Análise teológica e histórica
de conceitos de eclesiologia
partindo do termo neotestamentário
de “Povo de Deus”.
HANS-JÜRGEN PRIEN
P alestra proferida com o contribuição para os debates do IV E ncontro de Pastores e E stu d a n te s, em 8 e 9 de m aio de 1973, e m São Leopoldo, R S .
1) A expressão “povo de D eus” foi tra n sfe rid a d a a n tig a alian ça p a ra a com unidade d a nova aliança; ela não pode ser an alisad a de modo isolado; precisam os considerá-la d en tro de seu contexto neo te stam en tário ao lado de o u tra s designações da com unidade, co mo: “irm ãos” , “corpo de C risto” , “tem plo” , “raça eleita” , “sacer dócio re a l”, “nação s a n ta ” , “povo de prop riedade” (exclusiva de Deus) e n a tu ra lm e n te “ekklesia” .
S urge tam bém a p e rg u n ta pela relação en tre o reino de Deus anunciado por Jesus e a com unidade ch am ad a de igreja, povo de Deus, etc.
A ligação en tre o Reino de D eus an u n ciad o por Jesu s e a Ig re ja acha-se n a pessoa do S enhor ressuscitado. No tem po d a atu ação de Jesus n a P alestin a, seguir Jesus e crer nele como p lenip oten ciário de Deus eram as condições do reino de Deus, p o rta n to houve u m ponto concreto de relação. P a ra u m m aior núm ero de pessoas seguir Jesus e te r fé, só se pode realizar através de em baixadores que rep resen tam o próprio S enhor. Isto é que p assa n a Igreja, for m ando a ú ltim a ceia de Jesu s o elo e n tre a a tu a ç ã o te rre stre dele e a época da igreja. Aqui, n a com unhão d a m esa, Jesus co n tin u a se oferecendo a si mesm o, pessoalm ente, como aquele que m orreu p a ra todos. Assim, a ig reja n ão é fu nd ação de Jesus m as sim su a eficiência como povo de D eus do tem po escatológico, o qual, em fo rm a de sinal, já foi prefigu rado pelo grupo de discípulos.
J á frisam os que o term o “povo de D eus” provém da a n tig a aliança, p o rta n to nos lem b ra do êxodo de Israel, da m ig ração do “povo de D eus” no deserto, das suas ten taçõ es e fracassos. Assim,
“povo de D eus” é u m contínuo experim ento que m o stra a fraqueza da igreja e sua dependência da graça divina, e por isso mesm o “povo le D eus” é um con tínuo desafio p a ra q ualq uer organização eclesiástica que sem pre tend e a consolidar-se dem ais. No Novo T estam ento, especialm ente a E pístola aos H ebreus, a c e n tu a que nós, como cristãos, somos “estrang eiros e peregrinos sobre a te r r a ” (11, 13), por conseguinte, quem não quer sa ir ju n to com o “povo de D eus” , em bora fique sen tado em tem plos, perde su a re lação com este “povo de D eus”. T an to o cristão individual como a ig reja sem pre são cham ados p a ra a p a rtid a , p a ra o êxodo!
2) No Novo T estam ento n ão se ach a u m conceito de o rg an i zação unifo rm e e n orm ativo p a ra o “povo de D eus” . A ig reja pa- lestin ense era dirigida por colégios de anciãos de composição diversa; ela se d istin g u ia por u m a koinonia m uito achegada, a qual se m anifestav a n a desistência v o lu n tária de proventos e p ro priedade.
As com unidades p au lin as caracterizavam -se pela assim cham ada constituição carism ática (C h arism en v erfassu n g ), n a qu al todos os serviços e funções do povo de Deus eram d eterm inados a p a rtir do carism a. Toda au to rid ad e n a com unidade, seja ela dos prim eiros convertidos, seja dos colaboradores de Paulo, não é derivada do cargo, m as da função da pessoa, p o rtan to , de su a co ncreta pres tação de serviço.
