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Análise da Sentença do Caso Araguaia frente aos critérios da Justiça de Transição no Brasil**

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Academic year: 2021

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Análise
da
Sentença
do
Caso
Araguaia
frente
aos
critérios
da


Justiça
de
Transição
no
Brasil**

Lorenzo Brunelli Casagrande*1

RESUMO:

Entre os anos de 1972 e 1974, foi empreendido no Brasil um dos eventos mais cruéis de sua história. Em pleno período de maior repressão no país um grupo de jovens, integrantes do partido comunista do Brasil organiza um movimento de oposição armada ao regime militar, que se concentra no interior do país em uma áreas rural, próxima ao rio Araguaia. Este grupo foi eliminado pelo governo militar que realizou operções militares na região. Até hoje as informações sobre o ocorrido são desencontradas e não se sabe ao certo o que de fato ocorreu e qual é o paradeiro das vítimas, ou de seus restos mortais. O governo brasileiro reconheceu sua responsabilidade sobre o acontecido, porém em relação a informação e obtenção dos corpos destas vítimas nada mudou, e o sofrimento para suas famílias continua o mesmo. Devido a interpretação que se dá a Lei de anistia, aprovada durante o regime militar, ainda hoje o Brasil é o único país da região que não responsabilizou criminalmente os responsáveis por este extermínio e por outros atos considerados crimes de lesa-humanidade ocorridos neste período. Estes atos são compreendidos entre os critérios da Justiça de transição que se dedica a analisar a construção de um Estados de direito em Estados que sofreram com regimes autoritários. Com isto a atuação de cortes regionais que visam garantir o cumprimento de normas internacionais de direitos humanos, tem atuado de maneira significante. É o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em novembro de 2010 condenou o Estado brasileiro, pela violação de responsabilidades assumidas ao firmar a Convenção Interamericana de Direitos Humanos. O objetivo deste trabalho é traçar um paralelo entre, os principais conceitos da justiça de transição e a sentença da Corte Interamericana, a fim de se observar se os princípios da justiça de transição foram respeitados por este Tribunal ao proferir a sentença.

Palavras Chave: Justiça de Transição; Direitos Humanos; Sistema interamericano de

Proteção aos Direitos Humanos; Lei de Anistía; Ditadura Militar

RESUMEN:

Entre los años 1972 y 1974, se llevó a cabo en Brasil uno de los más crueles acontecimientos de su historia. En el período en que la represión atingió sus niveles más grandes en el país un grupo de jóvenes, miembros del Partido Comunista de Brasil organizo un movimiento de oposición armada contra el régimen militar, que se centró en el campo en un área rural cerca del río Araguaia. Este grupo fue eliminado por el gobierno militar que realizó varias operaciones militares en la región. Hasta ahora, las informaciones sobre el incidente son incompatibles y no hay certeza sobre lo que sucedió realmente y cuál fue el destino de las víctimas o sus restos mortales. El










*
Graduando
do
Curso
de
Relações
Internacionais
da
UNIVALI.


(2)

gobierno brasileño ha reconocido su responsabilidad por lo sucedido, pero en relación a la información y al recogimiento de los cuerpos de las víctimas no ha cambiado, y el sufrimiento a sus familias sigue siendo el mismo. Debido a la interpretación que se ha hecho sobre la ley de amnistía, aprobada durante el régimen militar, hoy en día Brasil es el único país de la región a no culpar penalmente responsables de este asesinato y otros actos considerados crímenes de lesa humanidad ocurridos durante este período. Estos actos se incluyen entre los criterios de la justicia transicional que se dedica a analizar la construcción de un imperio de la ley en los estados que han sufrido los regímenes autoritarios. Con esto, la acción de los tribunales regionales para garantizar el cumplimiento de normas internacionales de derechos humanos, se ha vuelto una importante herramienta de protección actuado de una manera significativa por la protección de estos derechos. Esto se aplica a la Corte Interamericana de Derechos Humanos, que en noviembre de 2010 condenó al gobierno brasileño, por la violación de las responsabilidades asumidas en la firma de la Convención Interamericana de Derechos Humanos. El objetivo de este proyecto es trazar un paralelo entre los principales conceptos de la justicia transicional y la decisión de la Corte Interamericana, con el fin de observar el respeto a los principios de la justicia de transición al elaborar la sentencia.

Palabras Clave: Justicia de Transición; Derechos Humanos; Sistema interamericano de

Protección a los Derechos humanos; Ley de Amnistía; Dictadura Militar

1. INTRODUÇÃO

Entre os anos de 1972 e 1974, foi empreendido no Brasil um dos atos mais cruéis da história recente do país. Em pleno período mais duro da repressão brasileira, os chamados “anos de chumbo”, fugindo da grande violência encontrada nas cidades promovidas pelos aparelhos repressivos do Estado, um grupo de jovens integrantes do PC do B composto por 70 pessoas, se instalou as margens do Rio Araguaia, onde hoje é a divisa entre os Estados do Tocantins e Pará. O objetivo deste grupo era instalar um foco de luta armada contra o regime. Esses jovens conviveram durante anos com os camponeses da região, em um convívio pacífico onde ensinavam a estes métodos de agricultura e de proteção a saúde. Em 1972 as atividades deste grupo, denominado de Guerrilha do Araguaia foram descobertas pelo Estado, que iniciou pesadas investidas armadas contra o grupo a fim de exterminá-lo. Essas ações foram realizadas ao longo de dois anos, sendo que a final de 1974 já não existia nenhum membro da Guerrilha na região.

O Brasil é o único país da região sul que não realizou medidas de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pelo cometimento destes, e de outros crimes graves, considerados crimes de lesa-humanidade. Considerados itens fundamentais para o estabelecimento de uma justiça de transição completa, de um Estado autoritário, a um

(3)

Estado democrático de Direito. Tendo em vista esta realidade, em que o país mesmo depois de seu retorno a democracia, não garante as famílias das vítimas seus direitos básicos como informação e justiça, Organizações Civis e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entraram com uma demanda contra o Estado brasileiro frente a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Em novembro de 2010, a Corte condenou o Brasil pela violação de obrigações assumidas pelo Estado, quando da assinatura da Convenção Americana sobre direitos humanos. A Corte, ao pronunciar as suas sentenças leva em consideração os princípios contidos nos tratados de direitos humanos assinados pelo Estado no âmbito da Organização dos Estados Americanos. Ao se fazer a vigília quanto o cumprimento destes princípios, que geram no Estado signatário, obrigações para com seus cidadãos a Corte Interamericana cumpre grande papel na promoção dos direitos humanos no continente.

O presente artigo tem por objetivo analisar a sentença proferida pela Corte frente aos princípios da Justiça de Transição. A fim de identificar, caso sejam cumpridas as disposições proferidas pela Corte, se Brasil conseguirá satisfazer as demandas de respeito aos direitos humanos das vítimas do regime militar, se adequando assim a uma realidade democrática e justa.

2. O QUE É A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

2.1. A Justiça de Transição e a Evolução dos Direitos Humanos

Um dos objetivos centrais da Organização das Nações Unidas (ONU) desde a sua criação sempre foi o estabelecimento de um sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Este sistema, conforme proposto no artigo 1.3 da Carta de São Francisco2, deveria promover e estimular o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais de todos, sem distinção por motivos de raça, sexo, idioma ou religião. O primeiro órgão encarregado do tema no âmbito das Nações Unidas foi a Comissão de direitos humanos, fundada em 1946 com o intuito de estabelecer a estrutura jurídica internacional que protege os direitos e liberdades fundamentais abrigados pelos tratados internacionais. Inicialmente o mandato da Comissão não lhe conferia autoridade para a










(4)

emissão de qualquer opinião sobre denúncias de violações de direitos humanos que viesse a tomar conhecimento. Nesse período, porém, foram assinados importantes tratados internacionais que definiriam os direitos humanos e passariam a ser a base normativa internacional sobre o tema. Dentre estes tratados está a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em 1948. Segundo José Augusto Lindgren Alves, estes direitos passaram a ter características de conteúdo jurídico e caráter obrigatório através da elaboração do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos3 (PDCP) e do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais4 (PDESC).

