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Rapensando discursivamente o imaginário sobre a resistência em A Marcha Fúnebre Prossegue

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Academic year: 2021

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MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE

RAPENSANDO DISCURSIVAMENTE O IMAGINÁRIO SOBRE A RESISTÊNCIA EM A MARCHA FÚNEBRE PROSSEGUE

UFF

Instituto de Letras 2012

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MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE

RAPENSANDO DISCURSIVAMENTE O IMAGINÁRIO SOBRE A RESISTÊNCIA EM A MARCHA FÚNEBRE PROSSEGUE

Dissertação de Mestrado, apresentada ao Curso de Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestra.

Orientadora: Profa. Dra. Bethania Sampaio Corrêa Mariani

Linha de Pesquisa: Teorias do texto, do discurso e da interação.

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MARIANA LINHARES PEREIRA RESENDE

Rapensando discursivamente o imaginário sobre a resistência em

A Marcha Fúnebre Prossegue

Dissertação apresentada ao Curso de Estudos da Linguagem do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Mestra em Letras. Área de concentração: Estudos de Linguagem.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________ Profa. Dra. Bethania Sampaio Corrêa Mariani – Orientadora (UFF)

___________________________________________________________

Profa. Dra. AngelaBaalbaki (UERJ)

___________________________________________________________

Profa. Dra. Vanise Medeiros (UFF)

Suplentes:

___________________________________________________________

Profa. Dra. Lúcia Ferreira (UNIRIO)

___________________________________________________________

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À minha mais que amada mamãe, Carmen Regina; ao meu mais que amado papai, Marco Antonio; ao meu mais que amado maninho, Marcelo Resende; à minha preciosa vovó Flora Fernandes; a um companheiro de longa caminhada, André Lee e a todas e todos que, direta ou indiretamente, emanaram boas vibrações para que este dia especial fosse finalmente alcançado.

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Para aquelas pessoas que conquistaram tantas coisas maravilhosas como eu conquistei, não há a mínima possibilidade de não agradecer àqueles que participaram dos momentos vitoriosos e dolorosos, também, se se pretender não incorrer no erro da ingratidão. Por isso, existem muitos agradecimentos a serem feitos. Tantas são essas figuras especiais merecedoras de minha lembrança, que é justificável um eventual esquecimento não proposital.

Agradeço, primeiramente, àquela força que nos move, nos faz sentir que a vida vale a pena, que faz o sol aquecer nossas manhãs, por vezes frias; que faz a lua pratear o nosso céu providencialmente apagado, para que as estrelas possam brilhar; que nos dá a beleza das montanhas e o frescor das águas de rios e mares. Essa força superior – só pode ser superior, porque até mesmo nós, seres que se julgam a forma mais inteligente de que se tem conhecimento comprovável, não somos capazes sequer de imaginar a potencialidade dela – que permite que tenhamos uma capacidade tão grande de amar, o mais sublime dos sentimentos.

Em segundo lugar, agradeço aos responsáveis diretos não só por me permitirem residir neste mundo, como também por me ensinarem todos os valores com os quais, hoje, procuro viver minha vida. Foram essas duas magníficas figuras, essenciais em todos os possíveis sentidos do termo, que me deixam como exemplo a necessidade de amar, acima de tudo, e de sempre buscar fazer o melhor para ajudar sempre, seja quem for ou em que situação estiver. Essas duas exemplares figuras, ensinaram-me – e continuam a ensinar, dia após dia – tantas coisas, que é impossível descreveraqui, ou em qualquer outro lugar, todo o sentimento de gratidão e amor que lhes devoto. Assim, reconhecendo que é praticamente impossível não ser clichê nem piegas nessa hora, agradeço aos meus mais que amados papai e mamãe, pessoinhas que tanto admiro, em primeiro lugar.

Em terceiro lugar, agradeço aos auxílios diretos e indiretos de meu mais que amado maninho, Marcelo Resende, mais conhecido como Xelo, que, mesmo distante fisicamente a maior parte do tempo, fornece-me incessantemente muitos ensinamentos e um suporte emocional inestimável; ao meu querido companheiro que, comigo, percorreu um longo caminho, compartilhando alegrias e dores, celebrando o nosso amado Vasco, a nossa indignação com a sociedade tal como está constituída, os nossos momentos de rap, e construindo as pontes que nos levarão a uma sociedade socialista,

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mas de quem o tempo, esse senhor de nossas vidas e de nossa história, acabou me afastando, André Lee; à minha mais do que querida e admirada orientadora que soube, com seu tato, paciência e muito, mas muito conhecimento, carinho e sabedoria, permitir que esse momento, tão ansiosamente aguardado, pudesse finalmente se concretizar, a agora designada “minha professora”, com esse pronome possessivo constituindo parte obrigatória da expressão, Bethania Mariani; à minha muitíssimo amada vovó, a quem muito admiro pele exemplo de dedicação, força e coragem que representa, e com quem tenho algumas boas diferenças conceptuais, Flora Fernandes; à minha amadíssima madrinha, Luiza Maria, que deu um suporte todo especial e com ímpar dedicação nos momentos mais delicados; enfim, a toda a minha família e amigos que, juntos, formaram um gigantesco envoltório de bons pensamentos e energia positiva para que eu pudesse, hoje, colher os frutos dessa árvore plantada há tantos anos.

Por fim, agradeço por todas as dificuldades que me encontraram – e ainda encontram – em momentos felizes, pois elas me ensinaram – e continuam a ensinar – que não se passa por essa vida incólume e que sempre, sempre, por mais que não sejamos capazes de compreender isso num primeiro momento, podemos aprender e, assim, sair mais preparados para enfrentar a próxima queda. Não nos esquecendo nunca de que jamais estamos sós e de que todos os momentos por que passamos são merecedores de agradecimento.

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7 SUMÁRIO

1. SOB O EFEITO DE INTRODUÇÃO ...11

1.1 Por que o rap, o grupo facção central e a análise de discurso de escola francesa? Ensaiando uma explicação ...12

1.1.1 O que no rap? Delimitando o tema ...18

1.1.2 Vale a pena trabalhar com o rap? Um efeito de justificativa ...19

1.1.3 Por que a análise de discurso? “Escolhendo” uma teoria ...24

1.1.4 Como trabalhar com música: as especificidades e os procedimentos de ajuste do material ...28

1.2 Sobre o caminho a ser trilhado ...32

1.2.1 Da definição do tema e da teoria às hipóteses de pesquisa ...34

1.2.2 Novas hipóteses surgem pelo caminho ...35

1.2.3 Discutindo os antigos e os novos objetivos ...37

2 QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO DE REFERÊNCIA ...43

2.1 A análise de discurso “de linha francesa”: história, sentido e linguagem na história dos estudos da linguagem ...43

2.2 Noções teóricas mobilizadas ...50

2.2.1 Sujeito, sentido e ideologia: das formações discursivas ...50

2.2.2 Das formações imaginárias e das condições de produção ...60

2.2.3 Dos gestos de interpretação ...65

2.2.4 Do silêncio e do silenciamento ...67

2.3 Discutindo a resistência na/para a teoria do discurso ...70

2.4 Dispositivo analítico e os procedimentos de dessuperficialização ...77

3 AS ANÁLISES: O RAP E AS MARCAS DE RESISTÊNCIA ...79

3.1 “Eu tô fazendo o que o sistema quer”: formações imaginárias, discursivas e posições-sujeito ...90

