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Práticas profissionais e resistências na construção do cuidado em rede em saúde mental em uma microrregião de Campinas/SP

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FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS

DANIEL VANNUCCI DÓBIES

PRÁTICAS PROFISSIONAIS E RESISTÊNCIAS NA CONSTRUÇÃO DO CUIDADO EM REDE EM SAÚDE MENTAL EM UMA MICRORREGIÃO DE CAMPINAS/SP

CAMPINAS 2016

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PRÁTICAS PROFISSIONAIS E RESISTÊNCIAS NA CONSTRUÇÃO DO CUIDADO EM REDE EM SAÚDE MENTAL EM UMA MICRORREGIÃO DE CAMPINAS/SP

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva, na área de concentração de Ciências Sociais em Saúde.

ORIENTADORA: SOLANGE L’ABBATE

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO

ALUNO DANIEL VANNUCCI DÓBIES, E ORIENTADO PELA PROFA. DRA. SOLANGE L’ABBATE

CAMPINAS 2016

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ORIENTADOR: Solange L’Abbate

MEMBROS:

1. PROFA. DRA. SOLANGE L’ABBATE

2. PROFA. DRA. HELIANA DE BARROS CONDE RODRIGUES

3. PROFA. DRA. ANA KALLINY DE SOUSA SEVERO

Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

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À Solange L’Abbate pela orientação, apoio e incentivo fundamentais para elaboração da pesquisa e de todo o longo processo de análise e escrita À Heliana de Barros Conde Rodrigues e à Ana Kalliny de Sousa Severo, que aceitaram o convite de compor às bancas de qualificação e defesa, pela dedicação em contribuir com o trabalho com críticas e sugestões Aos membros do Grupo de Pesquisa Análise Institucional & Saúde Coletiva pelas discussões da pesquisa e todo o apoio para eu seguir adiante À Aline, esposa e companheira, por ter suportado momentos árduos com sua incansável dedicação em ajudar (escutando, apoiando, transcrevendo entrevistas, revisando texto e muito mais) e colocar todas as suas companheiras “indianas” para apoiar. A elas também o meu agradecimento À toda a minha família, em especial à minha mãe, ao meu pai e aos sogros, por sempre oferecerem palavras de apoio e muita reza Aos meus amigos de sempre, Dalmoro e Paulo, por terem escutado sobre a pesquisa e

proporcionado boas horas de conversa À amiga Francielly por ter me incentivado a fazer o mestrado e mais uma vez (depois da Residência e do CAPS ad) foi minha colega-camarada Ao Américo, colega de trabalho e de mestrado, pelas longas e produtivas conversas para lidar com a dupla jornada À Flaviana e ao Vandré, casal de amigos, pelos incentivos a encarar a pós-graduação e toda atenção ao longo do mestrado Às amigas Viviane e Roberta pelos incentivos para entrar na área acadêmica Ao primo Mateus pela ágil manutenção do computador, que quase não chega inteiro até o fim do

mestrado À Tatiane e à Thaís pela prontidão nos momentos críticos de tradução À Tereza e ao Rodrigo por ajudarem nos cuidados com o corpo e a mente Aos compreensíveis colegas do CAPS ad pela cobertura nas atividades e disponibilidade em fazer

mudanças de horário para acolher as minhas necessidades Aos camaradas do fórum colegiado de saúde mental pelo bom convívio na desafiante construção do trabalho em rede e por toda a disponibilidade em contribuir com a pesquisa Aos vários professores pelos ensinamentos no longo percurso até o mestrado

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Desde já peço a necessária licença a V. Exa. para que, armado, possa movimentar-me. A guerra no Brasil, qualquer que seja o terreno, é guerra do movimento. Para nós revolucionários o movimento é a vitória.

A guerra de reserva é a que mais convém ao governo que tem fábricas de munição, fábricas de dinheiro e bastante analfabetos para jogar contra nossas metralhadoras. Com menos de 1.000 homens armados e tendo mais de 4.000 cavalos, consegui passar, em pleno campo, por entre mais de 10.000 homens do governo. Nunca foi possível determinar a minha verdadeira direção de marcha. Impraticável se tornou a perseguição.

(Trecho da carta do Coronel Prestes ao General Isidoro, fevereiro de 1924, em que revela as suas descobertas táticas. Está exposta no Memorial Coluna Prestes em Santo Ângelo/RS)

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O cuidado em rede, previsto na formulação do Sistema Único de Saúde e destacado em políticas públicas mais recentes, inclusive na saúde mental, indica ser fundamental a estruturação de serviços e fluxos, mas também o investimento nos profissionais que constroem e operam essas redes. A análise das instituições e dos movimentos de resistência, que permeiam esses processos, justifica-se por permitir acesso às contradições e às possibilidades de transformações de práticas. O prejustifica-sente estudo volta-se à investigação da construção de rede de cuidado em saúde mental em uma microrregião de alta vulnerabilidade social do município de Campinas/SP, que é reconhecido pelo histórico de inovação na formulação de estruturas e práticas em saúde mental, mas que, na atual conjuntura, exibe enrijecimento organizacional com enquadramento jurídico e pelas portarias ministeriais, com baixo investimento em inovações. O objetivo geral desse estudo, realizado entre os anos de 2014 e 2015, foi analisar as práticas profissionais dos participantes do fórum colegiado de saúde mental da referida microrregião na construção do cuidado em rede, sobretudo, como a análise pelas resistências nessa tarefa pode gerar transformações nas próprias práticas profissionais, assim como no processo de trabalho dos serviços de saúde. Para tal, foram realizadas observações participantes desse fórum, que é o local mais propício para construção de articulações e para análise das práticas, e também entrevistas semiestruturadas com os profissionais e gestores envolvidos, e uma restituição coletiva para os sujeitos da pesquisa, a fim de tornar o estudo mais participativo e reflexivo. O material foi analisado a partir do referencial teórico da Análise Institucional em articulação com a Saúde Coletiva e outros autores que discutem o conceito de resistência, bem como as relações entre resistência e poder. Na trajetória desse fórum, nota-se a relevância do envolvimento dos profissionais para institucionalizá-lo e manter vivo o processo de articulação do cuidado em rede. Observaram-se movimentos de resistência para sustentá-lo frente ameaças de redução-precarização formuladas em coletivos de gestão, mas também resistências entre os profissionais e serviços envolvidos, decorrentes de concepções divergentes quanto ao funcionamento do espaço e seu alcance. Tais resistências foram analisadoras do modelo de gestão, que apresenta práticas hierarquizadas, e da atual política municipal de saúde mental, que pouco investe no cuidado integral e compartilhado entre serviços, bem como das dificuldades internas de analisar as divergências. Entretanto, o fórum proporcionou espaço para análise dessas resistências e das práticas profissionais, com ganhos na responsabilização coletiva dos seus membros com a saúde mental na microrregião, adoção de novas estratégias de cuidado e posicionamento mais ativo perante a gestão. Conclui-se que os movimentos de resistência são de grande relevância para os profissionais dessa rede, e sua análise é fundamental para a qualificação do cuidado compartilhado, possibilitando um enfrentamento mais efetivo das adversidades conjunturais.

