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Reconhecimento, redistribuição e equidade de gênero : o trabalho doméstico na teoria social contemporânea

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Academic year: 2021

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JULIA DE SOUZA ABDALLA

Reconhecimento, redistribuição e equidade de gênero: o trabalho

doméstico na teoria social contemporânea

Campinas 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

JULIA DE SOUZA ABDALLA

RECONHECIMENTO, REDISTRIBUIÇÃO E EQUIDADE DE GÊNERO: O TRABALHO DOMÉSTICO NA TEORIA SOCIAL CONTEMPORÂNEA

ORIENTADOR: Prof. Dr. Josué Pereira da Silva

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do

título de Mestra em Sociologia.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA JULIA DE SOUZA ABDALLA E ORIENTADA PELO PROF. DR. JOSUÉ PEREIRA DA SILVA

Campinas 2015

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Resumo

A partir de uma reconstrução de argumentos em três linhas distintas, analisarei, nessa dissertação, as soluções propostas ao dilema do trabalho familiar. A divisão sexual do trabalho, que atribui às mulheres as tarefas domésticas e de cuidados e aos homens as ocupações situadas na esfera pública, remuneradas e reconhecidas como contribuições relevantes à sociedade, torna-se ainda mais onerosa às mulheres a partir de sua entrada no mercado de trabalho ao longo das últimas décadas. Desse momento em diante, elas passam a realizar duplas jornadas, sendo sobrecarregadas, ao mesmo tempo, com o trabalho remunerado na esfera pública e a manutenção de sua responsabilidade quase exclusiva pelas atividades referentes ao lar e à família.

Frente a esse problema, uma série de propostas foram realizadas no âmbito da teoria social e dos estudos de gênero, tendo por objetivo dar conta da necessidade de reconhecimento desse trabalho e, ao mesmo tempo, preocupadas com a busca de emancipação das mulheres. Nesse trabalho, reconstruo criticamente esses argumentos, analisando em que medida dão conta da necessidade de reconhecimento e, ao mesmo tempo, das demandas emancipatórias femininas. Em primeiro lugar, tratarei das propostas de feministas igualitárias, que defendem a remuneração desse trabalho. Em seguida, da visão contrária à remuneração, tanto no âmbito do feminismo quanto nas teses desenvolvidas por André Gorz em Metamorfoses do Trabalho (1988). Por fim, retomarei o que há de pertinente à questão no debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth. O objetivo é extrair dessas contribuições os elementos relevantes para pensar a equidade de gêneros através da problemática do trabalho doméstico e da divisão sexual do trabalho.

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Abstract

In this dissertation, I intend to analyze the different solutions to the dilemma of family labor, enchaining arguments in three distinct lines. During the last decades, as women move into the labor market, they become specially burdened by a sexual division of labor that assigns domestic labor and care work to women and paid occupations in the public sphere, which are also recognized as relevant contributions to society, to men. As they start working in the public sphere while keeping the same responsibility as before over domestic labor and care work, women start working double shifts.

Several theoretical proposals have been developed with respect to this problem, intending to afford the social recognition that is due to this work and keeping a strong concern for women’s struggle for emancipation. In this work, I reconstruct those arguments critically and analyze whether they constitute effective solutions to the problem that conciliate the struggle for recognition of family labor as a relevant contribution to society and the claims for women’s emancipation. In the first chapter, I debate the proposals by equalitarian feminists, who defend the payment of this work. In the second chapter, I evaluate the opposing perspective using both feminist contributions and the ideas developed by André Gorz (1988) with respect to the topic. Lastly, I carry out an incursion in the relevant points brought up in the debate between Nancy Fraser and Axel Honneth (2003). My intention is to extract from these contributions the pertinent elements to a reflection on gender equity through the issue of family work and the sexual division of labor.

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Sumário

INTRODUÇÃO ... 1

O que é trabalho? ... 3

a) O sentido antropológico do trabalho ... 4

b) Trabalho no sentido sociológico ... 6

O trabalho doméstico e de cuidados ... 9

1. DEPENDÊNCIA FINANCEIRA E EMANCIPAÇÃO ... 19

1.1. Economia doméstica como força contrária à globalização ... 20

1.1.1. Patriarcado, dominação, opressão. ... 21

1.1.2. Repensando a economia tradicional ... 24

1.1.3. O endereçamento dado ao trabalho doméstico... 26

1.1.3.1. A autonomia do lar como oposição a hegemonia do mercado ... 28

1.1.3.2. Pensando a cidadania das mulheres ... 31

1.2. Articulando a análise comparativa ... 36

1.2.1. Os estudos feministas da provisão social ... 39

1.2.2. A análise comparativa dos Estados de bem-estar social ... 46

1.2.3. Crítica ao modelo comparativo de Esping-Andersen e articulação com conteúdo de gênero ... 51

2. AS DIFERENTES RACIONALIDADES DOS TRABALHOS DOMÉSTICO E PROFISSIONAL ... 65

2.1. André Gorz e uma nova alternativa ao capitalismo ... 66

2.1.1. Racionalidade econômica e crise do trabalho na modernidade ... 67

2.1.2. O trabalho no sentido moderno e a intrusão da racionalidade econômica nas esferas da vida ... 71

2.2. Trabalho, reconhecimento, emancipação ... 97

2.2.1. Trabalho, emprego recompensador, trabalho familiar ... 97

2.2.2. Reconhecimento e remuneração – debatendo com a perspectiva da remuneração 101 3. O DEBATE DO TRABALHO DOMÉSTICO NA TEORIA DO RECONHECIMENTO ... 113

3.1. A teoria do reconhecimento de Axel Honneth ... 114

3.1.1. As três dimensões do reconhecimento ... 115

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3.2. Nancy Fraser e o modelo avaliativo das políticas sociais ... 131

3.2.1. Questionando as imagens das mulheres e do trabalho doméstico ... 131

3.2.2. O modelo da “Cuidadora Universal” ... 145

3.2.3. Redistribuição, reconhecimento e participação ... 161

3.2.4. Críticas ao modelo da Cuidadora Universal ... 170

CONCLUSÃO ... 177

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Para minha mãe, querida e cuidadosa, que me ensinou o valor dos cuidados, assim como o da autonomia.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, à CAPES pelo financiamento desse trabalho; ao meu orientador, Josué Pereira da Silva, por ser um constante e crítico guia nas incursões teóricas e debates aqui realizados; a todos os professores que me auxiliaram no processo dessa dissertação, especialmente a Silvio Camargo e Fernando Lourenço, pelas leituras atentas e comentários constantes, e à Ângela Araújo, pela perspectiva singular, que evidenciou caminhos investigativos importantíssimos para o desenvolvimento desse trabalho. Agradeço também aos comentários da professora Gilda Gouvêa e das participantes de minha banca de defesa, Patrícia Mattos e Bárbara Castro, que, através de perspectivas distintas, me mostraram novas questões e desafios de pesquisa que foram válidas contribuições à minha formação.

À minha mãe, Claudia, e ao meu pai, Nacib, pelo amor, carinho, atenção e preocupação constante, graças a qual em muitos momentos pude me concentrar exclusivamente no trabalho a ser desenvolvido – em suma, pelo cuidado formador sem o qual eu jamais poderia ser quem eu sou. Aos dois, ainda, por me despertarem o interesse nos estudos e apoiar e estimular as minhas escolhas nesse sentido. Aos meus irmãos, Luiza, Márcia, Marcelo e Antônio Carlos, aos meus primos, especialmente ao Pedro, pelo carinho e pelo sentimento de estar em casa onde quer que estejamos juntos. Às minhas tias, Flávia e Cristina, e à minha avó, Nilda, que garantem a existência de múltiplas fontes de amor e cumplicidade na minha vida.