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3.2 Língua fluida e língua imaginária: a construção da resistência à língua, na

língua...100

3.2.1 A negação ...102

3.2.2 A adversativa ...110

3.2.3 A condicional ...116

3.2.4 A causal ...119

3.3 Considerações finais sobre as análises ...122

3.3.1 Ameaça ...129

3.3.2 Causa ...130

3.3.3 Tempo ...131

4 SOB O EFEITO DE CONCLUSÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS E PROVISÓRIAS ...134

5 BIBLIOGRAFIA ...138

6 ANEXOS ...142

6.1 As letras das músicas do álbum A Marcha Fúnebre Prossegue (Facção Central, 2001) utilizadas na pesquisa ...142

6.1.1 Dia comum (L2) ...142

6.1.2 A guerra não vai acabar (L3) ...143

6.1.3 A marcha fúnebre prossegue (L4) ...143

6.1.4 Aqui são teus cães (L5) ...144

6.1.5 Desculpa, mãe (L6) ...145

6.1.6 Sei que os porcos querem meu caixão (L7) ...146

6.1.7 O show começa agora (L8) ...147

6.1.8 Tensão (L9) ...147

6.1.9 De encontro com a morte (L10) ...148

6.1.10 Eu tô fazendo o que o sistema quer (L11) ...149

6.1.11 Discurso ou revólver (L12) ...150

6.1.12 Sem luz no fim do túnel (L13) ...151

6.1.13 Apologia ao crime (L14) ...152

6.1.14 Justiça com as próprias mãos (L15) ...153

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9 RESUMO

A presente pesquisa, que se filia ao escopo teórico da Análise de Discurso da escola francesa, objetiva analisar o funcionamento do rap underground, a partir de um corpus constituído por letras de músicas do álbum A marcha fúnebre prossegue, produzido no ano de 2001, pelo grupo paulista de rap Facção Central, com base nas noções de língua imaginária e língua fluida (Orlandi, 2002) e de ordem e organização da língua (Orlandi, 1996). Partimos do conceito de resistência proposto por Pêcheux (1980). A hipótese que norteou as análises foi a de que esse sujeito enunciador, o rapper, resiste ao sentido de língua, tal como a gramática procura estabelecer; de trabalho, tal como a formação ideológica capitalista busca sedimentar e de movimento musical, tal como a mídia tenta cristalizar. As pistas com as quais trabalhamos o material foram as formas que, gramatical e linguisticamente, marcam os efeitos de causa, adversidade, condição e negação, chamadas de conjunções coordenativas ou subordinativas e de advérbios. Passamos, ainda, por uma breve análise das denominações, a fim de que pudéssemos ter acesso aos sentidos sobre o outro representado no discurso do rap underground do grupo Facção Central. A análise permitiu que verificássemos a existência de duas matrizes de sentidos, ou formações discursivas, em relação de oposição: a da barbárie e a questionadora. Permitiu também verificar que o sujeito-rapper, embora no fio discursivo se signifique de modo oposto aos sentidos historicamente sustentados como “oficiais”, devido à interpelação ideológica e ao funcionamento do inconsciente, se cole aos sentidos da FD da barbárie, contra a qual deveria se opor. Assim, embora resista a alguns sentidos da FD da barbárie, o discurso do rap underground produzido pelo Facção Central não é capaz de romper com a formação ideológica que domina seus processos de identificação: a ideologia capitalista, na sua realização neoliberal.

Palavras-chave: Análise de Discurso; resistência; imaginário; hip hop; resistência à língua; língua fluida; língua imaginária.

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10 ABSTRACT

This research, under the scope of the french school of Discourse Analysis, aims to analyze the underground rap operation, based on a corpus constituted by song lyrics from the album A marchafúnebreprossegue, released in 2001, by a rap crew from São Paulo called Facção Central, with the theoretical contribution of some concepts proposed by Orlandi: imaginary language and fluid language (2009),and language order and language organization (1996). The concept of resistance, proposed by Pêcheux (1980), is the point from where we have started our studies. Our analysis were guided by the hypothesis that the enunciator-subject, the rapper, resists to the meaning of language, such as grammar establishes; of work, such as the capitalist ideological formation tries to determine; and, finally, of musical movement, such as media tries to dictate. Our clues were the forms that, linguistically and grammatically, show the effects of cause, adversity, condition and denial, known as coordinative and subordinating conjunctions and adverbs.We went through a quick analysis of some designations, in order to access the built meanings about the other one, described on the underground rap produced by Facção Central crew. The analysis allowed to verify the existence of two patterns of meanings, also called discursive formation, which maintains a conflicted relationship between them: barbarism and questioning discursive formations. The analysis also allowed to see that the rapper-subject, although from inside of the discursive line, means himself conflicting to the historically sustained as “official” meanings, due to the ideological interpellation and to the unconscious operation, sticks himself to the meanings originated from the barbarism formation, against what he should stand. Thus, although resists to some meanings of the barbarism formation, the underground rap speeches we have analyzed, produced by Facção Central, are not able to disrupt with the ideological formation, which rules their identification processes: the capitalism ideology, under the neoliberalism way.

Key-words: Discourse Analysis; Resistance; Imaginary; hip hop; Resistance to language; Fluid language; Imaginary language.

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11 LISTA DE FIGURAS Figura 1 ………p. 49 Figura 2 ...p. 50 Figura 3 ...p. 64/65 Figura 4 ...p. 96 Figura 5 ...p. 126 Figura 6 ...p. 127/128

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12 1. SOB O EFEITO DE INTRODUÇÃO

Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que vive. (Orlandi, 2003)

Não caia na armadilha, siga a minha apologia Mesmo de barriga vazia, esquece a jóia da rica Não caia na armadilha, siga a minha apologia Sua missa de sétimo dia tá de importado na avenida. (Facção Central, 2001) “Eu sou periferia”, me diz um deles. Ele não disse “Eu sou da periferia” (em que periferia seria apenas uma localização) mas “Eu sou periferia”. Ele e a periferia se confundem. Identificação de um e outro (outros). O lugar (não-lugar social), o ser, a coisa. (Orlandi, 2004)

Mediação e discurso. Permanência e transformação. Apologia e periferia. Ao ler os excertos trazidos acima sob a forma de epígrafes, esses foram os significantes que mais se destacaram e que se mostraram relevantes para entrar no assunto desta dissertação. Esses significantes são centrais não apenas no que concerne ao trabalho com o discurso enquanto o objeto da teoria cujo quadro teórico fundamentou o estudo, mas também, e especificamente, com o que a presente pesquisa procura discutir: é possível pensar em resistência enquanto um projeto potencialmente transformador – revolucionário mesmo – que o rap (rythmandpoetry, ou, em língua brasileira1, ritmo e poesia) constrói discursivamente, a partir das produções discursivas pertencentes ao heterogêneo movimento/cultura hip hop, em que muitos sentidos se repetem e muitos se deslocam? De que maneira tal possibilidade se marcaria linguística e discursivamente, se se tomarem as produções discursivas do grupo paulista de rap, Facção Central, em seu álbum A marcha fúnebre prossegue, como objeto empírico de análise? E, caso se trate mesmo de um movimento de resistência, como é construído discursivamente aquilo a que essas produções estariam resistindo? Com essas primeiras indagações, considera-se aberta a discussão que envolve Análise de Discurso, resistência, periferia e

rap.

1A expressão ‘língua brasileira’ foi utilizada para situar teoricamente a oposição que representa em

relação à designação ‘língua portuguesa’, que pode vir acompanhada da expressão ‘do/no Brasil’. Assim, apresentamos uma posição identificada à da analista de discurso que propõe a expressão: EniOrlandi (2002).

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1.1 POR QUE O RAP, O FACÇÃO CENTRAL E A ANÁLISE DE DISCURSO? ENSAIANDO UMA EXPLICAÇÃO

Ignorados pela mídia. Sempre a piada. Na música nacional passa em branco, não é nada. Apenas é considerada música de ladrão, diversão de menores, artistas sem expressão.