Palavras-chave: Análise Institucional, Saúde Mental, Práticas Profissionais, Resistência, Cuidado

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The network care, provided for in the text of the Unified Health System and emphasized in more recent public policies, including mental health ones, shows that it is vital the structuring of services and flows, but also the investment on the professionals who build and run these networks. The analysis of the institutions and the resistance movements, that permeate these processes, is justified as it allows the access to the contradictions and to the possibilities of transformation of the practices. This study aims at the investigation of the construction of the network care in mental health in the micro region of the city of Campinas/SP, known for its high social vulnerability. This region is recognized by its history of innovation in the elaboration of structures and practices in mental health, but, in the current context, shows organizational stiffening caused by legal restraints and ministerial ordinances, which lead to low investments in innovations. The general objective of this study, carried out from 2014 to 2015, was to analyze the professional practices of the participants of the collegiate forum of mental health from the aforementioned micro region in the construction of the network care, and specially how the analysis by the resistance in this task can generate transformation in its own professional practices, as well as in the process of health care work. For that, observant participations were carried out in this forum, which is the most appropriate place to construct articulations and to analyze the practices, but also the semi structured interviews with involved professionals and managers, in addition to a collective restitution to the subjects of the study, in order to make this work more participative and reflexive. The data were analyzed through the theoretical reference of the Institutional Analysis articulated with Collective Health and others authors who discuss the concept of resistance, as well as the relations between resistance and power. On the path of this forum, it is noted the relevance of the professionals’ involvement to institutionalize it and to keep alive the process of articulation in the care network. Resistance movements were observed in face of threats of reduction and precariousness conditions formed in management collectives, but it was also observed resistance among involved professionals and services caused by divergent opinions regarding the functioning of the place and its reach. Such resistances were analyzers of the management model, which presents hierarchic practices, and of the current city policy of mental health, which invest little on the care of the whole health and shared with the services, as well as of the internal difficulties to analyze the divergences. However, the forum provided a place to analyze those resistances and professional practices, improving the collective accountability of its members regarding the mental health services of this micro region, the adoption of new strategies of care and a more active position concerning the management. It is concluded that the resistance movements are of great relevance among this network professionals, and their analyses is essential for the qualification of the shared care, enabling a more effective tackling of the conjectural adversities.

Keywords: Institutional Analysis, Mental Health, Professional Practices; Resistance, Network

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Figura 1 – Colmeia de abelhas ... 47

Figura 2 – Espinhos de ouriço ... 48

Figura 3 – Caminhos de formigas ... 49

Figura 4 – Esquema da dialética institucional ... 74

Figura 5 – A representação dialética dos três movimentos do conceito de resistência ... 76

Figura 6 – Mapa de Campinas dividido nos cinco distritos de saúde, com a delimitação da área de abrangência dos CS’s. Foram destacados os pontos de referência do estudo... 100

Figura 7 – Articulações construídas no cuidado em saúde mental na microrregião, seguindo a denominação dos entrevistados ... 102

Figura 8 – Distribuição dos participantes por serviço de atuação ... 105

Figura 9 – Distribuição, por serviços, de todos os presentes nas reuniões observadas do fórum ...106

Figura 10 – Apoio entre os serviços a partir do caso ... 145

Figura 11 – “Curvas” nas articulações entre serviços ... 149

Figura 12 – Outra representação das articulações construídas no cuidado em saúde mental na microrregião ... 150

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Quadro 1 – Caracterização dos Centros de Saúde da região sul-sul II ... 101 Quadro 2 – Caracterização dos entrevistados da pesquisa ... 103 Quadro 3 – Organização de todos os 40 participantes, que somaram 140 participações, nas

reuniões observadas (06/10/14 a 26/06/15) nas seguintes categorias: cargo, profissão e local de atuação... 107

Quadro 4 – Caracterização sintética das reuniões do fórum colegiado de saúde mental da região

sul-sul II do período entre 03/10/14 e 26/06/15 ... 126

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ACS Agente Comunitário de Saúde

BPA-C Boletim de Produção Ambulatorial Coletivo BPA-I Boletim de Produção Ambulatorial Individualizado CAPS Centro de Atenção Psicossocial

CAPS ad Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas CAPS i Centro de Atenção Psicossocial infantil

CRAS Centro de Referência em Assistência Social

CRATOD Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas CREAS Centro de Referência Especializada em Assistência Social

CS Centro de Saúde

NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família

PA Pronto Atendimento

PNH Política Nacional de Humanização

PSF Programa Saúde da Família

RAAS Registro das Ações Ambulatoriais de Saúde SAMU Serviço de Atendimento Móvel de Urgência

SP São Paulo

SRT Serviço Residencial Terapêutico

SUS Sistema Único de Saúde

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B Psicóloga do CAPS

C TO/Apoiadora de saúde mental do distrito de saúde

D Dentista/Coordenadora do CS 2 G Psicólogo do CAPS H Enfermeira/Coordenadora do CS 1 I ACS do CS 1 M Médico do CS 1 N ACS do CS 2 O Enfermeira do CS 3

P Pesquisador e Psicólogo do CAPS ad R Psicólogo dos CS 1, 2 e 3 S TO do CAPS T TO do CS 1, 2 e 3 V ACS do CS 3 Y ACS do CS 1 A* Foi médico do CS 2 E* Foi psicóloga do CS 1, 2 e 3 Z* Psiquiatra do CAPS

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APRESENTAÇÃO ... 17

INTRODUÇÃO ... 19

Trajetória profissional do pesquisador: contato com o trabalho em rede e com a resistência ... 20

O impacto dos avanços neoliberais nas condições de trabalho no SUS: como resistir? ... 27

Da inovação ao enquadre: a saúde mental campineira ... 33

CAPÍTULO 1 – Estruturas e práticas nas redes de cuidado: as redes de atenção à saúde, a especificidade da saúde mental e como Campinas se encontra nesse emaranhado ... 41

1.1 - Redes de cuidado no SUS... 41

1.1.2 - A abstração imaginária de diferentes desenhos de rede ... 47

1.2 - A demanda por uma rede no cuidado em saúde mental e as estratégias adotadas... 50

1.3 - As singularidades da construção do cuidado em rede em saúde mental no município de Campinas/SP ... 58

CAPÍTULO 2 – Resistência e Poder: análise dos movimentos institucionais, amarras e enfrentamentos no processo de trabalho e cuidado na área de saúde mental ... 67

2.1 - Resistência e poder ... 68

2.2 - A resistência nos movimentos institucionais... 72

2.3 - A clínica na saúde mental: normatizações e resistências... 86

CAPÍTULO 3 – Trilhas e estratégias para a pesquisa de campo e o encontro do pesquisador com os sujeitos e o território ... 91 3.1 - Objetivos ... 91 3.2 - Método ... 91 3.2.1 - Referencial teórico-metodológico... 91 3.2.2 - Estratégias e recursos ... 94 3.3 - Cenário ... 99 3.4 - Sujeitos ... 102

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4.1 - Fórum ou matriciamento? ... 109

4.2 - A escolha do fórum e a investigação da sua história ... 110

4.3 - Antecedentes do fórum colegiado de saúde mental da região sul-sul II ...111

4.3.1 - O fórum colegiado de saúde mental do eixo sul-sul ... 111

4.3.2 - Visitas domiciliares na parceria entre CAPS e ACS do CS 1... 112

4.4 - A criação do fórum colegiado de saúde mental na região sul-sul II ... 115

4.4.1 - Um formato para o fórum e ramificações para o cuidado em rede ... 117

4.4.2 - O médico, presente-ausente, acionando movimentos ... 120

4.4.3 - O propósito do fórum: “só” discutir os casos? ... 122

4.4.4 - O processo de institucionalização do fórum emaranhado de outras ações ... 124

4.5 - Cinco momentos da institucionalização permanente do fórum... 125

4.5.1 - Momento 1 – A resistência afirmativa e defensiva dos profissionais do fórum ... 127

4.5.2 - Momento 2 – Uma supervisão com “segundas intenções” e muitas repercussões ... 132

4.5.3 - Momento 3 – A proposta de entrada dos serviços da assistência social... 137

4.5.4 - Momento 4 – Apresentação na Mostra de Práticas em Saúde Mental... 143

4.5.5 - Momento 5 – Ampliação de profissionais, novas ações e recombinações ... 146

4.6 - Análises provocadas pelas resistências ... 150

4.6.1 - A análise pela resistência no Momento 1... 151

4.6.2 - A análise pela resistência no Momento 3 ... 153

4.6.3 - Comparação da análise pela resistência nos dois momentos ... 154

4.7 - Perspectivas sobre a continuidade e a finitude do fórum ... 156

CAPÍTULO 5 – A multiplicidade das práticas profissionais na construção de uma rede de cuidado em saúde mental ... 160

5.1 - Concepções e expectativas sobre a construção do cuidado em saúde mental em rede ... 161

