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Liberdade, Direito e Reconhecimento na Filosofia do Direito de Hegel

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Academic year: 2021

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Resumo

O propósito do estudo é identifi car e explicitar o papel desempenhado pelo reco-nhecimento na concretização e efetivação da ideia da liberdade na Filosofi a do Direito de Hegel. Isso signifi ca mostrar que a realização da vontade livre individual inclui necessariamente o reconhecimento dos outros e das instituições sociais. Dessa for-ma, direito, liberdade e reconhecimento passam por diferentes níveis de realização. O desafi o é demonstrar que, nessas instâncias de mediação, as vontades individuais não são enfraquecidas ou eliminadas, mas, porque mediadas e reconhecidas, são asse-guradas e fortalecidas. Com isso, é minimizada a suspeita de “consequências antide-mocráticas” que recai sobre a concepção do Estado hegeliano.

Palavras-chave: liberdade, reconhecimento, direitos fundamentais, eticidade.

Abstract

The purpose of this paper is to identify and explain the role of recognition in the implementation and actualization of the idea of liberty in Hegel’s Philosophy of Law. This amounts to showing that the realization of individual free will necessarily en-compasses the recognition of others and of social institutions. Thus, right, liberty and recognition pass through different levels of actualization. The challenge is to dem-onstrate that in these instances of mediation the individual wills are not weakened or eliminated, but, because they are mediated and recognized, are guaranteed and strengthened. Thus, the suspicion of “anti-democratic consequences” that is associ-ated with the conception of the Hegelian State is diminished.

Keywords: liberty, recognition, fundamental rights, ethical life.

Liberdade, direito e reconhecimento

na Filosofi a do Direito de Hegel

Liberty, right and recognition in Hegel’s Philosophy of Law

1 Doutor em Filosofi a (UFRGS). Professor dos Programas de Pós-Graduação em Filosofi a e em Direito. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,

Av. Ipiranga, 6681, Prédio 11, 90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil.

Thadeu Weber

1

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil weberth@pucrs.br

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Introdução

O tema do reconhecimento em Hegel é, tradi-cionalmente, vinculado à sua Fenomenologia do Espírito e aos seus escritos da juventude. A “reatualização” da Filosofi a do Direito, proposta por Honneth, reacendeu o debate sobre ela, sobretudo no âmbito da eticidade.

O propósito desse estudo é identifi car e expli-citar o papel desempenhado por aquele tema na con-cretização e efetivação da ideia da liberdade, enquanto princípio orientador de toda a estrutura jurídica e so-cial. Isso signifi ca mostrar que a realização da vontade livre individual passa necessariamente pelo reconheci-mento recíproco das vontades dos outros e das insti-tuições sociais. É, sobretudo, nestas, tratadas por Hegel na eticidade (terceira parte da Filosofi a do Direito), que se assegura o maior grau de efetivação da liberdade individual. Demonstrado isso, desfaz-se a suspeita de “consequências antidemocráticas” que repousa sobre o conceito de Estado.2 Direitos e liberdades individuais

não são enfraquecidas ou eliminadas, mas, porque me-diadas e reconhecidas, são asseguradas nas instituições do Estado.

É preciso insistir, no entanto, que, embora Hon-neth associe o reconhecimento principalmente a esta terceira parte da Filosofi a do Direito, ele já está desta-cado nas duas primeiras partes, o direito abstrato e a moralidade.

Direito, liberdade e reconhecimento são, pois, os temas centrais desse estudo. Passam por níveis de reali-zação. Dessa forma, é preciso indicar inicialmente como a liberdade constitui o princípio orientador da Filosofi a do Direito para, a partir disso, apresentar as instâncias de realização nas suas formas mais imediatas, tratadas por Hegel no “direito abstrato”. O foco é a realização da li-berdade nas coisas com destaque ao direito de proprie-dade. A dimensão que o reconhecimento assume como subjetividade é discutida no que o autor chama de “di-reito de moralidade” ou “di“di-reito da vontade subjetiva”. A ênfase não é a liberdade nas coisas, mas na própria subjetividade. Como o direito e a moralidade são ainda formas incompletas de concretização da vontade livre, a eticidade, como o lugar das mediações sociais e do desdobramento objetivo da liberdade, assume o verda-deiro espaço da realização da liberdade individual e do

reconhecimento recíproco. Isso é explicitado por meio da família, da sociedade civil e do Estado.

Nessas instâncias de mediação, o desafi o é mos-trar que as vontades individuais não são enfraquecidas ou eliminadas, mas, exatamente, porque mediadas e reconhecidas, estão mais fortalecidas e garantidas. Fa-lar, pois, em reconhecimento signifi ca mostrar como os direitos e liberdades são mediados e assegurados. Williams (1997, p. 101), parafraseando Hegel, diz que o mais importante direito “é o direito de ter direitos”. Esta proposição, segundo o comentarista, sugere uma questão central: Qual é “este direito absoluto e como é assegurado?” e indica sua proposta de interpretação afi rmando que “este direito absoluto é o direito ao re-conhecimento” (Williams, 1997, p. 240). Ora, a Filosofi a do Direito de Hegel é a mais ampla demonstração desse direito em seu movimento de mediações e estabeleci-mento de garantias.

A liberdade como princípio da

Filosofi a do Direito de Hegel

Hegel propõe-se a fazer uma “ciência fi losófi ca do direito”3, isto é, trata da ideia do direito e sua

realiza-ção. Ora, a ideia do direito é a liberdade. Dessa forma, a Filosofi a do Direito procura mostrar como as estruturas concretas do direito têm por base aquele princípio de organização. Hegel assume a liberdade como conquista da história e a adota como princípio organizador de sua Filosofi a do Direito. Uma ciência fi losófi ca do direito se en-carrega de explicitar e efetivar essa ideia fi losófi ca da li-berdade nas estruturas jurídicas e sociais. Isso signifi ca di-zer que para a ciência do direito o princípio que a orienta está dado, conforme expresso no segundo parágrafo da referida obra, mas fi losofi camente demonstrado. Cabe a ela mostrar como se concretiza. A Filosofi a do Direito não questiona aquilo que está expondo como realiza-ção e efetivarealiza-ção. Assim, de acordo com Hegel, o ponto de partida do Direito é a vontade livre e o “sistema do direito é o reino da liberdade realizada” (Hegel, 1986a, p. 46). Quanto às etapas do desenvolvimento dessa ideia da liberdade, o § 30 do texto em pauta é ainda mais ex-plícito: nomeia o direito, a moralidade, a eticidade e o próprio Estado como “fi guras” da determinação da liber-dade. Todas elas constituem um direito peculiar.4

2 A suspeita de consequências antidemocráticas é apontada por Honneth como um dos preconceitos frente à Filosofi a do Direito de Hegel. Com isso se quer dizer

que, nas mediações da liberdade nas instituições sociais, os direitos individuais são gradualmente enfraquecidos e “subordinados à autoridade ética do Estado” (Hon-neth, 2007, p. 48). A esse propósito, um dos mais duros críticos de Hegel é Popper, que o acusa de totalitarismo, uma vez que “quase todas as ideias mais importantes do totalitarismo moderno são diretamente herdadas de Hegel” (Popper, 1974, p. 69). Ver, também, Luft (2001, p. 191) e Flórez (1983, p. 238).