Paulo dá 3 diretrizes p a ra o co m po rtam en to dos carism áticos: a) C ada u m a p erm an eça d ia n te de Deus naquele carism a no qual foi cham ado (1 Cor 7, 24). P o rtan to , não tem nin g u ém que foi cham ado p a ra o todo como experto de todo, tam pouco quando foi ordenado como p asto r. Não tem razão de ser u m João faz tud o e tam pouco u m a direção de ig reja que ach a que só ela te m o juízo certo p a ra definir o que é certo p a ra o cam inho d a ig reja e o que é u n ila te ra l e perigoso!
b) Q ualquer g raça de Deus ou carism a deve agir e realizar-se n a cooperação dos m em bros, no serviço em favor dos outros (I Cor 12, 25).
c) Sujeitai-vos u n s aos outros no tem or de Cristo! (Ef 5, 21; Rom 12, 10; F1 2, 3; I Pe 5, 5) Isso exige u m novo modo de agir dos cristãos que ta n to exclui que m em bros, pastores ou com uni dades não fazem caso de recom endações de grêm ios d irig entes da igreja, como que dirigen tes da igreja só por bondade se d ign am em ouvir opiniões e convicções dos m em bros. Em u m a palavra: isso im pede qu alqu er atu ação p a te rn a lista onde e quando for que seja. Ou dito positivam ente: isso exige u m esforço com um de todos os cristãos, de conscientizarem -se sobre os problem as can d en tes de sua época e b uscar em co n ju n to soluções p a ra os desafios res pectivos.
3) O cam inho p a ra o episcopado m onárquico já se esboça n as cam adas m ais recentes do NT, i. é, n as c a rta s pastorais. Após u m a diferenciação inicial en tre presbíteros e epíscopos, estes últim os se to rn a ra m fin alm en te pessoas de posição h ie rá rq u ica superior, às quais cabia p rim eiram en te a direção do culto e p osteriorm ente
tam bém a da com unidade. Ao passo que os testem u n h o s d a época fu n d a m e n ta m essa tran sfo rm ação com u m princípio de trad ição e legitim idade (L eg itim itä t), petrifican do assim o episcopado m o nárquico p a ra m ais de m il anos, como ú n ica e legítim a form a de constituição do “povo de D eus” , m as a pesquisa h istórico-crítica m ostrou que ela re m o n ta a u m a ce rta situ ação p recá ria da igreja, ou seja, a lu ta c o n tra o gnosticism o e p o rta n to a u m a necessidade histórica!
Claro que isso im plicou tam b ém em m u d an ças pro fu n d as do culto que já não se caracterizo u p or u m a a tu a ç ã o m ú tu a dos cris tãos nele reunidos, m as se tran sfo rm o u cada vez m ais n u m a sa g ra d a cerim ônia encabeçada pelo bispo ordenado (K ephalee-Struk- t u r ) . P o rtan to , tam b ém o culto n a s u a form a se desenvolveu n u m processo histórico, especialm ente visível nos prim eiros dois sécu los da igreja, e teve u m a h istó ria tão m o vim entada como o cargo eclesiástico (A m t). Além disso, houve notáveis diferenças locais. O riginalm ente o culto d a com unidade ofereceu, inseparavelm ente, d o u trin a e sacram ento enqu adrado s n u m a refeição. A través da com binação de refeição e sacram en to se m anifesto u visivelm ente a com unhão que C risto presen teia no sacram ento. O sacram en to tam bém teve eficiência diacônica, reun ind o n u m a m esm a m esa pobres e ricos, alim entando-os corporal e esp iritu alm en te. Após a separação de refeição e S a n ta Ceia, perdeu-se cada vez m ais este c a rá te r diacônico do sacram en to . Além disso, o conceito de sa c ra m ento m udou. E m Jo 3, 5ss e 6, 51c ss a in d a se a c e n tu a que o sacram ento corresponde à ir re s trita en carn ação do verbo divino, necessária p a ra a salvação. Q uer dizer que nós, som ente então, quando recebem os o sacram en to , to ta lm e n te aceitam os e incorpo ram os n a nossa existência a p a la v ra de Deus! M as já p a ra Ig n a tius de A ntiochia o sacram en to m ais significa u m a dádiva neces sá ria p a ra a salvação porque provém da in stitu ição eclesiástica, que cada vez m ais se en tend e como in stitu ição d a salvação (Heils- a n s ta lt) , perdendo, atrav és disso, a Ig re ja m ais e m ais seu o riginal c a rá te r de “povo de D eus” !