Desde a criação dos Organismos acima mencionados, vários países já coincidiam quanto a necessidade do estabelecimento de mecanismos de controle, para garantir a implementação destes instrumentos. Isto ocorre em dois âmbitos distintos, um deles referente ao PIDCP, com a criação do Comitê dos Direitos Humanos. Por sua vez a Comissão recebeu do ECOSOC5 a recomendação para tratar de violações dos direitos

humanos, especialmente sobre o caso do Apartheid na África do Sul, e em territórios de ocupação estrangeira. (ALVES, 1994)

O conceito de Justiça de transição é difícil de definir uma vez que não há como estabelecer uma norma geral para ser cumprida pelos países, pois trata-se um conceito amplo e plural que adequa-se ao contexto histórico dos países que passam por esta situação. (DE BRITTO, 2009; MEZAROBA, 2009). Tampouco este é o objetivo deste estudo. O que se pretende é estabelecer alguns pontos em que estudiosos e pesquisadores coincidem e defendem, com base nas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como objetivos básicos a serem atingidos, entretanto, o método que os Estados devem adotar para a execução de tais fins cabem a cada um, de acordo com o tipo de regime que cada Estado sofreu. A justiça de transição tem como objeto de estudo justamente os métodos adotados pelos Estados e pela sociedade civil no intuito de agir em relação às violações de direitos humanos cometidas durante um regime de exceção, para que se possa construir um Estado democrático e reduzir ao mínimo a possibilidade de repetição deste tipo de regime e das atrocidades cometidas nele, com a finalidade de que este país possa viver em paz e com justiça.










3
Adotado
pela
XXI
Sessão
da
Assembléia‐Geral
das
Nações
Unidas,
em
16
de
dezembro
de
1966.
 4
Adotado
pela
XXI
Sessão
da
Assembléia‐Geral
das
Nações
Unidas,
em
19
de
dezembro
de
1966.
 5
Conselho
Econômico
e
Social,
órgão
sob
a
qual
a
Comissão
de
Direitos
Humanos
está
subordinada.


(5)

2.2. Contexto Histórico da Justiça de Transição

Ao traçar um levantamento sobre a justiça de transição, ou justiça transicional, no mundo se pode observar suas primeiras atuações na Europa, no período pós II Guerra Mundial com o tribunal ad hoc de Nuremberg, que julgou integrantes do regime nazista responsáveis por cometer crimes contra a humanidade. Além de Nuremberg, ocorreram julgamentos na própria Alemanha e em outros países afetados pelo conflito. Logo, em uma segunda iniciativa ocorreu em países como Grécia, Portugal e Espanha, que tiveram de lidar com problemas internos como golpes de Estado e ditaduras militares. Ainda na Europa, na década de 90, houve um movimento nos países do Leste, como Hungria, Bulgária e Romênia, com o intuito de alterar algumas das medidas adotadas pelos regimes comunistas que ocuparam a região. (DE BRITO, 2009).

Na África, onde houve, e ainda há muitos focos de guerras civis, sendo que muitos destes envolvendo conflitos étnicos. A atuação de organismos internacionais foi fundamental para implementação de políticas transicionais. Em alguns casos esta situação ocorreu com o próprio objetivo de “construção do Estado”, uma vez que a crença em instituições políticas e a própria noção de Estado eram muito fracas. (DE BRITO, 2009)

Na América Latina estes movimentos se iniciaram em meados dos anos 80 início dos 90, com o fim dos regimes ditatoriais do continente. Porém a política adotada para a transição foi diferente em muitos destes países. Em se tratando de Justiça, houve julgamentos que partiram por iniciativa dos próprios governos, como caso da Argentina e da Bolívia. Ainda na Argentina e em outros países como Chile, Equador e Paraguai as iniciativas para execução dos julgamentos partiram de organizações de defesa dos direitos humanos ou por queixas de indivíduos. Ainda houve outro tipo de tratamento como o adotado por Brasil e Uruguai que estabeleceram anistias, tanto seletivas como gerais. (DE BRITO, 2009). Pode-se atestar desta maneira que a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o fim da guerra fria foram um marco no contexto da justiça de transição. Pois a partir do final da década de 80 as políticas de transição para a democracia passaram a se pautar pelas violações de direitos humanos e não mais por violações de justiça, desta maneira passando a ser foco de atenção do direito internacional dos direitos humanos e de seus tratados. (BASTOS JUNIOR e GUENKA CAMPOS,2009.)

(6)

A concepção de justiça de transição pode ser compreendida, portanto, a partir de quatro pilares: o primeiro é a Justiça, que tem por escopo identificar, processar e punir os agressores; o segundo é a busca da verdade dos fatos ocorridos durante o regime autoritário; o terceiro consiste na reparação, entendida tanto como no sentido de indenização das vítimas, como no de criação de monumentos e museus registrando os fatos ocorridos, assim como em pedidos oficiais de perdão; e, por derradeiro, o quarto diz respeito a reformas institucionais e à criação de instituições comprometidas com o ideal democrático. ( BASTOS JUNIOR; GUENKA CAMPOS, 2010. Pg.297)

2.3. Conceito

Paul Van Zyl, define a justiça de transição como o “esforço para construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos”. (VAN ZYL, 2009 p.32.) Agregadas a esta definição os objetivos das políticas transicionais de buscarem a justiça, materializam-se da seguinte forma: 1) no fornecimento de reparações as vítimas dos regimes; 2) na revelação de crimes passados; 3) no processamento de perpetradores do regime, assim como, se necessário, 4) na reforma ou extinção de instituições que sirvam aos fins dos governos ditatoriais, visando promover a reconciliação dentro do Estado. Pode-se afirmar, portanto, que os objetivos da política de transição são na verdade deveres do Estado em garantir o respeito aos direitos de seus cidadãos. (VAN ZYL, 2009). Estes deveres podem ser qualificados como quatro princípios, ou quatro direitos que devem ser preservados em qualquer processo que envolva a justiça de transição, que são: a reforma das instituições para a democracia; o direito à memória e à verdade; o direito à reparação e por fim o direito ao igual tratamento legal e à justiça. (ABRÃO e BELLATTO, 2009) Flávia Piovesan afirma que:

Ao direito a não ser submetido à tortura somam-se o direito à proteção judicial, o direito à verdade e o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese de violação de direitos humanos. Vale dizer, é dever do Estado investigar, processar, punir e reparar a prática da tortura, assegurando à vítima o direito à proteção judicial e a remédios efetivos. Também é dever do Estado assegurar o direito à verdade, em sua dupla dimensão -- individual e coletiva – em prol do direito da vítima e de seus familiares (o que compreende o direito ao luto) e em prol do direito da sociedade de construção da memória e identidade coletivas.(PIOVESAN, 2009. Pg.180)

(7)

Na última década se observa um amplo crescimento do debate sobre políticas de transição, fato este corroborado pela ação de organismos como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Comitê dos Direitos Humanos que acabaram por formular padrões sobre as obrigações dos Estados, principalmente no que diz respeito ao enfrentamento de violações dos direitos humanos. Em 23 de agosto de 2004 a ONU apresentou um relatório sobre “o Estado de Direito e a Justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito”6 onde atenta para a necessidade do fortalecimento do Estado democrático de direito, articulando uma linguagem comum de justiça a todos. Ainda neste relatório as nações unidas definem a justiça de transição como:

conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem conta de seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. (ONU, 2004)7

Somado a estas obrigações legais vinculantes como fator impulsionador para a justiça de transição, percebe-se o fortalecimento da democracia e dos direitos civis e políticos em sociedades antes não acostumadas a defesa destes valores. Estes valores, acima mencionados, formam os elementos-chave da justiça de transição. Como atentam Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling:

o julgamento de violações de direitos humanos pode também contribuir para reforçar o Estado de Direito, como ocorreu na Argentina. (...) os cidadãos comuns passam a perceber o sistema legal como mais viável e legítimo se a lei é capaz de alcançar os mais poderosos antigos líderes do país, responsabilizando-os pelas violações de direitos humanos do passado. O mais relevante componente do Estado de Direito é a ideia de que ninguém está acima da lei. Desse modo, é difícil construir um Estado de Direito ignorando graves violações a direitos civis e políticos e fracassando ao responsabilizar agentes governamentais do passado e do presente. (...) Os mecanismos de justiça de transição não são apenas produto de idealistas que não compreendem a realidade política, mas instrumentos capazes de transformar a dinâmica de poder dos atores sociais. (SIKKINK, K.; WALLING, C.B.

apud PIOVESAN, 2009. Pg. 185) 






 6
ONU.
Relatório
sobre
o
Estado
de
Direito
e
a
Justiça
de
transição
em
sociedades
em
conflito
ou
pós‐ conflito,
2004.
 7
Idem
6.


