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1. PESQUISA HISTORIOGRÁFICA: ALGUMAS DIFICULDADES

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Academic year: 2021

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*UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. GRADUANDA DO CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA.

1900): NOTAS DE PESQUISA

CAROLINE PORTO BRITO*

Refletir acerca da relevância histórica do estudo sobre o cotidiano de lavadeiras, costureiras, engomadeiras, quitandeiras, entre tantas outras mulheres trabalhadoras pobres da capital do Pará no final do século XIX, nos mostra a necessidade de trabalhos que contribuam com a historicidade da existência de mulheres trabalhadoras populares na Amazônia. A luta pelo reconhecimento do valor histórico das mulheres na construção da sociedade brasileira é uma tarefa que vem sendo executada mais explicitamente no cenário acadêmico nacional desde meados da década de 1980, como demonstram Rachel Soihet e Joana Maria Pedro ao fazerem um balanço acerca da trajetória da formação do campo histórico intitulado “História das mulheres e das relações de gênero”, expondo diversos trabalhos que instauram esse campo de conhecimento, que com quase 40 anos de produção e pesquisa ainda busca por legitimidade acadêmica. Nesse sentido, o presente trabalho busca discutir as possibilidades de análises acerca das mulheres trabalhadoras populares na cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará durante a última década do século XIX, dando enfoque nas interseções classistas e raciais e assim fomentar o campo de Histórias das Mulheres e das Relações de Gênero.

Chamamos de trabalhadoras populares/pobres mulheres que, desempenhando papéis paralelos ao doméstico, viviam as dinâmicas públicas oriundas das ruas, exercendo afazeres em busca de sua subsistência ou de suas famílias. Por discurso normatizador da ordem entendemos os diversos mecanismos jurídicos acionados para repelir essas mulheres do centro que se urbanizava, bem como ideais comportamentais que visavam reprimir essas mulheres presente no Código de Posturas de 1880.

1. PESQUISA HISTORIOGRÁFICA: ALGUMAS DIFICULDADES

O início da pesquisa historiográfica guarda seus percalços e sem saber entender a existência dessas barreiras traçamos um caminho em linha reta rumo ao nosso objetivo, no entanto as trilhas interditadas frustram todo o planejamento traçado inicialmente. Metáforas a

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parte, vejo a importância de frisar primeiramente como a pesquisa é um espectro mutante com várias faces e cores, o faço por estar inserida nas ânsias iniciais desse caminho. Adentrei o mundo empoeirado dos arquivos em busca de processos crimes entre mulheres ensejando encontrar e fazer a história das degeneradas, transgressoras, fugitivas, mundanas e infames que resistem e vão de encontro à ordem como bem nos alertou Foucault. Sim, rastros dessas vidas podem ser capturadas dos documentos oficiais, mas esses resquícios dizem mais a respeito dos interesses de criminalização jurídica que dessas mulheres de labuta diária que têm suas condutas e ocupações questionadas. E agora, o que fazer com o pouco que tem? Pior, como fazer para visualizar essas vivências e experiências, assinaladas por Thompson?

Foi nesse contato com a fonte que a frustração atou minhas mãos, pois havia imaginado um processo coerente que transcrevesse toda a vida de duas pessoas que haviam tido uma espécie de desentendimento, algo como denúncia-averiguação do fatos-fim. Porém, não atentei ao facto de que em uma desavença são muitas as pessoas envolvidas, e nos documentos trabalhados nessa pesquisa pude visualizar que geralmente os processos trazem mais detalhes sobre as testemunhas que acerca das supostas vítima e acusada. E após um longo período correndo em busca “da história ideal”, entendi que esta não existe, visto que o cotidiano é ambivalente e assim deságua nos documentos. O ensaio O Sabor do Arquivo de Arlette Farge, que faz uma reflexão sobre a escrita da história e sua relação com o arquivo, foi uma ajuda providencial nesse contato com as histórias eivadas e complexas conservadas pelo judiciário.