À minha família de santo, responsável por tornar a minha vida colorida e mágica, e por constituir um porto seguro contra quaisquer ventanias. Ao meu pai, Tonikan, pelo olhar atento e conselhos precisos, pelo carinho e pela experiência de constituir uma nova família. Sua benção. Aos meus irmãos queridos, Tetê (para o qual uma página inteira de agradecimentos não seria suficiente), Lulu e Mimi, por constituírem os vínculos mais verdadeiros e confiáveis que construí na vida, e por dividirem comigo algumas das experiências mais significativas que tive, e sustentarem, por comigo uma única cabeça. À Ewefefé, pelo carinho enviesado e pelo conhecimento que apenas uma grande mulher poderia me oferecer. À Iya T’Ogun, Omiorum e Iji Nanjê, pela parceria e por uma participação imprescindível na realização do meu destino. A todos os outros queridos que estão comigo, participando de uma vida incomum e maravilhosa que eu não trocaria por nada. Àqueles que já não estão mais próximos de alguma forma, mas cuja importância nos tempos passados não deixou de ser sentida.

Aos meus amigos maravilhosos, presentes em cada passo desse longo caminho, Dafne, Manoela, Milena, Haru, Neni, Lelê, Marina, Camila, Flávia, Camila, Filipe e Diego pela alegria, carinho, companhia, auxílio, risadas, leituras, pela imensa paciência, apoio, e, sobretudo, pelo aconchego e felicidade de estar junto, de mãos dadas. Especialmente, ainda,

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ao Tiago e à Juliana, por, além de tudo isso, terem sido ajudas sem as quais esse trabalho certamente não existiria, assim como boa parte da minha estabilidade mental.

Todos vocês fazem com que eu me sinta extremamente abençoada e, por isso, além de agradecê-los (insuficientemente), agradeço e reverencio os deuses que guardam o meu caminho e alegram a minha vida.

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(...) e quando chegamos em casa, Ai de nós! vemos que nosso trabalho mal começou; Tantas coisas exigem a nossa atenção, Tivéssemos dez mãos, nós as usaríamos todas. Depois de pôr as crianças na cama, com o maior carinho Preparamos tudo para a volta dos homens ao lar; Eles jantam e vão para a cama sem demora. E descansam bem até o dia seguinte; Enquanto nós, ai! só podemos ter um pouco de sono Porque os filhos teimosos choram e gritam (...) Em todo trabalho (nós) temos a nossa devida parte;

E desde o tempo em que a colheita se inicia Até o trigo ser cortado e armazenado, Nossa labuta é todos os dias tão extrema Que quase nunca há tempo para sonhar.

Mary Collier. The Woman's Labour. An epistle to Mr. Stephen Duck [1739]. Em: E. P. Thompson. Costumes em Comum.

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INTRODUÇÃO

O trabalho é uma preocupação fundamental desde a emergência dos primeiros movimentos organizados em torno da desigualdade das mulheres, influenciando tanto os estudos acadêmicos feministas quanto a agenda da militância. A preocupação se dividia, geralmente, entre a possibilidade das mulheres acessarem o mercado de trabalho, inserindo-se na gama de atividades socialmente reconhecidas, e, por outro lado, no debate sobre o que fazer com o trabalho doméstico não remunerado exercido por essas mulheres.

No primeiro ponto, temos como principal conquista a inserção das mulheres no mercado de trabalho ao logo das últimas décadas. Essa inegável vitória, longe de selar a questão, abre um leque de novas preocupações. Por um lado, as mulheres ganham novos direitos, ampliam sua possibilidade efetiva de autodeterminação e acessam a esfera pública, participando da comunidade política e dando passos em direção à cidadania plena. Por outro, sua posição no mercado não resulta tão simplesmente em novas liberdades, mas também em renovadas clivagens, agora dentro do emprego formal, a serem superadas – por exemplo, a diferença de pagamento, a segmentação das funções e profissões por gênero e os efeitos dessa segmentação em termos de status, etc.

No que diz respeito ao trabalho doméstico, qualquer esperança de que a entrada no mercado de trabalho automaticamente forçaria avanços não se comprovou. De fato, o trabalho que se dá na esfera privada1 é trazido como objeto de debate e contestação na esfera

pública pelo menos desde o Século XIX, com as demandas que ficaram conhecidas como maternalistas na Europa Ocidental, principalmente na Inglaterra e na França. Essas reivindicações eram pautadas na possibilidade de sobrevivência das mulheres, que dependiam de seus maridos ou pais para tal e, frente ao abandono ou morte de um destes, pediam a alocações de pensões maternais que lhes permitissem sustentar suas famílias. Essas demandas não estavam pautadas, ainda, por um questionamento dos papeis tradicionais das mulheres, mas, ao contrário, pela exaltação e valorização destes e do trabalho realizado por elas nos lares2. De forma análoga, o ressurgimento dos movimentos de mulheres no Brasil

1 Não nos referimos aqui a qualquer conceito específico de esfera privada ou pública, mas apenas à oposição entre o âmbito doméstico e da família e o extradoméstico e do trabalho remunerado.

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nas décadas de 1960 e 1970 esteve relacionado à demanda por provisão estatal das condições de sobrevivência necessárias para que as mulheres realizassem seus papeis de mãe e esposa3.

Não sendo propriamente feministas, uma vez que não questionavam os papeis atribuídos socialmente às mulheres, esses movimentos colocavam em questão sua posição de dependência na sociedade, e, uma vez que não havia lugar para elas no mercado, reivindicavam que o Estado lhes assegurasse as condições mínimas de sobrevivência através, por exemplo, da manutenção dos preços.

A emergência de movimentos voltados ao questionamento da posição global das mulheres na sociedade, do machismo e das estruturas institucionais que o reproduziam, formulou o debate a respeito do trabalho doméstico em outros termos. Tratava-se, agora, de chamar atenção para a quantidade de trabalho realizado pelas mulheres na esfera privada que não era reconhecido como socialmente relevante e sequer visto como trabalho. Assim, a atribuição das tarefas ditas reprodutivas às mulheres passa a ser concebida como um confinamento doméstico na medida em que elas são impedidas de ingressar na esfera pública e, ao mesmo tempo, estão presas a uma forma de trabalho exaustiva e não reconhecida. Desse modo, na questão do trabalho, imbricavam-se duas dimensões, reunidas na ideia de enclausuramento das mulheres no âmbito do lar e da família – sua exclusão da esfera pública e o trabalho realizado voluntariamente no privado, sem reconhecimento ou retribuição de qualquer forma.

A entrada no mercado de trabalho não é suficiente para o rompimento pleno com esse confinamento. Se com ela as mulheres passam a ser vistas como possíveis provedoras, responsáveis por obter o que é necessário ao seu próprio sustento e o de suas famílias, esta transformação não é suficiente para dissolver sua forte associação ao papel de cuidadoras. Nesse sentido, a conquista dá origem a uma nova contradição, sintetizada no fenômeno das duplas jornadas de trabalho feminino: em vez de resultar numa redistribuição global do trabalho existente, o emprego feminino resulta numa renovada divisão sexual do trabalho,

3 Cf. Alvarez, 1990.

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3

em que a participação das mulheres no mercado de trabalho não as libera das tarefas domésticas, possibilitando que se fale de sobrecarga de trabalho4.