3 Tradução livre dos textos de Hegel, com comparações com a versão espanhola de Juan Luis Vermal, indicada nas referências (Hegel, 1988). 4 Sobre a liberdade como princípio orientador da Filosofi a do Direito de Hegel, ver Weber (1993, cap. 2).

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Para a ciência do direito, a ideia da liberdade não pode mais ser questionada quanto à sua validade. Ela está pressuposta como dada (cf. Hegel, 1986a, p. 30). O fundamento do direito é perene; cabe somente mostrar como ele se concretiza. A cada conteúdo novo atingido se constitui um novo nível de efetivação daquele funda-mento, isto é, um novo nível de determinação da von-tade livre. A liberdade é, inicialmente, só ideia, portanto, indeterminada. Requer, pois, desenvolvimento e concre-tização. Por isso que se pode falar em “libertação da indeterminação”, como faz Honneth.

Williams (1997, p. 133), em seu livro Hegel’s Ethics of Recognition, diz examinar a Filosofi a do Direito como uma “fenomenologia da liberdade intersubjetiva”. Quer localizar o conceito de reconhecimento e suas implica-ções por meio das análises hegelianas do direito abs-trato, da moralidade e da vida ética (cf. Williams, 1997, p. 133). Pretende com isso mostrar que o “reconheci-mento é a origem e o funda“reconheci-mento do conceito do direi-to” (Williams, 1997, p. 133) e não é somente importante para entender o conceito de liberdade. O direito de ter direitos é indiscutivelmente o direito mais nobre do cidadão. Este direito é o “direito de reconhecimento” (p. 240). Ou seja, “reconhecimento é o direito de ter direitos” (Williams, 1997, p. 101).

Liberdade e reconhecimento são, pois, objeto central da Filosofi a do Direito hegeliana. Não há efeti-vação de um direito e, por conseguinte, concretização da liberdade, ou vontade livre, sem o respectivo reco-nhecimento. Isso ocorre desde as primeiras formas de concretização da vontade livre, como, por exemplo, na efetivação do direito de propriedade, até a substanciali-dade ética do Estado.

Liberdade e consentimento

No movimento dialético de realização da ideia de liberdade, é no direito abstrato que, pela primeira vez, pode-se falar em consentimento e reconhecimento de vontades livres, ainda que do ponto de vista estri-tamente formal. Isso ocorre exaestri-tamente nas relações contratuais. O exercício da capacidade jurídica da “pes-soa do direito” na forma do direito de uso e do direito de troca requer o reconhecimento das partes (vonta-des livres) para a instituição da propriedade. Sem reco-nhecimento não há efetivação de um direito. É preciso entender que o direito é uma relação entre pessoas, na medida em que elas se reconhecem mutuamente. “A origem do direito, pois, coincide com o reconhecimento do outro como outro” (Williams, 1997, p. 117).

A realização da pessoa como sujeito de direitos tem no direito de propriedade seu primeiro direito

re-conhecido. Mas isso somente acontece na forma de um contrato. Marcuse (1978, p. 183), interpretando Hegel, o descreve assim:

A instituição da propriedade privada decorreu do livre-arbítrio da pessoa. Arbítrio que tinha, porém, um limite defi nido, qual seja, a propriedade privada de outras pessoas. Sou e continuo sendo proprietá-rio só enquanto renuncio, voluntariamente, ao direito de me apropriar da propriedade dos outros. Assim, a propriedade privada ultrapassa o indivíduo isolado, relacionando-o com outros indivíduos, igualmente iso-lados. O instrumento que, nessa dimensão, assegura a instituição da propriedade, é o contrato.

O contrato é a prova do consentimento e re-conhecimento de vontades livres, condição de sua va-lidade e legitimidade. Ele é o reconhecimento formal da propriedade dos outros. Só diz respeito às vontades livres das pessoas e à garantia do seu exercício e não se refere à qualidade da coisa em jogo. Se o direito de uso, decorrente do direito de posse, é a primeira forma de expressão da vontade livre, o direito de propriedade é aquele reconhecido. “O reconhecimento transforma a posse em propriedade” (Williams, 1997, p. 120). A posse, como contingência externa, requer o reconhecimento como necessidade interna, para se constituir em pro-priedade. Propriedade plena inclui uso e troca, direitos reconhecidos quando do contrato. Este é a expressão objetiva do consentimento e reconhecimento de duas vontades livres. Interessante observar que ainda esta-mos no nível das vontades individuais e imediatas, por-tanto, ainda eivados de indeterminação. Trata-se de um reconhecimento impessoal (formal) e que não envolve a intersubjetividade da moralidade. A libertação plena desse “sofrimento de indeterminação” ocorre na etici-dade, como veremos.

Williams (1997, p. 138) diz ser necessário admitir que no direito abstrato a ideia de intersubjetividade não é muito clara. Depois de examinar várias possibilidades de interpretação, sustenta a alternativa segundo a qual “há reconhecimento mútuo no direito abstrato, mas ele é formal, limitado e impessoal e, como tal, não é ainda a intersubjetividade da moralidade, muito menos da vida ética”. Isso está de acordo com a posição adotada neste texto: a de que o importante nas relações contratuais são as vontades livres das partes, abstraídas da base ma-terial. São, no entanto, vontades imediatas ainda destitu-ídas de mediação social.

É fundamental salientar que o reconhecimento mútuo dos contratantes, como “pessoas e proprietá-rios”, é pressuposto para a legitimidade do contrato.

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Por isso, o reconhecimento é a própria expressão da vontade livre dos contratantes. O exercício efetivo da liberdade depende do seu reconhecimento. Isso indica que “o direito está fundamentado no reconhecimento mútuo” (Williams, 1997, p. 138). O exercício do direito de propriedade, ou de qualquer outro direito, requer o reconhecimento dos outros. Os direitos referidos no direito abstrato só se afi rmam como tais na medida em que forem reconhecidos.