4) Desde a R eform a chegou-se à com preensão de que o epis copado m onárquico n ão é u m a n o rm a o b rig ató ria p a ra a consti tu ição do povo de Deus. Mas en q u an to as com unidades d a Re form a S uíça receberem pelo m enos u m a ce rta nova fo rm a com a in stitu ição de q u atro cargos (Ä m ter) diferentes: p asto r, doutor, presbíteros e diáconos, o problem a da co nstituição do povo de Deus em g rand e p a rte ficou sem solução n a R eform a lu te ra n a , ap esar de o reform ado r ta n to a c e n tu a r o sacerdócio geral de todos os crentes. Após u m a liberdade inicial m uito grande, parece que o fenôm eno dos e n tu sia sta s (Schw ärm erei) levou n o v am en te a u m a m aior ênfase sobre o cargo p a sto ra l (P fa rra m t). P rovavelm ente essa ten d ên cia ain d a foi reforçada sob influ ên cia do processo po lítico, pois o absolutism o re strin g ia cada vez m ais a liberdade de decisão e as possibilidades de p articip ação (M itbestim m ung) dos cidadãos no cam po político, e essa ten d ên cia não podia ficar sem conseqüências p a ra a m en talid ad e desses mesm os cidadãos em
sua qualidade de m em bros d a com unidade, isto é, do “povo de D eus”, que se m an ifesta n a com unidade.
Isso se exprim e tam b ém no culto d a época cujo form ulário quase sem m u d an ças a in d a hoje repetim os. O culto é u m reflexo da e s tru tu ra a u to ritá ria d a sociedade de en tão que se caracteriza pelo prim ado do soberano ab so lu tista sobre os cidadãos, do hom em sobre a m u lh er no m atrim ônio, dos pais sobre as crianças, do m estre de ofício sobre seus aju d an tes, etc.
Nesse contexto o culto se pode quase en ten d er como u m a ceri m ônia da corte no qual Deus, o rei, está p resen te invisivelm ente e se deixa re p re se n ta r pelo p asto r que se dirige à com unidade. A com unidade levanta-se quando o p asto r está proclam ando a m en sagem do rei invisível. O p asto r não só é re p re se n ta n te de Deus p e ra n te a com unidade m as tam b ém in term ediário da com unidade p a ra com Deus. Por isso ele se to rn a p a ra o a lta r p a ra levar a resp osta d a com unidade em oração e confissão em direção ao rei invisível, aliás u m a a titu d e que já o próprio L utero censurou, exi gindo a celebração do culto in teiro em direção ao povo, como depois do V aticano II até os católicos estão fazendo, em bora en tre nós esta “A ltarw en d u n g ” ain d a persista! O púlpito é o lu g a r es pecial da proclam ação do m ensageiro do rei que atrav és do p asto r fala. A isso corresponde a a titu d e da com unidade, a titu d e recep tiva, séria, silenciosa e hum ilde. A isso tam b ém corresponde a lín gu a do culto, solene e festiva, m ais sem elhan te a declarações ofi ciais de u m presiden te a u m au ditó rio escolhido do que a fala com um do povo e p a ra o povo. Aos textos litúrgicos fixados corres pondem os gestos ritu ais, o órgão e o coro. Tudo rep resen ta o ex trao rd in ário , o “F ascinosum et T rem en d u m ” .
5) O pietism o, com su a form ação de grupos e sua ênfase so bre a conversão, teve o efeito de d in am ite sobre as e s tru tu ra s da nova ig reja de pasto res (Amts- u n d P a s to re n k irc h e ), fru to da Re form a n a época da ortodoxia. A com unidade, como “povo de D eus” , foi questionada. Mas no século X IX o pietism o desembocou no m ovim ento de reavivam ento (E rw eckungsbew egung), o qual, sob a influência de elem entos ortodoxos, se tran sfo rm o u no neoconfes- sionalism o, dando nov am ente u m g rand e peso ao cargo de p asto r
( P f a r ra m t) .