(Facção Central, 1995)

Quando pensamos no porquê de ousar pesquisar as produções discursivas e os gestos de interpretação engendrados pelo grupo de hip hop Facção Central, tendo como fundamentação teórica a Análise de Discurso de linha francesa, logo nos vem à cabeça uma palavra: desafio. E esse desafio tem a ver com dois aspectos fundamentais que serão discutidos nos próximos parágrafos: de um lado, o corpus; de outro, o quadro teórico de referência.

Com relação ao corpus, ou seja, naquilo que se refere às letras das músicas do grupo Facção Central2, o desafio é o de lidar com a paixão tanto pela música – em suas diversas manifestações rítmicas, melódicasetc. – quanto pelo movimento representado pelo hip hop, do qual o rap (“música de ladrão”, que “não é nada”, “passa em branco”) é um dos elementos e com o qual o primeiro contato ocorreu após os vinte anos de idade – até então, os ouvidos estavam acostumados com muita bossa nova, tropicalismo, funks carioca e internacional, pagodes e sambas, com a dita MPB (música popular brasileira) – seja lá o que essa designação queira representar –, com algum rock e algum pop. Mas nunca, a não ser muito de longe, durante vinte anos de existência, estes ouvidos haviam se encontrado com as composições musicais que reúnem, por um lado, uma enfática contestação à nossa sociedade neoliberal brasileira, oriunda de uma recente (re)abertura política e herdeira de longos processos de colonização e de ditaduras; e, por outro, uma

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As letras das músicas estão disponibilizadas como Anexo (item 6) ao final desta dissertação. Elas serão designadas pela letra “L” seguida pelo número da faixa musical, em conformidade com a organização do próprio encarte do CD A marcha fúnebre prossegue (2001).

É imprescindível destacar aqui que a primeira faixa do referido álbum fonográfico é uma montagem feita a partir de “recortes” de falas (orais) de repórteres e apresentadores dos mais variados noticiários e programas de auditório de diferentes emissoras de televisão. Trata-se, portanto, de uma arrumação de enunciados orais, postos em circulação pelos meios de radiodifusão – rádio e televisão –, quando da censura imposta ao álbum Versos Sangrentos (2000), de autoria do grupo Facção Central. Isso quer dizer que não será considerada, para efeito de análise, a faixa denominada Introdução, a qual seria representada neste trabalho como L1.

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produção poético-musical cuja proposta é, conforme sugeriu Baalbaki3 ao participar da banca de avaliação do projeto desta dissertação, “narrar”, como se cada composição musical do álbum funcionasse como um capítulo de um romance, ou como um canto de uma epopeia clássica, as mazelas produzidas socialmente sob as mais diversas formas de exclusão – social, política, econômica, geográfica... –, emprestando sua voz para a fala daquela grande parcela da população brasileira que convive com um silenciamento social e historicamente construído, silenciamento que não poderia/deveria ser questionado pelos membros dessa grande parcela.

Existe, portanto, em nossa sociedade excludente, uma relação de opressão que lhe é constitutiva e na qual se opõem opressor e oprimido. Essa relação lembra uma consideração feita por Orlandi (2009), para quem a linguagem é um lugar de debate, de conflito. Pensar em rap supõe pensar em linguagem e debate, pois esse espaço discursivo tende a se marcar pela polêmica. Do mesmo modo, pensar em conflito supõe pensar em divisão. E foi pensando na divisão social de classes – tomada no sentido materialista histórico da expressão, que remete à luta de classes entre proletariado e burguesia – que acabou sendo produzida uma identificação quase que imediata com tal modo de significar a opressão, engendrado por esses sujeitos que se dizem ocupar social e discursivamente o lugar (social) e a posição (discursiva) do oprimido.

É preciso considerar, entretanto, uma vez que se está propondo adentrar o imaginário construído pelos processos de significação de um movimento que se autoproclama questionador, que

O que chamamos realidade é resultado da construção / rememorialização cotidiana de concepções de mundo que não se inauguram nos sujeitos, mas que se concretizam em suas práticas sem que haja percepção crítica deste processo. A realidade, portanto, não

é algo dado, um mundo externo, mas, sim, algo que resulta da necessária significação com que o homem, ser simbólico, investe suas práticas sociais e linguageiras. (Mariani, 1996: p. 27, grifos

nossos)

Portanto, embora o sujeito que enuncia, o rapper,discursivize-se enquanto um “retrato da guerra civil brasileira, da carnificina rotineira” (L3), não se trata aqui de um sujeito que tenha o poder de se projetar para “fora” do funcionamento ideológico que o

3 Refiro-me à professora DrªAngelaBaalbaki, da Faculdade de Letras da Universidade Estadual do Rio de

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coloca enquanto origem de seu dizer (esquecimento nº 2 descrito por Pêcheux). No caso, o próprio sujeito está funcionando como um exemplo da interpelação ideológica: não há essa realidade objetiva passível de ser “apreendida objetivamente”, como se fosse um dado, natural, portanto, que estivesse disponível para ser captado pelas lentes de sua câmera, sob a forma de um retrato.

Estar no campo do discurso implica considerar a língua em sua incompletude, a linguagem como sujeita a falhas e equívocos e uma relação não-direta entre pensamento-palavra-mundo. Implica reconhecer que na língua há comunicação e não- comunicação (Pêcheux, 1988 [1975]) e que a língua, a língua nacional, é objeto simbólico que “reclama” sentidos (Orlandi, 2009) .

Uma outra implicação direta, que é de extrema relevância para o modo como o tema foi trabalhado nesta dissertação, é a de que aqui não se produziu um estudo sociológico do “fato social” representado pelo heterogêneo movimento hip hop no Brasil. Além disso, não se trata também de assumir um determinado conteúdo como verdadeiro, que serviria de “parâmetro” para o julgamento de outros conteúdos – como se os argumentos levantados necessitassem de “comprovações” para se sustentarem enquanto verdadeiros ou falsos. Trata-se, sim, de compreender como esses textos – que, devido a sua especificidade passarão a ser denominados “letras de música” –produzidos numa materialidade musical – o que implica necessariamente especiais condições de produção diferentes de um material estritamente escrito –, significam os sujeitos dos quais os rappers se colocam enquanto porta-vozes, assim como de que maneira significam seu outro. Quem são esses porta-vozes? Que imagem eles constroem de si? Que imagem constroem daqueles cujas vozes eles portam? Que imagem constroem dos outros a quem se dirigem? Essas e muitas outras questões foram levantadas e são de extrema importância para o caminho que fora trilhado durante as pesquisas na busca por respostas, ainda que provisórias.