Um indivíduo só é livre, quando é reconhecido como tal e só obtém esse reconhecimento quando tem pro-vado, mostrado seu poder sobre as coisas exteriores, objetos de sua vontade, que podem levar a cabo uma apropriação. [...] O processo não se completa senão até que outros indivíduos consintam com essa apro-priação (Valcárcel, 1988, p. 331).

O texto da autora indica muito bem o papel do reconhecimento e do consentimento nas relações con-tratuais para a efetivação de um direito, no caso, o de propriedade. Elas requerem um reconhecimento mútuo de direitos e deveres. Sem isso não há efetivação de vontades individuais livres. Como o direito abstrato tra-ta das formas mais imediatra-tas da concretização da liber-dade, o reconhecimento da propriedade é o reconheci-mento da vontade livre que se expressa no direito de uso e de troca. O contrato não representa uma limita-ção da liberdade, mas a sua mais plena garantia. Ou me-lhor, a limitação é condição de sua realização. A neces-sidade do reconhecimento da vontade do outro pode ser interpretada como uma limitação, mas sem isso não há garantia de liberdade. Toda determinação da vontade livre individual inclui limitações, mas também garantias. Isso é próprio da intersubjetividade dos contratos. Eles pressupõem a reciprocidade e a voluntariedade das par-tes envolvidas.

Se com esse reconhecimento se pode falar em alienação da propriedade, o mesmo não se pode fazer com a alienação da personalidade. É importante notar que, exatamente no momento em que trata dos direitos mais imediatos (direito abstrato), o autor em pauta se refi ra aos direitos de personalidade e à impossibilidade de sua violação. A razão está no fato de constituírem os direitos mais fundamentais da pessoa de direito e as formas mais imediatas da realização da vontade livre.

O § 66 da Filosofi a do Direito refere-se explicita-mente à “inalienabilidade” dos bens ou “determinações substanciais [...] que constituem minha própria pessoa e a essência universal da minha autoconsciência, tais como minha personalidade em geral, a universal liber-dade de minha vontade, a eticiliber-dade, a religião” (Hegel,

1986a, p.142). São “exemplos de alienação da persona-lidade” a escravidão, a incapacidade de ter propriedade e a falta de liberdade sobre ela (cf. Weber, 2014, p. 389). Em nenhum desses casos há consentimento. Estamos falando do “direito de inalienabilidade” da personalida-de. Trata-se de um direito “imprescritível” (Hegel, 1986a, p. 142), uma vez que diz respeito ao direito à integridade física e psíquica, ao direito de propriedade, de liberdade de consciência religiosa e de expressão. A “alienação da racionalidade inteligente, a moralidade, a eticidade, a re-ligião, ocorre na superstição (Aberglaube), na autoridade e pleno poder concedido ao outro para que decida que atos devo realizar [...], e prescreva e determine o que é para mim uma obrigação de consciência [...]” (Hegel, 1986a, p. 142). Essa seria a mais explícita violação da autonomia. Os direitos mais imediatos, próprios da pes-soa de direito, são lembrados desde a primeira fi gura da Filosofi a do Direito: o direito abstrato. É o exercício da capacidade legal da pessoa que está em jogo. O reco-nhecimento desses direitos de personalidade já é uma marca do direito abstrato.

O poder de racionalidade, referido no citado pa-rágrafo, é intransferível. Somente pode ser exercido por cada sujeito de direitos. Ao referir os elementos constitu-tivos do direito de personalidade, Hegel explicita o pró-prio conteúdo do princípio da dignidade humana. Con-tratos que violem esses direitos são, por defi nição, nulos. Essas são as bases do reconhecimento recípro-co, que somente se efetiva plenamente na eticidade. Se o referido direito de inalienabilidade é a expressão do próprio conteúdo da dignidade humana, na alienação da personalidade o princípio da autonomia é violado.

O direito da moralidade como

direito ao reconhecimento subjetivo

A insufi ciência do direito abstrato está no fato de não ter considerado a fundamentação subjetiva da liber-dade. Esse é o papel da moraliliber-dade. Ela investiga a moti-vação das ações; refere-se ao reconhecimento subjetivo da liberdade como princípio universal. Na interpreta-ção de Williams, “o direito abstrato realça a presença da liberdade nas coisas, nas posses e na propriedade. A moralidade é a presença da liberdade, não nas coisas, mas na própria subjetividade” (1997, p. 178). Até então não se havia perguntado pela responsabilidade subjetiva do sujeito agente, fundamental para a emissão de um juízo sobre a responsabilidade moral. Trata-se do direito de moralidade, o “direito da vontade subjetiva” (Hegel, 1986a, p. 205), isto é, do direito de reconhecer-se nas ações praticadas.

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A moralidade pergunta pela “autodeterminação da vontade”, pelos propósitos e intenções que movem o sujeito. Por isso, pode-se falar em direito da subjetivi-dade. Este também é uma forma de reconhecimento. De acordo com esse direito, a vontade “é e reconhece só o que é seu” (Hegel, 1986a, p. 205), ou seja, reconhece como seu somente o que sabia e o que queria fazer. “Na exteriorização não reconheço como meu nada mais do que estava na vontade subjetiva [...]” (Hegel, 1986a, p. 209). O Direito não pergunta pelos princípios subje-tivos que orientam as ações. No entanto, a moralidade cobre essa insufi ciência, ao tratar do direito que o su-jeito tem de saber e reconhecer somente o que tem origem na sua vontade. “O direito de não reconhecer o que eu não considero racional é o mais elevado di-reito do sujeito” (Hegel, 1986a, p. 132). O didi-reito de me reconhecer nas ações atende ao direito de responsabi-lização. O sujeito sabia o que estava fazendo; quis fazer o que fez? O reconhecimento do meu querer e saber inclui, também, e ao mesmo tempo, a subjetividade ex-terior, que é a vontade dos outros. Para Williams (1997, p. 179), “a moralidade pressupõe o reconhecimento mú-tuo constitutivo da vida ética”.