(8)

Este estudo nos permite observar que o estabelecimento de uma política fundada na justiça de transição deve agir em vários âmbitos. Tanto no julgamento dos responsáveis por crimes contra os direitos humanos, como no estabelecimento de comissões de verdade, dando voz as vítimas do regime em programas de reparação que atuem no sentido de amparar quem sofreu e conscientizar aqueles que não viveram o período de terror. Estas são políticas complementares e devem coexistir para garantir uma maior abrangência em relação ao cumprimento de seus objetivos. Papel vital exerce a sociedade civil neste aspecto, como vigilantes para que estas políticas tenham metas concretas e não sejam meramente decorativas. (VAN ZYL, 2009).

Mais uma vez parafraseando Sikkink e Booth a Justiça de transição está compreendida como, o direito à verdade, o direito à justiça, o direito à reparação e reformas institucionais (WALLING; BOOTH apud PIOVESAN, 2009) A seguir, se utiliza esta definição para esclarecer cada um dos pontos considerados fundamentais para a realização de uma Justiça de Transição completa.

3.4. Direito à Memória e à Verdade

Para muitos estudiosos do tema da justiça de transição, a busca pelo esclarecimento dos fatos, e a apuração das circunstâncias envolvidas nas violações dos direitos humanos é vital. Para autores como Vannuchi, o esquecimento, designado por pactos de silêncio, é parte da estratégia de regimes autoritários, que através da manipulação de concessões mútuas buscam creditar certa parcela de benefícios aos perseguidos políticos (a ponto) de manter uma distância segura do passado brutal e afastar assim qualquer possibilidade de busca da verdade, garantindo inclusive que esta não se torne conhecida entre as próximas gerações. (VANNUCHI, 2009) Segundo Flávia Piovesan:

O direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da memória coletiva. Traduz o anseio civilizatório do conhecimento de graves fatos históricos atentatórios aos direitos humanos. Tal resgate histórico serve a um duplo propósito: assegurar o direito à memória das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas. (PIOVESAN, 2009. Pg. 184-185)

Evidencia-se neste sentido que a ação do Estado tem como propósito atingir dois âmbitos. O primeiro deles individual, dirigido a família das vítimas, pois tem como principal objetivo o esclarecimento dos fatos e circunstâncias em que seus entes

(9)

queridos foram subtraídos, ou mesmo mortos. A busca por este tipo de informação é da maior importância para a família das vítimas, muitas delas ainda identificadas como desaparecidas, pois somente assim as famílias poderão encerrar um ciclo, e proceder com o seu devido direito ao luto e encerrar uma história que gera dor até os dias de hoje. A segunda dimensão de atuação do Estado na busca pela verdade é coletiva. No sentido de construção de uma identidade nacional. (PIOVESAN, 2009)

Para Paul van Zyl, a conscientização a respeito da verdade sobre as violações de direitos humanos ocorridas e a formação de uma consciência coletiva nacional quanto a não justificação e ilegitimidade destes atos mostram-se imprescindíveis para a prevenção de sua repetição. Pois segundo ele ao se atestar uma versão oficial, reconhecida tanto pelas vítimas, quanto pelos responsáveis pelas violações, contribui-se para que as gerações vindouras estejam cientes da crueldade do passado e possam desta maneira evitar qualquer tentativa de retomada de tais práticas. (VAN ZYL, 2009) Porém, este processo não é simples. Não basta que se tenha acesso a verdade individual de pessoas ligadas aos regimes de exceção. É necessário que Estado elabore políticas voltadas ao conhecimento, e ao reconhecimento, do passado, para que através de um processo cultural se busque e se estabeleça uma verdade que contribua para a formação sólida de uma identidade nacional. (CIURLIZZA, 2009)

Portanto para a construção de uma estabilidade democrática é imprescindível que se conheça a verdade sobre o passado de um país, para que seus erros sirvam como aprendizado, a fim de que se possa atuar no presente para estruturação de um futuro de paz. (BARBOSA; VANNUCHI, 2009) Neste sentido, afirma Paulo Sérgio Pinheiro:

É extremamente difícil consolidar uma democracia política sem que se constitua um sistema sólido de responsabilidade, de responsabilização pública como política do Estado no presente, sem que também valha em relação ao passado. ( PINHEIRO, 2009. Pg. 15)

Portanto, a fim de que se promovam a paz e a justiça, como direitos inerentes a todo o ser humano e resguardados nos tratados de direitos humanos, o resgate a memória e a verdade devem ser conjugadas com outras medidas também descritas no tema da justiça de transição. (BARBOSA; VANNUCHI, 2009)

(10)

O direito a reparação é parte da normativa internacional de proteção aos direitos humanos. Uma vez que os direitos fundamentais de um ser humano são desrespeitados, é premissa que esta pessoa receba uma indenização em relação a esta violação. No contexto da justiça transicional, onde a negligência é cometida pelo próprio estado, durante um regime excepcional, faz-se necessário que ao se reconstruir o Estado de Direito, sejam restabelecidos também, os direitos das vítimas deste regime. O direito a reparação nestes casos tem o propósito de corrigir erros do passado.

Saliente-se que esse direito à reparação é consagrado no direito internacional, sendo indispensável à restauração da justiça e da confiança das vítimas no Estado e em suas instituições, bem como à superação das máculas deixadas pelos abusos aos direitos humanos. Assim sendo, “independentemente do sistema de justiça de transição que se adote e dos programas de reparação complementares, as demandas por justiça e paz requerem algum tipo de indenização às vítimas”.(ONU apud BASTOS JUNOR; GUENKA CAMPOS, 2009)

Como bem ressaltado pelos autores anteriormente, a grande finalidade das políticas de reparação é garantir a reinserção das pessoas que foram marginalizadas a época do Estado autoritário, fazendo com que estas possam acreditar que o país, agora democrático, atribui ao Estado o papel de garantidor de seus direitos e não mais uma ferramenta de exclusão e ameaça. Para tanto é necessário, assim como observado em relação ao direito à memória e à verdade, que se adotem ações de cunho individual e coletivo, além de reparações de aspectos materiais e simbólicos. Como intera Paulo Abraão:

As reparações simbólicas “representam uma série de ações orientadas a reconstruir a memória coletiva, o patrimônio histórico e cultural, a fim de restabelecer a dignidade da vítima e da comunidade afetada, recuperando os laços de confiança e solidariedade”21. São medidas adotadas que visam obter

do Estado um gesto de arrependimento e de reconhecimento da ilicitude de seu ato e, ainda mais, da legitimidade do ato de resistência contra ele interposto quando passou a agir contrariamente às disposições legais ilegítimas. (ABRAÃO; CARLET; FRANTZ; FERREIRA; OLIVEIRA, 2009. Pg.120)