T am bém neste caso se n o ta o paralelism o com a situ ação sócio- política da E u ro p a dos prim eiros decênios do séc. X IX, cara cterizad a pela “S a n ta A liança” das três águ ias p reta s: Á ustria-P rússia-R ús- sia, criado po r M ettern ich p a ra m a n te r a ordem re s ta u ra tiv a im p la n ta d a pelos príncipes d a velha estirpe no Congresso de V iena e p a ra defender esta ordem m o n árq u ica que apela pelo princípio m edieval do G o tte sg n ad e n tu m (legitim ação do cargo d um p rín cipe ou rei “pela g raça de D eus” ) c o n tra as aspirações d u m a so beran ia do povo. No setor c u ltu ra l e sta reviravolta em direção a ideais da Idade M édia cristã é aco m p an h ad a pelo R om antism o, en q u an to que as Resoluções de K arlsb ad de 1819 com eçam no â m bito da Confederação G erm ân ica com u m a repressão sócio-política que lem bra os piores abusos do absolutism o.
Não o b stan te re su lta impossível rep rim ir as forças liberais de pois da Revolução F rancesa, tam pouco n a igreja evangélica. As aspirações pelo constitucionalism o no cam po político são acom pa n h ad as por reivindicações, p a ra u m a ordem sinodal da igreja, co mo contrapeso c o n tra direções de ig rejas em m ãos dos príncipes e seus respectivos m inistros, que significam u m a com pleta depen dência das igrejas p ro te sta n te s do poder estatal. E sta dependência, porém , foi defendida por teólogos do necconfessionalism o, de modo que A ugust V ilm ar ( t 1868) afirm a ver p assar o diabo co rporal m ente ap enas ouvindo a p alav ra sínodo!
Alunos dos sem inários de Missão do m ovim ento de reaviva- m ento e do neoconfessionalism o é que se c o n stitu íra m no co n tin gente p rin cip al de pastores que se d irig iram às com unidades de em ig rantes alem ães evangélicos no Brasil. Eles, e m u itas vezes tam bém pastores de form ação acadêm ica, sob in flu ên cia do neo confessionalism o, te n ta ra m fu n d a m e n ta r a au to rid ad e do cargo eclesiástico n as com unidades fu n d ad as nos moldes de sociedades (V ereine), e isso como u m a grand eza necessária p a ra a salvação (das A m t ais heilsnotw endige G rõsse). C onfrontados com a m en talidade de m em bros de sociedades, n em todos lo g raram esse alvo. A lguns fo ram considerados m eros criados (K nechte) das com u nidades (cf. as F reig em ein d e n ). Mas a m aioria, com o tem po, soube im por a dignidade do seu cargo, chegando a u m a divisão de po deres com o presbitério: os assun tos ad m in istrativ o s são d a com petên cia dos presbíteros, os teológicos d a com petência do p asto r cujo ofício assim se lim ita à c u ra de alm as e ao cuidado pela eternidade.
Não houve um entusiasm o pelo princípio do sinodalism o. As com unidades, com a m entalidade de sociedades, qu eriam m a n te r sua independência, e os pastores eram pouco a favor da criação de sínodos, seja devido à sua form ação teológica, seja p a ra evi ta r q u alq u er subordinação. P asto r R o term un d, po r exemplo, in i cialm ente advogou a im itação da situação da ig reja n a A lem anha e por isso, em 1885, fez u m a solicitação p a ra a Assembléia Nacio nal, pedindo a criação de um consistório e sta ta l p a ra suas com u nidades de São Leopoldo e Lom ba G rande! O fracassado “Pré- Sínodo” de 1868 qu eria ligar-se com a ig reja e s ta ta l d a P rússia, ligação que buscou depois tam b ém o Sínodo R iograndense, defi n itiv am en te fundado em 1886, fato que m o stra que os pais deste sínodo, n ão por razões teológicas m as p red o m in an tem en te por r a zões p rá tic a s e técnicas, o p ta ra m pelo princípio sinodal! D aí que a adoção do modelo sinodal não im pediu o desenvolvim ento de um a ig reja de pastores.
6) A pesar de que já desde a R eform a se reconhece o condicio n am en to histórico d a constituição d a ig reja não se ousou a b a n donar o modelo d a ig reja de pastores depois da estru tu ra ç ã o da IECLB em 1968.
