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Civilizar o Brasil: uma análise genealógica sobre a noção de pacificação e a formação do Estado no Brasil. Natali Hoff 1 Ramon Blanco 2.

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Academic year: 2021

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Civilizar o Brasil: uma análise genealógica sobre a noção de “pacificação” e a formação do Estado no Brasil.

Natali Hoff1 Ramon Blanco2 Resumo

O presente artigo analisa como a noção de pacificação pode ser entendida como uma categoria brasileira de classificação e intervenção social por parte do Estado. Dentro desse enquadramento, o artigo delineia como o termo pacificação está presente ao longo da história brasileira, desde o período colonial até a atualidade, engendrando práticas de governo repressivas daquelas populações percebidas como perigosas, não civilizadas e bárbaras. Essa pesquisa parte do método genealógico com o intuito de observar como o termo pacificação foi sendo empregado no vocabulário político brasileiro para designar práticas de conquista militar e governo tutelar das populações periféricas da sociedade brasileira. Os conceitos de governo, governamentalidade, disciplina e necropolítica também embasam essa pesquisa. De um modo geral, a análise se inicia observando a política de pacificação dos ameríndio no Brasil Colônia, passando pelo combate às revoltas que ocorreram no período imperial. Então analisa-se como a noção de pacificação acaba sendo associada às Forças Armadas no século XX. Por fim, se analisa o uso contemporâneo da palavra na política de pacificação das favelas cariocas.

Palavras-chave: Pacificação; Guerras Justas; Rio de Janeiro.

Introdução

O uso do termo pacificação tem se tornado cada vez mais frequente na política brasileira desde a criação das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), na cidade do Rio de Janeiro em 2008. O termo foi empregado pelo poder público do estado do Rio de Janeiro como símbolo de uma política de segurança pública inovadora e ambiciosa (Souza, 2017, p. 175), que promoveria a pacificação das favelas cariocas por meio da retomada do controle sobre esses territórios. Em tal contexto, o Banco Mundial veiculou um relatório no qual se afirmava que o governo do Rio de Janeiro com as UPPs estava rompendo com a história e estabelecendo um novo tipo de presença

1 Natali Hoff, Mestra em Ciência Política pela UFPR, é Professora de Relações Internacionais no Centro Universitário Curitiba; e Professora de Relações Internacionais e de Ciência Política no Centro Universitário Internacional (Uninter, Brasil), e atualmente é Doutoranda em Ciência Política no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (PPGCP-UFPR). E-mail: natali.hoff@gmail.com. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/8789741061502602>.

2 Ramon Blanco, Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra (Portugal), é Professor Adjunto da Universidade Federal de Integração Latino-Americana (UNILA), onde coordena o Núcleo de Estudos da Paz e a Cátedra de Estudos da Paz. É, também, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UNILA (PPGRI-UNILA) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (PPGCP-UFPR). Email: blanco.ramon@gmail.com. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/9387995`11873589341>.

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do Estado em suas favelas (Banco Mundial, 2013, p. 12). No entanto, apesar da aparente novidade contida na política de pacificação das favelas cariocas, ao se dedicar um olhar mais atento à história brasileira, é possível observar que “a adoção de práticas pacificadoras acompanha toda a história do país” (Souza et al, 2017, p. 10).

Em essência, a noção de pacificação foi utilizada como base para políticas de conquista, ocupação e estabilização do território brasileiro ao longo do tempo, uma vez que permite o disciplinamento dos grupos sociais considerados como bárbaros, conflituosos ou perigosos – como acontece no Rio de Janeiro com os “favelados” (Ibidem, p. 11-12). A ideia de pacificação, então, está presente na história brasileira engendrando práticas de governo tutelar das populações que são percebidas como perigosas, não civilizadas e “bárbaras” (Pacheco de Oliveira, 2017, p. 55-56). Nesse sentido, o conflito é construído historicamente no território brasileiro desde a representação de uma relação de alteridade entre o agente pacificador e o “outro” a ser pacificado3 (Ibidem, p. 57). De um modo geral, a intervenção pacificadora é representada como missão de integração social e econômica de grupos que se encontram fora dos padrões sociais dominantes, essencialmente brancos e ocidentais.