Assim, no que se refere ao corpus, pode-se afirmar ser esta escolha fruto de um casamento entre a paixão pela música, enquanto produtora/produto da arte; e da arte, enquanto espaço de contestação, de desestabilização dos universos ideal e imaginariamente estabilizados, do questionamento: dá-se aí o encontro entre o hip hop (movimento artístico, político e social) e o Facção Central (grupo que procura manter-se firme no propósito de, ao produzir rap, questionar, sair do espaço do mesmo que a

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indústria cultural de massa (?) cultivou anos a fio, sempre com o objetivo de aumentar seus lucros). O propósito ao qual o Facção Central, enquanto grupo de rap, procura manter nos faz retornar ao início do movimento, quando seu objetivo era mais a crítica social e menos o dinheiro que o rapper pode ganhar ao “vender sua ideologia” (SD47)4. Nesse sentido, é valido trazer a contribuição teórica de Bulhões (1999) que, pensando a relação entre artista, memória e identidade no Brasil, comenta a afirmação de WolfangWelsch, para quem “no meio da hiperestetização, há a necessidade de áreas esteticamente baldias”, dizendo que

Evidenciando os aspectos mais torpes e baixos da realidade, alguns artistas querem trazer de volta a humanidade perdida num afã de falsas pretensões. Eles rompem radicalmente com os padrões tradicionais de um belo idealizado, expondo o feio, o tosco, o abjeto. Estes artistas abdicam dos caminhos fáceis para jogar com o público, mesmo contra sua vontade, nas profundidades do inferno. (Bulhões, 1999: p. 93)

E, mesmo levando em consideração que nesse trecho a autora busca significar as produções estéticas de artistas plásticos, pode-se fazer uma ponte com as produções discursivas do rap pesquisadas neste trabalho, sempre tendo em mente que o meio material, enquanto condição de produção do discurso, é constitutivo do sentido, ou seja, que diferentes meios – no caso, artes plásticas e rap – significam diferentemente. A aproximação – a tal ponte – se dá no que concerne ao movimento de contestação que se encontra representado tanto em uma quanto em outra produção artística. Nesse sentido, é possível pensar os rappers do grupo Facção Central como sujeitos que, cantando “a carnificina rotineira”, “rompem radicalmente com os padrões tradicionais de um belo idealizado” (Bulhões, op. cit.) e instauram um novo espaço de significação, marcando-se por formulações que resistem à “logica de uma cultura unitária e homogeneizadora” (Bulhões, op. cit.) construída pelo processo de globalização e de massificação da cultura.

Ocorre que a paixão e a academia, ou seja, o sentimento passional e o espaço institucional em que a discussão aqui proposta está sendo travada, não fazem parte da mesma ordem: a primeira está historicamente relacionada ao descontrole, este, assistemático por convenção, remonta à emoção (pathós, palavra de origem grega que, em língua brasileira, podemos traduzir por „doença‟, „mal‟); a segunda é historicamente

4 (SD47) significa, conforme mostraremos no capítulo 2, uma das sequências discursivas analisadas nesta

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construída – e concebida – como o espaço da sistematicidade, da cientificidade, da razão, do mensurável. A implicação direta dessa constatação é a de que não se faz ciência apenas com uma dose cavalar de paixão (emoção). O que significou a necessidade de se buscar uma “razão”, um motivo acadêmico-social que justificasse a escolha do tema. A procura teve um fruto satisfatório quando, ao pesquisar a bibliografia de estudos acadêmicos sobre o hip hop no Brasil, encontrou-se apenas um que usou as produções do grupo Facção Central como material de pesquisa, estudo esse desenvolvido sob um quadro teórico concernente à disciplina História. Assim, considerando-se inclusive o trabalho cuja pesquisa se centra no hip hop e que é fundamentado nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso da Escola Francesa, não se encontrou um estudo sequer que se dê sob essa fundamentação teórica e o rap produzido pelo grupo Facção Central. Isso quer dizer que a presente dissertação pode estar representando a primeira vez em que se conjugam Análise de Discurso e Facção Central num mesmo estudo. Tal conjugação pode significar o início de um processo de deslocamento na lógica que coloca em relação de sinonímia hip hopnacional e

RacionaisMC’s ou Mv Bill, estes últimos assaz recorrentes em pesquisas brasileiras que

tematizam o hip hop.

Contudo, todas essas considerações remetem apenas ao primeiro aspecto fundamental do desafio anteriormente citado. Ou seja, há ainda que se considerar o segundo aspecto, a saber, a definição do arcabouço teórico para a condução da pesquisa: por que a Análise de Discurso de Escola Francesa?

Uma primeira e rápida resposta que vem à cabeça remonta ao aspecto questionador que sustenta a escolha do corpus, isto é, precisava-se de uma teoria cujo quadro nocional condissesse com a desestabilização de que se falou quando se discorreu sobre o primeiro aspecto. Nesse sentido, decidiu-se pela Análise de Discurso devido principalmente ao fato de que ela busca a desconstrução das raízes que sustentam o óbvio do sentido, que sustentam a evidência enquanto ponto de partida do(s) movimento(s) em direção à compreensão da/na linguagem. E, toda escolha, enquanto movimento de seleção, implica cortes. Cortaram-se, portanto, todas as possibilidades de lidar com uma língua sistemática, homogênea e apreensível enquanto matéria objetiva ou enquanto instrumento do qual os homens, no papel de interlocutores, ou seja, de emissores e receptores, utilizar-se-iam para comunicar uma mensagem. Também não se

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pensou em funções da linguagem, mas, como mostraremos mais adiante, em funcionamento linguístico-histórico.

A Análise de Discurso mostrou-se, desde o primeiro contato, ainda nos tempos de graduação, uma teoria que abraça a causa da contestação, por ter sido, ela própria, consequência de um questionamento teórico dentro dos estudos de linguagem no final da década de 1960, e porque ela traz, em seu fundamento, a negação da literalidade enquanto princípio de funcionamento da língua(gem). E questionar a literalidade, procurando compreender os processos discursivos que produzem – determinados – sentidos sob a materialidade significante da língua, é imprescindível quando se buscam discutir determinadas produções sociais – no caso, o rap – sem cair no encantamento das soluções sociológicas, para as quais os sentidos são imanentes, e que são baseadas na noção de linguagem enquanto instrumento transparente de comunicação, separada da exterioridade e “fora” do alcance do funcionamento ideológico. Dessa forma, pôde-se sair do lugar-comum construído para significar as produções do movimento hip hop, sobretudo quando se toma por corpus de pesquisa as letras de músicas de um representante da “corrente” conhecida como rap underground.

Essa expressão “underground” foi empregada por Lippold e Santos (2004) para destacar uma determinada parcela dos grupos de rap que se contrapõem à lógica de mercado instaurada pelo estabelecimento de um novo filão na indústria fonográfica. Propõe-se aqui que o Facção Central pertence a essa determinada parcela, porque o grupo utiliza uma gravadora independente e se opõe a uma outra gigantesca parcela de grupos de rap que representam o seu oposto, ou seja, aqueles grupos que estão sob a égide de uma espécie de “cartel” de gravadoras que “comandam” a indústria fonográfica, a partir da relação de “comando” que estas mantêm sobre a produção dos artistas que se submetem a tais critérios de trabalho, em nome, principalmente, de dinheiro e de fama, e que são denominados, no estudo de Lippold e Santos (2004), pelo termo “comercial”. Foi interessante trazer essa distinção porque ela implica diretamente a posição discursiva da qual o sujeito produz suas formulações. Implica, ainda, processos de identificação com determinados lugares sociais que se contrapõem frontalmente aos rappers que só querem estar na mídia, ainda que para isso necessitem de negar sua origem favelada e de interditar sua voz questionadora em nome de dinheiro e fama. Veremos mais adiante que essa divergência coloca em conflito duas posições discursivas – uma, a dominante, que é a mercadológica e outra, poder-se-ia dizer

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dominada, que é a questionadora –, cuja disputa ainda não gerou uma ruptura total, por parte de uma dessas posições, com a formação discursiva que as domina. A relação de tensão pode até estar bastante acirrada, mas ainda não foi suficiente para instaurar uma nova formação discursiva. Na seção em que discutimos essas relações, procuramos abordar o(s) possíveis porquê(s).

