerável número de crenças que emergiam do interior do movimento para o conflito maior com o cristianismo. Isso não apenas deixava ainda mais complexo o problema de determinar um único modelo de verdade religiosa, mas fazia emergir conflitos de convivência entre os partidários de diferentes credos em uma mesma nação. Diante desse contexto, desenhava-se a seguinte questão: seria possível ou mesmo desejável para o Estado criar condições para a coexistência e convivência pacífica de confissões religiosas diferentes? (BELLO, 2006).

Já no século XVI tinha-se consciência de a questão da diversidade religiosa não era somente um problema de saber quem estaria com a verdade e apontar o errado, mas muito mais, nas palavras de Eduardo Bello (2006, p. 39, tradução nossa) “o problema de determinar um arquétipo de ortodoxia com relação ao qual se possa identificar o herege, persegui-lo, tortura-lo, elimina-lo”8, o que também não deixa de ser um problema político da relação Igreja-Estado, referente à posição do Estado na defesa da ortodoxia religiosa e na perseguição dos dissidentes. Através do relato biográfico de Charles Butler (1826) temos que no período de vivência de Grotius, as nações europeias enfrentavam a Guerra dos Trinta Anos e, assim, enquanto parte da Europa germânica se inclinava à reforma protestante iniciada por Lutero, as teorias de Calvino faziam grande progresso nos Países Baixos. Naquele tempo, o soberano regente era Filipe II, Rei da Espanha, que havia recebido o direito sobre o território por cessão de seu pai, Carlos V, imperador do sacro-império romano-germânico. Católico devoto, herdeiro do espírito inquisidor de seu pai e adepto de suas medidas violentas de dominação, Filipe não aceitava a

8 “el problema de determinar un arquetipo de ortodoxia con relación al cual se pueda identificar al hereje, perseguirle, torturarle, eliminarle”.

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escolha religiosa que chamava “herética” das províncias neerlandesas, tendo enviado um exército de cerca de 20.000 homens para oprimir as discussões político-religiosas que ocorriam na região. No entanto, na medida em que crescia o descontentamento do povo com o governo tirano de Filipe, aumentava o número de adeptos ao calvinismo, e os acontecimentos político-religiosos se direcionavam para uma necessária declaração de independência.

Em meados de 1559, Guilherme, Príncipe de Orange, tomou o partido dos protestantes e levantou um exército em oposição a Filipe. Foi então declarado Stadtholder, governador titular das provincias de Holanda, Friesland e Utrecht. O calvinismo passou a ser declarado a religião da região, e, em 1579 também das províncias agregadas de Gueldres, de Zutphen, de Overyssell, e de Gröningen. A base de suas constituições passou a ser o “Tratado de União”, pelo qual, no entanto, Filipe II foi mantido como soberano, até 1581, ano no qual os deputados reunidos em Amsterdã, subscreveram um ato solene, pelo qual renunciaram formalmente a lealdade a Filipe e seus sucessores, e afirmaram sua independência. Eles declararam em seu manifesto, indo de encontro ao que Grotius , que “o príncipe é feito para o povo, não o povo para o príncipe”; que “o príncipe, que trata seus súditos como escravos, é um tirano, a quem seus súditos têm o direito de destronar, quando não têm outro meio de preservar sua liberdade” e que “este direito pertence particularmente à Holanda, o seu soberano, estando vinculado pelo seu juramento de coroação para observar as leis, sob pena de perder a sua soberania” (BUTLER, 1826, p. 45).

Em 1585, o príncipe Maurício, o segundo filho de William, foi, principalmente pela influência de Barneveldt, proclamado Stadtholder pelos Estados Gerais. O enfraquecimento das alianças da Espanha e os problemas da França, permitiram às Províncias Unidas desfrutar de algum repouso, que eles aproveitaram para resolver suas questões internas: cidades foram reparadas, as fortificações concluídas, universidades foram fundadas ou revividas em Utrecht, Leyden e Franker e as tratativas de paz começaram a ser formuladas. Em 1598, a guerra entre a Espanha e a França foi encerrada. Felipe II, logo depois, morreu e foi sucedido por Filipe III, um monarca fraco. A guerra entre a Espanha e as Províncias Unidas durou quarenta anos: os recursos da Espanha estavam tão exaustos, que ela mesma foi forçada a pedir um armistício. O príncipe Maurício inicialmente opôs-se a ele, pois a continuação da guerra era essencial para o avanço de suas próprias ambições. Contudo, depois de uma longa negociação, um armistício de doze anos foi acordado em 1609, e Inglaterra e França garantiram a execução do tratado.