Tendo esse contexto em conta, esse artigo objetiva realizar uma genealogia da noção de pacificação dentro do pensamento político brasileiro, observando como a ela foi utilizada ao longo da formação do Estado brasileiro como uma prática discursiva e de poder direcionada às populações consideradas violentas, perigosas, e/ou bárbaras pela elite dirigente, com o objetivo de disciplina-las e, quando isso não era possível, eliminá-las. Desse modo, entende-se que a noção de pacificação se constitui em uma racionalidade política que terminou por influir diretamente no modo como foram desenhadas as relações entre o Estado brasileiro e as populações periféricas do país. O argumento central desse artigo consiste na ideia de que historicamente a noção de pacificação ao envolver, por um lado, uma retórica de assistência e proteção e, por outro lado, uma estratégia militar de conquista e submissão, acaba por dar origem a práticas políticas de caráter tutelar4 e/ou necropolítico. Isso ocorre porque o exercício de um poder tutelar demanda que o Estado atue sobre espaços (geográficos, sociais, simbólicos) por meio da “identificação, nominação e delimitação de segmentos sociais tomados como destituídos de capacidades plenas necessárias à vida cívica” (Lima, 2012, p. 784). Portanto, as práticas pacificadoras implicam, necessariamente, em um processo de classificação social, por meio do qual se estabelece uma relação de alteridade entre a população a ser pacificada e o agente pacificador.

3 Essa relação pode ser exemplificada a partir das práticas e políticas indigenistas brasileiras e como as mesmas buscavam “pacificar” e disciplinar os índios descritos como “bravos” por meio das guerras justas3 e da tutela da Igreja e do Estado sobre os mesmos (Pacheco de Oliveira, 2017, p. 57).

4 Para compreender a importância da categoria para a compreensão da história brasileira, ver: Lima, 1995; Pacheco de Oliveira, 1998.

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Esse processo de classificação social e de definição de quem são os indivíduos “a serem pacificados” está assentado na construção de uma sociedade baseada na ideia de raça. De acordo com Achille Mbembe (2018b, p. 41), durante a modernidade, a classificação social com base na raça serviu de alicerce para o estabelecimento de um padrão de dominação em escala global – que permitiu aos Estados europeus a consolidação da sua posição central no sistema capitalista internacional. Por conseguinte, o colonialismo e, posteriormente, o imperialismo europeu só foram modelos possíveis em razão da criação de um sistema de hierarquização das sociedades humanas e dos próprios corpos dos indivíduos. Assim, a raça, enquanto uma categoria social e, por consequência, “divisora de mundos”, figurou como um aspecto central na construção da modernidade. Em última instância, a ideia de raça termina por desumanizar os indivíduos com base em características biológicas e físicas, constituindo a imagem desse outro (ameríndio/negro) como radicalmente diferente de si (branco/europeu) e como um objeto ameaçador e que demanda controle/domínio (Mbembe, 2018b, p. 33). Não é atoa que, no momento gregário do pensamento ocidental, o negro foi representado como “o protótipo de uma figura pré-humana incapaz de escapar de sua animalidade” (Ibidem, p. 41). O Brasil, como ex-colônia e, consequentemente, um Estado se ergue a partir da modernidade, não escapa a esse tipo mentalidade e tem como marca a radicalização das relações de poder.

Considerando que o objetivo central desse trabalho é a observação da relação existente entre uma racionalidade específica – assente na noção de pacificação – e o exercício de um poder disciplinador e tutelar por parte do Estado brasileiro, a pesquisa está fundamentada nos conceitos de disciplina, governo e governamentalidade de Michel Foucault e no conceito de necropolítica de Achille Mbembe. Essas concepções são importantes para esse trabalho ao possibilitar um entendimento mais aprofundado acerca das práticas e mentalidades envolvidas no exercício de um poder pacificador/normalizador ao longo da história política brasileira. Essa pesquisa é operacionalizada por meio de uma metodologia qualitativa, por meio de instrumentos como a análise genealógica e a análise documental. A combinação dessas técnicas é essencial para que as dimensões relativas à observação de uma governamentalidade circunscrita no termo pacificação possam ser observadas e analisadas por meio da elaboração de uma genealogia. A análise genealógica se refere a “constituição de um saber histórico sobre as lutas e a análise sobre a utilização deste saber nas técnicas de poder existentes na atualidade” (Foucault, 1979, p. 171). Assim, ela é essencial para compreender o surgimento e a consolidação de uma episteme de governo específica, bem como os seus efeitos no mundo real.