1.1.1 O QUE NO RAP: DELIMITANDO O TEMA

A rima é a palavra no maior significado Adversária da frieza de um dicionário Não tem fãs: tem seguidores. Impostores gravam cenas como atores. A rima sofre com a censura. Foi caluniada Por quem ri do verbo e não crê na força da palavra. Mas o dia da igualdade tá chegando, seu doutor. Mas o dia da igualdade tá chegando, seu doutor. (G.O.G, 2004 )

Retomando o parágrafo introdutório desta dissertação, o tema aqui proposto é a problematização da construção da resistência enquanto projeto do rap nas manifestações discursivas do grupo Facção Central, especificamente, nas letras das músicas que compõem o álbum A marcha fúnebre prossegue (2001). Problematizar implica que não se tomará como certa, pelo menos não neste momento, a hipótese de que existe tal projeto. Tanto o ponto de partida quanto as estratégias “elaboradas” por esse sujeito que, segundo nossa hipótese, posiciona-se resistindo a algo, assim como o porquê dessa resistência, foram postos em discussão. Para tanto, procurou-se, trabalhando com a materialidade significante da língua, ou seja, não tomando o sentido como imanente à forma (material) e remetendo as formulações ao conjunto do já-dito, do não-dito e do que pode e deve ser dito, deslocar a compreensão sobre o rap dito underground para um terreno outro que não o(s) já delimitado(s) pelas políticas de estabilização de um determinado sentido, da “frieza de um dicionário”, que poderia ser “apreendido”, a partir de uma análise de “conteúdo”. E esses processos de estabilização dos sentidos são movimentos em direção a um silenciamento da “força das palavras”, silenciamento que se dá a partir de calúnias e censuras à rima, “a palavra no maior sentido”.

Assim, a definição do corpus desta pesquisa tem um motivo que necessita de ser enfatizado: o fato de que se trata de um álbum que foi produzido após a proibição das

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veiculações do videoclipe e da música “Isso aqui é uma guerra”, pertencente ao álbum

Versos sangrentos, lançado no ano de 2000. O grupo Facção Central, devido ao

lançamento da música citada, chegou a ser indiciado por incitação e apologia ao crime e, mesmo depois de apreensões de materiais de vídeo e áudio em redes de venda; de multas e constrangimentos legais às empresas concessionárias do ramo da radiodifusão que se propuseram a veicular os materiais; de muitas idas e vindas do grupo à delegacia de repressão ao crime organizado; de responder judicialmente – ou seja, em juízo –; e de não ter sido condenado, ao final dos processos, decidiu não se “submeter” a essa visível política local de silenciamento (Orlandi, 1993) e produziu uma espécie de resposta, cuja tentativa de expressão se encontra já no título do álbum, no qual se pode notar, inclusive, como esses sujeitos procuram significar sua produção musical: A marcha fúnebre prossegue. (grifo nosso) Nesse caso, o artigo definido, como dizem os gramáticos normativos da língua portuguesa (no Brasil, pelo menos), não apenas funciona definindo o nome, como também o significa enquanto informação já conhecida que está sendo retomada. Desse modo, o sintagma nominal “marcha fúnebre” retoma alguma informação anterior utilizada para significar as produções musicais desse grupo. A presença de um verbo no presente do indicativo funciona estabelecendo uma relação de atemporalidade. Além disso, trata-se de um verbo que indica movimento para frente. Nesse sentido, pode-se dizer que a marcha fúnebre irá seguir prosseguindo, ininterruptamente, ainda que promotores e demais agentes da “justiça” procurem encher o caminho do grupo de empecilhos e de contratempos. Isso já diz muito sobre o modo como o grupo se posiciona discursivamente.

1.1.2 VALE A PENA TRABALHAR COM O RAP? UM EFEITO DE JUSTIFICATIVA

Tem muito mano em cena que não entendeu a importância do hip-hop. Rap, não importa o estilo, a quebrada, o cantor: é a música da favela, é a voz do mais sofrido, dos sem

voz. (Facção Central, 2003)

No que tange ao aspecto de concepção desta dissertação, nesta seção de introdução estão sendo apresentados, detalhadamente, os motivos que concorreram para a elaboração desta proposta. Nesse sentido, e dando continuidade ao que foi trazido nos primeiros item e subitem, encontram-se, a seguir: a memória do projeto, na qual se

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pautaram, entre outras coisas, as condições de produção desta proposta; a perspectiva da pesquisa com o objeto teórico discurso e com o objeto empírico, as letras de música do álbum A marcha fúnebre prossegue, do grupo de rap Facção Central, enquanto material significante sobre o qual a análise incidiu; e o quadro teórico que servirá de referência – a Análise de Discurso elaborada por Pêcheux (França, finais da década de 60 do século passado) – para a discussão do tema já mencionado.

A ideia que deu origem a esta proposta de pesquisa surgiu a partir do cruzamento de, pelo menos, dois fatores, ambos da esfera pessoal. Um deles está mais relacionado ao âmbito acadêmico; o outro, mais próximo da relação estabelecida entre a pesquisadora e a poesia, relação esta com a qual a presente exposição será iniciada.

A poesia – ou a dinâmica poética – enquanto presença/percepção, na vida desta estudante, é da ordem da imposição. Explicação: não há um só momento em que a poesia não se faça presente, inclusive quando a ela não é concedida, de maneira consciente – e raramente o é –, um espaço para sua aparição. Em outras palavras, ser da ordem da imposição é impor-se presente quando dela nada se espera. Assim ela “funciona”: aparições inesperadas, mas, nem por isso, recusadas. E a poesia também é onipresente, uma vez que marca sua presença em qualquer situação: desde um pôr-do-sol contemplado da janela da sala (de aula, de casa...) até uma espécie de composição musical cujo nome a carrega sob a forma de uma sigla (rap [sigla, em inglês] = ritmo e poesia [em língua brasileira]).

Com relação ao âmbito acadêmico, foi possível, nessas pouco mais de duas décadas dedicadas à educação formal – divididas entre os ensinos fundamental, médio e superior –, reparar que não há muito espaço, na instituição escolar, para que se coloque em perspectiva aquilo que se constrói historicamente como “produção marginal”, sendo esta frequentemente discutida sobre as mesmas bases: a de um conteudismo que apenas reproduz, sem deslocar, a discussão, de modo a buscar promover uma “repetição empírica” (Orlandi, 1996) – permanência, paráfrase – e a evitar conceder espaço a novos sentidos possíveis, aos deslocamentos, enfim, às ressignificações – ou “repetições históricas” (idem, 1996).

Isso quer dizer que há um movimento, dentro da academia enquanto espaço de “produção do conhecimento”, que expõe as veias da contradição à qual está submetida, movimento esse que tanto procura cercear a constituição e a formulação de novos

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sentidos quanto constitui um lugar privilegiado onde essa significação se mantém controlada, de modo que aquelas produções discursivas cujos autores e/ou leitores/ouvintes estejam relacionados, em maior ou em menor grau, a alguma forma de marginalidade, sejam interditadas em sua circulação, a partir de mecanismos como os de ridicularização do diferente, de “adversarialização” do contrário e, sobretudo, de negação do outro.