Nossa questão emerge precisamente dessa contradição. Ao nos questionarmos pela melhor forma de reconhecer o trabalho doméstico, tornando-o visível enquanto contribuição relevante à sociedade, precisamos, ao mesmo tempo, refletir sobre porque “a servidão doméstica parece refratária às grandes mutações da atividade feminina”5. Para compreendermos esse ponto e, então, podermos nos debruçar sobre aquilo que foi proposto para o reconhecimento social do trabalho doméstico e de cuidados, precisaremos avaliar seu conteúdo preciso. Assim, em um primeiro momento, passaremos pelas definições de trabalho nos sentidos antropológico – ou seja, como atividade humana geral – e sociológico – a expressão moderna do trabalho (1). Em seguida, veremos as características específicas do trabalho doméstico e de cuidados, abordando questões pertinentes a ele – como o papel de uma separação rígida entre público e privado, a naturalização dos papeis determinados socialmente, a idealização da família, etc. (2).

* O que é trabalho?

Nessa seção, temos por objetivo fazer uma breve introdução do que constitui o que chamamos trabalho e em que medida ele é identificado como uma contribuição relevante à sociedade – e, nessa medida, como esse status é negado ao trabalho doméstico e de cuidados. Para isso, abordaremos o trabalho como atividade humana geral e a forma moderna que as atividades tomam. Em cada um desses pontos, além de uma definição provisória, nos esforçaremos em demonstrar como a atividade posiciona o sujeito que a realiza na sociedade, que direitos e capacidades são atribuídos a ele em decorrência de suas atividades. Essa

4 De acordo com Dominique Meda, 2001, uma série de pesquisas aponta que, no caso francês, as mulheres ainda são responsáveis por aproximadamente dois terços de todo o trabalho que se realiza no âmbito doméstico. Essa situação é agravada com a chegada dos filhos, quando parte das mulheres diminui sua carga horária no mercado de trabalho para se dedicar às tarefas da maternidade. A autora aponta que entre as mulheres sem filhos, a taxa de emprego na esfera pública é de 90%, caindo para 70% com os dois primeiros filhos e para 55% a partir do terceiro (Meda, 2001., pp. 28-9).

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discussão, decerto, se prolongará ao longo de toda a dissertação, sendo esses primeiros passos necessários para a definição mais precisa de nosso objeto.

a) O sentido antropológico do trabalho

O trabalho antropológico encerra todas as atividades que o indivíduo realiza tendo em vista a satisfação de suas necessidades e a busca de sua sobrevivência. Trata-se de um conceito bastante amplo, não se restringindo a nenhum período histórico ou sociedade específica. Em uma palavra, é a “atividade humana geral, transhistórica”6.

Em A Condição Humana7, Hannah Arendt discute esse conceito, nomeando-o labor (labour). Este, oposto à ideia de obra8 (work), é definido como o esforço necessário para a obtenção daquilo que é imprescindível à sobrevivência. Como tal, o trabalho nesse sentido consome tudo que produz, esgotando-se em sua realização. Isso pode ser visto no caso de um agricultor que usa seu esforço e de seus familiares para o sustento da família, de um escravo que emprega sua força de trabalho e recebe em troca moradia e alimentação ou de qualquer um que receba um salário para realizar tarefas que não resultem em mercadorias. Como seu objetivo é garantir a sobrevivência daquele que o realiza, o labor não pode ser entendido como uma atividade produtiva, tampouco é voltado para a troca mercantil. Em suma, são atividades que não deixam qualquer rastro de sua existência uma vez findo seu consumo, seja como mercadoria produzida ou legado de qualquer espécie9.

Como está relacionado à sujeição do indivíduo às necessidades relativas à sua sobrevivência, o labor é visto como desumanizador, ou seja, como fator de alienação da individualidade. Essa visão é apresentada por Arendt como pertencente à Antiguidade grega, em que as características distintivas da humanidade se situam na esfera pública. Desse modo, o exercício do labor – restrito aos escravos e mulheres – representava a sujeição do homem ao império de suas necessidades, o que significava que sua faculdade racional de fazer

6 Silva, 2008, p.70.

7 Arendt, 2007.

8 Ainda que utilizemos aqui a tradução de A Condição Humana realizada em 2007 por Roberto Raposo, onde o termo work é traduzido por trabalho, a substituição desse termo por obra (como feito na tradução de 2009, de Theresa Calvet de Magalhães) visa a se aproximar mais do léxico original empregado pela autora (distinção abordada na nota 19, página 28 da tradução aqui utilizada).

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escolhas estava constrangida frente à premência da sobrevivência. Por sua vez, o consumo sem esforço que os escravos e mulheres proporcionavam através de seu labor àqueles que não realizavam atividades dessa sorte liberava-os do constrangimento de buscar por si só os meios para sua sobrevivência, permitindo que se dedicassem às nobres tarefas da esfera pública – o debate, a deliberação, etc. Eram, por esse ponto de vista, senhores de suas vontades. Assim, o trabalho aqui não encerra qualquer elemento dignificador; ao contrário, determina a exclusão daqueles que o realizam. O animal laborans conhece a natureza e pode sujeita-la em prol de sua sobrevivência própria, mas é sobretudo seu servo, pois precisa respeitar seu ciclo para concluir uma tarefa.

Algo semelhante é visto na obra de André Gorz, Metamorfoses do Trabalho, que será melhor analisada no segundo capítulo de nossa dissertação10. Ali, o autor define o sentido antropológico do trabalho como a “necessidade que tem o homem de produzir sua própria subsistência com o ‘suor de seu rosto’11”. Aqui, ele também é um princípio de exclusão, opondo-se ao sentido moderno de trabalho: ao passo que aquele garante direitos e cidadania, esse exclui da esfera pública. De fato, o estudo de Gorz está em grande medida baseado sobre as proposições de Hannah Arendt nesse sentido, não havendo maiores desacordos entre o que propõem os dois autores.

Assim, o trabalho antropológico define-se por ser uma atividade realizada em função da sobrevivência, seu único laço, o que está ligado a um caráter de urgência e inevitabilidade. Desse, deduz-se que, nesse sentido preciso, o trabalho constrange as faculdades da racionalidade e da libre escolha, alienando as capacidades próprias da humanidade. Nesse sentido, fala-se de uma desumanização, nos termos de Hannah Arendt, ou da exclusão social, no caso de Gorz, ambos resultantes da submissão à necessidade como impeditiva à participação naquilo que é propriamente humano. O labor, ainda assim, é formador de sociedades, já que estas são resultantes da agregação de diversas comunidades “em torno da única atividade necessária para manter a vida – o labor12”. Desse modo,

10 Gorz, 2007.

11 Gorz, 2007, p.22. 12 Arendt, Op. Cit., p. 56.

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A sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais, adquire importância pública, e na qual as atividades que dizem respeito à mera sobrevivência são admitidas em praça pública13.

Uma vez que a desigualdade está no cerne do labor, a sociedade que ele é capaz de originar será, também, marcada por ela, expressa na divisão dos indivíduos entre os que precisam se sujeitar às pressões da natureza e os que não.

b) Trabalho no sentido sociológico

O trabalho sociológico corresponde à sua expressão moderna, referente à emergência do capitalismo como sistema social. A partir daí, o trabalho continua satisfazendo as necessidades de sobrevivência; o faz, agora, não diretamente, mas através das trocas de produtos e dinheiro, ou seja, através da remuneração.

Por conta disso, Hannah Arendt fala da obra como atividades que se sobrepõem à natureza, transformando-a para o uso produtivo. Por essa perspectiva, o homem não está mais apenas colocado sob jugo de suas necessidades, mas se apropria da natureza, tirando dela o necessário para a produção de objetos e, colocando-se, assim, como seu senhor. Aqui, ele se assemelha a Deus, impondo seu tempo sobre o da natureza e retirando dela o que precisa.