Para operacionalizar a análise proposta, o artigo está dividido em cinco seções. A primeira seção delineia quais são as bases teóricas e conceituais dessa pesquisa, dando centralidade à

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apresentação da importância do método genealógico e à definição dos conceitos de governo, governamentalidade, disciplina e necropolítica. A segunda seção, por sua vez, inicia o resgate histórico do uso do termo pacificação por meio da discussão sobre as práticas de pacificação das populações ameríndias presentes no Brasil colônia. A terceira seção apresenta como a palavra pacificação deu sustentação para as práticas imperiais de contenção dos movimentos contestatórios, sobretudo no período regencial. A quarta seção discute a persistência da uma mentalidade de pacificação no século, sobretudo pela crescente ideologia intervencionista nas Forças Armadas Brasileiras. Por fim, a quista seção se direciona a problematizar o uso contemporâneo do termo pacificação por autoridades brasileira, sobretudo para se referir a políticas de controle e combate da violência urbana.

1. A pacificação como governo: a contribuição dos conceitos de governamentalidade, disciplina e necropolítica para o estudo da história política brasileira

Esse artigo direciona-se a construção de uma genealogia sobre o uso do termo pacificação ao longo da história brasileira, de modo que é importante apresentar, incialmente, quais são as bases teóricas e conceituais que informam e orientam essa pesquisa. Por conseguinte, essa seção se destina à discussão dos conceitos governo, governamentalidade e disciplina – desenvolvidos por Michel Foucault – e da conceitualização da necropolítica, elaborada por Achille Mbembe. Objetiva-se, com essa seção, iluminar as potencialidades analíticas oferecidas por esse arcabouço teórico para o estudo da realidade brasileira, sobretudo ao permitir a consideração das conexões existentes entre conhecimento e poder, ou seja, entre os conjuntos de verdades e as práticas políticas. Primeiramente, essa seção se volta para as contribuições presentes na obra foucaultiana, destacando como ela permite a problematização de práticas e racionalidades políticas. Para então, abordar as leitura crítica de Mbembe sobre a modernidade e os seus reflexos para a conformação de uma estrutura de poder com base em relações racializadas. Dessa maneira, mais do que um regaste da história brasileira, esse artigo analisa criticamente o processo de consolidação de uma racionalidade política específica – a pacificação – e como a mesma deu suporte a um conjunto variado de práticas, espalhadas ao longo do tempo, mas conectadas entre si.

Esse tipo de análise é possível porque a obra de Michel Foucault, em grande medida, está pautada na preocupação do autor com as relações existentes entre a produção dos saberes e dos discursos e os modos de exercício cotidiano do poder. Tal preocupação, com os impactos práticos do conhecimento, fica evidente ao se refletir sobre os tradicionais métodos foucaultianos – o

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método arqueológico5 e o método genealógico. Os métodos arqueológico e genealógico foucaultianos são baseados na análise das práticas discursivas e na problematização sobre o exercício do poder e sobre a consolidação de mecanismos de dominação. Especificamente, a genealogia tem como objetivo central “isolar e registrar os pontos de emergência de sistemas interpretativos” (Esteves, 2006, p. 16) que resultam “de substituições, deslocamentos, conquistas ocultas e reversões sistemáticas” (Foucault, 1984, p. 86)”. Tais sistemas interpretativos surgem “no interior de campos de força em que interpretações ou perspectivas concorrentes encontram-se permanentemente em luta” (Esteves, 2006, p. 16). Nesse sentido, a função do método genealógico é a promoção da recuperação da ancestralidade dos fatos e eventos que se impuseram ao longo da história como as “narrativas verdadeiras” ou mesmo “oficiais”. Esse resgate deve evidenciar o processo de disputas e lutas entre os quadros discursivos e os caminhos arbitrários que possibilitaram a consolidação de um tipo de pensamento/conhecimento. A história aqui converte-se em um instrumento de pesquisa por permitir “um reordenamento de eventos que sublinha os aspectos considerados problemáticos no presente” (Idem). Portanto, esse artigo busca revisitar como o conceito de pacificação aparece no decorrer da formação do Estado brasileiro, numa tentativa de problematizar e, até mesmo, desnaturalizar a sua presença constante no imaginário social e no discurso político do Brasil contemporâneo.