É oportuno destacar que o reconhecimento acompanha as diversas etapas em que a concretização da liberdade se efetua. A moralidade é o momento da subjetividade. O próximo momento, o da eticidade, será o do reconhecimento recíproco. Não se pode, no en-tanto, falar em reconhecimento recíproco sem antes referir o reconhecimento da liberdade como princípio universal. Segundo o autor, “a realização do meu fi m tem, portanto, em seu interior esta identidade de minha vontade e da vontade dos outros, tem uma relação posi-tiva com a vontade dos demais” (Hegel, 1986a, p. 210). O reconhecimento de meu querer e saber inclui, ao mes-mo tempo, a subjetividade exterior, que é a vontade dos demais. O direito de moralidade como direito ao reconhecimento subjetivo inclui, pois, o reconhecimen-to desse direireconhecimen-to como direireconhecimen-to subjetivo de reconhecimen-todos. É o reconhecimento da liberdade como princípio universal. “Eu dependo do outro para reconhecer minha liberda-de, assim como o outro depende de mim” (Williams, 1997, p. 183). A externalização de minha liberdade re-quer o reconhecimento dos outros. No entanto, eu preciso primeiramente reconhecer o direito subjetivo de liberdade de todos.

A ênfase do direito de moralidade ou direito da vontade subjetiva está em dois aspectos: o reconheci-mento das condições da responsabilidade subjetiva e o reconhecimento da vontade livre subjetiva dos outros. Trata-se do reconhecimento do direito de moralidade

do outro, isto é, do direito ao reconhecimento do saber e querer dos outros. Assim, pode-se dizer que a mo-ralidade trata do reconhecimento da liberdade como princípio universal. Trata das condições da responsabili-dade subjetiva. Que a vontade livre somente reconheça o que é seu é o mais sagrado direito da subjetividade. O sujeito deve “estar em tudo o que faz”; precisa re-conhecer-se naquilo que faz e reconhecer esse direito nos outros. Mas isso, também, mostra a sua insufi ciência. Não realça a mediação objetiva das vontades livres, ta-refa a ser completada pela eticidade. Segundo Williams (1997, p. 179), “a base substantiva da moralidade deve ser encontrada na vida ética, e o ponto de vista moral é uma forma defi ciente, ou um momento abstrato da vida ética. [...] A moralidade pressupõe o reconhecimento mútuo constitutivo da vida ética”.

É fundamental salientar que a importância desse reconhecimento está na responsabilização dos atos pra-ticados. Ele é condição desta. É um direito da vontade livre só reconhecer e ser responsabilizada por aquilo que era objeto do seu propósito. O resultado das ações deve de alguma forma estar antecipado no propósito e na intenção do sujeito agente. Édipo, por ter matado seu pai sem sabê-lo, não pode ser acusado de parricídio, embora tenha cometido um assassinato. É bem verda-de, comenta Hegel, que as antigas legislações não davam tanta importância, tal como é feito atualmente, aos as-pectos subjetivos da responsabilidade (cf. Hegel, 1986a, p. 297).

E as consequências não previstas nos atos vo-luntários? Se o sujeito agente não se reconhece nelas, pode ser responsabilizado? Do ponto de vista do di-reito de moralidade a resposta é não. É claro que toda ação pode ter inúmeras consequências e repercussões. Muitas delas são necessárias, outras contingentes. As primeiras são inerentes às ações; pertencem à sua natu-reza e a explicitam. As segundas lhes são acrescidas de modo contingente e não pertencem a elas. Do ponto de vista do direito da vontade subjetiva não posso ser responsabilizado por aquilo que não era do meu co-nhecimento nem de minha vontade. Isso, no entanto, mostra a insufi ciência da moralidade. Mesmo que não possa prever certas circunstâncias que poderiam evitar--se, devo conhecer a natureza universal do fato particu-lar (cf. Hegel, 1986a, p. 218). Isso indica que a esfera da responsabilidade se amplia para além da subjetividade, vinculando-se às consequências objetivas. Ora, esse é o âmbito da eticidade, esfera de mediação social da von-tade livre e da intersubjetividade.

Nesse sentido, tem razão Honneth ao afi rmar que o direito abstrato e a moralidade são “modelos

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incompletos de liberdade” (Honneth, 2007, p. 71). No direito abstrato, “o sujeito individual constrói sua liber-dade na forma de direitos subjetivos” (Honneth, 2007, p. 71). Restringe-se ao âmbito das vontades individuais; não há mediação social. Na moralidade, “a liberdade do sujeito individual é caracterizada como a capacidade de autodeterminação moral” (Honneth, 2007, p. 71). Willia-ms (1997, p. 197) destaca que “o direito tem como foco a presença da liberdade nas coisas; a moralidade realça a presença da liberdade na própria subjetividade. Eles são verdadeiros, mas são realizações unilaterais (one-sided) e parciais da liberdade”. Especifi car, apenas, a dimensão subjetiva do exercício da liberdade é insufi ciente para a sua plena realização. Um nível superior de determinação impõe-se para a realização do princípio orientador de toda Filosofi a do Direito. A eticidade tem essa difícil tarefa de equacionar liberdade individual e mediação social, o que implica reconhecimento recíproco. Para Hegel “as esferas do direito e da moralidade não podem existir independentemente; elas devem ter o ético como su-porte e fundamento” (Hegel, 1986a, p. 286).

É na crítica de Hegel ao formalismo da moral kantiana que a necessidade da libertação (superação) da indeterminação mais aparece. Hegel caracteriza a fi loso-fi a moral kantiana como uma “indeterminação abstrata”; um “vazio formalismo”. Ao requerer como critério de moralidade a ausência de contradição entre uma má-xima e a lei, o imperativo categórico fi ca reduzido ao critério de uma não contradição apenas formal. Não ocorre a determinação de um conteúdo moral a par-tir do qual uma ação possa incorrer em contradição. O imperativo categórico indica um procedimento, isto é, indica como fazer e não o que deve ser feito. Ora, onde nada é determinado não pode haver contradição.5

A questão que, então, se impõe é esta: como libertar-se desta indeterminação?

Eticidade: liberdade individual

e reconhecimento recíproco

A eticidade é o lugar das mediações sociais e, dessa forma, o espaço da liberdade individual e do re-conhecimento recíproco. Enquanto a moralidade trata da fundamentação subjetiva da liberdade, a eticidade inclui a mediação social da vontade livre. Falar, pois, de eticidade signifi ca falar de instituições sociais, âmbito da “segunda natureza”. Todo o movimento de concre-tização, limitação e determinação da liberdade

ocor-re nas esferas da eticidade. O fundamental é mostrar como essa concretização da liberdade inclui o reco-nhecimento recíproco. Se o direito abstrato e a mora-lidade são ainda “modelos incompletos de liberdade”, pois abstraem do contexto social, quais são as tarefas que a eticidade deve cumprir para realizar a libertação do “sofrimento de indeterminação”, vigente no direito abstrato e na moralidade?