5.2 - Práticas para articulação do cuidado em rede e o lugar do fórum nesse processo...172

5.2.1 - Um caso a caminhar na rede: invasão, trilhas e resistências ... 172

5.2.2 - Análise das práticas profissionais por meio do caso anterior, em diálogo com outros ... 174

5.3 - Análise das práticas profissionais e as contribuições do fórum na construção do cuidado em rede ... 178

5.3.1 - Efeitos do fórum na prática dos profissionais e dos serviços ... 179

5.3.2 - Implicação dos profissionais com o fórum e com o trabalho em rede ... 182

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CAPÍTULO 6 - A relação do fórum e dos seus membros com a política de saúde mental e com a

gestão ... 199

6.1 - A política de saúde mental em Campinas: o que é isso? ... 200

6.2 - Sobre a relação dos membros do fórum com as instâncias de gestão e os gestores na construção do cuidado em rede ... 207

6.3 - A gestão do fórum colegiado de saúde mental da região sul-sul II ... 213

6.3.1 - Os desafios da intersetorialidade nessa construção do cuidado em rede ... 216

6.3.2 - O fórum e a conjuntura de enquadre-regulamentação ... 217

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 219

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 225

ADENDO ... 235

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APRESENTAÇÃO

Este estudo trata de questões relacionadas à construção do cuidado em rede na área de saúde mental, investigando meandros desse processo em uma microrregião da cidade de Campinas, no interior do estado de São Paulo, que foi por décadas pioneira em diversas práticas nessa área.

Em uma conjuntura municipal pouco favorável ao desenvolvimento de práticas de saúde mental inovadoras e criativas, foi realizado um estudo empírico entre os anos de 2014 e 2015 em um fórum colegiado de saúde mental que reúne profissionais e gestores de serviços de saúde mental e atenção básica numa região de alta vulnerabilidade social, cujo objetivo geral foi analisar as práticas profissionais dos participantes desse coletivo na construção do cuidado em rede, sobretudo, como a análise pelas resistências nessa tarefa pode gerar transformações nas próprias práticas profissionais, assim como no processo de trabalho dos serviços de saúde.

Na busca por algumas pistas e trilhas a esse respeito, segue um texto organizado em duas partes.

A primeira parte é dedicada às questões teóricas sobre o tema e à descrição da atual conjuntura municipal. Na Introdução são apresentados três aspectos que motivaram o estudo: a trajetória profissional do pesquisador, as influências neoliberais na Saúde em nosso país e o enquadramento de práticas adotado pela atual gestãomunicipal de Campinas. O Capítulo 1 trata das estruturas e práticas nas redes de atenção à saúde em geral, bem como da especificidade na área de saúde mental e no munícipio de Campinas. O Capítulo 2 aborda a relação entre resistência e poder, que aponta para a possibilidade de enfrentamento das normatizações e análise das contradições no cotidiano do trabalho em saúde.

Na segunda parte, que trata da pesquisa de campo, temos o Capítulo 3 que caracteriza como foi realizada a pesquisa, apresentando os objetivos, recursos e estratégias metodológicas, o cenário e os sujeitos. Os demais capítulos apresentam os resultados e a discussão. O Capítulo 4 narra a trajetória do fórum colegiado de saúde da microrregião, desde os seus antecedentes mais recentes, passando por momentos de institucionalização, até as perspectiva sobre sua continuidade. No Capítulo 5 são investigadas as práticas profissionais por meio das concepções, ações e análises dos sujeitos. O Capítulo 6 discute a relação dos membros do fórum com a política municipal de saúde mental e as instâncias de gestão.

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Nas Considerações Finais são feitos apontamentos a respeito dos movimentos de resistência, do dispositivo do fórum na construção do cuidado em rede em uma conjuntura desfavorável e da implicação do pesquisador-membro do fórum.

Há também um Adendo com o relato de como foi a restituição coletiva da pesquisa e nos Anexos estão os roteiros de observação e de entrevista e os documentos relacionados às autorizações do Comitê de Ética em Pesquisa.

Espera-se que essa dissertação forneça contribuições para análises e intervenções no campo da saúde, que estimulem os trabalhadores a produzir conhecimentos e criar práticas mais críticas e qualificadas.

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INTRODUÇÃO

Nos serviços públicos de saúde, a construção de rede de cuidado para pessoas em sofrimento mental é desejável pela própria complexidade dos casos, que convida ao compartilhamento de conhecimento e práticas entre os diferentes profissionais e serviços, mas a tarefa convive com as adversidades da formação hegemonicamente especializada dos profissionais, dos modos de produção fragmentadores do cuidado, das limitações de recursos e ações, entre outras. Sem contar as contingências que ora sopram a favor ora contra as construções de maior entrelaçamento de relações e ampliação do alcance das práticas.

As indagações se encadeiam: como construir rede de cuidado agregando diversos profissionais e serviços de saúde atravessado pela lógica neoliberal que convida à produção de procedimentos, quase sempre, ignorando as necessidades da população e dos sujeitos que adoecem e recorrem aos serviços públicos de saúde? Ao priorizar o mercado na área da saúde, como produzir ações de cuidado com qualidade? Como coletivizar as ações agregando diversos conhecimentos multiprofissionais na elaboração de um projeto terapêutico num mundo atravessado pelos ideias neoliberais de individualismo e competitividade? E como ficam tais ações num município com histórico de implantação de serviços inovadores que tem sofrido com as fortes investidas da lógica da produção de mercado nas ações da saúde pública? E a saúde mental, que ocupa-se de sujeitos e populações marginais dessa lógica de competitividade e produção individual, como recebe os investimentos necessários para promover o cuidado? Aliás, em meio a tudo isso, o que é exigido do trabalhador, cuja tarefa é produzir cuidado na área de saúde mental em um município de grande porte, como Campinas, com o atual governo pautado por mecanismos de regulação a despeito do cotidiano desafiador? Como fica o trabalhador que, ao longo da sua trajetória, percebe as condições de trabalho precarizarem e aumentarem as dificuldades para articulação com outros serviços?

Tais perguntas estão entre os motores para o desenvolvimento desse trabalho, que procura encontrar respostas nas ações cotidianas de um grupo de profissionais com responsabilidade de cuidado em saúde mental alocados numa das regiões mais periféricas e vulneráveis do município de Campinas lançando mão da noção de resistência, entendendo que as relações sociais e as transformações nos serviços não ocorrem sem deparar-se com condutas críticas às pretensas mudanças.

O estudo desse grupo específico, do qual sou membro, parte do entendimento de que as práticas profissionais explicitam o conjunto de transformações sociais e institucionais que

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permeiam o trabalho cotidiano de suas ações e o fato de analisá-las, espera-se, ofereça material de conhecimento sobre tais atravessadores e como lidar com eles.

Motivam esse trabalho aspectos ligados à minha trajetória profissional e à conjuntura com influências neoliberal na saúde no nosso país e seus reflexos em Campinas/SP, em particular na área de saúde mental.

Trajetória profissional do pesquisador: contato com o trabalho em rede e com a resistência

Diversas problemáticas atravessam uma atividade profissional, mas algumas emergem com mais intensidade no cotidiano e no decorrer de uma trajetória de trabalho de cada pessoa. Certamente aquilo que se destaca, guarda relação com a história pessoal, a formação profissional e os fatos relevantes do momento, além de outros fatores mais ou menos evidentes. Mais do que influenciar na percepção dos fatos, tudo isso impulsiona as práticas profissionais.

Diante disso, apresento alguns fatos do meu percurso como profissional da saúde, para elucidar certas motivações para esse estudo e alguns pontos de ancoragem. Essa tarefa tem sua relevância, especialmente quando se utiliza do referencial teórico-metodológico da Análise Institucional, pois expõe traços da implicação do pesquisador.

Implicação é um conceito que foi desenvolvido no âmbito da Análise Institucional, cujos fundamentos foram desenvolvidos por René Lourau (2014) no qual não há menor expectativa de neutralidade, pois pesquisador está inserido no campo de observação, razão pela qual Lourau (2004) ressalta que a implicação deve ser incluída nas análises da pesquisa. Lourau (1993) afirma que a noção de implicação é o escândalo provocado pela AI, justamente por romper com a pretensão de “objetividade” da ciência, que recomenda a não implicação, ou seja, a neutralidade do pesquisador.