Os objetos produzidos pelo homo faber, por sua vez, não serão consumidos como os resultados do labor, mas usados – ou seja, é possível beneficiar-se dele sem esgotá-lo, como no caso de uma lâmpada ou de uma cadeira. Ao contrário do labor, em que o sujeito se mistura com os objetos de seu trabalho, aqui ele trabalha sobre os materiais, transformando-os; fabrica coisas com caráter de permanência, que ultrapassarão sua experiência pessoal. Através do cálculo contábil, inserido na produção no início do Século XIX, passa-se a medir o tempo necessário para a realização de uma atividade, assim como a remuneração, atrelada a esses números. No labor, ao contrário, “o fim do processo não é determinado pelo produto final almejado, mas pela exaustão do ‘labor power’14”.

13 Arendt, Op. Cit., p.56.

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A sensação de criar algo que ganha existência física através do domínio sobre a natureza, obtida através da obra, “pode produzir no homem a satisfação e a segurança de si mesmo, e até mesmo enchê-lo de confiança durante toda a vida15”, opondo-se à

desumanização resultante do labor. Há, portanto, um elemento de autorrealização no exercício da obra.

Se Hannah Arendt deduz essas características sem, de fato, atribuí-las a qualquer sistema real, com André Gorz, o trabalho sociológico tomará um sentido ainda mais preciso, relativo ao modo de produção capitalista. A dita “expressão moderna do trabalho” está ligada de modo estreito à estrutura política e social dessas sociedades. Falamos, portanto, das formas de trabalho que emergiram após a Revolução Industrial, com o advento do capitalismo monopolista e cuja premissa fundamental foi o desenvolvimento e “expressão da racionalidade econômica enfim liberada de qualquer entrave16”.

Para dispor dessa liberdade, a racionalidade econômica rompeu paulatinamente com as racionalidades tradicionais vigentes na produção, fundadas sobre relações pessoais e familiares. Assim, o objetivo do trabalho – produto – deixou de ser voltado ao consumo próprio, orientando-se à troca em um mercado livre de relações privadas, em que a competição pode se dar sem quaisquer constrangimentos. Outra importante transformação já mencionada foi a inserção do cálculo contábil, que foi de suma importância na medida em que permitia que o trabalho e a produção fossem medidos. Para isso, foi também necessário que a produção fosse mecanizada, deixando de seguir o curso da natureza. A medição garantiu a previsibilidade e o controle do trabalho e da produção, o que serviu, em última instância, à possibilidade de maximização do lucro e do trabalho. Consequentemente, para tanto, o próximo entrave a ser superado foi a limitação do consumo.

Pelo ponto de vista do trabalho – agora alienado de toda a subjetividade do trabalhador –, o processo de racionalização teve como resultado o que Gorz chama de trabalho no sentido econômico como emancipação. O rompimento das relações privadas com a produção é precisamente onde reside esse caráter emancipatório. Esses liames, marcados pela afetividade e pelas relações de pertencimento confinam o indivíduo em uma

15 Arendt, Op. Cit., p.153.

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posição anterior à de cidadão, “pré-social”, que é superada na esfera pública, onde o trabalho passa a ser organizado através de princípios impessoais e confere reconhecimento social àquele que o realiza17.

O fato de uma atividade ser objeto de troca mercantil na esfera pública denota, de princípio, que se trata de uma atividade socialmente útil, criadora de um valor de uso socialmente reconhecido como tal. Essa atividade, dito de outro modo, corresponde a um “ofício”; ela tem um preço e um estatuto públicos (...)18.

Assim, a passagem da esfera privada à pública por meio do trabalho leva o indivíduo a integrar a sociedade, ascender à categoria de cidadão, recebendo, por consequência, os direitos e obrigações dos quais dispõem todos os membros dessa sociedade. Além de suprir suas necessidades através do salário obtido em troca das atividades que exerce19, ele constrói uma identidade social através do reconhecimento de sua contribuição como útil à comunidade como um todo, uma identidade. Os direitos e obrigações necessárias para com essa comunidade são os principais meios pelos quais a identidade individual é reconhecida socialmente. Construídos sobre o pressuposto de que o sujeito só se desenvolve plenamente quando situado em uma comunidade, esses direitos ratificam que o sujeito integra um corpo social20, concedendo a ele o status de membro. Os direitos, objeto de constante luta social e expansão, são divididos por Marshall em três elementos:

O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. Este último difere dos outros porque é o direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros (...). Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo (...). O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade21.

Desse modo, o indivíduo passa da sujeição à autoridade familiar ou grupal para a sujeição à autoridade estatal e ao mercado, passando a ter visibilidade e reconhecimento público.

17 Gorz, Op. Cit., pp.137-8.

18 Gorz, Op. Cit., p.137.

19 O salário, além de ser a forma pela qual o trabalho assegura e mantém a propriedade individual, garantindo a satisfação de necessidades, uma forma de reconhecimento do valor social da atividade exercida, ou, em outras palavras, da contribuição para o bem comum e para a satisfação das necessidades da comunidade como um todo (Rössler, 2007).

20 Cf.: Silva, 2008. 21 Marshall, 1967, p. 63-4.

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Em suma, esse trabalho, bem como sua expressão mais atual, tem as seguintes características: a) cria valores de uso, ou seja, uma produção material; b) visam à troca mercantil; c) são realizadas na esfera pública e; d) em um tempo que pode ser previsto e medido, dentro do qual se busca o maior rendimento possível22.

O trabalho doméstico e de cuidados

Quando falamos de trabalho doméstico e de cuidados, temos por elementos fundamentais sua caracterização como atividades da manutenção do lar e cuidados necessários com seus membros, exercidas no âmbito privado principalmente pelas mulheres, sem reconhecimento social de qualquer tipo. Em contraste com o trabalho da esfera pública, considerado “o fato sociológico fundamental23”, portanto, as atividades domésticas são invisíveis do ponto de vista da sociedade.

Os primeiros olhares críticos às atividades domésticas se dão com os estudos feministas, a partir da percepção de uma divisão sexual do trabalho, que atribuía às mulheres a responsabilidade pelas tarefas reprodutivas:

Para começar, lembremos alguns fatos: não foi tratando a questão do aborto, como usualmente se diz, que o movimento feminista começou. Foi a partir da tomada de consciência de uma opressão específica: tornou-se coletivamente “evidente” que uma enorme massa de trabalho era realizada gratuitamente pelas mulheres; que esse trabalho era invisível; que era feito não para si, mas para os outros e sempre em nome da natureza, do amor e do dever maternal. E a denúncia (pensemos no título de um dos primeiros jornais feministas franceses: Le Torchon Brûle [o pano de prato está queimando]) se desdobra numa dupla dimensão: basta de executar aquilo que se conviria chamar “trabalho”; é como se sua atribuição às mulheres, e somente a elas, fosse automática e isso não fosse visto nem reconhecido24.

Assim, esses estudos tinham em comum a determinação de pensar as atividades familiares como trabalho, considerando sua atribuição exclusiva às mulheres como resultante de padrões sociais naturalistas, ao contrário da concepção que vê a atribuição das tarefas a partir de predisposições biológicas. O conceito de divisão sexual do trabalho é fundamental no esforço por “desnaturalização” dessas tarefas, evidenciando o caráter social da atribuição das atividades, marcada por padrões de gênero, e contrariando as supostas atribuições por capacidades inatas. Nesse sentido, a atribuição das tarefas era social, não biológica.