Segundo Honneth, a esfera da eticidade deve satisfazer três condições: Primeiro, deve colocar à disposição “possibilidades acessíveis de realização in-dividual, de autorrealização, cujo uso pode ser expe-rienciado por cada sujeito individual como realização de sua liberdade” (Honneth, 2007, p. 106). Segundo, deve oferecer “práticas de interação intersubjetiva”. Os sujeitos devem ver no outro uma condição de sua liberdade. A realização da liberdade individual é “medi-da pelas formas de socialização” (Werle e Melo, 2007, p. 41). Terceiro, deve facultar ações intersubjetivas que exprimam “formas determinadas de reconhecimento recíproco”. Para o aureconhecimentor, reconhecimenreconhecimento “signifi -ca primeiramente a afi rmação isenta de coerção de determinados aspectos da personalidade que se rela-cionam com cada um dos modos de interação social” (Honneth, 2007, p. 108). Essa descrição se aproxima da concepção kantiana de liberdade negativa. É sabido, to-davia, que esta é condição de possibilidade da liberda-de entendida como autoliberda-determinação, na perspectiva hegeliana. Ora, a autodeterminação implica uma rela-ção intersubjetiva. Nessa relarela-ção intersubjetiva, é na Enciclopédia que Hegel expressa de forma clara quan-do o indivíduo é “digno” de reconhecimento: “quanquan-do comportar-se para com os outros de uma maneira uni-versalmente válida, reconhecendo-os como ele mes-mo quer ser considerado, comes-mo livre, comes-mo pessoa” (Hegel, 1986b, p. 222). Por aí se pode perceber que a universalidade e a reciprocidade constituem critérios fundamentais para a justifi cação de normas válidas.6

Dará a eticidade conta disso? Ora, isso deve ser demonstrado nos âmbitos da família, da sociedade civil e do Estado. Que espaços dará a família para a realização da liberdade individual? Em que nível ocorre a “intera-ção da intersubjetividade” nessas esferas da eticidade? O Estado garante efetivamente os direitos e liberdades fundamentais dentro de uma necessária reciprocidade ou estes são enfraquecidos e sacrifi cados em nome da sua autoridade ética? A suspeita de consequências anti-democráticas tem fundamento?

5 Sobre este assunto, ver Weber (2009, cap., IV).

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(a) A família

Se a família é a primeira esfera da mediação social da vontade livre, o que signifi ca dizer que o casamen-to é uma relação ética? Seu poncasamen-to de partida subjetivo é a “inclinação particular”, o sentimento (que é natu-ral), e ocorre no nível das vontades individuais. Não é, pois, este seu aspecto ético. A dimensão ética passa a se constituir no seu ponto de partida objetivo: “o livre consentimento das pessoas”, isto é, o “consentimento para constituir uma pessoa e abandonar nessa unidade sua personalidade natural e individual” (Hegel, 1986a, p. 310). Esse é o primeiro espaço de reconhecimento mútuo de vontades livres. É o abandono da relação natu-ral para estabelecer uma relação ética e, com isso, reali-zar a vontade livre. É a realização da liberdade individual e ao mesmo tempo sua autolimitação. O mais imediato e, portanto, indeterminado é o momento natural, o ins-tinto, por exemplo. Este se extingue na sua satisfação.

O reconhecimento de duas vontades livres é a primeira expressão da libertação desse “sofrimento de indeterminação”. Não há afi rmação da liberdade sem o respectivo reconhecimento. Este é o aspecto ético do casamento. Hegel mostra que isso não signifi ca apenas reconhecimento das duas vontades individuais que ca-sam, mas também o reconhecimento por parte da famí-lia e da comunidade. Instaura-se, assim, a efetivação da substancialidade ética, completada pelo Estado. Escreve o autor: “[...] a declaração solene do consentimento para o laço ético do casamento e o correspondente re-conhecimento do mesmo pela família e a comunidade [...] constitui a conclusão formal e a realidade efetiva do casamento” (Hegel, 1986a, p. 315). O aspecto ético está nesta “cerimônia como realização do substancial” ma-nifestada objetivamente por meio de um sinal, a lingua-gem. Vê-se, claramente, como a relação familiar, no nível da eticidade, inaugura a necessidade do reconhecimento recíproco para a realização da liberdade individual. É im-portante enfatizar que a relação familiar é a realização da liberdade individual e ao mesmo tempo sua autolimi-tação. Constitui, assim, a base ética do Estado.

Com o casamento, ao constituir-se “uma pessoa”, abandona-se o momento meramente natural e instinti-vo. Não se fala mais em liberdade natural e sim em livre--arbítrio mediado e reconhecido. Inicia-se, nessa esfera, o gradual processo de libertação da indeterminação, tarefa para toda a eticidade. Peculiaridades tratadas no âmbito da família indicam mais claramente a necessida-de necessida-dessa superação da “naturalidanecessida-de imediata”. A veda-ção do casamento entre consanguíneos não tem apenas uma razão biológica, mas, sobretudo, ética. Por ser uma

“ação ética de liberdade”, deve realizar-se entre famílias separadas e entre “personalidades originariamente di-versas” (Hegel, 1986a, p. 321). O reconhecimento deve ocorrer entre diferentes e não entre iguais, isto é, não entre quem já está unido por uma naturalidade imediata (laços de família). A determinação pressupõe diferenças e diversidades. São estas que movem o processo de li-bertação e superação. A prova está dentro da própria relação familiar quando a criança começa a dizer “não” e recebe o “não” dos pais. A autoafi rmação dela depen-de depen-dessa negação. A autodepen-determinação depen-de sua vontadepen-de livre inclui limitações. Escreve Hegel: “[...] o que o ho-mem deve ser não o é por instinto, mas deve adquiri-lo” (Hegel, 1986a p. 327). O reconhecimento e o consenti-mento representam uma superação da vontade natural e imediata e, assim, uma superação da indeterminação. Com a relação familiar, a eticidade põe à disposição as primeiras possibilidades de realização individual das pes-soas, tendo em vista a concretização da liberdade como princípio orientador de toda a Filosofi a do Direito.