A implicação, segundo Barbier (1985), contempla três dimensões – psicoafetiva, histórico-existencial e estrutural-profissional – e é definida como:

o engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua práxis científica, em função da sua história familiar e libidinal, de suas posições passada e atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto sócio-político em ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de conhecimento. (Barbier, 1985, p.120)

Na minha trajetória profissional, percebo que a questão do trabalho envolvendo diferentes profissionais e serviços é algo presente desde os estágios na graduação em Psicologia na USP de Ribeirão Preto, certamente relacionada às escolhas por inserções em serviços públicos.

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Em 2004, animado com a proposta da Saúde da Família que almejava um trabalho multiprofissional mais próximo à comunidade, fui estagiar numa unidade de atenção básica, onde tive contato com conflitos no processo de trabalho que envolviam: dificuldades no relacionamento pessoal, relações entre as diferentes profissões, a falta de caracterização de algumas profissões, divergências profissionais, convívio de diferentes modelos na mesma unidade de saúde1, e a relação

da unidade com a comunidade, com outros serviços e outras instâncias de gestão. O grupo de estagiários era estimulado a tratar das questões que envolviam o trabalho em equipe na própria unidade de saúde, sem descolar das atividades mais específicas do psicólogo de todo o conjunto do cuidado em equipe.

Em outro estágio – no ano seguinte – pude vivenciar de forma mais clara que para conseguir desenvolver uma atividade esperada de um psicólogo, era necessário enfrentar dificuldades na organização do trabalho, na relação com os funcionários, com a coordenação local e com o contexto social do estabelecimento e sua população. Nesse caso, tinha a tarefa de realizar uma atividade educativa com um grupo de crianças e outra com adolescentes num estabelecimento da Assistência Social localizado na periferia de Ribeirão Preto/SP operado, quase completamente, por funcionários sem qualquer formação específica e recusados em outros serviços da prefeitura.

Essas experiências me proporcionaram a percepção do quanto a prática profissional está atravessada pelos arranjos da organização, exigindo análises e ações para além da atividade em si.

Terminada a graduação, passei a atuar na área da saúde, especialmente na Atenção Básica. Fiz Aprimoramento Profissional em Psicologia em Saúde Pública pela Universidade Estadual Paulista (Unesp)/Botucatu em 2006 e Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) entre os anos de 2007 e 2009.

No Aprimoramento, as minhas atividades concentraram-se na área de saúde mental do Centro de Saúde Escola, que mantinha um funcionamento ambulatorial com profissionais responsáveis por atividades específicas – atuando individualmente – e poucas articulações de trabalho em equipe. O acesso para os usuários era limitado a determinados períodos em que a equipe fazia triagens e colocava-os em lista de espera. Insatisfeito com a forma de funcionar desse serviço, sobretudo por notar que ela não atendia às necessidades dos usuários, elaborei um projeto de pesquisa sobre o trabalho em equipe na área de saúde mental desse centro de saúde, proporcionando o contato com a literatura sobre o tema.

1 A equipe geral do serviço era subdividida em duas: uma parte operava na lógica mais tradicional com uma divisão de

trabalho mais bem definida, enquanto a outra, ao adotar o modelo do Programa de Saúde da Família, almejava a formação de um cuidado com mais aproximação entre seus membros.

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A Residência, por outro lado, colocou-me em contato, desde o início, com diversos atravessamentos da prática profissional. Eu fazia parte da primeira turma do curso na Universidade Federal de São Carlos e havia necessidade de construir a própria Residência junto à Universidade e à Prefeitura Municipal de São Carlos/SP, o que exigiu a participação em diversas reuniões e comissões. Eram muitos desafios: a formação em serviço, o exercício da profissão de psicólogo na Estratégia Saúde da Família, a presença de diversas profissões de saúde no mesmo programa, o financiamento do programa, a relação com as equipes, a relação com tutores e preceptores. Todos foram aspectos relevantes ao longo dos dois anos da residência, que exigiram reflexões a respeito da minha atuação como residente, como psicólogo e como profissional de saúde; bem como do Sistema Único de Saúde (SUS), seus desafios e meios de sustentação. Isso tudo exigia e proporcionava atuações coletivas, muitas vezes num campo de disputa de interesses, o que ainda não havia experimentado com tanta intensidade na minha trajetória profissional.

O meu primeiro contato com as ideias do SUS havia sido na graduação, mas a Residência foi o período em que me senti mais convocado a atuar a seu favor, pois estava em contato com atuação ético-política de diversos profissionais em formação para a construção de práticas transformadoras no cuidado junto aos usuários e desafiado por um programa que, baseado no quadrilátero da formação proposto por Ceccim e Feuerwerker (2004), aspirava uma noção ampla da saúde abarcando aspectos do ensino, gestão, atenção e controle social. A saúde colocada em uma dimensão mais ampla levou-me ao contato com autores como Gastão Wagner Souza Campos, Emerson Elias Merhy e Luiz Carlos Cecílio, que nos alimentava com discussões que borravam esses quatro aspectos e oferecia instrumental de trabalho com conceitos-ferramentas como acolhimento; clínica ampliada; apoio matricial e institucional; núcleo e campo de saber; tecnologias leve, leve-dura e dura; trabalho vivo; necessidade de saúde etc.

Particularmente interessado no cuidado em rede, desenvolvi uma pesquisa para a conclusão do curso2, em que entrevistei profissionais de saúde mental dos diversos serviços de São

Carlos. No estudo, verifiquei uma lógica de cuidado bastante desarticulada, com os serviços encerrando-se em si mesmos, com profissionais isolados e sem poder de ação coletiva e propositiva. Havia queixas e propostas em cada local, mas nenhuma articulação com outros serviços.

Durante a Residência, entretanto, vim para Campinas/SP fazer um estágio eletivo no Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (CAPS ad) Independência – parte do Serviço

2 DOBIES, DV; FIORONI, LN. A assistência em saúde mental no município de São Carlos/SP: considerações sobre

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de Saúde Dr. Cândido Ferreira3 – motivado pelas informações a respeito da história do município

na área de saúde mental, que indicava um funcionamento na perspectiva do Modo de Atenção Psicossocial4. Estava interessado, sobretudo, no cuidado aos usuários de álcool e outras drogas em

um serviço que fosse aberto, com proposta de atuação em rede e orientado pela Estratégia de Redução de Danos5. A escolha por um serviço destinado a esse público específico ocorreu porque

encontrava dificuldades na minha prática junto a ele, num município onde não havia serviços de referência para a população adulta6 e os usuários em estado mais grave, num modelo de atenção

mais manicomial, eram encaminhados para internação em hospital psiquiátrico na cidade vizinha (Araraquara/SP), onde poderiam normativamente permanecer por um período de 5 a 28 dias.

Nesse estágio no CAPS ad, acompanhei como a equipe buscava construir projetos terapêuticos singulares, com ampliação de formas de cuidado sem pautar-se por definições protocolares, e também tive contato com a rede de saúde mental do município, participando inclusive de reuniões externas. A diversidade de serviços, assim como os arranjos que proporcionavam encontros e a presença de profissionais com a incumbência de articular os serviços da rede (apoiadores), permitiram vislumbrar um tipo de trabalho muito diferente do que estava acostumado em São Carlos, ampliando a dimensão de possibilidades de cuidado na saúde mental. Cerca de quatro meses depois de terminar a residência – junho de 2009 – fui contratado por esse mesmo CAPS ad, onde atuo até hoje. No cotidiano desse serviço, a construção do cuidado em rede é algo muito presente, pois a grande maioria dos usuários apresenta um acúmulo de perdas de vínculos sociais, comprometimentos clínicos e são frequentemente marginalizados socialmente, inclusive nas unidades de saúde. Tais condições convocam os profissionais do CAPS ad a intervenções em outros serviços da saúde e de outros setores para a ampliação do acesso desses usuários e melhoria na qualidade de tratamento.