22 Gorz, 1988.

23 Offe, 1989, p.167. 24 Kergoat, 2009, pp.68-9.

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Esses princípios [da divisão sexual do trabalho] podem ser aplicados graças a um processo específico de legitimação – a ideologia naturalista –, que relega o gênero ao sexo biológico e reduz as práticas sociais a “papéis sociais” sexuados, os quais remetem ao destino natural da espécie. No sentido oposto, a teorização em termos de divisão sexual do trabalho afirma que as práticas sexuadas são construções

sociais, elas mesmas resultando de relações sociais25.

Combatendo a “aptidão natural das mulheres às tarefas domésticas”, os estudos feministas se encarregaram de traçar historicamente as variações na posição social das mulheres e na divisão entre produção e reprodução, concluindo que:

A divisão sexual do trabalho não é um dado da natureza, mas uma constante histórica. Ser uma dona de casa é uma condição definida socialmente, e essa definição se transforma em momentos históricos diversos. Hoje, quando falamos de uma dona de casa, nos referimos a mulheres cujo trabalho é a manutenção e organização de seu lar, além dos cuidados com seu marido e filhos – pensamos como suas atividades, por exemplo, lavar, cozinhar, limpar e o cuidado em tempo integral das crianças em idade pré-escolar26.

Há alguns séculos atrás, antes da emergência do capitalismo e da diferenciação das esferas produtiva e reprodutiva, no entanto, essa função social incluía também atividades de outro tipo. Nesse contexto, “(…) ser uma dona de casa significava se envolver em uma série de atividades produtivas que incluíam a atividade doméstica para consumo privado e a atividade doméstica que poderia ser comercializável27”.

A passagem da produção doméstica para a esfera pública teria servido, segundo Catherine Hall, às necessidades do capitalismo em formação. Até então, a família era uma unidade produtiva – e econômica – autossuficiente. Com a transferência dessas atividades, ela guarda a função de reprodução simbólica e passa a ser a principal unidade de consumo daquilo que é, a partir daí, produzido fora do âmbito privado. A reprodução simbólica está presente, principalmente, na socialização, na qual a mãe cria os filhos para serem sujeitos racionais que se inserem na sociedade e na esfera pública por meio do trabalho. Isso envolve, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de seus talentos e aptidões e a conformação às normas

25 Kergoat, Op. Cit., p.68. Grifos meus.

26 Hall, 1995, p. 43. No original: The sexual division of labour is not a given in nature, but a constant in history. Being a housewife, then, is a condition which is socially defined and its definition changes at different historical moments. When we talk about a housewife now we mean a woman whose work is to maintain and organize a household and look after her husband and children – we think of washing, cooking, cleaning and the full-time care of pre-school children.

27 Hall, Op. Cit., p. 50. No original: (…) being a housewife means being engaged in a whole range of productive activities centred both in domestic activity for private consumption and in domestic activity which would marketable.

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sociais através da educação. O trabalho doméstico, portanto, torna-se cada vez mais trabalho de cuidados e a auto conservação28.

Ao mesmo tempo, institucionalizaram-se imagens que as relacionavam com o trabalho de cuidados (babás, enfermeiras, cozinheiras, etc.). Desse modo, em vez de aptidões naturais, as mulheres, ao exercer trabalho doméstico, estão submetidas a uma prescrição social estritamente relacionada às necessidades do capitalismo29:

Para compreender a posição que as mulheres ocupam no lar, é necessário que vejamos de que modo elas constituem um exército de reserva para o trabalho industrial ao qual se pode recorrer de várias formas em momentos distintos30.

Uma vez que o trabalho doméstico não é “natural”, mas exige esforço e dedicação, além de ter de ser contextualizado histórica e socialmente, vejamos, então, em que medida ele constitui trabalho, contrastando-o aos trabalhos antropológico e sociológico. Caso sua contribuição e racionalidade sejam comparáveis a do trabalho nesses sentidos, pensaremos de que modo ele pode ser reconhecido.

De modo provisório e geral, podemos definir trabalho como se segue:

O trabalho tem um propósito (objetivo, fim) além dele mesmo: criar, alcançar, conseguir, realizar; o trabalho está sempre atrelado à obrigatoriedade ou necessidade; sempre é árduo, implica em superar dificuldades ou ultrapassar obstáculos, requer esforço e um mínimo de persistência a partir do ponto em que deixa de ser meramente prazeroso31.

Apesar de serem fortemente relacionadas a uma ideia de realização como fim em si, as atividades domésticas não têm seu fim totalmente contido na realização do trabalho, uma vez que ele é geralmente realizado para os outros. Em uma palavra, as atividades domésticas

28 Gorz também falará sobre como as atividades do âmbito doméstico se restringem cada vez mais ao trabalho de auto conservação, tendo a produção doméstica praticamente sido extinta ao longo do processo de instauração do capitalismo (Gorz, Op. Cit., pp.152-3).

29 Em sua crítica ao conceito de produção de Marx, Linda Nicholson (1994) destaca a tendência de se tratar uma forma de organização e divisão do trabalho que é específica das sociedades capitalistas como válida para todas as sociedades, incorrendo na generalização equivocada da forma como a divisão sexual do trabalho se deu nessas sociedades e, consequentemente, possibilitando que se tome como natural a posição ocupada pelas mulheres desde o advento do capitalismo.

30 Hall, Op. Cit., p. 68. No original: To understand the position of women in the home it is necessary to see the way in which women provide an industrial reserve army of labour which can be drawn upon in different ways at different times.

31KOCKA apud RÖSSLER, Op. Cit., p. 137. No original: Labour has a purpose (goal, end) beyond itself: the purpose of creating, achieving, performing; labour is always connected with obligation or necessity; labour is always toilsome, involves overcoming resistance, requires effort and a minimum of persistence beyond the point where it ceases being merely pleasant.

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são voltadas à manutenção do ambiente físico e à satisfação das necessidades dos membros da família ou da comunidade ali situada, não apenas no sentido de sua sobrevivência física, mas também no que diz respeito à sua saúde emocional e à reprodução das normas morais vigentes na sociedade32. Assim, ainda que se encerre em seu exercício, o trabalho doméstico não pode ser visto apenas como labor, pois não trata da sobrevivência daquele que o realiza, mas de terceiros. Seu exercício, portanto, é motivado por sentimentos afetivos33, laços de pertencimento a uma comunidade e pelo desejo de aperfeiçoá-la34. Ao tratar os sentimentos afetivos envolvidos no exercício do trabalho doméstico, Helena Hirata esclarece:

Situo-me, de minha parte, nessa perspectiva de análise da complexidade e da ambivalência do "consentimento" dos dominados (as), relacionadas ao que Hélène Le Doaré (2001, p. 10) chama "a ambivalência das relações afetivas e físicas", atenta aos riscos da "tentação naturalista" (Morice, 1999, p. 209) e ao mesmo tempo convencida de que a "desvalorização" social (sou eu quem acrescento) do "sujeito" (mulher, no caso) deve constituir um passo prévio a esta análise. Com efeito, a existência das relações de força e das relações de poder com suas bases institucionais deve, a meu ver, constituir o ponto de partida obrigatório de toda análise sociológica do "consentimento" e da "servidão voluntária" das mulheres35.