Diz Orlandi (2004), ao discutir a relação entre pichação, grafite e escola no “espaço” urbano, que

(...) a educação tem, de direito, de ser o instrumento graças ao qual todo indivíduo, numa sociedade, possa ter acesso a qualquer tipo de

discurso – verbal, não verbal, escrito, oral, erudito, popular. Mas ela

segue, na sua distribuição, as linhas marcadas pelas distâncias, oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira

política de manter ou modificar a apropriação dos discursos com os saberes e os poderes que levam junto. (Orlandi, 2004: p. 117,

grifos nossos)

E Orlandi continua, trazendo Foucault (1975), para dizer que este nos “aponta também para a maneira de exercer a crítica: colocar em questão a nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; restaurar a soberania do significante” (Orlandi, 2004, grifos nossos). É disso que se trata esta dissertação: de uma crítica a determinadas posições ideologicamente marcadas de passividade diante de um suposto caráter objetivo da língua, posições essas que se revestem de neutralidade científica, neutralidade que dicotomiza e opõe sujeito e objeto e que toma a língua como instrumento para comunicar. Nesse sentido, com o objetivo de mostrar como o quadro teórico-metodológico de referência selecionado para esta pesquisa se comporta teoricamente diante das questões da língua e do exercício da crítica, buscou-se novamente uma contribuição teórica em Orlandi (2009 [1999]), a qual explica, com relação ao funcionamento da linguagem para a Análise de Discurso, que

Para a Análise de Discurso, não se trata apenas de transmissão de informação, nem há essa linearidade na disposição dos elementos

da comunicação, como se a mensagem resultasse de um processo

assim serializado: alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se em

um código e o receptor capta a mensagem, decodificando-a. Na

realidade, a língua não é só um código entre outros, não há essa separação entre emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numa

sequência em que primeiro um fala e depois o outro decodifica etc. (...) Desse modo, dizemos que não se trata de transmissão de

informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história,

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temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informações. São processos de identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade etc. (...) A linguagem serve para comunicar e para não comunicar.As relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são

múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito

de sentidos entre locutores. (Orlandi, 2009 [1999]: p. 21, grifos

nossos)

O problema é que essa tendência à interdição do novo, ou à manutenção do mesmo, à permanência, acaba assumindo uma direção oposta ao próprio desenvolvimento das teorias que estudam não apenas a língua(gem), mas também das que se referem ao campo do discurso. Basta para isso perceber os movimentos que muitas dessas teorias fizeram – e continuam a fazer – para abarcar o heterogêneo, o diferente, em suas fundamentações. Fato que aparece de maneira clara quando, por exemplo, se consideram tanto, globalmente, a Análise de Discurso de base pecheuxtiana quanto, especificamente, as noções de sujeito – da ideologia e do inconsciente – e de discurso – construto teórico da disciplina.

No que tange à marginalidade, noção de extrema relevância para esta dissertação, trata-se de um termo que foi apontado para destacar ao menos dois possíveis sentidos: primeiro, o de estar à margem daquilo que se constrói como “centro”; em segundo lugar, o de estar à margem da lei5. Essa “marginalidade”, então,

entra como uma implicação, resultante de uma determinante política de seleção [exclusão vs. inclusão] que caracteriza a sociedade dividida em classes nas quais são produzidas – ou das quais resultam – os processos de resistência. E é nesse ponto de confronto, de disputa, característico de nossa formação social que produz/reproduz a desigualdade, a opressão e a segregação, que a abordagem se concentrou. Isso porque o mesmo movimento que faz calar faz falar; o mesmo movimento que oprime cria as

5 No livro intitulado “O desafio de dizer não”, Lagazzi fala sobre a lei e o direito, a partir das

considerações que faz do trabalho de Miaille (1980), que: “(...) a especificidade do Direito atual está na ‘abstração’ e na ‘generalidade’ através das quais ‘a expressão das relações sociais se realiza.’ A lei está calcada na indeterminação e por isso ela adquire a generalidade necessária para se aplicar a todo e qualquer cidadão. Teoricamente, ‘a lei deve mostrar-se como estando acima dos interesses pessoais ou de grupos’ (Orlandi, 1986a), pronta para ser aplicada a todo e qualquer infrator.

‘Todos os homens são iguais perante a lei’. É nessa máxima que se fundamenta o Direito e a Justiça, levando-nos a acreditar na imparcialidade da jurisprudência, no fim dos privilégios. ‘Todos têm os mesmos direitos e deveres’. A Justiça sustenta-se, pois, por esse engodo teórico, uma vez que a desigualdade entre os homens, marcada pelo modo de produção, não se desfaz em nenhum outro lugar.” (Lagazzi, 1988: p. 41, grifos nossos)

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bases para a resistência a essa opressão. É precisamente aí que a pesquisa foca sua atenção6.

Portanto, dois processos foram elencados no sentido de darem conta da motivação pessoal responsável pela elaboração da proposta de pesquisa: de um lado, a questão da opressão/resistência enquanto movimentos opostos e, em certa medida, concomitantes, que, contrários, estão diretamente relacionados à questão dos processos de identificação e da formação de identidades; de outro, a música, enquanto um som melodioso, acompanhado ou não de significantes linguísticos, mas repletos de matéria simbólica sempre sujeitas à interpretação. Eis aí a conjunção de interesses que, ao se cruzarem, forneceram as bases fundamentais desta pesquisa.

Uma consequência direta de tal “constatação” é que algumas das noções teóricas mais caras a esta pesquisa são as de sujeito e sentido, formações discursivas e

imaginárias, além das de sujeito-autor, outro, língua fluida e língua imaginária, político, urbano e periferia.

Logo, pode-se dizer que a presente proposta busca problematizar a construção da resistência como projeto nas manifestações discursivas produzidas dentro de um domínio caracterizado como um dos elementos que compõem o movimento hip hop, isto é, o rap, a partir da observação das marcas significantes linguísticas e do funcionamento discursivo, tomando, como materialidade, as letras das composições musicais do grupo Facção Central, especificamente as contidas em um determinado álbum: A marcha fúnebre prossegue. É nesse sentido que encontram-se apontados, a seguir, três fatores que justificam a escolha do tema/teoria. Vale lembrar que esses fatores, embora tenham sido muito significativos, não são os únicos nem constituem o todo das possibilidades motivadoras.

Em primeiro lugar, trata-se de um anseio pessoal da pesquisadora-autora deste trabalho de procurar saber se há e, em havendo, como se constrói, a partir da produção discursiva do rap do/no Brasil – pelo grupo Facção Central –, esse ambiente de protesto que significa o movimento de que faz parte.

6

Repare que o termo “sua” foi utilizado de modo proposital, a fim de criar uma ambiguidade entre a retomada do termo pesquisa, como um adjunto adnominal, e a possibilidade de estabelecer uma interpelação ao leitor: sua atenção = atenção do leitor. Note que hoje, na língua brasileira, já há uma espécie de ‘equivalência’ entre os pronomes de segunda e de terceira pessoa. Isso faz com que não seja mais tão produtiva a diferença entre tais pronomes e que os interlocutores já reconheçam nas desinências de terceira pessoa um chamado, uma interpelação a quem ouve/lê.

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Depois, trata-se de um interesse em compreender quais marcas linguísticas (Orlandi, 1996), em suas formas empírica, abstrata (abordagens logicista ou sociologista da língua) e material (abordagem discursiva), participam das construções semânticas desse denominado ambiente de protesto, para que se possam apontar alguns dos efeitos de sentido possíveis produzidos a partir do seu engendramento.

Por fim, e não menos importante, existe a questão do desejo de contribuir para o preenchimento dessa espécie de lacuna existente nas pesquisas7 que versam sobre o material linguístico com o qual se trabalhará, qual seja, o das letras das músicas de determinado álbum produzido pelo grupo Facção Central, sob a fundamentação teórica da Análise de Discurso de base pecheuxtiana.