Neste contexto, um conflito interno passou a se desenvolver, entre os dissidentes da doutrina Calvinista, que discordavam acerca da interpretação da doutrina da salvação.

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Dividiram-se entre Gomaristas, seguidores da doutrina de Franciscus Gomarus, teólogo de Leiden e Arminianos, seguidores da doutrina de Jacobus Arminius, também teólogo e professor da Universidade de Leiden. No início, era apenas uma disputa religiosa, mas logo se misturou à política nacional, dividindo o povo em duas partes muito hostis, e produzindo contenções entre eles, que mais de uma vez trouxeram sua causa à beira da destruição. E Grotius, infelizmente, estava envolvido neles.

Inserido neste cenário, Grotius estava convencido de que a plena certeza acerca da verdade divina ainda estaria estritamente dependente da revelação pura e simples das Escrituras Sagradas. A lógica humana – entenda-se a constante das doutrinas e dogmas das autoridades cristãs –, não ofereceria por si só uma posição firme o suficiente para defini-la. A esse respeito, Grotius (2005, p. 62) afirma:

Os cânones dos Sínodos, que estão conformes à regra, são raciocínios extraídos dos princípios gerais da lei divina, adaptados aos casos que se apresentam. Mostram também o que a lei de Deus prescreve ou exortam ao que Deus aconselha. Esta é a verdadeira missão da Igreja cristã, ensinar o que ela aprendeu de Deus e transmiti-lo da maneira como ela o recebeu.

Por esta razão, na elaboração de uma de suas mais densas obras, o tratado De veritate religionis christianae, Grotius optou por reduzir seu material de análise, atendo-se à exegese direta do texto das Escrituras, com apenas poucas influências filosóficas externas. A esse respeito, note-se que no primeiro capítulo do De veritate Grotius (1818, p. 1, tradução nossa) expressa sua admiração pelos autores humanistas Raymond Sebond, Juan Luis Vives e Philippe Duplessis-Mornay, referindo que “não pode deixar de sensibilizar-se com a quantidade de minúcia filosófica de Raimundus Sebundus, com os diálogos divertidos de Ludovicus Vives, e com a grande eloquência de Morneau”9.

Conforme destaca Christoph Bultmann (2014), Grotius se muniu de argumentos razoáveis e de cunho histórico para compor sua apologética, nos moldes da dialética jurídica a que estava habituado, sistematizando a justificativa de seu argumento em dois tipos de provas (métodos): prova regular e prova irregular. Segundo ele, o primeiro método, ao qual corresponderia uma prova regular, é o determinado pela razão natural; já o segundo método, do qual decorreria uma prova irregular, é o apelo à autoridade de testemunhos, humanos e divinos.

9 “cannot but be sensible with how much philosophic nicety Raemundus Sebundus, with what entertaining dialogues Ludovicus Vives, and with how great eloquence your Morneaus, have illustrated this matter”.

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O que se percebe é que a estratégia do autor se inclinou a fazer com que os leitores partissem da evidência da religião natural, como verdade suposta da superioridade da religião cristã, para os livros das Escrituras, como verdade factual. Desta forma, Grotius intentou provar a verdade da religião cristã lato sensu, não adentrando nas disputas internas dos cristãos e protestantes, mas focando na relação do Cristianismo com as outras crenças de origem abraâmica (Judaísmo e Maometanismo) e com o Paganismo.