(b) A sociedade civil

Com a dissolução da família, tendo em vista a maioridade dos fi lhos, abre-se um amplo espaço de interesses e liberdades individuais a serem satisfeitos. Cria-se todo um “sistema de carências” ainda ausentes na relação familiar. Esta se restringe a uma relação de dependência natural. Para ampliar o processo de con-cretização das liberdades individuais, Hegel introduz, como hierarquicamente superior à família, a sociedade civil. Cabe a ela constituir a mediação social da liberda-de. Para Honneth (2007 p. 119), a “sociedade civil, en-tendida então como esfera da circulação mediada pelo mercado entre os proprietários, representa para Hegel o meio tanto de uma destruição da eticidade imedia-ta como imedia-também da possibiliimedia-tação de um isolamento extremo”. A “destruição da eticidade imediata” à qual Honneth se refere diz respeito à família, como primei-ra instituição social. É preciso “supeprimei-rar” as relações naturais e imediatas e ampliar o espectro da realiza-ção dos interesses e vontades dos indivíduos. Williams (1997, p. 230), referindo-se à dissolução da vida ética representada pela sociedade civil, explica que Hegel fala da dissolução de um “certo tipo de unidade, isto é, a unidade ética imediata representada pela família e sua substituição por outro tipo de unidade, constituída pela liberdade subjetiva”. Signifi ca dizer que o que une as pessoas na sociedade civil é o autointeresse indivi-dual, mas que para sua satisfação cria uma situação de mútua dependência.

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É fundamental considerar que a sociedade civil estrutura-se em torno de dois momentos a serem me-diados: a pessoa concreta, enquanto particularidade de interesses, e o contexto social, ou seja, cada pessoa so-mente satisfaz suas necessidades por meio dos outros, sendo “obrigada a passar pela forma da universalidade” (Hegel, 1986a, p. 339). São, pois, dois momentos pouco conciliáveis, dada a diversidade de interesses que estão em jogo (cf. Weber, 1993, p. 114-115). “O sistema da eticidade perdeu-se em seus extremos”, a universali-dade e a particulariuniversali-dade (Hegel, 1986a, p. 340). Para Williams (1997, p. 233), comentando Hegel, “a socieda-de civil é egoísmo universal e exploração recíproca”. É uma espécie de esfacelamento do ético, mas espaço ne-cessário para garantir a autorrealização individual. Para Honneth (2007 p. 119), o mercado dá conta disso, pois tem “condições de satisfazer uma multiplicidade de in-teresses”. É por meio dele que se afi rma propriamente o sujeito como “pessoa de direito individualizada”.

Na família, a criança mantém ainda uma relação de dependência e não de individualização. As chances de realização de seus direitos se ampliam com a sua parti-cipação nas corporações da sociedade civil. Assim, novas formas de reconhecimento recíproco se instauram. A satisfação das necessidades e interesses individuais so-mente ocorre por meio dos outros, e isto cria “um sis-tema de dependência multilateral pelo qual a subsistên-cia, o bem-estar e a existência jurídica do particular se entrelaçam com a subsistência, o bem-estar e o direito de todos” (Hegel, 1986a, p. 340). A sociedade civil “é um modo de relação que signifi ca dependência” (Williams, 1997, p. 233). Ela é um sistema de necessidades que, para sua satisfação, depende dos outros.

O texto de Hegel mostra como a esfera da so-ciedade civil faculta possibilidades de realização da liber-dade individual por meio da “interação intersubjetiva”, para usar uma expressão de Honneth, portanto, de re-conhecimento recíproco. A realização das necessidades e interesses de cada cidadão está vinculada ao reconhe-cimento dos direitos dos outros. Tal como a família, tam-bém na sociedade civil a efetivação da liberdade indivi-dual inclui a autolimitação. O § 185 da Filosofi a do Direito expressa muito bem isso: “A particularidade”, enquanto satisfação de suas necessidades, está em “contínua de-pendência e contingência do arbítrio exterior” e assim “limitada pelo poder da universalidade”. O indivíduo, como pessoa privada, somente se realiza quando “me-diado pelo universal”. Ele deve ser considerado como “membro de” uma corporação. Se, por um lado, se as-segura um maior grau de individualização pelo exercício das atividades nas corporações, por outro, isso também implica autolimitação. A realização da liberdade requer

escolhas e estas impõem limites. Necessidade e liberda-de estão, pois, em constante confl ito. “A liberdaliberda-de tor-na-se necessidade e a necessidade tortor-na-se liberdade” (Williams, 1997, p. 234). O cuidado que aqui se deve ter é que a liberdade não seja entendida como um mero reconhecimento da necessidade. Na interpretação de Williams (1997, p. 234), o reconhecimento encontrado no estado externo (a sociedade civil) é “humana e inter-subjetivamente defi ciente”. Do ponto de vista da etici-dade, isso sugere a necessidade de se providenciar um reconhecimento mais substantivo e interpessoal. Este é o papel do Estado.

As diferentes etapas de determinação da “pes-soa de direito” podem ser percebidas pelo diferente status que a liberdade individual assume nas diferentes fi guras de sua concretização na Filosofi a do Direito: “No direito, o objeto é a pessoa; no ponto de vista moral, o sujeito; na família, o membro da família; na sociedade civil, o cidadão” (Hegel, 1986a, p. 348). São contextos ou níveis de mediação distintos. Logo, são também contextos normativos diferentes. Isso requer níveis de reconhecimento recíproco distintos. No nível da sociedade civil, as relações de trabalho realizadas nas corporações indicam clara evidência da “dependência e reciprocidade”. Ao produzir e ganhar algo para si, cada um produz e ganha para os outros. Isso mostra, mais uma vez, como a sociedade civil é uma das es-feras da eticidade que cumpre importante tarefa no sentido de colocar “à disposição possibilidades de rea-lização individual”, com vistas à efetivação da liberdade (Honneth, 2007, p. 106).

É, pois, como membro de uma corporação, na sociedade civil, que o cidadão tem maiores chances de realização individual, pois exerce nela “uma atividade universal” (Hegel, 1986a, p. 396). São, sobretudo, suas habilidades e o seu exercício que determinam sua vin-culação a uma corporação. O reconhecimento dessas habilidades é que lhe confere “honra profi ssional”. É na corporação que a sua atuação para com os outros se torna consciente. Sabe que, atuando para si, atua para os outros; produzindo para si, produz para os outros. Realiza sua vontade livre e conscientemente sabe que isso requer o reconhecimento recíproco. O cidadão se conscientiza de que sua autorrealização é mediada pelo reconhecimento do outro como condição de efetivação de sua própria liberdade. Esse é o “caráter intersubje-tivo” que a eticidade deve cumprir. No comentário de Williams (1997, p. 250), para Hegel a corporação como “instituição da mediação” é necessária, pois “o ético deve existir não somente na forma universal do Estado, mas, também, na forma da particularidade, isto é, dentro da própria sociedade civil”.