Pelo ponto de vista de sua utilidade social, além da socialização dos indivíduos necessários à sociedade, o exercício do trabalho doméstico quase totalmente restrito às mulheres libera os homens para o emprego remunerado na esfera pública, sendo apontado, de forma ampla, como um tipo de política social em favor do pleno emprego36. No contexto de Estados de bem-estar social, contexto político no qual se situam quase todos os diagnósticos que estudaremos nessa dissertação, ele também constitui uma substituição do

32 A necessidade de haver resultado material (produção no sentido estrito, relacionado a objetos e mercadorias) para que uma atividade seja considerada trabalho foi suficientemente relativizada pelas formas de trabalho contemporâneas, nas quais, muitas vezes, o que é considerado trabalho – sendo, inclusive, remunerado e realizado na esfera pública – deixou de envolver produção nesse sentido necessariamente.

33 A respeito do trabalho doméstico como um exercício de amor, ver, por exemplo, Hirata, 2004.

34 André Gorz (Op. Cit.) defende que o exercício do trabalho doméstico por parte das mulheres se constitui, para esses sujeitos, como uma contribuição para o que consideram ser uma vida boa e digna e para o bem comum da comunidade doméstica. Por essa perspectiva, da mesma forma que a identidade do homem esteve ligada historicamente a seu status como provedor, a da mulher foi construída sobre seu status de cuidadora, exteriorizado na educação de seus filhos e na organização e limpeza de sua casa.

35 Hirata, 2004, p.5. A ideia de “servidão voluntária” é também desenvolvida por Dejours em Trabalho Vivo (Cf.: Bibliografia). No capítulo 7 do primeiro tomo, sobretudo, o autor trata o trabalho doméstico pela via da psicodinâmica do trabalho, discorrendo sobre as diferenças sociais entre homens e mulheres. Após analisar as pulsões sexuais envolvidas nas relações familiares e a complexa relação entre amor e trabalho, que resulta na submissão voluntária, Dejours, de forma similar à Hirata, toma que “a origem das relações de gênero é seguramente não sexual e é uma construção social no pleno sentido do termo” (p.172). Assim, como o próprio autor coloca a seguir, “o que permite a análise psicodinâmica é a negação da tese da interiorização do social pela aprendizagem, a relação de força, ou a dominação simbólica” (p.172).

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Estado, na medida em que desonera este quanto a ações e serviços de assistência referentes ao cuidado de crianças, e sobretudo de idosos. Assim, esse trabalho torna-se especialmente oneroso às mulheres a partir de sua entrada no mercado de trabalho, quando começam a realizar jornadas duplas, constituídas pela combinação de emprego pago e trabalho familiar37. Esse fenômeno também salienta o caráter social da divisão do trabalho pago e não pago entre homens e mulheres: mesmo quando as mulheres são as principais ou únicas provedoras do lar, elas ainda realizam a maior parte do trabalho realizada no âmbito da família e têm mais tendência a abandonar os empregos ou passar ao regime de trabalho em tempo parcial com a chegada dos filhos38.

O fato do trabalho doméstico se realizar na esfera privada também é crucial para sua invisibilidade. Essa esfera, como mostra Rössler39, possui diversos significados, definições e valores atribuídos a ela. No pensamento liberal – nomeado pela autora “teorias da família privada” – esse espaço é visto como o refúgio das tensões da vida pública, onde os homens podem viver de acordo com suas próprias concepções de bem e determinar soberanamente suas vidas40. Como tal, a possibilidade de intervenção estatal ou de escrutínio público é limitada, liberando a ação individual de quaisquer entraves e restringindo a participação das instituições reguladoras. Ao mesmo tempo, como já vimos, é o local onde estão confinadas as mulheres e sediadas as raízes da divisão sexual do trabalho, injusta para elas41. Em uma palavra, o mesmo espaço que é o locus da autodeterminação masculina, contém os fundamentos da subordinação da mulher. A justificativa do afastamento do Estado também se fundamenta sobre o argumento da esfera privada ter “outra lógica” que a orienta, segundo a qual devem prevalecer as soluções de conflitos através dos laços de afetividade e respeito mútuos. Essa idealização da família como um espaço neutro, em que vigoram relações de

37 Como já dissemos, as mulheres continuam responsáveis por dois terços do volume de trabalho doméstico, o que corresponde, diariamente, a um extra de aproximadamente quatro ou cinco horas de trabalho além do realizado na esfera pública (Meda, 2001 p.45).

38 Meda, Op. Cit., p.45. Além disso, quando a família dispõe de recursos suficientes para desonerar a mulher do trabalho doméstico através da contratação de um empregado para realiza-lo, esse empregado será, via de regra, uma mulher, salientando a força das determinações dos padrões de gênero.

39 Cf. Rössler, 2004, Introdução. 40 Rössler, Op. Cit., p.3.

41 A proposição de Rössler sobre a sujeição da mulher no âmbito privado está afinada com os discursos feministas acerca da privacidade, que, segundo a autora, visavam a compreender “a história do confinamento de pessoas e aspectos da vida ao domínio privado como a história de uma ordem injusta e a história da emancipação desse domínio” (Rössler, 2004, p.4). Cabe notar que essa emancipação não está completa, como evidencia o estudo da divisão sexual do trabalho.

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amor e respeito, complementa e assegura a ideia que políticas regulatórias – que possam equalizar as relações nesse âmbito e garantir o respeito às normas de direito – não são necessárias ou bem-vindas ali. Porque essa concepção se baseia sobre uma perspectiva de entendimento a respeito da família, as feministas se empenharam em desconstruir essa visão tradicional, evidenciando seu caráter marcadamente ideológico:

O que está implícito nessas análises é a visão da economia familiar como uma unidade de interesses partilhados, onde a renda é tratada conjuntamente e igualmente distribuída. Entretanto, esse modelo de análise da desigualdade desconsidera a importante dimensão de poder e dependência na família e como ela afeta a distribuição de recursos42.

Desse modo, a visão ideológica a respeito da família ainda obscurece questões pertinentes e caras à emancipação das mulheres. Sua substituição por visões que considerem a desigualdade e o poder dentro da família é proposta como essencial à compreensão das relações tais como elas se desenvolvem na prática:

Em vez de uma unidade de interesses partilhados, pode ser mais apropriado pensar a família como uma unidade de negociação, onde estas podem incluir uma série de decisões envolvendo a divisão do dinheiro e tempo dos indivíduos e a distinção entre trabalho doméstico e mercadológico. Quem realiza o trabalho e por quanto tempo é um dado que se reflete em padrões de vida cotidiana (quem é responsável por tarefas domésticas e com os cuidados com as crianças), bem como em decisões de longo prazo sobre local de residência e trabalho, investimentos em programas de educação e treinamento, e envolvimento em organizações trabalhistas e corpos profissionais. Se aceitarmos que a família é normalmente constituída por indivíduos que têm objetivos e expectativas divergentes e que competem por recursos (tanto em termos de tempo quanto de dinheiro), então a posição de um indivíduo nessa negociação se torna essencial para a análise, e a questão de poder e dependência entra na jogada43.

Essa mesma questão é explorada por Axel Honneth em seu artigo Between justice and affection: the family as a field of moral disputes44. Ali, o autor pretende se inserir no debate quanto à posição pública da família, que se voltaria, atualmente, às demandas de participação regulatória do Estado. A demanda, encabeçada pelos movimentos feministas,

42 Hobson, 1990, p. 235. No original: Implicit in these analyses is a view of the family economy as a unit of shared interests where incomes are pooled and distributed equally. However, this framework for analyzing inequality leaves out the important dimension of power and dependency in the family and how it affects the distribution of resources.