Conhecedor da polêmica temática, logo no introito do livro IV, Grotius (1818, pp. 156, 157, tradução nossa) roga aos leitores para “libertarem o seu julgamento de toda paixão e preconceito que obstrui a compreensão”10 a fim de poder, da forma mais imparcial, compreender o conteúdo da obra, afinal “o objetivo principal de um Cristão deve ser, não só a satisfação pelo fato de ter descoberto a verdade por si mesmo, mas também um esforço para ajudar outros, que vagueiam em vários caminhos tortuosos de erro, e para torná-los participantes da mesma felicidade”11.

Neste ponto, são importantes as considerações grotianas acerca da dicotomia bem e mal, quando trata dos deveres da humanidade, ou como refere o autor, do que se deve ao próximo mesmo quando este causou algum mal. Para Grotius (1818), a opinião maniqueísta acerca da existência de dois princípios ativos no mundo, um estritamente inclinado para o bem e outro estritamente inclinado para o mal, deve ser rejeitada. Isso porque, tais princípios, por serem contraditórios entre si, tanto são incapazes de criar consenso, quanto são predispostos a gerar ruína e destruição, em total oposição à conduta esperada do cristão. Explica que o mal não é dotado de uma auto-existência perfeita, justamente porque o bem pode auto-existir.

Tal argumentação é essencial para a compreensão da relação entre Cristianismo e Maometanismo12 na qual Grotius criticou o excesso de apelo à violência dos maometanos, explicando que a maldade, neste caso, não seria originária de Deus, mas sim dos homens, no sentido de que esta seria um defeito do próprio ser existente a partir das escolhas da liberdade. Desta forma, analisando o surgimento da tradição maometana, Grotius realizou três críticas iniciais: a primeira, ao demasiado emprego da violência em suas práticas; a segunda ao excesso de cerimônias e a terceira, e principalmente, ao fato de que ao homem comum proíbe-se a

10 “free their judgment from all passion and prejudice, which clog the understanding”.

11 “the principal aim of a christian ought to be, not only a satisfaction upon his having found out the truth himself, but also an endeavour to assist others, who wander in various crooked paths of error, and to make them partakers of the same happiness”.

12 Termo arcaico que foi contemporaneamente substituído pela denominação Islã. Optou-se em mantê-lo para fins de coerência histórica.

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leitura dos livros sagrados, o que para Grotius constituiria um manifesto atestado de sua ilegitimidade.

Contudo, conforme analisa Bultmann (2014), a linha de pensamento que informa a visão de Grotius acerca do Maometanismo sustenta-se na ideia de mal atribuído pela providência divina como forma de punição pelo desvio da conduta cristã. No início do livro VI do De veritate, o autor traça um retrato da suposta corrupção do Cristianismo, desde os tempos de Constantino até a ameaça dos godos, como uma primeira onda de povos que foram agitados por Deus para punir o mundo cristão. Aduz que esta primeira punição não teria sido satisfatória e, portanto, como uma segunda onda de inimigos, Deus teria permitido aos maometanos e aos turcos ameaçarem o Cristianismo após o profeta Maomé ter iniciado uma nova religião.

Observe-se que esta crítica não ocorre em relação ao Judaísmo, ao qual o autor atribui um caráter histórico fundador, reconhecendo a veracidade dos milagres inscritos no Velho Testamento, bem como a veracidade dos eventos narrados por Moisés. Isso o faz pelo fato de que os fenômenos do judaísmo seriam atestados por um grande número de estudiosos, não necessariamente atrelados à religião judaica, como os historiadores fenícios e filósofos como o judeu-helenista Filo (bastante citado nas notas explicativas da obra De veritate).

Nesse sentido, a relação estabelecida entre Judaísmo e Cristianismo é de que este último seria uma espécie de aperfeiçoamento do Judaísmo, enquanto aquele constituiria “o cepo” no qual o Cristianismo fora “enxertado”, uma parte e o início da verdade cristã, “similar ao crepúsculo para uma pessoa que avança gradualmente de uma caverna muito escura”13 (GROTIUS, 1818, p.181, tradução nossa). Assim é que os milagres de Cristo, por exemplo, descenderiam da mesma tradição que os milagres de Moisés, sendo importante o fato de que a lei judaica foi observada pelo próprio Messias cristão. Assim, em comparação ao Judaísmo, não haveria do ponto de vista de Grotius nada que fizesse da verdade cristã algo refutável ou incompatível, tampouco mutuamente excludente.