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Honneth (2007, p. 119) dá ênfase à sociedade ci-vil como a “esfera da circulação mediada pelo mercado entre os proprietários”. Se isso, por um lado, pode favo-recer certo isolamento, por outro, oferece condições para a satisfação de uma “multiplicidade de interesses”. Em relação ao que ocorre na família, isso representa um “nível superior de individualização”. A livre iniciativa, a livre concorrência e a lei da oferta e procura permitem um amplo espectro de realizações da liberdade indivi-dual, mas também criam uma situação de dependência universal. Liberdade individual e reconhecimento recí-proco andam juntos.

(c) O Estado

Para dar sequência ao processo de concretiza-ção do princípio da liberdade, tal como enunciado no início da Filosofi a do Direito, qual é o papel do Estado nas tarefas da eticidade? Ou, para usar a terminologia hon-nethiana: em que medida o Estado oferece condições para a “libertação do sofrimento de indeterminação ”, num nível superior ao da família e da sociedade civil? Como desvencilhar-se da suspeita de “consequências antidemocráticas” que repousa sobre o conceito de Es-tado hegeliano? Garante ele a mais plena realização das liberdades individuais ou as enfraquece em nome de sua autoridade ética? Em que medida representa um maior “nível de individualização”? Como conciliar os interes-ses particulares com os da coletividade?7

Para Honneth, “as chances de individualização de um sujeito aumentam com o grau de sua capacidade de universalização das próprias orientações” (Honneth, 2007, p. 123). Nesse caso, por poder levar uma “vida universal”, o sujeito, no Estado, vê proporcionado um “grau superior de individualidade”. Isso já ocorre nas corporações, mas ainda em maior grau no exercício das funções públicas do Estado. Com isso, é possível obter maior reconhecimento. O exercício de uma função pú-blica é o exercício de uma função universal. Quem a exerce não o faz em nome próprio e de acordo com seus interesses, mas em nome da substancialidade ética. No entanto, o interesse particular não desaparece, mas, porque mediado e reconhecido, é universalizado.

Uma análise de alguns parágrafos da terceira esfera da eticidade, que tem o Estado como momento sintético, evidencia, de forma inequívoca, como a liber-dade individual deve ter seu direito reconhecido. Com isso, a suspeita de “consequências antidemocráticas” é

desfeita. O Estado é a última instância de garantia dos direitos e liberdades fundamentais e, pois, representa o maior grau de realização da liberdade individual. É claro que esta está vinculada ao interesse comum da coleti-vidade. Hegel afi rma que “o Estado é a realidade efetiva da liberdade concreta” (Hegel, 1986a, p. 406). Mas o que signifi ca, propriamente, isto? Sustenta o autor:

[...] a liberdade concreta consiste em que a individua-lidade pessoal e seus interesses tenham seu total de-senvolvimento e o reconhecimento de seu direito (no sistema da família e da sociedade civil), ao mesmo tem-po em que se convertem tem-por si mesmos em interesse geral, que reconhecem com seu saber e sua vontade como seu próprio espírito substancial e tomam como fi m último de sua atividade (Hegel, 1986a, p. 406).

Fica claro que é na família e na sociedade civil que o indivíduo realiza sua liberdade. São elas as bases éticas do Estado. É nelas e também por meio delas que ele (o Estado) assegura os direitos e deveres dos ci-dadãos. É também nelas que o exercício da mediação social da vontade livre se efetiva. O reconhecimento do direito das individualidades pessoais, no entanto, está vinculado ao reconhecimento do interesse dos outros. Somente interesses pessoais mediados e reconhecidos se universalizam.

A liberdade individual e o reconhecimento recí-proco têm, pois, dessa forma, seu maior grau de efeti-vação. O universal não se realiza sem o “interesse, o sa-ber e o querer particular”, nem este se concretiza sem querer ao mesmo tempo o universal (cf. Hegel, 1986a, p. 407). “O Estado é a mediação do universal e do parti-cular, dos indivíduos e do social, os quais não mais estão em oposição e mútua exclusão como na sociedade civil” (Williams, 1997, p. 268). Temos, assim, o princípio que deve orientar um Estado ético: assegurar as liberdades individuais dentro de um “interesse geral”; administrar confl itos sem eliminar direitos, mediando-os e guardan-do-os num nível superior. Isso requer, obviamente, re-conhecimento mútuo. Hegel é insistente ao afi rmar que a individualidade deve conservar seu direito. O movi-mento dialético exige um universal ativo, mas ao mesmo tempo requer o desenvolvimento da subjetividade de “forma completa e vivente” (Hegel, 1986a, p. 407).

Para Williams (1997, p. 264), já na Jenaer Realphi-losophie “Hegel descreve a relação entre a Wille an sich racional – seu princípio substantivo de liberdade – e a vontade arbitrária (Willkür) subjetiva como uma relação

7 As acusações de totalitarismo e de necessitarismo por parte de Popper não consideram o real signifi cado da tríade dialética hegeliana. Aufhebung signifi ca negar,

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de reconhecimento”. Com a teoria do Estado, segundo o comentarista, Hegel introduz o conceito de substância ética ou liberdade substancial. Esta inclui “capacidades éticas, deveres, direitos e instituições (família e Estado, leis e costumes) que unem indivíduos e governam suas vidas” (Williams, 1997, p. 264). Na interpretação de Williams (1997, p. 264), a vontade em si, para Hegel, “é constituída intersubjetivamente como reconhecimento mútuo”.

Fica claro no § 260 que o Estado não é autos-sufi ciente e separado dos indivíduos. Ele se constitui pelos interesses mediados, reconhecidos e universaliza-dos. Como um universal, o Estado “não tem validade ou efetividade desvinculada do interesse, conhecimento e vontade dos particulares. Os particulares incorporam e expressam o universal, tornando-o efetivo e deter-minado” (Williams, 1997, p. 270). Observa-se a estreita relação entre os interesses dos cidadãos e as determi-nações do Estado.