É preciso conhecer a fonte, entender seus limites e ambivalências e aproveitar o que ela pode oferecer e não o que queremos que ela ofereça. Parece um tanto óbvio mas para nós, jovens historiadoras(es), é um tanto difícil perceber esse aspecto da pesquisa. Nesse sentido, percebemos na documentação, a partir das estratégias forjadas pelas vítimas e acusadas, a existência de muitas mulheres que não tinham a intenção de serem transgressoras da ordem, o eram por uma questão de sobrevivência. Neste aspecto se encontra Izabel do Espírito Santo, de 29 anos, que estava exercendo sua ocupação de quitandeira quando foi agredida na rua pela lavadeira Anna da Conceição Fernandes, de 26 anos, em 1893. Mulheres que circulavam no espaço público ainda eram mal vistas, de acordo com o discurso normatizador da ordem indicado por Maria Odila, ao analisar a sobrevivência de mulheres pobres durante o século

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XIX em São Paulo.As violências que sofriam tinham relação direta com a suposta desonra de estar transgredindo ao espaço público, visto que o ideal republicano do papel da mulher as enclausurava no interior do espaço doméstico.

Tendo em vista esses pormenores, aqui não estamos propondo a análise do crime em si. Também não buscamos uma história homogeneizante das mulheres trabalhadoras populares no período indicado, mas sim a interseção dessas mulheres que aparecem nos meandros das desavenças cotidianas articulando ocupação, cor, origem, gênero, idade, sexualidade, estado conjugal com seus interesses, já que são essas desarmonias com a ordem que as criminaliza. Agora, existe grande probabilidade de você estar se perguntando ou já ter se perguntado o porquê do estudo das mulheres trabalhadoras populares no final do século XIX em Belém do Pará especificamente, ou seja, em que medida essas análises fomentam o conhecimento historiográfico.Vamos a ela.

2. HISTORICIZAR A VIDA DE MULHERES POPULARES NO FINAL DO SÉCULO XIX EM BELÉM DO PARÁ

No tocante ao contexto em que a cidade se encontra nesse período, precisamos indicar a grande produção gomífera na Amazônia e como essa produção em larga escala acaba de certa maneira afetando a dinâmica social urbana da cidade de Belém. Pretendemos ir de encontro aos estudos que exaltam o período conhecido como Belle époque (1870 a 1910) percebendo-o impulsionador de grande riqueza para todos os citadinos, estudos em que as mudanças aí ocorridas surgem como o momento mais belo e civilizado da capital do Pará. Existem muitas vidas invisibilizadas por este discurso, e aqui recorremos mais especificamente a classe de mulheres pobres, em busca de evidenciar a existência de experiências populares em relação às dinâmicas sociais urbanas. Estas reiventaram e se reapropriaram dos espaços e discursos civilizatórios impostos principalmente através de normas jurídicas governamentais, forjando assim estratégias de convivência e sobrevivência mostrando que eram parte integrante desse cenário, circulando pela cidade com seus afazeres e compromissos. A ocorrência do silenciamento da “memória social de suas vidas vai se perdendo antes por um esquecimento ideológico do que por efetiva ausência dos

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documentos.” (DIAS, 1995:13). Nesse sentido, o presente estudo visa fomentar as pesquisas que pretendem dar conta das diversas práticas e representações vividas na cidade de Belém no final do século XIX, pois como demonstra Conceição Almeida ao falar das mulheres trabalhadoras pobres:

O noticiário revela que a presença delas nas ruas de Belém era marcante. Trabalhando, passeando, caminhando soluções para problemas diversos, pardas, mulatas, prestas enfim, percorriam as praças, as ruas, travessas e os largos de Belém em meio a nova realidade social que se constituía, elas construíram sua identidade cotidianamente.(ALMEIDA, 1994: 95)

A autora analisa representações de jornais entre 1885 e 1892 acerca de mulheres negras que circulavam pela cidade, exercendo suas ocupações cotidianas e os momentos de lazer, representações essas que as discriminava e criminalizava em um contexto perpassado pela “ideologia intelectual de embranquecimento” (ALMEIDA, 1994:97). A historiadora busca, com esse trabalho, conhecer o que ela chama de “avesso de uma história de Belém, pouco descortinado” evidenciando desta forma as inúmeras contradições sociais do período, isto é, divergindo da caracterização de uma sociedade homogeneizada vivendo “as riquezas da