1.1.3 POR QUE A ANÁLISE DE DISCURSO? “ESCOLHENDO” UMA TEORIA

Assim, os “erros”, as “incompreensões” não são fruto do “mau” uso da língua, mas revelam que faz parte de sua ordem própria expor-se à história e, com isso, aos “desentendimentos...” (Baldini, 2009) Este trabalho, no entanto, não se pretende o primeiro passo dado em direção à interlocução entre academia e “marginalidade” – aspecto já mencionado aqui –, compreendendo-se esta como o conjunto de produções discursivas cuja circulação se restringe a determinados e fechados espaços sociais que não gozam o “privilégio” de serem legitimados socialmente, ficando restritas a alguns poucos e determinados espaços, e tendo baixa – ou nenhuma – penetração – ou ressonância, circulação – em outros. Dessa forma, este estudo não pode ser encarado como o início, origem dessa interlocução. E isto é preciso ficar claro, afinal, muitas têm sido as tentativas de se pensar as manifestações, aceitas ou não enquanto arte, da favela e da periferia, sejam essas tentativas, mais frequentemente, no sentido da reprodução e da permanência de um determinado sentido tomado como o único possível, sejam elas, menos

7

Interessante observar que apenas uma, dentre todas as pesquisas acadêmicas consultadas, cujas indicações constam da bibliografia, pesquisas essas que abordam o hip hop, cita o grupo sobre cujas letras este trabalho se apoia. Trata-se de uma monografia de especialização em História, que versa sobre a identidade do povo afrodescendente e as formas de resistências por ele construídas, no Brasil. Entre as formas eleitas pelos autores está justamente o rap: LIPPOLD, Walter G. R., SANTOS, João B. A música rap e o processo de resistência cultural afro-brasileira. (Especialização). FAPA: Porto Alegre, 2004. Não foram encontradas, durante as buscas bibliográficas, produções que cruzem Facção Central e Análise de Discurso.

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frequentemente, com objetivo de produzir novos olhares, novos conhecimentos, modificando, assim, a relação que se procura estabelecer entre significante e sentido e promovendo, portanto, a mudança, a ressignificação, a transformação da relação que os sujeitos estabelecem com os sentidos.

Pode-se dizer, contudo, que se trata apenas de mais uma janela a ser aberta para o diálogo possível com esse rico mundo de potencialidades, até bastante visitado, mas pouco “escutado” – e com muito a ser mostrado –, chamado periferia. E periferia não apenas num sentido geográfico-espacial, local para onde são empurradas as massas trabalhadoras das cidades, mas também, e principalmente, como uma maneira de significar os sujeitos e pela qual estes se significam (cf. epígrafe p.3). Isso quer dizer que não se assumirá aqui uma posição de suposta neutralidade, como se a análise pudesse ser produzida “fora” da ideologia, de modo a apenas descrever objetivamente o conteúdo, a partir do qual se pudessem produzir avaliações e julgamentos. Quer dizer também que se procurou não jogar dentro dos preceitos do maniqueísmo que insiste em separar, estabilizar e transformar em categorias absolutas e discretas o „bem‟ e o „mal‟, tomados como critérios de valoração argumentativa. É nesse sentido que se pode afirmar que não se trata de ser “imparcial” diante de um objeto, como se fosse possível separar prática discursiva de assujeitamento; muito menos se trata de etiquetar as produções discursivas com rótulos de „boas‟ ou de „más‟ e advogar em favor da causa “escolhida”.

Trajano (2010), em sua dissertação de mestrado intitulada Etos na poesia

combatente dos menestréis do rap: por uma análise das imagens discursivas no grito marginal do hip hop brasileiro, dedica um subcapítulo para discutir a relação entre

centro e periferia, discussão extremamente relevante tanto para aquela quanto para a presente pesquisa, uma vez que ambas buscam analisar essas produções musicais caracteristicamente urbanas.

Não satisfeito com a pouca clareza com que é trabalhada a noção de periferia, Trajano (2010), que se interessou em “investigar os discursos produzidos por integrantes de uma esfera social determinada: o gueto” (p. 30), foi buscar na teoria da Análise Institucional, especificamente no pesquisador francês Remi Hess (2001), um suporte teórico que o permitisse avançar numa conceituação de periferia mais próxima à necessidade que seu estudo apresentou: a necessidade de discutir a relação entre centro

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e periferia, para compreender o funcionamento dos discursos produzidos pelos rappers anteriormente citados, pesquisados por Trajano.

Hess e sua teoria dos impulsos auxiliaram Trajano a elaborar a seguinte noção de

periferia, que utilizaremos nesta dissertação, fazendo, claro, a desterritorialização do

conceito do terreno da análise institucional e reterritorializando-o na análise de discurso. Nesse sentido, e compreendendo que a teoria com que Trajano trabalha, devido a seu recorte epistemológico, não faz uso de aparatos teóricos como ideologia e forma-sujeito, podemos considerar como basilar para as nossas análises a seguinte noção de periferia:

A linha de raciocínio que vimos seguindo até aqui nos autoriza a chamar de comunidade periférica cada espaço onde as desigualdades e violências sociais se exibem, tal como relatado nos raps. Por fim, tratar-se-á de periferia o lugar de reprodução de impulsos, em que estão inseridas inúmeras comunidades periféricas. Por quê? Simples. Classificar um polo como centro e outro como periferia é reconhecer que as tramas do mundo se erigem em dois tipos de lugares, em que habitam duas espécies de sujeitos, e só. Não nos satisfazemos com isso. (Trajano, 2010: pp. 40-41, itálicos do autor)

Apontamos esses elementos, para mostrar que a periferia é um exemplo de noção complexa, que, para ser trabalhada discursivamente, seriam necessárias as considerações de aspectos bastante relevantes, como a questão dos impulsos que são “emitidos” em direção ao centro e que modificam/são modificados por esse centro. Mecanismo que acontece também na periferia, que recebe impulsos do centro, impulsos esses que modificam e que são modificados pela periferia. Vemos aí uma semelhança bastante forte com o funcionamento de uma formação discursiva e da forma-sujeito correspondente: existe uma administração de sentidos possíveis, que autorizam e legitimam determinadas produções de significação, mas não outras. É aí que a ideologia se mostra um conceito central (e pouco explorado por Trajano): sem compreendermos seu funcionamento, não seria possível reconhecermos que existem sentidos que perpassam formações e que comparecem nos sentidos administrados por outras formações discursivas. Esses movimentos são descritos por Trajano, mesmo que não possuam essa “metalinguagem” própria à teoria do discurso.

Tendo tudo isso em mente, pode-se dizer que não se considerará o “conteúdo” das letras de rap para com elas concordar ou delas discordar, mas que se buscará na materialidade significante linguística, em sua opacidade semântica, dessas produções as marcas que permitirão apreender como funcionam discursivamente, quais efeitos de

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sentido estão sendo engendrados e de que maneira esse engendramento se dá na/para a ordem do discurso. Para tanto, é preciso não ignorar, em momento algum, o fato de que essa “margem” é historicamente determinada, que ela não possui contornos fixos e que só é margem porque há aquilo historicamente construído como centro. Dessa forma, pode-se compreender que essas fronteiras estão em contínua reconfiguração no espaço simbólico e que as bases estruturais que sustentam a existência de tal divisão nunca cessam de funcionar.

As próximas seções desta dissertação trazem quais podem ser consideradas as marcas da resistência do sujeito nas manifestações discursivas produzidas pelo rap no Brasil enquanto um projeto de produção de identificações entre sujeitos e sentidos para o movimento8hip hop. Cabe ressaltar que o tema da resistência, embora um assunto

frequentemente estudado dentro do escopo teórico da Análise de Discurso francesa, talvez por estar diretamente relacionado ao próprio surgimento desse campo epistemológico, foi pouco explorado – nas pesquisas bibliográficas realizadas, encontrou-se apenas uma dissertação que empreendeu um estudo parecido, no qual se pretendeu contrastar as manifestações artísticas do samba e do rap enquanto movimentos de resistência engendrados por habitantes das periferias urbanas9 –, quando se pensa em pesquisas que trazem as produções discursivas do hip hop brasileiro como materialidade a ser analisada. Mariani (1996) nos diz que, sob a perspectiva discursiva, de acordo com Pêcheux, a resistência

É a possibilidade de, ao dizer outras palavras no lugar daquelas

prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos esperados.Éressignificar rituais enunciativos, deslocando processos

interpretativos já existentes, seja dizendo uma palavra por outra (na forma de um lapso, um equívoco), seja incorporando o non sens, ou

simplesmente não dizendo nada. (Mariani, 1996: p. 26, grifos

nossos)

8

Ou cultura. A escolha de um ou outro termo tem implicações fundamentais para o entendimento da dinâmica do hip hop. Esses diferentes termos, ‘movimento’ ou ‘cultura’, significam diferentemente o hip hop para o grupo que os utiliza. Alguns autores debruçaram-se sobre essa diferença, a fim de buscarem se posicionar a respeito dela. Nesta dissertação, essa questão será discutida no ponto sobre as condições de produção.