Na construção do cuidado em rede a partir de um CAPS ad, é frequente a necessidade de enfrentar o julgamento moral – típico do tratamento moral embutido no modo asilar – que

3 Entidade filantrópica conveniada com a prefeitura municipal. Mais sobre ela será apresentado ainda na Introdução. 4 O Modo Psicossocial faz referência ao cuidado promovido por diversos serviços de base territorial, valorizando o

convívio do sujeito em sofrimento mental com a comunidade. É operado numa perspectiva multidisciplinar e intersetorial, com entendimento de que o sofrimento mental está relacionado a aspectos sócio-econômico-político, para além do puramente individual. Mais sobre o Modo de Atenção Psicossocial será tratado no decorrer dos capítulos, sobretudo no Capítulo 1.

5 A Estratégia de Redução de Danos destaca a possibilidade de ações serem desenvolvidas para que se reduzam os

danos decorrentes do uso de substâncias psicoativas sem necessariamente interferir no consumo, muito menos pautar-se exclusivamente pela abstinência, aprepautar-sentando alternativas de local de uso, utilização de insumos mais pautar-seguros, oferta de espaço de escuta e cuidados clínicos sem exigências de interrupção do uso etc. Pauta-se pela contratualidade e corresponsabilização, na qual o profissional deve ofertar cuidados possíveis evitando julgamentos morais e respeitando a singularidade do usuário. Mais sobre Redução de Danos pode ser conferido em: Marlatt (1999), Lancetti (2008), Sampaio e Freitas (2010) e Brasil (2004a).

6 Nesse período, o único serviço de São Carlos que oferecia tratamento para pessoas em uso nocivo de substâncias

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muitos profissionais de saúde ainda recorrem quando estão diante de pessoas que fazem uso nocivo de álcool e outras drogas, impondo-lhes, por exemplo, o isolamento social como única forma possível para o enfrentamento do problema. Ou seja, estamos falando de um trabalho de desconstrução de concepções preconceituosas-excludentes e construção de uma abordagem na lógica da redução de danos, com ampliação de possibilidades de cuidado inserido no território, exigência de uma escuta mais qualificada dos profissionais às questões dos usuários e mais dedicação na montagem de projetos terapêuticos singulares com participação efetiva desses na sua formulação. Um trabalho que muitas vezes é conflitante com ações nos seus diferentes âmbitos de governos, comumente, submetidas à lógica de isolamento/abstinência e que serve às vezes para financiar comunidades terapêuticas privadas7, onde a pessoa passa meses sem contato com a

família, o trabalho e a sua comunidade.

Embora o modelo manicomial do isolamento tenha apresentado todas as suas limitações e exista a prerrogativa do cuidado em rede e de base territorial presentes nas políticas ministeriais para os usuários de substâncias psicoativas, o contexto apresentado acima expõe as barreiras ao compartilhamento do cuidado desses usuários, que favorecem o isolamento do CAPS ad na responsabilização por esse cuidado, quando não o desvaloriza. Isso impõe desafios, por exemplo, às ações de matriciamento8, que é um arranjo comumente utilizado para a articulação

entre os serviços no município de Campinas. Tanto que, dentre as diversas tentativas de estruturação de matriciamentos das quais participei ao longo da minha trajetória no CAPS ad, houve apenas três em que esse arranjo foi efetivamente estabelecido.

Paralelo a isso, pude experimentar grandes mudanças na equipe de trabalho desse CAPS ad, a ponto de ser hoje um dos três funcionários mais antigos do local. As constantes mudanças trouxeram questionamentos dos colegas mais novos a respeito das minhas posições e defesas de um “jeito de funcionar” do serviço. Assim, experimentei ser colocado no lugar de

7 As comunidades terapêuticas surgiram após a II Guerra Mundial juntamente com outros movimentos de contestação

às instituições psiquiátricas asilares. Tinham como propósito criar um ambiente terapêutico que, contrapondo-se ao ambiente hospitalar, fosse mais horizontal e valorizasse o potencial terapêutico dos próprios pacientes. Entretanto, atualmente o termo “comunidade terapêutica” comumente denomina locais destinados ao “tratamento” de usuários de substâncias psicoativas, são geralmente vinculados a igrejas e adotam mecanismos restritivos e coercitivos, orientados por um viés moral. Nos últimos anos, o financiamento governamental a tais entidades tem crescido. Mais sobre essa “transformação da comunidade terapêutica”, conferir em Amarante (2007, p. 43), Fossi (2013) e Maurer (2014).

Campinas foi o primeiro munícipio a aderir ao Programa Recomeço do Governo Estadual em 2013. Atualmente dispõe de 700 vagas para permanência de até seis meses em comunidade terapêutica. Cada vaga ocupada significa um repasse mensal de R$1.350,00 do governo para a comunidade terapêutica ( http://www.campinas.sp.gov.br/noticias-integra.php?id=27509).

8 O matriciamento ou apoio matricial, que é um arranjo para promover retaguarda técnico-assistencial de serviços

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instituído9 ou cristalizado. Um lugar diferente do que havia experimentado no Aprimoramento, na

Residência e no início do trabalho no CAPS ad, quando eu provocava os “antigos” e questionava as suas práticas como simplesmente “envelhecidas”, muitas vezes sem uma compreensão mais ampla do contexto e das exigências do trabalho. Estar numa posição de instituído, estimulou reflexões e a ponderação de que nem sempre algo apresentado como “novo” significa ser melhor. Pelo contrário, notei como algumas mudanças podem dar movimento e ser positivas, mas também podem precarizar e desqualificar o trabalho. As contradições institucionais apresentaram-se, desde então, mais complexas, bem como as razões para se resistir a determinadas propostas ou concepções e recusar-se a adotar certas práticas.

Em 2012, a convite de uma amiga, fiz a disciplina oferecida pela Professora Doutora Solange L’Abbate: “Tópicos de Ciências Sociais em Saúde – Análise Institucional: teoria e prática em Saúde Coletiva” na pós-graduação da Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O conteúdo abordado e as discussões começam a fornecer instrumental para análise das minhas práticas profissionais na complexa dinâmica institucional. No ano seguinte, passei a frequentar o Grupo de Pesquisa “Análise Institucional & Saúde Coletiva” e comecei a pensar em um tema para o Mestrado.

A noção de resistência carregada de contradição despertou interesse pela possibilidade de trazer elementos para a compreensão dos movimentos dos sujeitos nos serviços de saúde.

No início de 2013, elaborei um pré-projeto para discussão no grupo de pesquisa em que propunha uma investigação sobre como os trabalhadores de uma unidade de saúde no município de Campinas operavam a resistência, considerando os momentos, os espaços, os recursos, as parcerias, e as ações. Apresentei a noção ainda vaga de resistência como movimento que pode tanto sustentar boas práticas e promover inovações mesmo diante de um contexto desfavorável, quanto impor barreiras associadas ao comodismo na prática corrente sem abertura para novas propostas. Ao submeter o meu projeto de investigação no processo seletivo do Mestrado em Saúde Coletiva, em outubro de 2013, elegi uma unidade de atenção básica como local de estudo, considerando o potencial de atravessamentos institucionais no cuidado longitudinal de usuários que percorrem diversos serviços de saúde.

No decorrer do primeiro ano do Mestrado, a questão da resistência dos profissionais sempre esteve presente como algo que pretendia estudar, mas a dificuldade de definir melhor como

9 Esse é um dos componentes do movimento dialético do conceito de instituição, que deve ser analisado na relação

com o instituinte e a institucionalização. Essa definiçãoelaborada por René Lourau será apresentada no Capítulo 2. Por enquanto, seguindo as palavras de Lourau (2004a, p. 47) adianta-se que: “No ‘instituído’ colocaremos não só a ordem estabelecida, os valores, modos de representação e de organização considerados normais, como igualmente os procedimentos habituais de previsão (econômica, social e política).” (aspas do autor).