Belle époque”. Sua pesquisa indica um comportamento de mulheres trabalhadoras pobres que

transgredia o código de condutas, por fazerem usos dos espaços públicos de acordo com suas necessidades e assim acabavam desrespeitando as leis municipais. Para além do código devemos lembrar que toda a construção intelectual e cristã condiciona as mulheres à esfera privada, como exterioriza Margareth Rago. Estas devem cumprir o papel de esposa-mãe-dona-de-casa. Nesse sentido, não é a toa que o praça Pedro José de Santa Anna prendeu a lavadeira Primitiva Rosa do Nascimento apenas com a denúncia informal de Leocádio de Azevedo: se trata de uma mulher pobre, imigrante e solteira que está circulando pela rua em uma terça-feira às 10 da noite1, e sua presença nesse espaço público a criminaliza. Logo, de acordo com Conceição Almeida, “numa sociedade onde as elites administravam um padrão comportamental condizente com a riqueza propiciada pela borracha, as posturas dessas mulheres eram sistematicamente criticadas e combatidas” (ALMEIDA,1994:80).

Existem fragmentos da vida dessas mulheres pobres que nos permitem chegar mais perto, olhar seus reflexos ainda que um pouco difusos, frações que estão dentro de um extenso

1 Informações contidas no Auto de Flagrante Delito contra Primitiva Rosa do Nascimento em 1890. Fonte

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registro conservado na documentação judiciária, rico em informações, permitindo perceber redes de solidariedades entre essas mulheres. São experiências comuns que recriam estratégias de sobrevivência, visto que “as mulheres do povo têm outros saberes e poderes, principalmente médicos, religiosos e mesmo culturais” (PERROT, 2017:190). Infelizmente relacionadas à criminalidade, nesses processos há desavenças cotidianas ou pequenos delitos, mas o que nossa documentação mais evidencia é a participação dessas mulheres enquanto componente pulsante dessa sociedade que vive o “famoso” período da “belle époque”. Precisamos historicizar a vida dessas mulheres trabalhadoras populares para compreendermos sua relação com as demandas políticas e econômicas do período, justamente por ensejarmos mostrar através de suas vivências o “descortinamento” da aparente riqueza, pois as fontes mostram que a maioria da população citadina não podia usufruir da magnífica modernidade que chegava à cidade de Belém em meados do século XIX.

É durante a leitura da fonte que perguntas as mais variadas vão surgindo sobre o dia-a-dia de lavadeiras como Primitiva que recriavam os sentidos morais “burgueses” de ser mulher. Afinal: onde moravam? O que comiam? Quais representações eram direcionadas a elas? Como viviam as relações amorosas, já que independentemente da idade, a maioria se dizia solteira? Como se apropriam e ganham prestígio do/no espaço público? Suas vivências são estranhas a quem? São muitas as ambivalências presentes nas formas de organização e (re)existência dessas mulheres. São inúmeras as táticas sociais a que recorrem e são nossos limites nesse momento.

3. AS POSSIBILIDADES

Estamos analisando processos crimes do judiciário envolvendo roubo (2) e ferimentos leves (3). Atentamos para as disputas apenas entre mulheres, visto que durante a pesquisa ficou evidente que essas elencavam outras tantas mulheres ao articularem suas defesas ou acusações. Desses 5 processos, há um predomínio de 31 mulheres mencionadas, enquanto apenas 5 homens são citados. Nesses documentos as vidas das testemunhas aparecem geralmente mais detalhadas que a vida das “personagens principais” dos autos. Sendo assim, coletamos múltiplas informações como nome, idade, origem, ocupação (trabalho), logradouro,

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gênero e estado conjugal. A cor da pele não é citada explicitamente, sendo preciso uma análise pormenorizada para dar conta desta característica, e ainda assim são poucas as pessoas que podem ser detectadas. Nesse caso das 36 pessoas envolvidas nesses 5 processos, somente a 3 foram atribuídas cor da pele pois receberam adjetivos pejorativos como “a preta maranhense”, “a preta ladra” e “escura”.