O § 261 é ainda mais enfático: “O Estado, en-quanto ético, enen-quanto compenetração do substancial e do particular, implica que minha obrigação em rela-ção ao substancial seja ao mesmo tempo a existência de minha liberdade particular, isto é, que o dever e o direito estejam unidos em uma e mesma relação”. Esse parágrafo retoma o § 155, uma vez que insiste na identi-dade de direitos e deveres, na esfera da eticiidenti-dade. Há, na verdade, uma mútua restrição entre eles. As esferas do direito abstrato e da moralidade ainda não contemplam essa identidade dos direitos e deveres, pois, naquelas, esta aparece apenas de forma “abstrata”. Não há ainda mediação social. O que Hegel quer dizer com isso é que nessas esferas o que é direito para um é dever para outro. Mas, com isso, não ocorre ainda uma identidade do dever e do direito. Somente ocorre a identidade de conteúdo se este for universal, isto é, se for “o princípio único do dever e do direito, a liberdade pessoal” (Hegel, 1986a, p. 408). Os escravos não têm deveres porque não têm direitos. Um dever só se afi rma quando ao mesmo tempo é um direito. Essa identidade não ocorre nem na família nem na moralidade. Os direitos dos fi lhos, por exemplo, não têm o mesmo conteúdo que seus deve-res para com os pais. No Estado, por sua vez, ocorre uma coincidência entre liberdade particular e a substan-cialidade ética, na medida em que nele se exerce uma atividade universal. O exercício de um cargo público é o melhor exemplo dessa coincidência. Assim, liberdade individual e reconhecimento mútuo adquirem plena efetividade. Minhas obrigações para com o Estado são ao mesmo tempo as garantias dos meus direitos. Isso está de acordo com a interpretação de Williams (1997,

p. 272) quando mostra que a união com o Estado é “uma relação de reconhecimento entre a vontade universal e a vontade particular, que estabelece tanto direitos quan-to deveres”. Na identidade do universal e do particular, direitos e deveres coincidem. Estes são momentos do mútuo reconhecimento. É o que fi ca claro nos dois pa-rágrafos referidos.

Falar em realização da liberdade no Estado sig-nifi ca mostrar a importância da particularidade e sua satisfação.

Ao cumprir com seu dever o indivíduo deve encontrar ao mesmo tempo de alguma maneira seu próprio inte-resse, sua satisfação e seu proveito, e de sua situação no Estado deve nascer o direito de que a coisa pública torne-se sua própria coisa particular. O interesse par-ticular não deve ser deixado de lado nem reprimido, senão que deve ser posto em concordância com o universal (Hegel, 1986a, p. 408).

Porque mediados e reconhecidos, os direitos e deveres se universalizaram. O universal é uma constru-ção de mediações. A “coisa pública” é a “coisa particu-lar” mediada, reconhecida, superada e guardada. Assim, o Estado deve possibilitar que o indivíduo possa viver pu-blicamente como cidadão, canalizando suas habilidades para levar “uma vida universal” (Hegel, 1986a, p. 399). As esferas da eticidade são um exercício de mediação. O Estado é o último nível. Por isso, ele representa a unidade do interesse particular e do interesse público. Dessa forma, o exercício de uma “vida universal” permi-te um “grau de individualização” ainda maior. Williams (1997, p. 270) observa com toda a razão que “a liberda-de individual não está perdida ou é ‘engolida’ (swallowed up) nesta união ou em sua base substancial objetiva. Tal como Hegel caracteriza esta base substancial, sua ca-racterística básica é o reconhecimento e a preservação dos direitos individuais”. Com isso, o risco das consequ-ências antidemocráticas está defi nitivamente eliminado. Depois da família e da sociedade civil, o Estado representa o terceiro nível da realização da liberdade. Numa “relação hierárquica”, ele é a última e defi nitiva estrutura garantidora de efetivação do princípio pres-suposto da Filosofi a do Direito. O exercício de uma “ati-vidade universal” representa a afi rmação e satisfação do próprio interesse individual. A ideia de que o Estado somos nós tem o sentido de que interesses particula-res e “a coisa pública” se imbricam mutuamente. Daí a insistência em vincular a efetivação da liberdade in-dividual ao reconhecimento recíproco. As chances de realização da liberdade individual aumentam na medida em que aumenta “a capacidade de universalização” das

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orientações dos cidadãos, isto é, na medida em que são capazes de contribuir para a realização do interesse pú-blico. Para fazer frente às inúmeras formas de corrup-ção, esse é o conceito de Estado e, junto com ele, o de interesse público e de liberdade política que precisam ser recuperados.

Considerações fi nais

Embora a leitura clássica de Hegel insista no ne-cessitarismo de seu sistema e reitere que a Filosofi a do Direito deve ser lida com as categorias da Ciência da Lógi-ca, o proposto aqui foi no sentido de indicar outro viés de interpretação: examinar a relação entre liberdade e reconhecimento como chave de leitura para desfazer a suspeita de “consequências antidemocráticas” que re-pousa sobre a sua teoria do Estado e endossar a “rea-tualização” da Filosofi a do Direito, proposta por Honneth, sem as categorias da Ciência da Lógica.

A explicitação do papel desempenhado pelo reconhecimento na efetivação da liberdade na Filosofi a do Direito indica a preservação dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, sobretudo na mediação das instituições sociais. Tal como demonstrado nos parágra-fos 260 e 261 do referido texto, as vontades dos indi-víduos não são enfraquecidas ou eliminadas em nome de um bem comum maior, mas são, antes, asseguradas e fortalecidas na substancialidade ética representada pelo Estado. A suspeita de consequências antidemocráticas, portanto, referida por Honneth em Sofrimento de inde-terminação, não se confi rma.

É importante frisar que o conceito de liberdade substancial não está desvinculado das liberdades indivi-duais. Falar, pois, do universal do Estado signifi ca apon-tar para as instâncias mediadoras que o constituem. A liberdade, em suas possibilidades e limites, precisa ser situada no contexto destas instâncias. A condição do seu efetivo exercício requer o mútuo reconhecimento das vontades particulares nas suas relações institucio-nais. Hegel é um contextualista. Está, pois, na origem do comunitarismo.

O reconhecimento inclui limitações, mas é exa-tamente através delas que a convivência nas instituições sociais se torna viável. Afi rmação inclui negação. Dessa forma, a concretização e a afi rmação da liberdade com-portam em si necessariamente momentos de reconhe-cimento recíproco. Estes se dão tanto nas relações mais imediatas entre os indivíduos quanto nas relações entre

indivíduos e instituições sociais. É a liberdade mediada e reconhecida. As instituições da eticidade representam a garantia dos resultados desse reconhecimento. Cite-se o exemplo da família: o Estado a protege na medida em que, além da satisfação das condições formais a ela ine-rentes, atende aos ditames do reconhecimento publica-mente manifestado através da linguagem. Compreende--se, assim, porque não faz sentido falar da liberdade em si, isto é, fora de uma estrutura de mediações e reco-nhecimento. Direitos e liberdades são assegurados nas instituições e através delas, na medida em que passam pelo movimento dialético das mediações. A “supera-ção” que ocorre neste movimento inclui a conservação de direitos e deveres e não sua eliminação.

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Submetido: 13/05/2015 Aceito: 25/08/2015

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