Observa-se que as principais críticas de Grotius, para além do maometanismo, voltam-se ao Paganismo, especialmente em desfavor da crença em muitos deuvoltam-ses (politeísmo), relacionada à suposta insegurança gerada pela inexistência de um Deus supremo, e aos males causados pela adoração de espíritos, cujos rituais aludiam a condutas violentas e, inclusive, ilícitas. Na concepção grotiana, faltaria ao Paganismo o apoio de uma maior racionalidade. Isso porque tais crenças, de forma irracional aduz Grotius (1818), atribuiriam significados místicos

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em coisas que não teriam existência transcendente, senão física ou natural, tais como febre (que é tão somente a enfermidade do corpo) e o azar (que nada mais é que uma correspondência de eventos interpretada conforme o desejo humano), e também as afeições, como o amor, o medo, a raiva, a esperança (decorrentes da consideração da bondade ou da maldade), a facilidade ou dificuldade de uma coisa (que é algo decorrente das possibilidades da mente ou do corpo).

Disso decorre que os milagres realizados pelos pagãos, sob o fundamento dessas crenças consideradas irracionais, careceriam de veracidade e validade. O mesmo se aplicaria às previsões realizadas a partir da consulta de oráculos, de modo que a prova da verdade, sob o aspecto dos testemunhos, seria desfavorável ao Paganismo.

Em síntese, percebe-se que a relação entre o Cristianismo, o Judaísmo, o Maometismo e o Paganismo, estabelecida por Grotius no De veritate, é guiada pela necessidade de uma escolha: definir qual a orientação religiosa mais aperfeiçoada capaz de estabelecer as bases de um consenso em termos de fé. Assim, mesmo que implicitamente, a questão da tolerância e da diversidade religiosa se apresenta pelo argumento grotiano da validação histórica das crenças monoteístas de origem abraâmica, especialmente quanto ao Judaísmo, ainda que não esconda uma veemente reprovação no que tange ao Paganismo e ao Maometismo, refutação que busca embasamento na denúncia do suposto perigo do caráter violento e abusivo das práticas de tais crenças.

De acordo com Eduardo Bello (2006), por ser Grotius devedor da tradição do humanismo cristão de Erasmo, é compreensível o querer do autor em efetivar o ideal de unidade espiritual das confissões cristãs que, para Erasmo, poderia ser alcançado através de uma redução do dogma cristão a um pequeno número de artigos, deixando os demais ao juízo facultativo de cada interessado. É por esta razão que em ambos autores a análise das possibilidades de coexistência ou não de diversas ordens religiosas parte de uma revisão da dicotomia verdade-engano, distinguindo de todas as religiões aquilo que as separam, configurando, de uma parte, uma política de diálogo entre as diferentes confissões e de outra parte, o rechaço a toda coação e violência.

Realmente, vê-se também na obra De jure belli ac pacis Grotius (2005, p. 51) se refere a Erasmo em indignação aos conflitos religiosos

Ante essa ferocidade [das guerras] muitos homens em nada cruéis chegaram ao ponto de proibir qualquer espécie de guerra ao cristão, para quem a regra consiste sobretudo no dever de amar a todos os homens. Nesse modo de pensar parece que se perfilavam às vezes Jean Férus e nosso Erasmo, eminentes amantes da paz eclesiástica e da paz civil. Assim não agiam, porém, como chegou a pensar, a não ser no intuito de deixar

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de lado, como temos o costume de fazer, as coisas que são rejeitadas pelo outro, para que retornem em sua justa medida.

O aspecto interessante da produção grotiana no De veritate, portanto, é que, ainda que inserido em uma temática tão sensível e, mesmo que sob o objetivo de produzir uma defesa da verdade cristã, Grotius consegue manter o caráter humanista de sua argumentação. Não é por acaso que o autor afirma, logo no primeiro livro, que há para o homem uma obrigação de bondade para com seu semelhante, ainda que este configure uma ameaça. Afirmação pertinente em um contexto social onde a guerra religiosa adquiria indiscriminada crueldade e intolerância.