Como foi dito no inicio desse artigo, estamos indicando até que ponto avançamos nesse emaranhado de fios soltos que se encontra esta pesquisa, pois estamos traçando o caminho entre o que desejávamos que a fonte “dissesse” e o que ela pode oferecer para a construção dessa análise historiográfica. Isto posto, sugerimos aqui quais correntes teórico-metodológicas podem auxiliar a empreitada em que nos lançamos, com uma documentação tão rica são muitas possibilidades. Vamos a elas.

Das 31 mulheres mencionadas, 29 são trabalhadoras pobres dedicadas a ofícios de lavadeira e engomadeira (9), costureira e engomadeira (9), vendedeira (4), cozinheira (4), gameleira (2), amassadeira de açaí (1), ou seja, mulheres que precisavam do espaço público diariamente para exercer suas ocupações, elas estavam sujeitas a todas as intempéries que a vida de uma mulher circulando no espaço público voltado para o masculino no final do século XIX podia esperar, partilhavam nesse sentido experiências comuns. Sendo assim, o historiador inglês E. P. Thompson pode auxiliar, posto que determina a classe como uma formação tanto cultural quanto econômica afirmando que “a classe acontece quando alguns homens como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas) sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem” (THOMPSON, 2011:10). Nessa perspectiva, encontramos mulheres formando uma classe de trabalhadoras, uma vez que partilham do mesmo sistema de valores e ideias, uma mesma realidade social no que tange trabalho e moradia, por exemplo.

O fato de essa classe elencar majoritariamente outras mulheres trabalhadoras pobres como testemunhas mostra sua vivência cotidiana, pois são essas que presenciam as desavenças e os crimes, são essas também que as defendem. Fica evidente na documentação as redes de sociabilidades, uma vez que dividem o mesmo espaço social. A lavadeira Primitiva Rosa do Nascimento é acusada de ferir a vendedeira Maria Celeste da Conceição. A

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maranhense lista outras 3 mulheres como testemunhas do acontecido, todas lavadeiras, e viviam uma realidade já ensaiada por Almeida, no sentido de que

A lavagem de roupas dependia das saídas das lavadeiras até os lugares de lavagem, o que poderia demandar o dia inteiro, pois era preciso também, esperar a roupa secar, retirá-la das cordas, arrumá-las e transportá-las cuidadosamente pelas ruas, até o local onde seriam passadas e engomadas(ALMEIDA, 2010:189)

Mulheres solteiras que viviam dos serviços despendidos no espaço público sinalizam um “fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados” (THOMPSON, 2011:10), mas que fundamenta afinal a classe de trabalhadoras pobres no final do século XIX, mulheres que iam de encontro ao papel normativo de mulher nesse período, de acordo com a afirmação da historiadora Margareth Rago dado que “era ambígua a maneira pela qual o espaço público masculino acolhia a entrada da mulher. Espaço público burguês conformado como essencialmente masculino e a mulher dele participava como alguém que vivia em território alheio” (RAGO, 1991:57). Diante disso, vemos uma classe que luta por seus interesses que vão de encontro aos interesses de outro grupo, visto que essas lavadeiras enfrentam inclusive a repressão governamental, como mostra Almeida:

Havia lavadeiras que exerciam seu ofício em suas próprias residências, ou mesmo em praças da cidade, à revelia das proibições escritas pelos dirigentes locais, desde a primeira metade do século, tais como ‘tambem he vedado corar, enchugar, ou estender roupas nas praas, largos, ruas, e travessas, em armadilhas, e cordas, ou mesmo no chão. O infractor incorrera na multa de cinco mil réis ou dous dias de prisão (ALMEIDA, 2010:188 apud Collecção das Leis da Provincia do Gram-Pará. Tomo X, 1848: art.155)

No que diz respeito à moradia, é muito provável que a maioria delas morasse em cortiços, quartos de aluguel, como sugere Karol Gillet ao discutir as formas de morar em Belém (1870-110). A historiadora aponta as diversificadas maneiras que os populares encontraram para construir suas residências em meio os palacetes e as casas suburbanas, assegurando que “apesar da diversidade encontrada nas casas populares durante o período em questão, essas casas não fizeram parte do cenário idílico cultural construído no senso comum para a Belém da belle époque” (SOARES,2008:230). Gillet assinala também a recorrência de