A genealogia foucaultiana se endereça a revelar as relações intrínsecas entre a construção de conjuntos de verdades e as relações de poder cotidianas. Dessa forma, não é possível empreender uma genealogia sem clarificar o entendimento de poder foucaultiano. Para Foucault, o poder não deve ser entendido apenas como uma força que proíbe, reprime e coage os indivíduos. Muito pelo contrário, a definição foucaultiana entende que “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber e produz discurso” (Foucault, 1979, p. 8). O exercício do poder acaba então por se converter em uma força necessária, produtiva e constitutiva na sociedade (Foucault, 1975, p. 161). De forma mais específica, Foucault “problematiza o poder como um relacionamento onde um tenta produzir, direcionar ou determinar os comportamentos de outros” (Blanco, 2017, p. 90). Essa preocupação a respeito de como se dá exercício do poder, leva ao desenvolvimento da concepção foucaultiana de tecnologia de poder como a forma de se apreender as relações cotidianas por meio das quais o poder é exercido (Foucault, 1980, p. 122). Diferentemente da compreensão mais comum de tecnologia, na abordagem foucaultiana, se refere a diferentes formas de conhecimento vinculadas a uma

5 O método arqueológico foucaultiano busca investigar as práticas discursivas, procurando iluminar o processo por meio do qual se dá a constituição dos saberes (Foucault, 2002, p. 239).

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variedade de dispositivos mecânicos e a uma variedade de pequenas técnicas orientadas para produzir resultados práticos (Rose, 2004, p. 52). As tecnologias de poder, então, seriam responsáveis por conectar diversos tipos de conhecimentos, capacidades e métodos de julgamento, direcionando-os ao cumprimento de fins específicos (Foucault, 1980, p. 122).

Para Foucault (1987, p. 111) a disciplina, a biopolítica6 e o governo são tecnologias de poder utilizadas na modernidade para moldar e conduzir os comportamentos dos indivíduos de acordo com os fins esperados. Tendo em contato a vasta obra desenvolvida por Michel Foucault ao longo de sua vida, esse artigo dará centralidade à compreensão de duas tecnologia de poder – a disciplina e o governo – em decorrência da importância desses conceitos para o entendimento acerca da governamentalidade. A disciplina, é uma tecnologia de poder que opera no âmbito individual. Para tal, a mesma ocorre por meio de um sistema de recompensas e punições, buscando corrigir os comportamentos daqueles indivíduos que são percebidos como desviantes (Blanco, 2013, p. 55). O funcionamento de um mecanismo disciplinar visa sempre a classificação e a modificação dos comportamentos dos indivíduos em determinada sociedade. Isso é feito por meio da fixação dos processos de treinamento (adestramento) e de controle permanente, para que com base nisso, possa-se estabelecer a divisão entre aqueles considerados inadequados ou incapazes e os demais (Foucault, ([1977-1978] 2007, p. 56). Nesse sentido, a disciplina se refere aos “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 1987, p. 25). A ideia de um poder disciplinar está diretamente vinculada ao estabelecimento de um controle tutelar, como o que foi direcionado às populações indígenas brasileiras, passando pelas Missões Jesuíticas até as políticas indigenistas rondonianas7.

Todavia, a consolidação de um poder disciplinar não é a única forma de exercício de poder que deve ser considerada. Além da disciplina, o governo aparece como um conceito importante dentro dos postulados teóricos foucaultianos. Para Foucault, a ideia de governo não está somente relacionada com a gestão formal do Estado, ou mesmo com a soberania de um corpo territorial que reclama o monopólio da força (Dean, 2010, p. 16). Pelo contrário, Foucault compreende o governo como a “conduta da conduta” (Foucault, [1977-1978] 2008, p. 257). Assim, o entendimento de governo foucaultiano explora os dois sentidos da palavra conduta. Dentro dessa concepção, conduta é, por um lado, entendida a partir do significado do verbo conduzir, indicando

6 A biopolítica é uma política que trata da gestão do processo da vida dos indivíduos que compõem a população. Essencialmente, a biopolítica objetiva a regulação e a administração da população, buscando moldar e orientar as condutas dos indivíduos que fazem parte da população (Foucault, [1978-1979] 2008, p.327). A biopolítica, se preocupa com a “gestão dos fenômenos que caracterizam os grupos de seres humanos vivos” (Blanco, 2017, p.93). 7 Esse assunto será discutido em maior profundidade na segunda seção desse artigo, direciona a análise sobre o termo pacificação no Brasil Colônia.