Portanto parte-se da premissa que tão importante, ou mais ainda que a distribuição de compensações financeiras, é vital que o sentido de reparação seja com o intuito de se fazer justiça. Justiça com aqueles que resistiram a um regime opressor, e portanto, o reconhecimento destes atos por si só empregam-se como reparação para as

(11)

famílias das vítimas, reintegrando-as de maneira honrosa em uma sociedade a que permaneceram excluídas por muito tempo.(ABRAÃO; CARLET; FRANTZ; FERREIRA; OLIVEIRA, 2009)

Cabe, porém, a ressalva que as reparações financeiras devem atuar para sanar as perdas conseqüentes de abusos por parte do regime opressor, e agir como fator que possibilite as famílias das vítimas, ou as próprias vítimas, se posicionem com dignidade frente a sociedade. A reparação, portanto, deve ser realista de modo que não passe a ser outro motivo de exclusão ou de marginalização daqueles que a receberam como meio de enriquecimento. (VAN ZYL, 2009)

2.6. Direito ao Igual Tratamento Legal (Justiça)

Como se vem reiterando ao longo deste estudo, a Justiça de transição se estabelece através de um conjunto de mecanismos. Estes são complementares uns aos outros e, portanto um país que realize um destes princípios sem prestar atenção aos outros estará descumprindo obrigações internacionais e não estará sanando por completo sua dívida com o seu passado nem com sua população. Este esclarecimento é necessário, pois o direito ao igual tratamento legal, classificado por alguns como direito a justiça, tem a mesma finalidade de reinserção a sociedade, e confiança no Estado como protetor e não como ameaça, por parte das vítimas de um regime opressor. Isto de deve porque o igual tratamento legal é um direito concebido no direito internacional dos direitos humanos, onde se especifica que todo ser humanos tem direito a garantias judiciais. Muito embora Mauro Capelletti tenha antecipado que o acesso à justiça deva ser entendido como “requisito fundamental – o mais básico dos direitos– de um sistema jurídico moderno e igualitário e que pretenda garantir e não apenas proclamar direitos”, ainda são recorrentes as abordagens que identificam no Poder Judiciário a centralização da garantia do acesso à justiça. (CAPELLETTI, apud ABRÃO; CARLET; FRANTZ; FERREIRA; OLIVEIRA, 2009)

O igual tratamento no contexto da justiça de transição, significa que toda pessoa, tendo sido vítima de uma violação de direitos humanos, tem direito a buscar por meios jurídicos a responsabilização dos responsáveis e o reparo de seus danos, ainda mais tendo estes sido cometidos em um cenário de perseguição política e utilização do aparelho estatal para fins obscuros. Portanto quando se trata da transição de períodos de exceção para regimes democráticos, os julgamentos, muito mais do que garantias individuais, quanto a própria vítima ou família da vítima, pode atuar como um

(12)

instrumento cultural e educacional no sentido de demonstrar a população a prioridade do Estado em proteger os direitos humanos como princípio básico deste.(FRISO, 2009)

2.7. Reformas Institucionais

A transição de um regime autoritário, a um Estado de Direito, passa impreterivelmente pela adequação da estrutura institucional do país. É essencial que a organização do Estado democrático esteja de acordo com normas e princípios internacionais, principalmente no que diz respeito a proteção dos direitos humanos. Uma vez que o Estado autoritário tenha feito modificações no ordenamento interno a fim de manipular o sistema a sua mera vontade, para que este pudesse atuar em benefício de seus governantes, é forçoso que o país, para deixar pra trás este passado, expurgue de sua estrutura quaisquer práticas que possam vir a macular a nova proposta do Estado. Segundo Bastos Jr.:

o mecanismo de reforma institucional, que, por sua vez, consiste em uma reforma legal, judicial, policial, penal e militar para impedir a repetição de violações dos direitos humanos e fomentar o Estado de direito.(BASTOS JUNIOR; GUENKA CAMPOS, 2009.Pg. 307)

Desta maneira o que se pretende é o Estado perca completamente o seu caráter repressor, que ainda possa estar presente em seu ordenamento. (REMÍGIO, 2009)Sendo assim, para que se consolide o acesso à justiça é necessário que as instituições sejam apares com as premissas democráticas, inserindo toda a sociedade civil sob o manto dos direitos civis e da justiça. (ABRÃO; CARLET; FRANTZ; FERREIRA; OLIVEIRA, 2009)

Após a análise dos critérios norteadores da justiça de transição, caberá neste momento apresentar a construção histórica dos direitos humanos no sistema interamericano de proteção, para demonstrara forte relação existente entre a consolidação da justiça de transição e a efetiva promoção dos Direitos humanos.

3. A OEA E A EVOLUÇÃO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

A OEA é uma organização internacional criada pelos Estados do continente americano. Foi criada em 1948, durante a Nona Conferência Internacional Americana,

(13)

onde foi adotada a Carta da Organização dos Estados Americanos8. Na mesma data foi

a provada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem9. A Organização

entrou em vigor no ano de 195110. Dentre os propósitos da Organização estão a busca e

manutenção da ordem de paz e justiça, bem como a promoção da solidariedade a defesa das soberanias dos Estados, de sua integridade territorial e sua independência11. Além

disso, a Carta ainda proclama os direitos fundamentais da pessoa humana como princípio básico sob o qual se funda a Organização12. Desde que foi criada a OEA

adotou um conjunto de instrumentos internacionais que acabaram por se converter na base normativa de um sistema regional de promoção e proteção dos direitos humanos. Para tal, ao serem reconhecidos estes direitos foram estabelecidas obrigações aos Estados para a promoção, bem como para a proteção dos mesmos. Como instrumentos regionais de promoção e proteção aos direitos humanos pode-se citar a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

3.1. Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Durante a Quinta Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores realizado em Santiago do Chile em 1959, tendo em vista o fato de que “diversos instrumentos da OEA consagraram e reafirmaram que a liberdade a justiça e a paz têm como base o reconhecimento da dignidade intrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis da pessoa humana”,13 decidiram por criar um projeto de convenção sobre direitos

humanos e sobre a criação de uma Corte Interamericana de proteção dos Direitos Humanos e de outros organismos adequados para a tutela e a observância dos mesmos.14

Para tanto estabeleceu-se na Declaração de Santiago, de 1959 a criação de uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos.








 8
Subscrita
em
Bogotá,
1948
e
reformada
pelo
Protocolo
de
Buenos
Aires
em
1967,
pelo
Protocolo
de
 Cartagena
de
Índias
em
1985,
pelo
Protocolo
de
Washington
em
1992
e
pelo
Protocolo
de
Manágua
em
 1993.
 9
A
Declaração
é
o
primeiro
instrumento
internacional
de
direitos
humanos
de
natureza
geral.
 10
Art.
140
da
Carta
dispõe:
A
presente
Carta
entrará
em
vigor
entre
os
Estados
que
a
ratificarem,
 quando
dois
terços
dos
Estados
signatários
tiverem
depositado
suas
ratificações.[...]
 11
Art.1
da
Carta
 12
Art.
3,
“letra
L”
da
Carta.
 13
Documentos
básicos
em
matéria
de
derechos
humanos
em
el
sistema
interamericano.
Actualizado
a
 junio
de
2010.
OEA
 14
Declaração
de
Santiago
do
Chile
de
12
de
agosto
de
1959.
Ata
Final,
pg.
4‐6
apud
Documentos
básicos
 em
matéria
de
derechos
humanos
em
el
sistema
interamericano.
Actualizado
a
junio
de
2010.
OEA


(14)

A CIDH tem como principal função promover a observância e a defesa dos direitos humanos nas Américas. Dentre as atribuições da Comissão está o recebimento, análise e investigação de denúncias ou petições de pessoas, grupos de pessoas ou organizações em que se alegam violações de direitos humanos, tanto de Estados membros que já ratificaram a Convenção. Além disso, cabe a Comissão elaborar recomendações aos Estados membros da OEA para que estes adotem medidas que contribuam para a proteção dos direitos humanos nos países do hemisfério. Ao longo da tramitação de um caso, a Comissão procura facilitar um acordo entre as partes para que cheguem a uma solução amigável. Caso este acordo não seja aceito por uma das partes e a Comissão entender que houve uma violação dos direitos humanos esta pode levar o caso a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Se o caso não puder ser levado a Corte por algum Estado não ter aceitado a cláusula facultativa de jurisdição obrigatória, instrumento pelo qual os Estados reconhecem a jurisdição da Corte, a Comissão poderá publicar recomendações e conclusões no seu relatório anual.