43 Hobson, Op. cit., p.237. No original: Instead of a unit of shared interests, it may be more appropriate to view the family as a bargaining unit where negotiations can cover a wide range of decisions involving the allocation of money, time and the division of market and domestic work. Who works and how long is reflected in daily-life patterns (who is responsible for household tasks and childcare) as well as long-term major decisions over residence and work; investment in education and employee training programs; and involvement in work organizations and professional bodies. Once we acept the premise that family consists of individuals who often have different goals and expectations and compete for resources (both time and money), then an individual’s bargaining position becomes essential to the analysis, and the question of power and dependency comes into play.

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que, animados pela politização do âmbito privado, determinavam a necessidade de repensar a separação das esferas e sua posição relativa, tendo em vista a libertação da mulher dos laços tradicionais45.

Frente a isso, Honneth analisará duas visões paradigmáticas da família. A primeira delas, referente à tradição kantiana, vê o casamento como uma relação contratual e jurídica, na qual valem os princípios e leis vigentes na esfera pública; a segunda, desenvolvida por Hegel46, toma como verdadeiro substrato das relações familiares a formação de uma comunidade afetiva que, por si só, deveria impedir a existência de abusos. Opõem-se, portanto, uma visão segundo a qual os desejos e necessidades na família são atendidos pelos direitos públicos, e outra em que o amor e o respeito recíprocos são suficientes à dissolução de quaisquer conflitos. A crise da família contemporânea, portanto, seria que, tendo se libertado do tradicionalismo (por exemplo, através da entrada das mulheres no mercado de trabalho), também perdeu alguns sentimentos que constituíam parte de sua base emocional. Uma articulação dos dois paradigmas é a opção do autor para escapar às contradições verificadas na família moderna: não se pode abrir mão da ideia hegeliana da comunidade afetiva verdadeira, uma vez que se atribui à perda de alguns laços dessa comunidade a atual crise da família; por outro lado, uma vez que esses sentimentos e laços se encontram atualmente perdidos – e, portanto, já não mais garantem o tratamento igual e justo de todos os indivíduos da unidade doméstica –, os direitos, atribuídos na esfera pública, asseguram que esse tratamento se dê orientado por certas normas éticas. Um exemplo dessa proposição é o estupro marital: nesse caso, os sentimentos de amor e respeito do marido pela esposa deveriam constituir impedimento suficiente para evitar a violação de sua vontade, dispensando a necessidade de intervenção legal ou institucional; como, no entanto, alguns desses sentimentos se perderam nas famílias atuais, os direitos tem por objetivo assegurar a

45 A crítica do feminismo à cisão dos liberais entre público e privado foi abordada por Beate Rössler no artigo

Gender and privacy: a critique of the liberal tradition. Segundo a autora, a primeira fase da crítica feminista a

essa cisão propunha que essa cisão fosse completamente abandonada, e não mais existissem fronteiras entre o público e o privado, tudo passando a pertencer ao primeiro âmbito. A segunda fase propunha que se reorganizasse o que era considerado público e privado, levando em consideração as necessidades de igual proteção das mulheres. Essa fase via na constituição de um direito de privacidade igualitário para homens e mulheres uma das possibilidades de superação da opressão feminina (Rössler, 2004, pp. 58-63).

46 Como veremos no terceiro capítulo, Iris Young (2007) atribui a perspectiva hegeliana, originalmente, a Rousseau.

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igualdade dos cônjuges47. Assim, a família contemporânea está no limiar entre a esfera

pública e a privada. Em vários aspectos, a intervenção já é regulamentada. No caso do trabalho doméstico, trata-se de um dos principais pontos em que as relações de poder e dominação no lar são invisíveis48. Nesse sentido, o reconhecimento da função social dessas atividades é imprescindível ao rompimento com a dominação privada.

Dessa forma, a busca de reconhecimento do trabalho doméstico, portanto, é uma questão complexa e permeada uma série de problemas – para citar alguns, a porosidade das barreiras entre público e privado, o interesse do Estado em fomentar a equidade de gêneros, os possíveis efeitos de quaisquer propostas na ordem de gênero atual, etc. Por isso, um modelo de reconhecimento que dê conta das inúmeras particularidades das atividades domésticas e de cuidados mostra-se extremamente complexo. Afora as questões já colocadas, as propostas esbarram em questões como a possibilidade de medir o tempo empregado na realização das atividades e de que modo levar em conta o afeto e aos sentimentos inerentes a esse trabalho. Evidentemente, para ser considerada satisfatória, uma proposta de reconhecimento do trabalho doméstico deve levar em conta tanto suas particularidades quanto estar comprometida com uma perspectiva de emancipação do sujeito que o realiza. Diante disso, passaremos às propostas já formuladas nesse sentido, considerando em que medida elas possibilitam a articulação desses dois pontos e constituem avanços no sentido da equidade de gênero.

No primeiro capítulo, examinaremos as proposições de Hilkka Pietilä e Ann Shola Orloff. Essas autoras dão destaque à questão da autonomia financeira como pressuposto à emancipação, visto que esta liberaria as mulheres do imperativo de se relacionar para obter o necessário à sobrevivência. Assim, na medida em que essas mulheres podem sustentar a si mesmas e às suas famílias, obtêm uma nova dimensão de liberdade. A ideia de vulnerabilidade à pobreza é crucial para essas perspectivas, que se concentram na garantia

47 Ainda que esse não seja o ponto central do artigo de Honneth, cabe questionar o quanto essa ideia da transformação da família, na qual ela teria perdido seus sentimentos animadores, não é ideológica ela mesma. 48 A esse respeito, ver, por exemplo, Dahl, 2004, e Pietila, 2007b. Beate Rössler também formula uma proposta para repensar a distinção entre os âmbitos público e privado, na qual destaca a importância de se ter um espaço de privacidade e postula a necessidade de revisão do que se insere em cada um dos âmbitos do ponto de vista do Estado tendo em vista a igualdade de direitos entre homens e mulheres, bem como o igual acesso à proteção dos espaços individuais (Rössler, 2004). Não se trata, de acordo com os autores apresentados, de eliminar a privacidade, mas de repensá-la, ajustando-a à proposta de emancipação feminina do âmbito privado.

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das condições básicas de sobrevivência e dignidade às mulheres. As propostas, de modo introdutório, envolveria a melhoria das condições de acesso das mulheres ao mercado de trabalho e a remuneração do trabalho doméstico.

Para tal, é preciso aproximar esse trabalho da racionalidade vigente no trabalho assalariado – ou seja, ele precisa ser prescrito, formalmente classificado, medido e tornar-se passível de maximização. Nesse sentido, Beate Rössler e André Gorz, autores debatidos no segundo capítulo, avançam uma concepção de trabalho doméstico mais específica, incompatível com o modelo de trabalho na esfera pública. Nesse sentido, além de direcionarmos um olhar mais preciso ao conteúdo desse trabalho, nesse capítulo dialogaremos também com os possíveis efeitos da remuneração para a emancipação das mulheres. Ambos os autores acreditam que a remuneração faria mais no sentido de regredir as conquistas obtidas pelas mulheres do que avança-las, e que o reconhecimento do trabalho doméstico deve ser analisado frente a uma proposta mais ampla de equidade.

Por fim, veremos as proposições realizadas no contexto da teoria do reconhecimento, com ênfase no debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth. No primeiro caso, veremos como o trabalho doméstico pode ser pensado a partir das formulações de Honneth, centradas sobre a primazia do reconhecimento como motor da luta social. Além do debate com Fraser, veremos as críticas de Iris Young ao seu modelo, realizada por uma ótica feminista. As contribuições de Fraser foram organizadas em três eixos: em primeiro lugar, veremos a crítica ao universalismo da Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas49, assim como

o questionamento de papeis sociais; depois, nos focaremos no projeto da autora para a equidade de gêneros, no qual o trabalho doméstico tem papel preponderante; e, finalmente, veremos o quanto esse projeto está em conformidade com o modelo do status apresentado pela autora em seu debate com Honneth. As contribuições de Kevin Olson ao projeto de Fraser também serão tópico desse capítulo50.