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imigrantes aos cortiços e quartos de aluguel, e isto pode ser verificado nos autos crimes dessa pesquisa, sendo 29 das trabalhadoras populares arroladas 20 imigrantes que vivem em quartos de porta e janela. No caso da maranhense Primitiva Rosa do Nascimento, as outras 3 mulheres que aparecem como testemunha do fato também são imigrantes e moram no mesmo terreno em quartos de madeira um ao lado do outro, o que corrobora a ideia de Gillet acerca do espaço arquitetônico utilizado por alguns populares em uma Belém que se queria modernizada e arejada. Há aí “uma evidência significativa dessa desigualdade socio-econômica, pode ser vista na própria construção das casas que passaram a ser economicamente diferenciadas” (SOARES, 2008:233).

Esse balanço inicial acerca da experiência de classe como formação tanto cultural quanto econômica dessas mulheres trabalhadoras populares comprova a relação direta dos registros documentais com o sistema teórico-metodológico construído por Thompson, é uma perspectiva de história social das mulheres acionada por historiadoras como Rachel Soihet, Magali Engel, Margareth Rago, Joana Maria Pedro, Maria Odila, entre outras, é uma concepção de análise histórica que percebe “os interesses comuns de um grupo social constituídos no processo de reflexão e interpretação dos fatos e das situações do cotidiano” (PINSKY, 2009:181-182).

Uma possibilidade de análise que tem se mostrado mais atraente mediante os registros das fontes tende para o estudo da interseccionalidade, tendo em vista que a categoria consegue englobar a multiplicidade de diferenciações que dão conta da identidade construída ao longo das experiências, no nosso caso de mulheres pobres. Recorremos a esta conceitualização das diferenças por conseguirmos filtrar interseções como modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais conforme esses recursos possibilitam a ação dentro de dinâmicas de poder, ações percebidas em normas governamentais através do “processo de formação da ordem em Belém” (ALMEIDA, 2006:11) em que se valoriza um comportamento social burguês difundido pela elite intelectual do século XIX na cidade.

Apesar de viverem pontos de experiências comuns, as mulheres trabalhadoras carregam consigo outras questões de identidade como sua origem, que acaba determinando sociabilidades, vistas nos registros documentais por meio das relações de solidariedade e vizinhança, bem como as desavenças e contendas entre pares de uma mesma naturalidade,

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mulheres que acabam morando próximas para ajudarem-se cotidianamente, tendo como elo o lugar de onde vieram, garantindo assim margens de agência, assinaladas por Adriana Piscitelli. Com o objetivo de não homogeneizar esse grupo de mulheres trabalhadoras que circulam em Belém no final do século XIX, dirigimos o olhar para essa categoria de análise conceituada por Avtar Brah, pois se pretende dar conta da “diferença como experiência, diferença como relação social, diferença como subjetividade e diferença como identidade”(BRAH, 1996:359), lembrando que essa cidade comporta uma diversidade de vivências para essas mulheres.

Circulam pelas ruas de Belém tratando de seus afazeres nessa última década libertas, brancas pobres, imigrantes brasileiras e estrangeiras. É um mundo social diverso e múltiplo, onde essas comunidades de trabalhadoras urbanas recriam ideias e valores acionando estratégias por meio do gênero, profissão, origem, relações amorosas, moradia com a economia de subsistência, que é o que acontece entre Primitiva e Celeste. Em um cenário atrelado à “crise final da abolição, a expansão da pobreza, a urbanização” (SARGES, 2002:30), características presentes nos autos crimes necessitam de análise pormenorizada, já que “é uma questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política” (BRAH, 1996:374).

Brah incorpora uma perspectiva foucaultiana ao indicar que independentemente desses marcadores, existe um campo de agência social mediado ora pela cultura ora pela economia bem como pela política, a saber: “antes o poder é constituído performativamente em práticas econômicas, políticas e culturais, e através delas” (BRAH, 1996:373). Nesse sentido, quando Celeste Maria da Conceição opta pela denuncia formal à Primitiva do Nascimento, usa de mecanismos de poder para conseguir que a ré permaneça presa por oito meses, sendo posta em liberdade pela denúncia ser improcedente. Listadas no rol de testemunhas, outras mulheres também imigrantes que dividem o mesmo espaço residencial em seus depoimentos dizem nada ter visto ou ouvido. São muitos os questionamento surgidos sobre esses fatos.