9

Trata-se da seguinte dissertação: REIS, Soraya M. O RAP na mídia : discurso de resistência?(Mestrado) Universidade de Taubaté, São Paulo: 2007. Sob o quadro teórico da Análise de Discurso, Reis (2007) toma como objeto empírico as produções discursivas de O Rappa e Racionais MC’s.

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Após uma abrangente pesquisa bibliográfica entre recentes – e não tão recentes assim – produções acadêmicas, ficou patente que o tema escolhido é ainda menos explorado se se levar em conta o cruzamento entre os estudos da resistência nas produções discursivas do hip hop brasileiro e o corpus sobre o qual a análise incidirá: as letras das músicas constantes do álbum A marcha fúnebre prossegue, produzido pelo grupo de rap Facção Central, no ano de 2001.

Portanto, mostra-se importante à atualização das noções teóricas, a serem trabalhadas na próxima seção, sobretudo daquelas mobilizadas especificamente para este estudo, haver novas propostas de análise, nas quais estejam incluídos temas já trabalhados – no caso, as marcas da resistência – em um corpus ainda não visitado – ou seja, as letras das músicas de um álbum do grupo Facção Central. Nesse sentido, esta dissertação poderá contribuir não só para o crescimento acadêmico-intelectual dos envolvidos diretamente na pesquisa – a pesquisadora, sua orientadora, o programa [pós-graduação stricto sensu] e a linha de pesquisa [teorias do texto, do discurso e da interação] na qual aquelas estão inseridas –, mas também, quiçá principalmente, para o aprimoramento da teoria que a fundamenta.

1.1.4 COMO TRABALHAR COM MÚSICA: AS ESPECIFICIDADES E OS PROCEDIMENTOS DE AJUSTE DO MATERIAL

”A narrativa do rap tem um aspecto de fábula porque coloca o bem contra o mal, um contra o outro, o que tende a acirrar os ânimos num país desigual como o Brasil. Mas aí o problema é mais social do que musical.” (Luiz Tatit, ) O trabalho com a música é complexo e mobiliza determinados aspectos que, para o objetivo que se pretende alcançar nesta pesquisa, não se fizeram pertinentes em primeira instância. Isso quer dizer que, mesmo considerando a importância desses elementos para a composição das dinâmicas de produção e de apreciação musical, não estiveram na linha de frente da discussão elementos como melodia, ritmo, arranjo, acorde, enfim, nada além das letras e de um ou outro momento na composição em que são utilizados sons como os de tiro (representados, ou não, na materialidade linguística sob a forma, por exemplo, de onomatopeias). Nesse sentido, entende-se que a denominação “composição musical” remete à conjunção de elementos formadores que ajudam a significar o aspecto musical, mas entende-se igualmente que, nesta discussão,

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não cabe considerar elementos outros que não as letras que compõem essas músicas. A consequência direta dessa consideração faz-se perceber a partir da própria designação que será utilizada neste trabalho sempre que se objetivar remeter ao corpus desta pesquisa: letra de música (principalmente para diferenciá-la de texto, que é uma outra materialidade simbólica). Assim, o sintagma nominal preposicionado “letra de música”, sintagma esse que é produto – e que produz – um recorte necessário à pesquisa, remeterá, doravante, ao que comumente é designado por “canção” ou “composição musical” ou “música”...

A fim de que se pudesse trabalhar com um corpus composto por letras de músicas de um grupo que não possui uma página virtual onde elas estejam publicadas de forma mais fidedigna e cujos encartes dos álbuns fonográficos não as trazem, foram dados dois passos distintos e complementares, que serão descritos a seguir:

1. Num primeiro momento, a partir de uma página virtual (www.terra.com.br/musica) onde ficam hospedadas letras de músicas as mais diversas, dos mais variados grupos, bandas e artistas solo, e de publicação aberta a qualquer contribuição que qualquer indivíduo com acesso à rede pode dar – uma espécie de wikipedia do mundo musical – e livre da necessidade de

copyright, foram conseguidas as “bases” das letras de música com as quais se

trabalhou nesta pesquisa.

2. Depois, com essas letras à mão, compararam-se os textos publicados no referido sítio virtual com o que era pronunciado nas músicas, ou seja, procedeu-se a um cotejo entre o que estava escrito e o que se podia ouvir no álbum gravado pelo grupo.

A esses dois momentos distintos e complementares para a obtenção das letras de música, seguiram-se outros dois, já concernentes ao tratamento que se fez necessário para a sistematização do trabalho. É o que se segue:

1. Com as letras já aparentemente “conferindo” com o que o grupo canta nas músicas, e com base, tanto na lógica gramatical de funcionamento da pontuação, quanto das pausas e entonações demonstradas no que se podia ouvir das canções, procedeu-se à versificação dessas letras. Isso quer dizer que, embora a composição musical não coincida com a forma de um poema, operou-se uma

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“poemificação” dessas letras, de modo a possibilitar a observação dessas, a partir de versos e estrofes. Optamos por esse viés, porque

2. consideramos que a música, enquanto materialidade, está mais próxima à forma de um poema (métrica, ritmo etc.) do que da prosa.

3. Uma vez estando em formato de poemas, com uma pontuação que procura representar, na escrita, os aspectos gramaticalmente tomados como “extralinguísticos”, tais como entonação, pausa breve, pausa longa, exclamação, interrogação etc. pertencentes ao nível da oralidade, buscou-se proceder a uma espécie de formatação dos significantes, sempre privilegiando aquilo que é possível ser discernido ao ouvir as músicas. Mas, ao contrário do que propunha Saussure, um elemento sonoro pode se sobrepor a outro, o que pode produzir um terceiro significante totalmente distinto daqueles que o originaram. Isso tem como consequência direta o fato de que pode haver discrepância de significantes sonoros e escritos, o que procurei diminuir ao máximo por meio de uma incansável conferência entre aquilo que escutava e aquilo que estava fixado pela escrita de outrem. Ou seja: com base no que era cantado pelos intérpretes nas músicas gravadas – e depois da versificação construída aqui –, houve uma tentativa de aproximar o “cantado” do “escrito”. Isto significa, também, que os chamados “erros gramaticais”, como as ausências de concordância nominal ou verbal, não foram “consertados”, uma vez que sua não consideração significaria um apagamento dessas marcas significantes, o que traria consequências indesejáveis ao propósito desta pesquisa: trabalhar as formas de resistência engendradas a partir das produções discursivas do grupo Facção Central, no álbum A marcha fúnebre prossegue.

A música é um espaço privilegiado de produção de polissemia. Isso porque é constituída de sons, verbais ou não, e porque esses sons precisam ser interpretados (injunção à interpretação diante de um objeto simbólico). Saussure, de acordo com o

Curso de Linguística Geral (2006 [1916]), estabelece, como segundo princípio da

natureza do signo linguístico, que, “por oposição aos significantes visuais (...), os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após o outro; formam uma cadeia.” Ao estabelecer tal princípio, Saussure nega a possibilidade de polissemia ao significante, tomado em si mesmo – evidentemente, colocando-se de forma coerente com o corte que precisou promover a

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