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a ideia de guiar ou dirigir. Por outro lado, o termo também é entendido a partir do substantivo conduta, referindo-se às ações e aos comportamentos humanos (Foucault, [1977-1978] 2008, p. 258). Por conseguinte, o governo como “conduta da conduta” implica qualquer tentativa deliberada de moldar os comportamentos dos indivíduos de acordo com conjuntos particulares de normas e para uma variedade de fins" (Dean, 2010, p. 18). Ele engloba, portanto, um número significativo de agentes e fatores que vão muito além da esfera formal do Estado, envolvendo as relações e interações nas famílias, nas empresas, nas escolas e em outras instituições sociais (Lemke, 2002, p.191).

Tendo essa conceitualização de governo como ponto de partida, Foucault desenvolve a noção de governamentalidade para explorar criticamente técnicas de governo dentro e fora do Estado (Zanotti, 2013, p. 237). Uma parte significativa do potencial analítico da noção de governamentalidade reside no fato de que ela possibilita uma problematização mais profunda e alargada do exercício do poder, e da racionalização desse exercício, para além do Estado (Rose e Miller, 1992, p. 2; Zanotti, 2013, p. 237). Uma vez que para o Foucault não seria possível estudar as tecnologias do poder sem uma análise das racionalidades políticas que as moldam e sustentam, o termo governamentalidade busca, mais precisamente, dar visibilidade, por meio da ligação semântica entre as palavras governo e mentalidade, aos modos de pensamento e racionalidades envolvidas no exercício do governo (Gordon, 1991, p. 1). Consequentemente, a ideia de governamentalidade, nesse sentido, não é apenas sobre como as instituições se comportam, mas também sobre como se consolidam as práticas discursivas que dão forma e tornam o governo viável (Lemke, 2007, p. 47). Dessa maneira, a governamentalidade vai além da análise do exercício direto do poder estatal, buscando observar como as sociedades (e os próprios Estados) produzem métodos mais sutis de poder, que são exercidos por meio de uma rede de instituições, práticas, procedimentos, técnicas e racionalidades que atuam para regular a conduta social.

Assim, as concepções de governo e governamentalidade voltam-se para a conformação de racionalidades políticas específicas e conectadas às práticas cotidianas de poder. No caso brasileiro, observa-se que a ideia de pacificação aparece de forma constate ao longo da história de formação do Estado e da sociedade. Por conseguinte, a pacificação constitui uma importante racionalidade que forma e informa a governamentalidade brasileira. Essa última, por sua vez, acaba por dar origem a instituições, práticas políticas e identidades particulares. No entanto, para que se possa ter uma compreensão mais aprofundada dos processos históricos formatados do Estado e da sociedade brasileira é preciso ampliar esse arcabouço conceitual, agregando leituras especializadas na realidade de países com passados coloniais. Aqui, o pensamento de Achille Mbembe contribui para que se possa visualizar e discutir a ancestralidade colonial da ideia de

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pacificação e a sua colaboração para a produção de políticas baseadas no temor do “outro” – esse outro sendo definido em termos racializados e hierarquizados. Essas políticas, por estarem ancoradas no temor e em profundos processos de desumanização do outro, muitas vezes terminam por culminar na eliminação dessas populações periféricas.

Para Mbembe (2018) concepção euro-centrada da raça, reflete uma leitura, localizada no tempo e no espaço, acerca do mundo e das relações sociais e, em última instância, se constitui em uma forma de representação – quase sempre distorcida e imperfeita. Mbembe que o recurso ao conceito de raça foi empregado pelos Europeus com o objetivo de demarcar as fronteiras entre o mundo civilizado (ocidental) e o mundo não civilizado e perigoso (o resto). Nesse sentido, a raça não existe de forma estrita – configurando-se mais como “uma ficção útil, uma construção fantasmática, cuja função é desviar a atenção de conflitos considerados, sob outro ponto de vista, como mais genuínos” (Mbembe, 2018, p. 28-29). Com isso, o autor não quer retirar a concretude dos efeitos e da violência propagada historicamente a partir da classificação racial. Mais do que isso, o objetivo de Mbembe é demonstrar como esse conceito, mesmo não constituindo um indicador biológico real, é utilizado para justificar práticas de sujeição de populações periféricas no decorrer da história moderna – em especial dos povos ‘negros’. Por não ser um elemento essencialmente material, a concepção de raça assume um caráter móvel e pode ser manipulada de acordo com os interesses e as necessidades daqueles possuem legitimidade para manipula-la.