Grotius empreendeu um verdadeiro projeto de pacificação religiosa. Um desejo de paz entre os cristãos cresceu com a força de suas obras. Esse seu empenho ele evidencia não apenas em suas obras, mas o falava abertamente, como é possível perceber em uma carta que dirigiu a seu irmão: “Se não houvesse esperanças de sucesso no presente, não deveríamos semear a semente, que pode ser útil para a posteridade? Mesmo que só diminuíssemos o ódio mútuo entre os cristãos e os tornássemos mais sociáveis, não valeria a pena assumir o preço de algum trabalho e reprovações?” (BUTLER,1826, p. 120, tradução nossa14).

A obra De veritate religionis christianae foi escrita por Grotius quando preso em Loevestein, período não muito afastado da conclusão dos tratados De jure belli ac pacis (O Direito da Guerra e da Paz), nos quais Grotius defende a existência de um Direito comum a todos os povos (jus gentium), aplicável para a guerra e na guerra, como legitimador e determinante das condições para uma guerra justa e enquanto um limitador das condutas beligerantes e único meio para a instauração e manutenção da paz.

1.3 A Renovação de Hugo Grotius para a Teoria do Direito Natural

O aspecto marcante da intelectualidade de Hugo Grotius é, sem dúvidas, a inauguração da preposição que António Manuel Hespanha (2014, p. 152) identifica como uma “hipótese impiíssima”, segundo a qual a existência do direito prescindiria da vontade de Deus15. Para Hespanha, esta hipótese importaria em uma espécie de princípio de laicização do jusnaturalismo medieval. Esta compreensão perpassa toda a teoria grotiana e de fato, constitui

14 “If there were no hopes of success at present, ought we not to sow the seed, which may be useful to posterity? Even if we should only diminish the mutual hatred among Christians, and render them more sociable, would not this be worth purchasing at the price of some labour and reproaches?"

15 Nas palavras de Grotius: “O que acabamos de dizer teria lugar de certo modo, mesmo que se concordasse com isso, o que não pode ser concedido sem um grande crime, isto é, que não existiria Deus ou que os negócios humanos não são objeto de seus cuidados” (GROTIUS, 2005, p. 40).

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pressuposto necessário à sua proposta não somente para o direito, mas também à teoria do Estado e ao próprio humanismo, de tal forma eminente que lhe logrou por muitos anos o título de Pai Fundador do Direito Internacional moderno o qual, apesar de já não lhe ser exclusivo, continua válido e incrivelmente atual, quase cinco séculos após sua existência16.

Contudo, a originalidade desta hipótese de Grotius foi, por vezes, questionada. Há quem afirmasse que Grotius teria retirado a noção de Marco Aurélio, das Meditações. Outros, que Suárez estaria entre os precursores da formulação emprestada por Grotius, com base na afirmação deste que a lei residiria na relação entre intelecto e vontade na constituição da lei. Ademais, outros apontam uma tal noção já encontrava lugar na escolástica tardia. No entanto, uma análise mais detalhada demonstra que essas comparações muitas vezes têm sido equivocadas. Como bem sintetiza Eduardo Pinho (2013), o caso da citação de Marco Aurélio, o que contexto em que se insere não é de fundamentação do Direito natural, mas sim com o modo de viver filosófico. Quanto a Suarez, percebe-se que este considera impossível colocar em dúvida a existência de Deus, até porque, na época, havia forte influência da analogia entis, que era utilizada para explicar a relação de dependência ontológica entre seres criados e Deus. Por fim, a hipótese de Grotius diferencia-se da argumentação escolástica pontualmente pelo

16 Grande parte desta intelectualidade de Grotius, que foi largamente admirada por seus conterrâneos e que o constitui no clássico que ainda inspira a compreensão do Direito Internacional, parece decorrer de pelo menos dois fatores de sua vida: o primeiro, pelo momento histórico em que viveu, repleto de instabilidades própria do paradigma que hoje chamamos Renascimento; o segundo, devido a excelente situação familiar e econômica na qual nasceu, que lhe proporcionou, desde jovem acesso a uma educação excelente e boas influências políticas. Isto é evidente e unânime nas biografias já escritas acerca de Grotius, as quais se tomou conhecimento na pesquisa desta dissertação, dentre elas a do excelente historiador francês Jean Lévesque de Burigny (Vie de