3.2. Corte Interamericana de Direitos Humanos

A Corte Interamericana de Direitos Humanos foi criada em 1969, junto com a assinatura da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, porém só pôde ser estabelecida e organizada depois da entrada em vigor do tratado. Os primeiros juízes foram eleitos pelos Estados parte em maio de 1979. Os juízes da Corte são indicados pelos seus Estados dentre juristas da mais alta respeitabilidade e competência em matéria de direitos humanos. Dentre os indicados elegem-se sete para um mandato de seis anos, com possibilidade de reeleição uma única vez. A Corte é uma instituição autônoma cujo objetivo é a interpretação e aplicação da Convenção. Para isso a Corte acumula duas funções, uma delas consultiva e outra jurisdicional. Quanto a função jurisdicional, somente os Estados que reconheceram a competência da Corte15 estão

autorizados a submeter à sua decisão casos relativos à interpretação ou à aplicação da Convenção. Este pré-requisito também se faz necessário para apresentar um caso contra um Estado membro. Quanto a função consultiva qualquer Estado membro pode consultar a Corte sobre a interpretação da Convenção ou de algum dos tratados relativos à proteção dos direitos humanos. A Corte também expressar-se sobre a compatibilidade










15
A
30
de
junho
de
2010,
21
Estados
haviam
reconhecido
a
competência
contenciosa
da
Corte,
dentre


(15)

de normas internas destes Estados frente a normativa americana sobre os direitos humanos.

3.3. A Justiça de transição na Convenção Americana de Direitos Humanos

Já em seus artigos iniciais, a Convenção Americana16 estipula que os Estados

signatários devem adequar seus ordenamentos jurídicos internos, de modo que estes venham a garantir o cumprimento dos Direitos Humanos a todas as pessoas que estejam dentro de seus territórios.


Em relação ao que especifica o art. 2º da Convenção17, bem como estipula o

Direito Internacional Consuetudinário, é dever do Estado signatário ajustar seu ordenamento interno de modo que as disposições deste estejam de acordo com seus compromissos internacionais. O art. 2º ainda estabelece que o Estado não deve somente criar leis que estejam de acordo com os tratados internacionais firmados pelo mesmo, bem como derrogar quaisquer leis que sejam contrárias a este. Se tratando da Convenção Americana, o Estado deve garantir o respeito aos direitos humanos. Com estes dois artigos a Convenção, bem como a Corte IDH18 deixam especificado o seu

repúdio a impunidade contra violadores dos direitos humanos.


A Corte IDH define impunidade como “a falta em seu conjunto de investigação, persecução, captura, julgamento e condenação dos responsáveis das violações dos direitos protegidos pela Convenção Americana [...]”.19 A impunidade tratada pela Corte

refere-se aquela em que o Estado atua como protetor dos agentes violadores dos direitos humanos através da cobertura pelo poder público, garantindo que estes não sejam levados a julgamento, muito menos investigados ou castigados. Esta atuação atenta gravemente contra os direitos humanos e contra a Convenção Americana, e é uma








 16
Convenção
Americana
sobre
Direitos
Humanos,
ou
Pacto
de
San
Jose
da
Costa
Rica,
assinado
em
22
 de
novembro
de
1969.
Entrou
em
vigor
em
1978.
 17 O artigo
2.
Da
Convenção
Americana
dispõe:Se
o
exercício
dos
direitos
e
liberdades
mencionados
no
 artigo
1
ainda
não
estiver
garantido
por
disposições
legislativas
ou
de
outra
natureza,
os
Estados
Partes
 comprometem‐se
a
adotar,
de
acordo
com
as
suas
normas
constitucionais
e
com
as
disposições
desta
 Convenção,
as
medidas
legislativas
ou
de
outra
natureza
que
forem
necessárias
para
tornar
efetivos
tais
 direitos
e
liberdades. 
 18
A
Corte
Interamericana
de
Direitos
Humanos
foi
criada
em
1978
com
a
entrada
em
vigor
do
Pacto
de
 San
José
da
Costa
Rica.
A
jurisdição
da
Corte
é
válida
somente
para
Estados
que
reconhecem
sua
 competência.
 19
OEA.
Corte
IDH.
Caso
da
“Panel
Blanca”
(Paniagua
Morales
e
outros)
versus
Guatemala.
Mérito.
 Sentença
de
08
de
março
de
1998.
CIDH


(16)

pratica freqüente se tratando dos resquícios das ditaduras na América Latina. Além de atentado contra as normas este tipo de comportamento do Estado torna-se um risco para toda a sociedade, pois envolve os violadores em uma espécie de redoma onde a lei não os alcança, o que acaba gerando a consciência da impunidade, e com isso possíveis repetições de tais crimes.


3.4. As violações e a questão da impunidade

A questão da impunidade assume outras proporções quando se tratam de crimes considerados de lesa-humanidade, que são os considerados de maior gravidade contra os direitos humanos. Segundo Nikken, “trata-se de atentados que se contrapõem a uma proibição absoluta e que ofendem em tal grau a consciência universal que sua punição é obrigatória.” (NIKKEN, 2009. Pg.262). A corte estabelece como crimes deste caráter a tortura e o desaparecimento forçado, bem como reafirma o dever do Estado, no caso da existência destas violações, de investigar e punir os responsáveis.


No mesmo sentido de combate a impunidade surge no Sistema Interamericano à questão do direito a verdade, ainda que não esteja presente no texto da Convenção, a Corte afirma que, “o direito à verdade está incluído no direito da vítima ou seus familiares a obter dos órgãos competentes do Estado o esclarecimento dos fatos violadores e as responsabilidades correspondentes, através da investigação e o julgamento previstos nos artigos 820 e 2521 da Convenção.”22. Já o Escritório do Alto

Comissariado de Direitos Humanos23 no ano de 2007 preparou um relatório sobre o

direito a verdade onde afirma que, “o direito à verdade é um direito individual que presta assistência tanto às vítimas como a seus familiares, porém também tem uma dimensão coletiva e social” (ONU, parágrafo 83, 2004). Esta dimensão coletiva e social ocorre no sentido de reencontro do Estado com a sociedade civil, através de uma relação








 20

O
artigo
8.
1
da
Convenção
Americana
dispõe:
Toda
pessoa
tem
direito
a
ser
ouvida,
com
as
devidas
 garantias
e
dentro
de
um
prazo
razoável,
por
um
juiz
ou
tribunal
competente,
independente
e
imparcial,
 estabelecido
anteriormente
por
lei,
na
apuração
de
qualquer
acusação
penal
formulada
contra
ela,
ou
para
 que
se
determinem
seus
direitos
ou
obrigações
de
natureza
civil,
trabalhista,
fiscal
ou
de
qualquer
outra
 natureza. 21O
artigo
25.1
da
convenção
Americana
dispõe:Toda
pessoa
tem
direito
a
um
recurso
simples
e
rápido
 ou
a
qualquer
outro
recurso
efetivo,
perante
os
juízes
ou
tribunais
competentes,
que
a
proteja
contra
atos
 que
violem
seus
direitos
fundamentais
reconhecidos
pela
constituição,
pela
lei
ou
pela
presente
Convenção,
 mesmo
quando
tal
violação
seja
cometida
por
pessoas
que
estejam
atuando
no
exercício
de
suas
funções
 oficiais. 22
Caso
Barrios
Altos
versus
Peru.
Mérito.
Sentença
de
14
de
março
de
2001.
CIDH
 23

Principal
órgão
encarregado
do
tema
no
âmbito
das
nações
unidas.