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estudá-la no âmbito da atenção básica sugeria a necessidade de um estudo exploratório prévio. O tempo, no entanto, era escasso para essa tarefa.

Curiosamente, enquanto quebrava a cabeça com esse impasse, apresenta-se diante de mim, um grupo de profissionais que estava desenvolvendo uma prática de cuidado em rede, enfrentando ataques à sua continuidade. Frequentava esse grupo há cerca de seis meses, desde uma mudança no arranjo interno do CAPS ad que me levou a “matriciar” outros CS’s. Logo nas primeiras idas às unidades, tive contato com esse grupo lutando para manter os três encontros mensais, contrapondo-se a uma decisão encaminhada na reunião com os gestores locais e distritais que indicava a diminuição para dois encontros. Deparei-me com movimentos de resistência dos profissionais para sustentar o mesmo número de encontros, pois eles atribuíam grande relevância desse espaço para promoção de práticas qualificadas de cuidado aos seus usuários. De fora e antes de participar desse fórum, concordava com a proposta dos gestores, mas ao entrar passei a entender a necessidade dos encontros mais frequentes e, inclusive, comecei a defender essa ideia.

A minha participação num coletivo de trabalhadores comprometidos com a construção do cuidado articulado em saúde mental em uma microrregião de alta vulnerabilidade social, num contexto municipal em que os arranjos inovadores estruturados ao longo da história atravessam um momento crítico, colocou-me diante da seguinte questão: Como sustentar na prática o compromisso ético-político do cuidado em rede num contexto desfavorável, pautado pelo enrijecimento jurídico e organizacional e baixo investimento em inovações peculiares a cada território?

A complexidade das situações vivenciadas pelos usuários de saúde mental exige a articulação entre serviços, convocando os trabalhadores a lutarem pela sustentação de um cuidado em rede. O histórico desse tipo de construção e de formação de espaços coletivos no município de Campinas faz com que certas práticas resistam, mesmo em momentos mais críticos. Além disso, o investimento em espaços coletivos é uma forma utilizada para enfrentar esses momentos, pois permite aos profissionais uma análise mais abrangente do contexto e das suas próprias práticas.

Apesar desses pressupostos oferecerem explicações pertinentes à questão anterior, surgem outras: O que faz um coletivo movimentar-se para manter o seu funcionamento? Como um coletivo faz para sustentar a sua prática? Quais são os enfrentamentos necessários? Por que alguns profissionais insistem numa prática que não recebe valorização do governo?

Explorar a noção de resistência foi se mostrando ser um caminho pertinente em busca de algumas respostas a essas indagações. Dessa forma, ao ter contato com aquilo que tinha interesse em estudar ocorrendo numa das minhas frentes de trabalho, oportunamente, senti-me convocado a abordar a resistência de perto, na minha prática e na desses meus colegas.

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Investigar como ocorre, em seus meandros, a implantação de um cuidado de saúde mental em rede no cotidiano dos trabalhadores mostrou-se relevante, pois estudos10 apontam que

transformações, visando o aperfeiçoamento da atenção em saúde mental, efetivam-se, principalmente, pela prática dos trabalhadores.

Elaborei, então, uma mudança no projeto de pesquisa de modo que a construção do cuidado de saúde mental em rede passou a ser o ponto de partida para a análise das práticas profissionais e os movimentos de resistência. Agora, ao invés da necessidade de uma pesquisa exploratória que denunciava um distanciamento meu com o objeto, o estudo tornou-se um desafio por ser algo muito próximo e dentro da minha prática e com os participantes sendo meus colegas de trabalho.

As práticas profissionais, contudo, devem ser tomadas na sua dimensão institucional, incluindo elementos presentes na conjuntura social, sobretudo, na especificidade desse estudo, aqueles da área da saúde, tal como o neoliberalismo, que é marcante no processo de trabalho dessa área.

O impacto dos avanços neoliberais nas condições de trabalho no SUS: como resistir?

Ainda que a abordagem desse estudo esteja localizada no âmbito de serviços públicos e o neoliberalismo faça forte referência ao setor privado, não devemos desprezar o quanto a sua entrada nas instâncias do Estado é necessária para concretização dos seus ideias, pois não se trata apenas, como alerta Cardoso e Campos (2013), de uma dicotomia “mais x menos Estado”, mas de uma reconfiguração do papel do Estado que passa a destinar suas ações a proteção de interesses financeiros e de mercado a despeito do provimento dos direitos sociais.

Para Santos (2014), o neoliberalismo iniciado nos anos de 1980 pela hegemonia da acumulação financeira especulativa, provocou as seguintes estratégias concretas:

financeirização dos orçamentos públicos; desregulamentação financeira; privatização de funções estatais republicanas; criação de agências globais de risco financeiro e seu controle sobre as finanças dos países, suas moedas, o mercado de capitais e os próprios países; Estado mínimo (subentendido máximo para bancar a hegemonia financeira e bancária); desmonte das conquistas sociais com base em políticas setoriais universalistas de qualidade para os direitos humanos básicos como educação, saúde, transporte, trabalho, segurança e outros, com transferência dessa função ao mercado; generalizada redução da soberania dos Estados nacionais. (p.1)

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Além disso, o mesmo autor acrescenta que o neoliberalismo, por meio de seus intelectuais orgânicos e comunicadores sociais, inculca nos vários segmentos sociais determinados valores-guia para ascensão social que maximiza:

o poder de consumo de bens e serviços no mercado visando o bem estar, a satisfação de direitos, a estabilidade e ascensão; o direito do consumidor acima do direito humano de cidadania; o desempenho na capacidade das pessoas de vender produtos e inovar processos de venda (empreendedorismo), não raro valendo-se de critérios enganosos de bem-estar social; a precedência do valor de mercado sobre os demais valores; e a “ideia-força” direcionada a jovens e adultos, de que na vida é natural e inescapável vir a ser vencedor(a) ou perdedor(a) (p.2-3, aspas do autor). Tais bandeiras erguidas pelo neoliberalismo merecem ser consideradas uma vez que permeiam as decisões e as relações de trabalho e de cuidado na área da saúde.

Concomitante à constituição do SUS, o neoliberalismo ganhava força no cenário mundial, redefinindo, entre outras coisas, o papel do Estado e das relações de trabalho. Tal modelo, que fortalece a ideia de um valor de mercado aos bens sociais como a saúde, também atinge o Brasil.

O SUS, mesmo sendo uma vitória do projeto de saúde público e universalista frente ao projeto liberal-privatista, não eliminou investidas de mercado na área da saúde. Como comenta Campos (2007, p.1869):

Nestas duas décadas de luta pelo SUS, observa-se uma tensão permanente entre o projeto do SUS e o derrotado (valeria interrogar-se sobre esta afirmação) projeto liberal-privatista. Esta vitória da concepção pública sobre o modelo de mercado ocorreu em um contexto em que o neoliberalismo era econômica, cultural e politicamente dominante. Uma vez aprovada a legislação que sustentava o SUS, a oposição liberal-conservadora não abaixou sua bandeira e retirou-se tímida para seu canto, observando ordeiramente a gloriosa implementação do SUS pelas forças da reforma sanitária. Nada disto; ao contrário. [...] A resistência ao SUS deslocou-se da discussão de princípios, em torno de grandes diretrizes, para elementos pragmáticos da implantação do acesso universal a uma rede ‘integral’ de assistência, procurando, contudo, sempre, buscar meios para atendê-los segundo seus interesses corporativos e valores capitalistas de mercado. Resistência permanente a cada programa, a cada projeto e cada modelo de gestão ou de atenção sugerido segundo a tradição vocalizada pela reforma sanitária. A convivência na democracia é variada e múltipla: a derrota de atores sociais e de seus projetos é situacional e costuma não os eliminar do cenário político e institucional. Assim os interesses e valores derrotados

sempre retornam, sempre, ainda que travestidos com a moda conveniente em cada conjuntura. (aspas do autor e negritos meus)

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O embate é atual como se verifica na Carta de Goiânia11, apresentada no encerramento

do Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva realizado em 2015, na qual pesquisadores, docentes, estudantes, profissionais e militantes da Saúde Coletiva manifestam seu desacordo com os rumos do governo federal:

Na saúde, em que tantas conquistas têm sido alcançadas nos 27 anos de SUS, o período recente tem sido marcado por retrocessos: a derrota do Projeto de Lei de Iniciativa Popular que estabelecia o piso de 10% das Receitas Correntes Brutas da União para a saúde, a constitucionalização do subfinanciamento com a Emenda Constitucional 86, aliadas ao reforço da mercantilização e da financeirização da prestação de serviços de saúde com a legalização da abertura de capital estrangeiro, além da proposta de emenda à Constituição (PEC 87/2015) que prorroga a Desvinculação de Receitas da União (DRU) até 2023 e amplia de 20% para 30% o percentual das receitas de tributos federais que podem ser usadas livremente. Ressalta-se ainda a drenagem de recursos para o pagamento de uma dívida pública jamais auditada.