Grotius) e também a do escritor inglês Charles Butler (The Life of Hugo Grotius). O momento em que Grotius

nasceu era instável, mas como em toda massa de instabilidade, propício à transformação. A Europa do século XVI vivenciava o auge dos movimentos renascentistas, expansão marítima, exploração de novos territórios e povos, ampliação do comércio exterior, reformas religiosas e, principalmente, a germinação do ideal de Estado de Direito. Conforme relata Butler, Grotius, contudo, nasceu em meio a muitas vantagens. Ainda na infância foi enviado a Haia e colocado aos cuidados de Utengobard, clérigo arminiano [que exerceu muita influência na formação humanista de Grotius], e com doze anos de idade enviado à Universidade de Leyden, confiado aos cuidados de Francis Junius. Já nos primeiros anos distinguiu-se tanto por seu empenho, quanto por seu talento e modéstia. Interessado pelo direito e pela filosofia política, gradualmente a intelectualidade de Grotius foi tornando-se conhecida e admirada, e seu sucesso logrou consideráveis oportunidades. Ascendeu de advogado geral fiscal das províncias da Holanda e Zelândia para o cargo de Pensionário de Roterdã, em 1613, passando a integrar a assembleia dos Estados da Holanda e, posteriormente, dos Estados Gerais. Dentre suas publicações, além das que serão mencionadas no decorrer desta leitura, destaca-se a primeira, que empreendeu com apenas quatorze anos: uma edição comentada da obra de Marciano Capella, o Casamento de Mercúrio e Filologia, em dois volumes, e também dos Sete Tratados, do mesmo autor. Outras edições destas obras existiam, mas eram defeituosas, de modo que Grotius empreendeu-se em realizar edições melhores. Comentando sua obra Grotius afirma: “Reunimos Capella com os vários autores que investigaram os mesmos assuntos, nos dois primeiros livros consultamos aqueles cujos escritos contêm os sentimentos dos anti-filósofos, como Apuleius, Albericus e outros, muito tediosos para nomear. Temos comparado Capella com os anti-gramáticos, no que se refere ao seu argumento sobre retórica, com Cícero e Aquila, sobre a lógica, com Porfírio, Aristóteles, Cassiodoro e Apuleius, geografia, Com Strabon, Mela, Solino e Ptolomeu, mas principalmente com Plínio, com a aritmética, com Euclides, com a astronomia, com Hyginus e outros, que trataram sobre esse assunto, sobre a música, com Cleónides, Vitrúvio e Boécio” (BUTLER, 1826, p. 55).

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fato de o autor não estabelecer nenhuma relação de causalidade – de analogia e participação – entre a natureza divina e a natureza humana, mas tão somente distingui-las.

Conforme Wolkmer (2008, p. 136) “não é a modernidade de Grócio, mas a ambivalência filosófica de sua doutrina que dá o tom à corrente filosófico-jurídica que vai de Pufendorf a Montesquieu e a Vattel”. Essa notoriedade consiste na construção de um Direito das gentes supranacional e supraconfessional, que ele deduz da tradição da teologia moral, mas que só poderia ser obtido através do estabelecimento das condições básicas de existência e de conhecimento, por esta razão ser construído a partir de um direito natural vinculativo para todos os homens, a partir da experiência jurídica comum a toda a humanidade e na tradição teológica, humanista e romanística. De fato, uma abordagem diversa daquela baseada em axiomas, que viria com os jusracionalistas posteriores. Não poderia, portanto, ser chamado de moderno, mas sim de um pensador de transição.