Encontramos entre as 31 mulheres arroladas 3 negras e 2 senhoras “donas” sendo assim provavelmente brancas. Em relação a imigrantes, temos 6 paraibanas, 10 maranhenses,

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7 paraenses e as outras são indefinidas. Acerca do estado conjugal, há majoritariamente 27 solteiras, 2 viúvas e 2 indefinidas. Pretendemos de acordo com a continuidade da pesquisa dar conta da história microssocial do cotidiano articuladas com os diversos contextos à que essas mulheres estão sujeitas. Nosso objetivo é entender essas vivências ora tão descoladas uma da outra, ora firmando um grau de cumplicidade quase inquebrável, e no momento a conceituação das diferenças nos parece a metodologia mais coerente, já que

Enquanto as identidades pessoais sempre se articulam com a experiência coletiva de um grupo, a especificidade da experiência de vida de uma pessoa esboçada nas minúcias diárias de relações sociais vividas produz trajetórias que não simplesmente espelham a experiência do grupo (BRAH, 2006:371)

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos esse artigo entendo que a pesquisa historiográfica em andamento não deve desconfiar de qualquer teoria que preceda o objeto, desconfiar dos meandros em que ele está inscrito sejam sociais, culturais, políticos entre outros, e que teoria e metodologia se constroem a medida que o objeto vai sendo esmiuçado. Como qualquer pesquisa em curso constatamos a inviabilidade de relacionar todas as possibilidades teórico-metodológicas, bem como contemplar as ambivalências do objeto. A intenção aqui é instigar leitores e pesquisadores a contribuírem com a temática de Histórias das Mulheres na Amazônia, e também salientar as dificuldades presentes na investigação Historiográfica como parte do roteiro.

Buscamos por fim discutir as possibilidades de análises acerca das vivências de mulheres trabalhadoras populares no final do século XIX em Belém do Pará, na medida em que irrompem da documentação em um extraordinário número de registros detalhados e conservados nos arquivos do judiciário, vidas esperando para serem inseridas finalmente nas páginas da história. Mulheres que enfrentaram uma série de preconceitos e barreiras ao buscarem sua inserção social, ao historicizarmos essa classe podemos averiguar como influenciaram na organização da vida urbana e em que medida tradições, costumes e rupturas perpetuam as ruas ainda hoje (quem sabe não iniciamos uma historia comparada com ambulantes do século XXI).

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Por enquanto pretendemos abranger o corpo documental às fontes iconográficas, jornais e produções literárias em busca dos múltiplos contextos, práticas e representações acerca das vidas de mulheres trabalhadoras pobres por entendermos a frequente participação no universo social do século XIX. Como já foi dito, a pesquisa é um eterno quebra-cabeças e muitas perspectivas estão passíveis de mudança, mas não excluímos da memória que “a questão do poder está no centro das relações entre homens e mulheres” (PERROT, 2017:192) e que “uma análise de classes é sempre melhor que uma interclassista”(GIZBURG, 1987 :29).

FONTES

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Centro de Memória da Amazônia. 2° Distrito Criminal. Caixa: 1893-1894. Série: Ferimentos Leves. Autos Crimes de Ferimentos Leves em que é autora a Justiça Pública e Ré Anna Conceição Fernandes, 1893.

Centro de Memória da Amazônia. 2° Distrito Criminal. Caixa: 1895-1897. Série: Ferimentos Leves. Autos Crimes de Ferimentos Leves em que é Autora a Justiça Pública e Ré Izabel Maurícia do Espírito Santo, 1895.

Centro de Memória da Amazônia. 3° Distrito Criminal. Série: Roubo. Caixa: 1875-1894. Autos Crimes de Roubo em que é Autora a Justiça Pública e Ré Romana da Silva Coqueiro, 1891.

Centro de Memória da Amazônia. 3° Distrito Criminal. Série: Roubo. Caixa: 1875-1894. Autos Crimes de Roubo em que é Autora a Justiça Pública e Ré Benedita Maria da conceição, 1893.

BIBLIOGRAFIA

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