Agora não cabe dúvida de que o modelo da ig reja de pastores, modelo que não m ud a atrav és da cooperação p red o m in an tem en te a d m in istrativ a de “leigos” , é u m a cópia ru im do modelo católico
rom ano d a ig reja e s tru tu ra d a h ierarq u icam en te. Até a Ig reja Ca tólica já está efetu and o m odificações p arciais neste modelo; a p a r tir d a sen h a redescoberta do “povo de D eus” , desde o Concílio V aticano II, ela está organizando os assim cham ados leigos n a ig reja e lhes dá participação , seja n a fo rm a de grupos de base, seja n as assem bléias do povo de Deus. E tam b ém tr a t a de elevar o nível da conscientização c ristã dos m em bros atrav és dos famosos C ursilhos de C ristan d ad e que co n stitu em u m elem ento com pleta m ente novo no catolicism o latino-am ericano. O im p o rta n te é que estes C ursilhos de C ristan dade n ão se lim ita m a d o u trin a r conhe cim entos catequéticos m as conscientizar a tu rm a pelos problem as sociais de hoje atrav és de u m a atualização da fé cristã, daí a opo sição do bispo de Campos, D. A ntonio de C astro de M ayer e dos seus adeptos desde G ustavo Corção até a Sociedade B rasileira de Defesa da T radição, F am ília e P ropriedade, cujos jovens correm ao som de m úsica de alto -falan tes pelas ru as das nossas cidades, p a ra defender o catolicism o trad icio n al e inofensivo p a ra a sociedade estabelecida!
D iante do exem plo católico de esforço de reform a, e desde que em círculos p ro te sta n te s são legião as lam entações sobre a ine ficiência d a ig reja de pastores, está n a h o ra de refletirm os sobre a form a de nossa igreja. F o rm a, aqui, deve ser en ten d id a em seu sentido m ais am plo, não se referind o ap enas à lid eran ça da co m unidade, m as tam b ém às form as de culto e a todos os tipos de tra b a lh o com unitário.
7) Todas as idéias sobre u m a re-estru tu ração d a ig reja e de suas form as de tra b a lh o tê m que levar em consideração as in dica ções do NT e as experiências feitas com modelos históricos de Ig re ja. Não existe u m a fo rm a ideal de igreja. M as ela se deveria con fig u ra r de ta l m a n eira que corresponda ao m áxim o ao sen tid o
(G ehalt) de su as designações no NT como “povo de D eus” , “ir m ãos”, “sacerdócio g eral” , etc., e isso d en tro das possibilidades perm itidas pela situ ação histórica.
Os p ietistas en tre nós é que tê m o m érito de nos lem b rarem co n stan tem e n te do fato de que a igreja o rg an izad a não pode ser id ên tica com o “povo de D eus” . Nisto eles rep resen tam a h eran ç a de Lutero. No e n ta n to , eles po r su a vez tam b ém precisam se lem b ra r de que o “povo de D eus” tam pouco pode con stituir-se visivel m en te de grupos de “convertidos” ! A ntes a ig reja organizada, vi sível, deve ser sem pre de novo co n fro n tad a com o “povo de D eus” como “corpo de C risto” , com o qual aqu ela deveria coincidir; em bora n u n c a se chegue a esta coincidência com pleta, a igreja visível não perde su a razão de ser, pois a certeza que a fé nos dá de que Deus n ão deixa su a p alav ra v o ltar vazia (Is 55, 11), nós dá a confiança de que n a ig reja o rganizad a sem pre existe e o p era o “povo de D eus!”
Q uando pensam os n a situação h istó rica de hoje como cam po de referências p a ra u m modelo de ig reja se nos a p re se n ta a so ciedade dem ocrática, alm ejad a até pelo a tu a l governo brasileiro,
conform e o discurso do P residente Médici por ocasião do aniv ersá rio da assim c h am ad a “Revolução D em o crática” de 31 de m arço de 1964.
A sociedade dem ocrática caracteriza-se pela em ancipação (M ün- digkeit) dos cidadãos, pela participação de rep resen tan tes eleitos n as decisões em níveis diferentes, pela busca de ju stiç a social, su peran do a rígida separação de cap ital e m ão-de-obra, pelo respeito dos direitos h u m an es, por u m sistem a educacional acessível p a ra todos os cidadãos, que leva a pessoa h u m a n a a u m elevado g rau de libertação atrav és da conscientização dos reais problem as da sociedade, etc.