Considerando essa complexa rede de discursos, imaginários e conhecimentos que se sustem a partir da diferenciação das sociedades humanas a partir da raça, Mbembe estabelece com o conceito de necropolítica um questionamento a possibilidade de aplicação do conceito foucaultiano de biopoder, uma vez que o mesmo diz respeito a capacidade do Estado em “fazer viver e deixar morrer” (Foucault, [1976] 2003, p. 242). Desse modo, para Foucault os processos de seleção e classificação de onde, como e de quem é objeto das políticas públicas – a biopolítica do Estado – é determinante para a manutenção das condições necessárias para a sobrevivência do ser humano. Mbembe, por sua vez, identifica que a definição de biopoder, por mais que seja relevante, não é capaz de explicar os processos vinculados à gestão das populações periféricas. Em decorrência disso, Mbembe elabora o conceito de necropoder, que se refere à recomendação de agir sobre a população estabelecendo uma política de morte (2018, p. 7). Nesse contexto, a soberania consiste na “capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é” (Mbembe, 2018, p. 41). Consequentemente, o exercício de um poder necropolítico é expresso como o direito do soberano de matar, estando esse direito assente em relações biológicas e racializadas (Ibidem, p. 16-17). A questão da raça torna-se central, sendo ela

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o principal marcador entre quem importa e quem não importa; entre quem deve viver e quem deve morrer.

2. As “guerras justas” e o processo de “pacificação” das populações ameríndias do Brasil colonial.

A ideia de pacificação remonta aos primórdios do processo da colonização portuguesa do território brasileiro. Cabe ressaltar, que “a colonização do Brasil constituiu para Portugal um problema de difícil solução” (Prado Júnior, 2012, p. 13), uma vez que o país não possuía os recursos adequados para ocupar e consolidar o seu domínio nos territórios “achados” por Pedro Alvarez Cabral no ano de 1500. As estruturas sociais e econômicas do Estado português, ainda marcadas por características feudais, não possibilitavam que o país se converte-se em uma potência colonial de imediato. Consequentemente, o período inicial da colonização do Brasil foi marcado pela desorganização administrativa e pela falta de controle da Coroa sobre boa parte do seu território colonial sul-americano. Para lidar com esse problema, Portugal optou pelo sistema de Capitanias Hereditárias, repetindo em larga escala o sistema já adotado anteriormente nos Açores (Ibidem, p. 15. Nesse contexto, entre os anos de 1534 e 1536, D. João III realizou a doação de quinze lotes a doze donatários – dando origem às capitanias originárias. Nesse tipo de sistema, o vínculos que eram “estabelecidos entre o rei e os donatários eram de natureza pessoal e, a princípio, intransferível” (Cabral, 2015, p. 67). Por conseguinte, a Coroa portuguesa teve como estratégia de colonização para o Brasil no princípio do século XVI a transferência, à inciativa privada, de parte significativa da responsabilidade de conquista e ocupação dos seus territórios.

Esse sistema de capitanias, no entanto, rapidamente começa a dar sinais de que não seria suficiente para sustentar a dominação colonial. Muitos dos donatários não obtiveram sucesso em colonizar as terras recebidas, outros nem mesmo deram início a esse processo ou terceirizaram os esforços e não eram encontrados nas terras doadas pela Coroa (Ibidem, p. 68). Às dificuldades portuguesas com a colonização, somaram-se ainda as frequentes investidas de potências estrangeiras às terras brasileiras – como Holanda e França – e a ampla resistência das populações ameríndias ao processo de dominação colonial. Todo esse cenário, motivou a Coroa portuguesa a modificar a sua estratégia de conquista para o Brasil e estabelecer uma estrutura administrativa centralizada no Governo-Geral do Brasil. As novas normas que passariam a nortear a organização da colônia brasileira constavam no Regimento de 1548, trazido ao Brasil por Tomé de Souza, que também foi designado como o governador-geral.

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Com o regimento e a criação do governo geral, a Coroa portuguesa muda a sua abordagem e passa a investir mais recursos para a garantia do seu domínio sobre os territórios coloniais na América do Sul. Essa modificação na postura portuguesa pode ser percebida, sobretudo, a partir da observação de dois aspectos. O primeiro aspecto diz respeito ao processo de centralização da administração colonial por meio da incorporação de algumas capitanias hereditárias às terras da Coroa – formando assim a categoria de capitanias régias (Cabral, 2015, p. 68). Estas últimas pertenciam diretamente à Coroa portuguesa e eram administradas por indivíduos indicados por ela. O estabelecimento dessas capitanias da Coroa estava diretamente vinculado às áreas territoriais percebidas como estratégicas pelos portugueses, principalmente tendo em vista a necessidade de avançar a ocupação para o interior do território brasileiro.