O Brasil está, portanto, diante de ameaças concretas à saúde da população, aos profissionais de saúde e à sustentabilidade da proteção social garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde sua criação em 1988. Apesar das inúmeras evidências demostrando que o sistema que defendemos, solidário e universal, é mais eficiente que o mercantil privado, assiste-se uma reorganização das políticas e práticas em benefício de interesses econômicos particulares.

Mas cabe recordar que, desde o início, a proposta do SUS é marcada pela contradição entre a garantia do direito à saúde pelo Estado proposta pelo SUS e a proposta neoliberal de submissão do Estado às regulamentações de mercado. Segundo Cardoso e Campos (2013), é possível listar três elementos desse contraditório processo construtivo do SUS: 1) A coexistência de um setor privado de seguro saúde, que favoreceu a criação de uma política focalista; 2) A estruturação do Estado, que provocou uma sucessão de ataques ao financiamento dos direitos sociais; 3) Os limites de despesa com pessoal, que fez surgir novas formas de gestão da força de trabalho. Santos (2014), aliás, afirma ser equivocado dizer em desmonte do SUS, pois observa que ele ainda não foi montado, permanecendo a sua montagem na contra-hegemonia.

Com a argumentação de que a administração pública apresentava entraves para a execução de uma gestão que pudesse atender às necessidades de saúde da população de maneira adequada, aparecem alternativas de caráter neoliberal para esse setor.

Na segunda metade dos anos 90, foi regulamentado que entidades privadas ou de direito privado passassem a gerenciar serviços de saúde pelo Brasil. Essas leis procuraram regulamentar a atuação dessas entidades para a realização de serviços públicos, ao invés de reformar

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as velhas estruturas do Estado, que dificultavam a gestão. Essa reforma, reconhecidamente parcial, é apontada como uma alternativa para a melhoria da gestão dos serviços públicos de saúde, mas não como “a solução”, desde que respeite quatro premissas: 1) Subordinação à política de saúde do nível de governo onde a organização se inserir; 2) Legalidade; 3) Eficiência gerencial; 4) Capacidade de controle do Estado sobre execução e resultado das organizações (Ibañez e Vecina Neto, 2007).

Ibañez e Vecina Neto (2007) destacam, sobretudo, a Fundação Estatal de Direito Privado como a principal alternativa a ser adotada. Cardoso e Campos (2013) criticam esse modelo de gestão a partir da análise de um documento de uma dessas fundações. Mesmo sendo esse tipo de fundação o modelo mais próximo do funcionamento público, esses autores identificam, no documento desta fundação, os principais elementos das reformas neoliberais: a acomodação ao ajuste fiscal, a retirada de direitos dos trabalhadores e a lógica corporativa na gestão dos serviços de saúde. Além disso, esse modelo, segundo esses autores, não interfere nas estruturas que dificultam o avanço da universalização com qualidade dos serviços de saúde no país.

O maior prejuízo advindo dessas novas formas de gestão atinge principalmente os direitos básicos dos trabalhadores, pois há uma ausência de regulação das condições de trabalho, do cumprimento de metas para avaliação de desempenho e da carga horária (Martins e Molinaro, 2013). Os autores destacam ainda um contexto individualizante e competitivo, no qual cada profissional torna-se responsável pela própria formação para manter-se empregável.

Sobre esse modelo individualizante e competitivo nas relações de trabalho, Souza e Cunha (2013) afirmam que o neoliberalismo transcendeu as políticas econômicas e tornou-se um suporte cultural e ideológico que transformou a avaliação, que tinha potencial crítico e reflexivo do trabalho, em método de gestão e controle com foco nos indivíduos e desprezo pelas condições coletivas e sociais. Desse modo, coloca-se o indivíduo em uma situação de permanente avaliação de si mesmo, num controle individual e acrítico da própria produção. Os autores afirmam que esse tipo de avaliação avança na gestão e nas relações de trabalho da saúde.

O neoliberalismo e seus efeitos distribuídos pela nossa sociedade não favorecem o trabalho no âmbito da saúde, muito exigente com o trabalho em equipe e com a qualificada articulação entre os serviços para atender às singulares necessidades dos usuários. Por essas razões, o trabalho em saúde precisa ser coletivo e qualquer redução ao trabalhador individual seja para responsabilização, formação ou avaliação de um serviço promove competição e culpabilização, sem qualquer potencial para transformação do processo de trabalho.

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A fragilidade da relação do trabalhador com o seu local de trabalho e de uma dimensão mais coletiva entre esses trabalhadores tendem a dificultar a análise do próprio trabalho, do coletivo, da articulação com outros serviços e das políticas de saúde.

De uma forma ou de outra, os trabalhadores promovem algum tipo de reação, pois há brechas nas estruturas que permitem movimentos de crítica e contraposição. Eles não são tábulas rasas, mas pessoas com concepções e desejos, como nos alerta pesquisadores como Merhy (2013), Campos (2000) e Cecílio (2007).

A formação de coletivos é uma estratégia importante para potencializar a criação e a produção, em contraposição à lógica individualista neoliberal de competição e reprodução. Há políticas públicas com essa pretensão, dentre elas podemos destacar a Política Nacional de Humanização (PNH).

Heckert et al (2009, p.495) enfatizam esse posicionamento, fazendo referência a uma transformação ético-estético-política no campo da Saúde:

A discussão da PNH nos vários espaços do SUS tem revelado sua força, traduzida em diferentes dimensões: de reposicionamento dos sujeitos na perspectiva de seu protagonismo, autonomia e corresponsabilidade; da potência do coletivo; da importância da construção de redes de cuidados compartilhados, em contraste com o mundo contemporâneo caracterizado pelo individualismo e pela competição que transforma a agonística do campo social em antagonismos. A força da PNH vem, então, apontar para o compromisso com uma posição ético-estético-política no campo da Saúde. Ética porque implica mudança de atitudes dos usuários, dos gestores e trabalhadores de saúde, de forma a comprometê-los como corresponsáveis pela qualidade das ações e serviços gerados; estética por se tratar do processo de produção/criação da saúde e de subjetividades autônomas e protagonistas; política, porque diz respeito à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede do SUS.

A PNH, em vigor desde 200312, reconhece a existência de precariedade nas condições

de trabalho e o baixo investimento em formação para os trabalhadores no SUS, e a consequente má qualidade na relação com os usuários e baixa capacidade de produção de saúde. Indica a necessidade de ampliar um funcionamento mais participativo dos serviços e redes de saúde, que incorpore as dimensões subjetivas envolvidas nessas relações. Com as ações no cotidiano das unidades de saúde, em todas as relações que forem estabelecidas, não limitando aos espaços formais de construção coletiva.

12 Em anos anteriores, houve iniciativas localizadas ou pontuais que utilizaram a noção de humanização, tais como:

Programa Nacional de Humanização da Atenção Hospitalar e o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento; o Método Canguru; o Programa de Acreditação Hospitalar (Souza e Mendes, 2009).