49 Habermas, 2012.

50 Cabe, ainda, destacar que esse trabalho não tem por preocupação fundamental uma discussão da problemática envolvida no uso do conceito de gênero. Assim, sabendo que este diz respeito a relações precisas, o uso desse vocabulário ao longo do trabalho fará referência ao autor estudado e seu emprego da palavra.

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1. DEPENDÊNCIA FINANCEIRA E EMANCIPAÇÃO You’re a husband away from poverty51

Como vimos na Introdução, os movimentos de mulheres têm como uma de suas questões originais a constatação de um montante considerável de trabalho realizado pelas mulheres que, sequer sendo visto como trabalho, não é reconhecido em sua relevância social ou remunerado. Com isso, a submissão social das mulheres está condicionada à dependência financeira, que impede sua livre escolha e possibilidade de autonomia. Dessa consideração, nascem as teorias que levam o mesmo nome, segundo as quais a igualdade entre homens e mulheres tem como pressuposto fundamental a equalização das condições de trabalho e renda, sobre o qual se desenvolverão outros direitos e acessos.

As duas autoras selecionadas para compreendermos essa perspectiva, Hilkka Pietilä e Ann Shola Orloff, têm em comum, além da proposta de remuneração do trabalho doméstico, a prioridade da independência financeira, o foco no estudo dos Estados de bem-estar social como panorama institucional das análises e a tentativa de situar suas propostas em um quadro mais amplo de medidas, pensadas para corrigir a desigualdade entre homens e mulheres de forma global. O ponto principal de suas propostas – a remuneração – toma como possível pensar o trabalho doméstico como similar ao trabalho assalariado na esfera pública, fundamentando essa proposição sobre a relevância sensível dessas atividades para a sociedade.

O texto será dividido em duas sessões. Em primeiro lugar, veremos a proposta de Hilkka Pietilä, autora finlandesa que advogou por um modelo econômico que incluísse a produção e as atividades femininas. A autora parte de uma perspectiva econômica, avaliando o valor da contribuição do trabalho doméstico no produto interno bruto finlandês; a partir daí, desenvolverá um novo modelo, cujo centro será o trabalho doméstico e familiar. Em

51 Essa famosa frase do movimento feminista para tratar a dependência financeira destaca a fragilidade da condição feminina na sociedade. Em português, “você está um marido distante da pobreza”.

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seguida, abordaremos a análise de Ann Shola Orloff, que tem por foco a articulação das pesquisas feministas com os estudos do Estado de bem-estar social.

1.1. Economia doméstica como força contrária à globalização

Tendo como ponto de partida a análise da opressão feminina como inerente à estrutura social, nossa abordagem da teoria de Pietilä será dividida em três pontos: (a) no primeiro, veremos como ela constrói uma história das mulheres, a partir da qual tentará encontrar as raízes da opressão feminina e pensar em formas de transformação da sociedade dentro de um quadro institucional e; (b) depois, veremos suas críticas a conceitos e perspectivas correntes do pensamento econômico, ao passo em que tenta lançar sobre ele um olhar feminista e ecológico. Assim, veremos como a autora tenta reconstruir um panorama social no qual as tarefas tipicamente femininas perdem sua importância com a emergência do modo de produção capitalista, sobretudo em sua forma neoliberal. Sua proposta, que analisaremos em terceiro lugar (c), é centrada sobre a reincorporação dessas atividades na economia principal, dando origem a uma visão global que, imbuída de preocupações feministas e ecológicas, deve ter como principal objetivo a ampliação da possibilidade de autodeterminação individual frente ao mercado. Uma vez que a dominação feminina possui relação intrínseca com a marginalização das formas de economia tradicionais, Pietilä formula uma proposta de sociedade autogerida, para a qual a inclusão igualitária das mulheres e suas formas de trabalho é essencial.

A repetida ênfase no caráter estrutural da desigualdade feminina, segundo Pietilä, afasta a possibilidade de pensa-la apenas por meio de formas particulares, como trabalho e violência. Ao contrário, a autora usa o conceito de patriarcado, através do qual pretende pensar as relações sociais de gênero em seu conteúdo geral. Começaremos, então, pela explicação desse conceito na obra de Pietilä, para então passar à ideia de visão holística da economia desenvolvida pela autora, dando especial atenção à economia doméstica (ou, aos lares). Nesse ponto, pretendemos tanto expor a proposta de tratamento do trabalho doméstico formulada pela autora quanto contrastar a dinâmica dos lares com as do patriarcado e da economia de mercado, de onde acreditamos que será possível compreender a forma como a autora chega a uma alternativa à sociedade contemporânea.

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1.1.1. Patriarcado, dominação, opressão.

Em Patriarchy as a state of war52, a autora retraça a violência como instrumento

fundamental do patriarcado. Analisando uma série de tratados antiviolência mal sucedidos53, a autora determina a necessidade de compreender como a violência sobrevive e se reproduz na sociedade para a construção de Estados verdadeiramente pacíficos. Isso, para Pietilä, significa ver seu caráter estrutural e não apenas trata-la como séries de eventos isolados:

O movimento pela paz falhou em enxergar e definir a ideologia por trás da corrida armamentista, do uso da força nas relações internacionais e conflitos sociais, dos jogos de poder e da dominação imposta pelos atores mais fortes na cena mundial. Essa ideologia é o militarismo e a filosofia por trás dela é o

patriarcado54.

O apontamento acima está de acordo com a perspectiva de alguns movimentos pacifistas feministas, que defendiam já desde a década de 1970 que a ideologia militarista das sociedades ocidentais estava estritamente ligado à ideologia e dinâmica patriarcal.

Para compreender essa relação, precisamos, segundo Pietilä observar o patriarcado como um sistema masculino, hierarquizado e masculinista por excelência, onde a superioridade masculina seria reforçada de vários modos, dentre os quais a violência física ou a ameaça desse uso são os principais. A violência seria, portanto, o meio principal do subjugo feminino, alienadas à condição de poder reprodutivo submetido, uma vez que também lhes é extorquido o controle sobre o próprio corpo e sexualidade. A violência e a repressão são as formas particulares desse sistema e também o modo pelo qual ele se mantém. Nele, tanto homens quanto mulheres são submetidos a uma disciplina rígida que os mantém sob o controle do “chefe” do clã e impede que se rebelem, além de serem socializados para representar papéis de gênero baseados em uma ideia estrita de

52 Pietilä, 1990.

53 A autora fala sobretudo do INF, um tratado de forças nucleares de alcance intermediário, firmado em 1987 entre os Estados Unidos e a União Soviética, que deveria eliminar o uso de parte dos mísseis utilizados na Guerra Fria. A autora sustenta que esses acordos seriam a “ilusão dos movimentos pacifistas”, pois, ao passo que dão a impressão de haver avanços anti guerra, são rapidamente ultrapassados, pois não resolvem a questão estrutural da violência. O INF, mencionado acima, foi rompido em 1990 pela Guerra do Golfo.

54 Pietilä, Op. Cit., p. 2. Grifos da autora. No original: “The peace movement failed to see and define the ideology behind the arms race, use of force in international relations and social conflicts, power games and domination by the strong actors in the world scene. This ideology is militarism and the philosophy behind that ideology is patriarchy.”

Referências

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