(17)

de confiança. A partir do momento que o próprio Estado julga seus agentes, demonstra as prioridades de suas políticas, sendo neste caso o cidadão que tem seus direitos violados, parte essencial na reaproximação e reunião nacional.


Porém o que ocorre muitas vezes é a busca pelo não enfrentamento com o passado, sob as mais variadas alegações, muitas delas de caráter jurídico, que tentam desclassificar a responsabilização destes criminosos alegando que ao fazê-lo, o Estado estaria infringindo normas jurídicas internas. Nesse sentido, é motivo de grande atenção do sistema interamericano a prática das anistias. Na região da América do Sul, marcada por ditaduras durante a década de 70, essa prática se tornou comum, porém sob a manipulação dos governos autoritários que faziam desta uma maneira de proteção quanto a possíveis punições futuras. A seguir se apresentará o conceito de anistia e a maneira que esta prática vem sendo tratada na sistema interamericano.


3.5. Conceito de Anistia

O conceito de anistia não é unanimidade entre os pesquisadores e estudiosos do tema, se adotará o conceito utilizado por Swensson Junior, que define anistia como:

atos legislativos do Poder Público que extinguem as conseqüências punitivas de uma condenação penal total ou parcialmente; que declaram a impossibilidade de se aplicar no futuro ou de continuar sendo aplicada a sanção penal para determinados casos ou então são atos que diminuem a intensidade da sanção. (SWENSSON, 2010)

Ainda segundo Swensson, este dispositivo legal é encontrado hoje em quase todas as Convenções do mundo. A anistia não é uma ação benevolente do Estado, mas sim um acordo que serve a uma finalidade, este acordo é, portanto, o desfecho de uma negociação entre o Estado e parte da sociedade civil interessada nesta prática, que estabelece a renúncia à imposição de sanções ou nulifica as que já tenham sido declaradas. Além disso, impede a própria investigação dos crimes que tenham sido anistiados. O problema encontrado na questão da anistia é quando esta é manipulada por governos autoritários, a fim de eximirem da culpa pelo cometimento de crimes contra a humanidade. Tendo em conta este fato, a Corte Interamericana, tem atentado em sua jurisprudência estes fatos, a fim de demonstrar os casos em que as anistia atua como uma continuação dos crimes, ao menos no sentido da injustiça cometida com a família

(18)

das vítimas dos desaparecidos políticos. Neste sentido se explica o que é chamado pela Corte de autoanistias, que é descrito a seguir.

3.6. A questão das Autoanistias

Algumas destas tentativas de fuga de atribuição de responsabilidade se dão através de anistias e alegação de prescrição dos crimes cometidos. Quanto a estes trâmites legais a Corte ressalta muito bem em sua jurisprudência que os crimes considerados de lesa-humanidade são considerados normas de ius cogens24 e que

portanto “estas instituições jurídicas não são aplicáveis às violações mais graves dos direitos humanos”.(NIKKEN,Pedro. 2009. Pg.267). Justamente pelo fato de muitos crimes cometidos na época das ditaduras latino-americanas assumirem o caráter de crimes de lesa-humanidade, pois foram cometidos em um contexto em que se fazia o uso do aparelho estatal para perseguir membros da sociedade civil considerados uma ameaça ao governo vigente, as alegações levantadas como impedimento a responsabilização dos atores destes delitos não é aplicável. 


Neste mesmo sentido a Corte faz referência ao modelo de anistias que foi praticado na América Latina nos anos 80, quando muitos países do continente transigiram de um governo ditatorial para a democracia, onde os governantes da época fizeram uso de seu poder para deturpar o instrumento da anistia, e para usá-la de maneira a se eximirem contra possíveis acusações pelos crimes cometidos por membros de seus governos, ou até mesmo pelos próprios governantes. A este modelo a Corte dá o nome de autoanistias. Porém contra este tipo de prática a Corte estabeleceu, no caso Barrios Altos que: 


São inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e a punição dos responsáveis das violações graves dos direitos humanos tais como a tortura, as execuções sumárias, extralegais ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados, todas proibidas por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”.25 (OEA. Corte IDH.Caso Barrios Altos versus Peru. Mérito.

Sentença 14 de março de2001. ) 











24
Segundo
a
Convenção
de
Viena,
art.
53
[...]uma
norma
aceita
e
reconhecida
pela
comunidade


internacional
dos
Estados
como
um
todo,
como
norma
da
qual
nenhuma
derrogação
é
permitida
e
que
 só
pode
ser
modificada
por
norma
ulterior
de
Direito
Internacional
geral
da
mesma
natureza


(19)

Ainda na mesma sentença a Corte estabeleceu que as autoanistias “deixam as vítimas indefesas e conduzem à perpetuação da impunidade, o que as torna manifestamente incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção Americana”. E como dever do Estado contra este tipo de dispositivo a Corte reiterou no caso Almonacid Arellano que é dever do Estado: 


assegurar que não sigam representando um obstáculo para a investigação da execução extrajudicial [a vítima] e para a identificação e, neste caso, punição dos responsáveis, e II) assegurar que o decreto Lei nº2.191 [anistia] não siga representando um obstáculo para a investigação, julgamento e, neste caso, punição dos responsáveis de outras violações similares26


Uma vez elaboradas as sentenças da Corte em que caracterizavam as autoanistias como incompatíveis com a Convenção Americana, aqueles Estados que sofriam com o problema e tinham intuito de prestar contas para com seus cidadãos e suas obrigações internacionais, possuíam respaldo jurídico para fazê-lo. Foi o caso da Argentina, que através de sua Suprema Corte derrogou as leis de Obediência Debida27 e de Punto Final28 baseando-se na jurisprudência da Corte IDH. Quanto a alegação de prescritibilidade alegada por alguns em sua defesa a Corte volta a afirmar, que se tratando de crimes de lesa-humanidade, os obstáculos jurídicos internos para a não investigação e possível punição não são aplicáveis. (NIKKEN, 2009).

3.7. O princípio da irretroatividade da Lei e o caso brasileiro

Outro argumento que merece destaque, no que diz respeito à aplicação das normas da Convenção para crimes cometidos na época das ditaduras militares latino-americanas é quanto a aplicação das normas em relação ao período de tempo em que estas foram assinadas e ratificadas pelos Estados membros. Trata-se do princípio da








 26
OEA.
Corte
IDH.
Caso
Almonacid
Arellano
e
outros
versus
Chile.
Exceções
Preliminares,
Reparações
e
 Custas.
Sentença
de
26
de
setembro
de
2006.
CIDH
 27
Lei
de
anistia
Argentina
promulgada
em
1987,
durante
o
governo
de
Raúl
Alfonsín
que
classificava
os
 militares
como
ininputáveis
perante
a
Justiça.
 28
Lei
de
anistia
Argentina
promulgada
em
1986,
durante
a
presidência
de
Raúl
Alfonsín,
que
impedia
o
 julgamento
de
militares
acusados
de
crimes
contra
os
direitos
humanos
durante
a
ditadura
militar
 argentina.