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Essa política destaca que não pretende reforçar a verticalidade, que dita o funcionamento dos serviços e as relações a serem estabelecidas, mas extrair de forma participativa como melhorar a qualidade de assistência aos usuários e condições para a sua execução. A humanização a que se refere essa política destaca a necessidade de incluir a análise do funcionamento do serviço e as possibilidades de transformá-lo a partir de decisões e arranjos construídos na coletividade (Brasil, 2004; Brasil, 2008).

A humanização é definida como “aumentar o grau de corresponsabilidade dos diferentes atores que constituem a rede SUS, na produção da saúde, implica mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho” (Brasil, 2004, p.7). A gestão e a atenção à saúde são colocadas, portanto, como indissociáveis, na perspectiva de que a participação dos trabalhadores na gestão amplia possibilidades de estabelecer uma dinâmica mais crítica e comprometida (Brasil, 2004; Brasil, 2008).

Em síntese, Heckert et al (2009) enumeram os seguintes princípios metodológicos da PNH: “1) a transversalidade, entendida como aumento do grau de abertura comunicacional intra e intergrupos; 2) a inseparabilidade entre atenção e gestão; 3) o protagonismo dos sujeitos e coletivos” (p.495). E como diretrizes: “a ampliação da clínica; a cogestão e a participação; os direitos dos usuários; a valorização do trabalho e do trabalhador; o acolhimento; a ambiência; o fomento das redes.” (p.495)

Evidentemente, não se deve esperar a superação do neoliberalismo nas relações de trabalho na saúde simplesmente com a implantação da PNH, pois o neoliberalismo é um modelo complexo e disseminado. Como reconhecem Heckert et al (2009), trata-se de uma política concebida dentro da máquina do Estado, que depende do crescimento do coletivo da PNH para capilarizar os princípios e diretrizes pelos diversos serviços a fim de transformá-la em uma política pública, uma política do coletivo. Entretanto, a proposta da PNH, resistindo à lógica individualizante e produtivista, abre brechas que podem ser estrategicamente utilizadas para movimentos de criação e de resistência.

O conceito de humanização, entretanto, é alvo de algumas ressalvas. Souza e Mendes (2009) apontam que a sua polissemia facilmente leva a concepções assistencialistas e formalistas, que jogam contra as propostas da PNH. Heckert et al (2009) entendem essa polissemia e também a imprecisão do conceito abrem espaço para distintas apropriações, que podem adotar um caráter mais voltado à melhoria nos relacionamentos interpessoais entre profissionais e usuários ou uma busca por uma maior qualificação do cuidado ou por melhores condições de trabalho. O mais problemático nessa diversidade de entendimentos é reduzir a humanização numa dimensão mais

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intimista apartada das lutas políticas e sociais. Os autores concluem que a humanização referida na PNH não deve se pautar pela definição de um homem bom ou ideal, de tal forma que:

A construção de um sentido possível para a expressão Humanização da Saúde se expressa na PNH em um novo posicionamento que afirma um

homem comum (com artigo indefinido), um ser humano na sua existência concreta, na sua diversidade normativa e nas mudanças que experimenta nos movimentos coletivos (p.498, grifos dos autores).

Mais radical nas críticas, Fuganti (2009) ressalta que apelar para o humanismo pode ser arriscado, justamente por delimitar um modo de ser e fazer a todos, impedindo a criação. O filósofo, apoiado nas ideias de Nietzsche, resgata que o conceito de homem cultivado na contemporaneidade estaria encerrado num modo essencialmente reativo, investido na conservação. E vai mais longe ao dizer que não somos feitos apenas da forma humana, nem sequer temos formas, pois somos compostos por forças que criam o modo humano de ser e a abertura para a vida. Alerta para a arapuca da busca pela universalidade de valores que é uma maneira de falsificar a realidade e promover as piores atrocidades. Enfatiza a importância de viver as diferenças e a multiplicidade, e a buscar a autonomia investindo em “modos de se distanciar não só do Estado, seja como tirano ou como pai, mas de si mesmo, de seu espelho, das demandas de pertencimento e ‘autoestima’ promovidas por um outro em nós” (p.673, aspas do autor). A Saúde, para Fuganti, não deve colocar-se no mesmo patamar dessas instâncias que ditam um modo de ser, que procuram capturar todas as necessidades em suas práticas, para não servir, prometendo humanização, de um amortecimento político e social.

A humanização, vista dessa forma, aproxima-se mais de uma resignação do que força para o embate. Apesar da PNH anunciar pressupostos políticos de enfrentamento, essa concepção de humanização denuncia justamente o oposto.

A PNH, em que pese o seu apego à noção problemática de humanização, dá ênfase a movimentos coletivos num contraponto à perspectiva mais individualizante que atravessa o trabalho na saúde. Mas, esta não é a única estratégia, pois devemos considerar o potencial intrínseco do cotidiano dos serviços e das redes com suas múltiplas possibilidades de criação, com singularidades relacionadas ao local, ao período e aos sujeitos. Para além, inclusive, do aparato de políticas e ações do Estado.

Da inovação ao enquadre: a saúde mental campineira

Campinas foi pioneira na implantação de serviços e práticas de cuidado na área da saúde mental. No final da década de 1970, o município já contava com um ambulatório de saúde

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mental que mantinha aproximações com as unidades básicas, devido, sobretudo, à força de movimentos sociais que lutaram pela atenção pública à saúde e ao fato de muitas reivindicações desses movimentos terem sido contempladas por diretrizes da política municipal de saúde. E, nos anos 80, recebeu um ambulatório de saúde mental estadual e foram criadas enfermarias e serviços de urgência pelas universidades do município (Braga Campos, 2000; L’Abbate 2010).

Mas os ideais neoliberais também provocam efeitos num município com esse histórico, que são observados, por exemplo, na atual relação entre a prefeitura municipal e um importante parceiro na transformação da assistência em saúde mental, o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira. Relação que está cada vez mais próxima àquela anteriormente descrita entre o Estado e um ente não-governamental.

A parceria entre prefeitura e Cândido começa em 1990. Como explica Fonseca (2015): Em 1990, em decorrência de uma importante crise financeira e assistencial, os então mantenedores do Serviço buscaram apoio junto à Secretaria Municipal de Saúde, cujo titular então era o Prof. Dr. Gastão Wagner de Sousa Campos. Acordou-se, por proposta do então Secretário de Saúde, a publicização do Sanatório Dr. Cândido Ferreira, o que se deu mediante a Lei Municipal 6.215/90 de 9 de maio de 1990, “visando o funcionamento e gerenciamento comum de suas atividades nos termos de instrumento de convênio o qual faz parte integrante desta lei” (Art. 1º), reiterando-se que “o convênio tem por objetivo a administração conjunta do Sanatório Dr. Cândido Ferreira que passa a se integrar ao Sistema Municipal de Saúde e atender clientela universalizada” (Art. 2º). (aspas do autor)

Tratou-se, portanto, de um arranjo no qual o Cândido Ferreira foi praticamente incorporado à esfera pública. De tal forma, que a Lei 6.215/90 ficou conhecida como a “Lei de Cogestão”, pois aponta a responsabilidade compartilhada entre a entidade e a prefeitura.

Dentro da sua área de atuação, nos anos 90, o Cândido Ferreira implantou um Hospital Dia como alternativa à internação, algumas oficinas de trabalho com caráter terapêutico e de geração de renda, o primeiro centro de convivência aberto a membros da comunidade e, antecipando-se à regulamentação ministerial, implantou as primeiras moradias extra-hospitalares como alternativa para aqueles usuários que haviam se tornado “moradores” do hospital. Os dois primeiros CAPS foram criados pela prefeitura também nessa década (Fonseca, 2015).

A partir do início dos anos 2000, houve uma grande expansão de serviços pelo território com a criação de CAPS, CAPS ad e CAPS i, bem como a ampliação de oficinas de trabalho, centros de convivência e residências terapêuticas. Além da investida em arranjos para articulação entre esses serviços e a atenção básica, como o apoio matricial. Tais ações contaram com o incremento na parceria entre a prefeitura e o Cândido Ferreira (Fonseca, 2015; Figueiredo e Santos, 2008).

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