Logicam ente a criação de u m a sociedade dem ocrática n as con dições existentes neste país exige u m prolongado processo educa cional em m uitos níveis. E n tre ta n to n ão se pode ed ucar o hom em p a ra su a em ancipação n u m a sociedade dem ocrática e ao mesmo tem po ig n o rar esta em ancipação n a igreja! A igreja deveria ofe recer am plo espaço de p articip ação n as decisões p a ra pessoas em an cipadas. Ela não se deveria excusar por n a d a fazer n este cam po por falta de pessoas em ancipadas e m aduras! Ao contrário, tem
o dever de tomar ela mesma a iniciativa para a formação e edu cação de homens maduros e emancipados porque o Evangelho visa a uma libertação do homem com corpo e alma e não apenas a uma salvação transcendental da alma!
O que ag ora se p ra tic a n a nossa ig reja n ão vai além de for m as dem ocráticas n u m sentido p u ram e n te form al. O fato de al g um a decisão ser to m ad a n u m grêm io eleito d em o craticam ente ain da não significa que exista u m processo am plo de conscientiza ção n a igreja; que problem as de alcance como a nossa posição fren te a este Estado, à pro blem ática social, à d etu rp ação dos di reitos hu m an o s atrav és de cen sura, to rtu ra s, etc. sejam discutidos desde a base até a cúpula, o que caracteriza u m a dem ocracia m a terialm en te palpável e da qualidade “m o ral”. Só assim nossa igreja pode d a r su a p a rte de colaboração n a criação de u m a sociedade m ais ju sta , n a libertação no sentido da superação de e s tru tu ra s au to ritá ria s, incontroláveis e opressoras.
A diferença en tre o “povo de D eus” realm en te reunido e u m clube ap enas ad m in istrad o segundo su a constituição não se m os tr a em floreios e frases pias, n a aplicação do títu lo “irm ão ” sem u m a a titu d e v erd adeiram ente fra te rn a l, nem n u m co m portam ento dem ocrático apenas form al dos grêm ios de lid eran ça eclesiástica, e sim no respeito mútuo de pessoas m a d u ra s e em ancipadas, n a
disponibilidade de todos os membros de p a rtic ip a r n a vida da
igreja, de critica r e de s u p o rta r tam bém críticas de outros, numa
nova estrutura que visa ao diálogo em m uitos níveis sem abolir
n u m a a titu d e de e n tu sia sta os cargos necessários p a ra a lid eran ça e adm in istração da igreja. O povo de Deus distingue-se pelo amor
mútuo de testem unhas e servos do mesmo Senhor.
P a ra fin alizar só quero ch a m a r a aten ção p a ra a necessidade de refo rm u lar tam b ém os cultos, p a ra não fala r de o u tra s ativ i dades eclesiásticas, segundo o modelo d a sociedade dem ocrática,
já que foi m ostrado que o culto trad icio n al corresponde a u m es quem a de sociedade de elites sociais hoje superado ou pelo menos em fase de superação. A reform ulação tem que ser p ro fun da, vi sando ao diálogo d a com unidade, à com unhão dos m em bros em refeições com S a n ta Ceia, a u m a confiança m aior do carism a a tu a l de Deus n a realização do culto, tra ta n d o de conscientizar cada vez m ais a ta re fa tríplice d a com unidade nos cam pos de testem u
nho, comunhão e diaconia.
Notas:
Desistimos deliberadamente duma ampla bibliografia, mas queremos recomendar alguns títulos para maior aproveitamento:
Para 1) Ernst Käsemann, Der Ruf der Freiheit, Tübingen — 3.a ed., 1968. 2) Leonhard Goppelt, Die Apostolische und Nachapostolische Zeit,
em: Die Kirche in ihrer Geschichte ed. por K. D. Schmidt e Ernst Wolf, vol. I, parte A, Göttingen 1962.
Ernst Käsemann, Amt und Gemeinde im NT, em: Exegetische Versuche und Besinnungen, vol. I, pp. 109ss.
4) Hans Schulze, Demokratisierung Gottes, em: Lutherische Monats hefte 1973, pp. 132ss.
Em geral: Adolf Martin Ritter, Gottfried Leich, Wer ist die Kirche? Amt und Gemeinde im Neuen Testament, in der Kirchengeschichte und heute, Göttingen 1968, cf. ai a bibliografia.