(20)

irretroatividade, vigente no art. 28 da Convenção de Viena29 sobre o direito dos tratados,

que estabelece que uma norma de direito internacional só passa a ter validade para fatos ocorridos após a ratificação de um tratado. É dizer, o alcance das normas estabelecidas em um tratado internacional, como é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, só passa a ter validade para o Brasil após 1992, quando foi ratificada pelo mesmo. Sendo assim, os crimes cometidos na época da ditadura militar brasileira, que durou de 1964 até 1985, não poderiam ser julgados sob estes parâmetros. Porém, de acordo com a jurisprudência da Corte, este fato não exime os autores de alguns crimes cometidos a época do regime militar de assumir suas responsabilidades é o caso, por exemplo, dos crimes de desaparecimento forçado, onde até os dias de hoje as famílias das vítimas não sabem a sorte nem mesmo o paradeiro de seus familiares. Outro crime que não escapa a jurisdição da Corte é o de ocultação de cadáver, para os casos em que a vítima tenha sido executada por membros de regime e tenha tido seus restos mortais escondidos e que estejam até hoje desaparecidos. Estes crimes são passíveis de interpretação sob os termos da Convenção, pois produzem efeito que vai além da data de cometimento dos crimes, e portanto ultrapassam a data de entrada em vigor da Convenção, e com isso pode ser julgado de acordo com a mesma. (NIKKEN, 2009)

A Corte Interamericana vem reiterando em sua jurisprudência que é uma obrigação dos Estados, a partir do momento de ratificação da Convenção, promover e proteger os direitos humanos dentro de seus territórios. No entanto segundo o princípio de irretroatividade o Estado não pode ser responsabilizado pela violação de uma norma contida na Convenção que tenha sido cometida antes da ratificação. Todavia o Estado não está eximido de suas responsabilidades quanto a garantia do devido processo legal as vítimas destas violações, mesmo que estas tenham sido cometidas antes da vigência do tratado internacional. Portanto cabe ao Estado investigar, e quando for necessário, punir os responsáveis e reparar as vítimas, mesmo em casos que não estejam temporalmente regidos pela Convenção. (NIKKEN, 2009)









 29 O
art.28
da
Convenção
de
Viena
dispõe:
A
não
ser
que
uma
intenção
diferente
se
evidencie
do
 tratado,
ou
seja
estabelecida
de
outra
forma,
suas
disposições
não
obrigam
uma
parte
em
relação
a
um
 ato
ou
fato
anterior
ou
a
uma
situação
que
deixou
de
existir
antes
da
entrada
em
vigor
do
tratado,
em
 relação
a
essa
parte.


(21)

4. A DITADURA MILITAR NO BRASIL 4.1. Contexto Histórico

A América Latina dos anos 60 foi marcada por uma grande conturbação política. Neste período todos os países do Cone Sul conviveram com regimes ditatoriais repressivos. No Brasil, a situação não era diferente. Em 1º de abril de 1964 os militares tomam o poder através de um golpe de Estado, motivado principalmente por um conturbado contexto político internacional, que envolvia forte pressão por parte dos EUA, no auge de sua luta contra o comunismo. (FAUSTO, 1999)

Esta influência americana começa a se mostrar, na própria doutrinação ideológica militar, a partir do final da II Guerra Mundial quando o país entrou no conflito ao lado dos aliados. Como exemplo desta influência doutrinária pode-se citar a criação, em 1949, da Escola Superior de Guerra (ESG). Essa instituição, fortemente vinculada a uma doutrina anticomunista e pela Doutrina de Segurança Nacional30 estabeleceu um método de análise e interpretação de fatores políticos, econômicos e militares que condicionariam o conceito estratégico. (FAUSTO, 1999)

O grupo de militares responsáveis por arquitetar o golpe de 64 se identificava com essa linha de pensamento. Liderados por Humberto de Alencar Castello Branco, tomaram o poder sob o pretexto de livrar o país da corrupção e do comunismo para restaurar a democracia.

4.2. O Regime militar e as violações aos Direitos Humanos

O regime militar que se instaurou no Brasil nunca assumiu explicitamente seu caráter autoritário. Através dos chamados Atos Institucionais promoveram, durante todo o período, o que se pode chamar de “manipulação da legalidade”. (FAUSTO, 1999)

O primeiro destes “AIs” entrou em vigor no dia 9 de abril de 1964, com o objetivo de concentrar o Poder do Executivo e conseqüentemente diminuir o campo de influência do Congresso. O AI-1 suspendeu imunidades parlamentares e autorizou o comando supremo da revolução a cassar mandatos em qualquer nível e a suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos. Também estabeleceu as bases para a criação dos Inquéritos Policiais Militares (IPM’s), instrumentos a que estavam sujeitos aqueles acusados de “crimes contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou










30
Doutrina
desenvolvida
na
ESG,
que
afirmava
que
o
país
tinha
que
se
preparar
para
se
defender
de
um


(22)

por atos de guerra revolucionária.” (FAUSTO, 1999. Pg. 467) Percebe-se a utilização de uma normativa própria do regime autoritário, que servia a salvaguardar as forças repressivas, “impondo remodelações profundas na estrutura do sistema de segurança do Estado através de uma continua proliferação de órgãos e regulamentos de segurança.” (Direito à Memória e à Verdade, 2007)

Um dos mais importantes órgãos de controle da população, o Sistema Nacional de Informações (SNI), foi instalado ainda em junho de 64. Sob comando de Golbery do Couto e Silva, militar de extrema ligação com os ensinamentos da ESG e apontado como um dos principais idealizadores do golpe, tinha por objetivo a coleta de informações pertinentes à segurança nacional.(FAUSTO, 1999)

Com a “eleição”31 de Castelo Branco as divergências entre os militares

pertencentes a ESG, e aos chamados “linha-dura” ficou mais evidente. Esse segundo grupo, que pregava um maior controle do sistema de decisões por parte do Estado, visava também o prolongamento do governo militar. (GASPARI, 2002)

Com a vitória de candidatos opositores do regime em estados importantes nas eleições estaduais de 1965, os chamados “linha-dura” intensificaram as pressões frente ao governo de Castelo Branco alegando condescendência com seus adversários políticos. Neste contexto, o governo decreta o AI-2 que acaba com todos partidos políticos e permite ao Executivo fechar o Congresso nacional quando conveniente. O mesmo ato institucional também tornava indireta a eleição para presidente da República, além de estender á civis a jurisdição da Justiça Militar.( GASPARI, 2002)

Posteriormente o AI-3, decretado em fevereiro de 1966, estabelece eleições indiretas também para os Estados, através de suas Assembléias Estaduais. Entre as mudanças impostas pelos dois atos mencionados destaca-se aqui a proibição dos partidos políticos, que foram remanejados sob a ótica do regime. Formaram-se então o partido dos representantes do governo - ARENA (sigla de Aliança Renovadora Nacional) e o MDB, Movimento Democrático Brasileiro, que reunia a oposição. Esta oposição tinha um papel definido dentro do regime. Uma vez que o aparato militar buscava sempre aparentar legitimidade, a existência do MDB era imprescindível, ainda que estivesse totalmente amordaçada pelo regime. (FAUSTO, 1999)

Desta maneira, em março de 67 toma posse como presidente do Brasil o general Arthur da Costa e Silva. Este, militar representante da “linha-dura”, não pertencia a










(23)

mesma corrente ideológica de Castelo Branco. Sua eleição acontece devido ao descontentamento por parte destes membros das Forças Armadas com a política castelista de aproximação com os Estados Unidos e de facilidades concedidas a empresas estrangeiras para instalação no país. Inclusive esta orientação política dos “linhas-dura” pode ser definida como uma forte orientação nacionalista. (FAUSTO, 476) Outro importante fator de descontentamento por parte dos militares com relação a política de Castelo Branco foi a ascensão da oposição que denunciava os abusos do regime no congresso, articulava manifestações nas ruas e em alguns casos organizou grupos de resistência armada.