Percebe-se, de início, e especialmente na obra O direito da guerra e da paz que ao elaborar sua teoria jurídica, Grotius tomou o cuidado de traduzir o termo Direito de forma associada à noção de justo, que definiu como o que não seria injusto, enquanto injusto seria tudo aquilo que “repugna à natureza dos seres dotados de razão” (GROTIUS, 2005, p. 73). Apesar do aparente reducionismo esta definição está longe de ser simplória. Em uma publicação latina do De Jure Belli ac Pacis o trecho citado está assim disposto: “Est autem injustum, quod naturae societatis ratione utentium repugnat” (1913, livro I, p. 2, § III).

Perceba-se que o verbo repugnat, assim aplicado, não traduz tanto um sentido de aversão ou resistência, como pode aparentar em uma interpretação superficial, mas mais propriamente reveste-se de um sentido daquilo que torna (re-) a entrar em combate (pugno), o que contextualizado na obra grotiana parece significar que o injusto é aquilo que induz um retorno ao estado de natureza selvagem do qual a humanidade buscou afastar-se. Uma oposição à vida social, que Grotius identifica também com o ato de atentar contra o direito de outrem.

É por isso, também, que a “natureza dos seres dotados de razão” se refere a uma natureza diversa daquela a qual todos os seres vivos fazem parte, designando o que se chama de natureza humana, ou seja, um senso de existência que nasce do homem a partir da racionalidade que lhe é exclusiva, o que Grotius associa ao desejo pela sociabilidade e ao cuidado pela vida social – como se demonstrou, em uma concepção própria do estoicismo de Cícero ao qual Grotius fazia recorrente referência.

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Até aqui tem-se que o direito associado ao justo, portanto, configuraria tudo aquilo que não induziria a humanidade a um retorno de sua condição selvagem, irracional, anterior ao pacto social. Os destinatários desse Direito, segundo Grotius, seriam justamente os seres dotados de razão, não Deus ou mesmo um homem singular, mas a sociedade destes seres que se obrigaram pelo convívio racional, uma vez que, “De fato, o objetivo da sociedade é que cada um se mantenha naquilo que lhe pertence, como efeito de um concurso comum e da reunião das forças de todos” (GROTIUS, 2005, p. 103). Pode-se inferir desta noção a motivação pela qual Grotius associasse o direito (jus) como o que é (justum), para fundamentar-lhe em uma força superior capaz de cumprir a finalidade da justiça de forma legítima e válida, independentemente de um desígnio divino ou de uma vontade humana singular, uma noção bastante cara a um Direito para além daquele entre as Nações, um Direito para a humanidade.

Em certa medida, se pode afirmar que Grotius inaugura uma espécie de teoria do direito humanizada, que tem influência direta na renovação que o autor opera na própria compreensão do direito natural e do direito das gentes. Não porque Grotius tenha intentado suplantar Deus de sua teoria do direito, mas porque sabia que, “Deus, ao aprovar a lei humana, se dispõe a aprova-la somente como humana e do ponto de vista humano” (GROTIUS, 2005, p. 250).

Isso porque, como bem explica:

O direito natural nos é ditado pela reta razão que nos leva a conhecer uma ação, dependendo se é ou não conforme à natureza racional, é afetada por deformidade moral ou por necessidade moral e que, em decorrência, Deus o autor da natureza, a proíbe ou a ordena (GROTIUS, 2005, v. I, p.79).

Ao que acrescenta em outra parte:

O direito natural, considerado como lei, não se refere somente às coisas que ordena a justiça, por nós designada expletora [de compensação], mas encerra nele os atos das outras virtudes, como a temperança, a coragem, a prudência, porquanto o exercício dessas virtudes, em certas circunstâncias, não é somente honesto, mas obrigatório (GROTIUS, 2005, p. 293).

Conforme destaca Weckmann (1993), uma vez descartada, ao menos formalmente, a Divindade como o motor universal e ultima ratio de todas as coisas, o novo suporte jurídico e político da sua estrutura social deveria ser buscado em outro lugar. Nada mais apropriado, assim, que olhar para a natureza e o comportamento do homem como base de apoio do novo sistema. O direito, nesta fase de transição que durou até os tempos modernos, foi, portanto, uma lei essencialmente humanista. Isso não significa que modo teológica de pensar o direito tenha desaparecido de pronto, mas que a partir de então a razão situou o direito com base nas

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