O segundo aspecto refere-se ao fato de que, conjuntamente com o Regimento de 1548, Tomé de Souza trouxe para o Brasil o primeiro destacamento militar da Coroa para o Brasil. Anteriormente, a conquista das terras e a segurança das capitanias consistiam em empreitadas de responsabilidade majoritariamente privada. Em essência, predominava no Brasil Colônia, do início do século XVI, um sistema de segurança composto por uma espécie de milícias particulares, relacionadas às capitanias hereditárias. Esse tipo de organização tornava as terras brasileiras mais vulneráveis a agressões estrangeiras e dificultava o processo de avanço português para o interior do continente. Essas dificuldades encontradas para ampliar a extensão de terras sob o domínio português se devia à resistência dos povos nativos à dominação colonial. Considerando essa conjuntura, Portugal aprofunda a sua atuação no território nacional por meio, por um lado, da instauração de um sistema centralizado de gestão da Colônia, com um governador-geral que respondia diretamente à Coroa e, por outro lado, com o aumento da repressão às populações nativas que relutavam em reconhecer a legitimidade portuguesa. Conseguintemente, a chegada da primeira tropa portuguesa à colônia, por mais que não fosse suficiente para substituir totalmente esse sistema privado de defesa, indicava que a Coroa Portuguesa estava disposta a empenhar mais recursos e a pensar mais estrategicamente sobre o seu domínio colonial (Oliveira, 2016, p. 6).

O Regimento de 1548 significou, então, uma virada na administração portuguesa sobre os territórios brasileiros. Em última instância, o documento indicava as diretrizes estratégicas para o projeto colonial e demarcava uma postura mais agressiva dos portugueses quanto às populações nativas. A Coroa acompanhava o cumprimento das diretrizes do Regimento por meio de relatórios regulares que deveriam ser encaminhados a Portugal. Essa foi uma solução encontrada para aumentar o controle da Coroa sobre a atuação dos colonos portugueses em terras brasileiras. É nesse contexto histórico que o termo pacificação surge como um elemento importante para a consolidação de uma governança militarizada dos territórios brasileiros e das populações

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ameríndias que os habitavam. Como observa Vânia Maria Losada Moreira (2017, p. 127-128), a ideia pacificar passa a aparecer na documentação colonial, associada ao contexto das guerras de conquista. A prerrogativa de atuação no território brasileiro estabelecida no Regimento de 1548, por um lado, destacava a importância da preservação da “paz” e a realização de “alianças” com os povos indígenas que aceitassem a presença cristã e se curvassem à coroa portuguesa; e, por outro lado, enfatizava o dever de “mover a guerra”, de “castigar” e de “pacificar” os grupos indígenas dissidentes, que resistiam ao domínio português (Ibidem, p. 130).

A noção de “guerra justa” é introduzida nesse momento como base para a ascensão de um aparato jurídico e militar voltado para a conquista e submissão dos povos indígenas. João Pacheco de Oliveira (2017, p. 55) afirma as “guerras justas” promovidas no Brasil estavam baseadas nos procedimento adotados desde o século XIII pelos países da Península Ibérica contra os califados muçulmanos invasores. Na América, todavia, os inimigos a serem combatidos não eram mais os mouros, mas sim as populações ameríndias que se recusavam a integrar o sistema de vassalagem da Coroa portuguesa. Eles eram considerados como os “índios bravos” e infiéis que, ao mesmo tempo, precisavam ser salvos pelo evangelho, mas caso se recusassem, deveriam ser combatidos pelo poder armas. É preciso destacar que a dinâmica introduzida ao território brasileiro pela colonização portuguesa também afetou a relação dos povos ameríndios com a guerra.