Neste período surgiram movimentos que partilhavam da premissa da luta armada como a ALP liderada por Carlos Marighella, outros movimentos surgiram neste período como o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8). Além destes, outros movimentos contavam com grande participação de militares de esquerda dissidentes das forças armadas, como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Estes grupos começaram a realizar ações no ano de 1968, abrindo caminho para a criação de novos instrumentos que visavam controlar os movimentos subversivos pelos militares que acreditavam que existia uma ameaça interna perigosa. Nesse contexto, em 13 de dezembro de 1968, decretou-se o AI-5, iniciando o período de maior repressão do governo militar, conhecido como os anos de chumbo.(FAUSTO, 1999)

4.3. O AI-5

Desde o primeiro Ato institucional, instalou-se no país uma grande onde de violência e repressão. Baseado na Doutrina de Segurança Nacional, a ditadura teve de estruturar um poderoso aparato repressivo. Porém com o AI-5 a repressão assumiu outros níveis, e a “linha-dura” assumiu o total controle interno do regime. Diferentemente do outros atos institucionais, o AI-5 não tinha prazo determinado de vigência. Este decreto voltou a conceder ao presidente o poder de clausura do Congresso, de livre intervenção em Estados e municípios, de cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos. Ficou suspensa a garantia de habeas-corpus a acusados de crimes contra a segurança nacional. (FAUSTO, 1999) Com o AI-5, a comunidade de informações do aparelho estatal ganhou grande força, e passou a representar um importante instrumento no comando de órgãos de vigilância e repressão, foi neste período que a tortura instalou-se de vez como método de ação do governo. O aparato repressivo podia ser representado pela figura de uma pirâmide, sendo a base dessa

(24)

figura as câmaras de interrogatório, e no seu ponto mais alto o SNI. Ainda que a institucionalização da repressão estivesse arquitetada, ainda não serviam satisfatoriamente as pretensões do governo de eliminação da oposição esquerdista. Com o intuito de melhorar a eficiência de controle e repressão dos movimentos oposicionistas foi criada em 1969, em São Paulo, a OBAN (Operação Bandeirantes) integrada por membros do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Política Estadual, departamento de Polícia Federal, Polícia Civil, Força Pública, Guarda Civil e civis paramilitares. (Direito à Memória e à Verdade, 2007) Este grupo agia sem especificação legal o que lhe garantia uma extrema mobilidade, e naturalmente impunidade. A experiência da OBAN foi bem sucedida em seu objetivo de combater a subversão, o que levou o governo militar a estender este projeto para o país inteiro, formalizando uma força composta pelas três armas que comandava todos os organismos de segurança nas áreas em que estivesse localizado, concentrando o poder das ações repressivas. Este órgão foi denominado Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna, DOI-CODI. Em conjunto com o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), as delegacias regionais da Polícia Federal, o CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) e o CENIMAR (Centro de informações da Marinha) compuseram os centros de repressão que agiam de maneira independente, na tortura e eliminação de opositores do regime. (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito a Memória e à Verdade, 2007; ARNS, 1985) Ainda segundo ARNS:

O resultado de todo este arsenal de Atos, decretos, cassações e proibições foi a paralisação quase completa do movimento popular de denúncia, resistência e reivindicação, restando praticamente uma única forma de oposição: a clandestina. (ARNS, 1985. Pg. 62)

Em junho de 69, o presidente Costa e Silva é obrigado a afastar-se do poder por motivos médicos e mais uma vez as forças armadas intervém na aparente legalidade existente, pois segundo esta quem deveria assumir o poder era o vice-presidente Pedro Aleixo, um civil contrário ao AI-5. Através do decreto de mais um Ato institucional, assume o poder temporariamente uma junta militar composta por integrantes das três forças militares. De acordo com Dom Paulo Evaristo Arns:

(25)

Constata-se um círculo vicioso: a resistência armada intensifica suas ações e parte para os seqüestros, exigindo em troca a libertação de presos políticos; a Junta Militar, por sua vez, adota as penas de morte e banimento, tornando mais duras as punições previstas na Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei nº 898)[...] (ARNS, 1985. Pg. 63)

Em 30 de outubro de 1969 assume o poder Emílio Garrastazu Médici para o governo que representará o período de maior repressão e violência da história republicana do país. A própria CEMDP32, no ano de 2009, no livro Direito à Memória e à Verdade, classificou a atuação da ditadura neste período como “terror de Estado”. Ainda segundo o documento histórico:

Num computo final, a violência repressiva não poupou as organizações clandestinas que não tinham aderido a luta armada, e nem mesmo religiosos que se opuseram ao regime sem filiação a qualquer organização. Os presídios ficaram superlotados e as listas totalizando mortes sob torturas pularam de algumas dezenas de opositores, em 1968, para várias centenas, em 1979, ano da anistia. (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Memória e à Verdade, pg. 27)

Contrapondo esse período obscuro no cenário das liberdades e direitos civis, no campo da economia o país se encontrava em êxtase. Baseando o modelo econômico brasileiro em empréstimos internacionais, e no baixo preço do petróleo, desenvolveu-se uma indústria extremamente dependente de bens externos e de investimentos de capital estrangeiro. Esse período que registrou anos consecutivos de aumento do PIB – de 1969 a 1973 - foi chamado de “milagre brasileiro”. Este crescimento, porém, agravou problemas já existentes, como a concentração de renda e acentuou o abandono por parte do Estado de políticas sociais. Isso se deu graças a uma política representada pelo slogan do ministro da fazendo do período, Delfim Netto, que afirmava que era necessário “fazer crescer o bolo, para depois distribuí-lo.” (FAUSTO, 1999. Pg. 487)

Com a crise do petróleo dos anos 70, o modelo do milagre começa a demonstrar sua debilidade, devido a grande dependência de agentes externos. Este pilar econômico muitas vezes acabava por justificar as ações repressivas do governo. Porém com o seu enfraquecimento e o aumento das denúncias internacionais sobre violações dos direitos humanos geravam uma pressão internacional sobre o Brasil e acabaram refletindo internamente na perda de poder do setor da “linha-dura”. Com isso ressurgem os










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militares da corrente castelista, que voltam ao poder com a incumbência de conduzir a distensão, ou seja, uma transição para a democracia.

4.4. Distensão

Geisel toma posse em março de 1974, com o objetivo de conduzir uma transição lenta, gradual e segura. De acordo com os planos de Geisel, a reabertura política deveria ser feita de um modo lento para que pudesse ser mantido o controle do Estado pelo grupo político aliado a ditadura, a fim de evitar que a oposição conseguisse atingir o poder rapidamente, estabelecendo o que seria uma “democracia conservadora” nas palavras de Geisel. Entretanto, como afirma Fausto para a manutenção deste controle por parte dos castelistas, o governo tinha que se preocupar além da subversão dos grupos opositores, com o grupo dos “linha-dura” que permaneciam com influência dentro das Forças Armadas e representavam um perigo aos planos de transição. Portanto observa Fausto: “Para restaurar a hierarquia, tornava-se necessário neutralizar a “linha-dura”, abrandar a repressão e, ordenadamente, promover a “volta dos militares aos quartéis”. (FAUSTO, 1999. Pg. 490)

O cenário político seguia conturbado e ao mesmo tempo em que, às escuras, os opositores continuavam a ser torturados e mortos, nas ruas a esquerda ganhava força. O crescimento do MDB frente aos candidatos da Arena se tornou notorio nas eleições municipais de 1976. No ano seguinte, em 1977, o governo não consegue apoio para aprovar no Congresso estabelecimento de reformas no judiciário, o que leva Geisel a fechar a casa e decretar o “Pacote de Abril”. Esse conjunto de medidas criadas pelo pacote estabelece a figura do senador biônico, que seria eleito por um colégio eleitoral, visando manter a maioria do Congresso nas mãos dos aliados. Uma emenda constitucional, que entra em vigor em janeiro de 1979, proíbe o fechamento do Congresso, assim como a cassação de mandatos e demissão de funcionários públicos sem justificativa. Da mesma maneira nenhum cidadão poderia ser privado de seus direitos políticos. No entanto, o Estado ainda mantinha algumas garantias legais para que não houvesse uma inversão de poderes como o poder de adotar medidas de emergência, a fim de restabelecer a ordem em locais específicos que fossem considerados instáveis, ou sob ameaça.

Referências

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