Tradicionalmente, povos como os tupinambás, empreendiam a guerra como parte da sua organização social/cultural e como uma forma de vingança (Carneiro, 2009, p. 82). Dessa forma, as guerras não eram realizadas por motivos econômicos e territoriais, como faziam os portugueses. Contudo, o processo de conquista acabou por fomentar “a transformação dos valores que presidiam a guerra ameríndia, substituindo a dinâmica da vingança, da antropofagia e da honra pela lógica do medo, cobiça e comércio” (Moreira, 2017, p. 132-133). Em tal conjuntura, a belicosidade dessas sociedades só tendia a aumentar como uma resposta às investidas militares portuguesas e ao sistema crescente de escravização dos povos ameríndios. Em contrapartida, os portugueses avançavam de forma mais ostensiva contra as populações indígenas, com o intuito de consolidar o seu domínio. Moreira (2017, p. 133) destaca que de Ilhéus aos Espírito Santo constavam sociedades ameríndias “alevantadas” contra a Coroa, de modo que a repressão foi particularmente violenta na região.

Assim, durante todo o século XVI e do século XVII a doutrina das “guerras justas” foi o principal instrumento de consolidação do domínio português no Brasil. De acordo com Beatriz Perrone-Moisés (1992), os documentos coloniais classificavam os povos ameríndios em três categoriais: inimigos, índios da paz e aliados. Dentro desse enquadramento, as populações nativas deveriam ter diferentes tipos de políticas e tratamentos – a depender da sua boa vontade para com

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o projeto colonial português. A princípio, a “guerra justa” direcionava-se àqueles povos que eram considerados como inimigos e que se levantavam contra a Coroa. Esses povos eram tidos como selvagens, pecadores e, consequentemente, infiéis – tanto com relação à Coroa portuguesa, como com relação à fé cristã. Os portugueses, portanto, teriam como missão confrontar militarmente essas sociedades e subjuga-las aos padrões morais e religiosos da época. A conquista militar, nesse tipo de racionalidade, caminhava lado a lado à conversão dessas populações à cultura ocidental. Muito embora, é preciso destacar que a doutrina da guerra justa não se restringia aos “índios bravos” e acabava recaindo também sobre aqueles povos que acabaram por se submeter ao controle português. Isso ocorria porque essa doutrina não deveria apenas castigar os “infiéis”, mas sobretudo promover a reconstrução dos povos aliados e “da paz”. Como afirma Oliveira (2016, p. 61), a “atuação dos colonizadores não deveria restringir-se à dimensão política ou econômica; para justificar-se, precisava salientar o seu aspecto ético e espiritual”. Era preciso, então, “salvar” as almas daqueles indivíduos por meio da sua conversão ao catolicismo.

Com a pretensão de alterar a condição sociocultural dos povos nativos, as autoridades portuguesas percebem que é preciso instaurar um controle permanente sobre essas populações. Em razão das expedições militares de conquistas, famílias e comunidades indígenas eram compelidas a se afastar das suas terras e se aproximar cada vez mais das proximidades do núcleo colonial (Oliveira, 2017, p. 55). Esse processo facilitou a conformação das famosas “missões”, nas quais os povos indígenas passam a estar sob a supervisão e tutela de “missionários”, que os batizavam, ensinavam a cultura e a língua dos colonizadores. Mais do que isso, os missionários tinham como principal função nessa estrutura de dominação promover o preparo e adequação, dessas populações, para o trabalho nas próprias missões e nos grandes latifúndios agrícolas (Idem). Com esse processo, se estabelece o que Oliveira (2017, p. 56) denomina como o ‘paradoxo da tutela’, que implica “em um exercício de mediação regido por princípios contraditórios e que envolvem sempre aspectos de proteção e de repressão, acionados alternativamente ou de forma combinada segundo diferentes contextos”. Os missionários não defendiam unicamente a escravização dos povos indígenas, uma vez que seguiam os preceitos da Igreja Católica. Em última instância, esses missionários partiam do pressuposto de que os povos nativos “possuíam almas” assim como os portugueses e poderiam ser “salvos” pela conversão ao evangelho. Concomitantemente a essa crença de fundo religioso, tinham plena consciência de que a mão de obra ameríndia constituía um elemento essencial para o enriquecimento da colônia. Em decorrência disso, nessas missões eram estabelecidas formas de controle rígidas sobre as populações pacificadas, buscando modificar as racionalidades e comportamentos dos nativos de acordo com a cultura ocidental.

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Assim, era preciso pacificar e civilizar os povos nativos, para que os mesmo se convertessem em propulsores do desenvolvimento econômico da colônia por meio do seu trabalho. Mas o qualificativo de “pacificado” não implicava, necessariamente, em um mudança mais substancial nos costumes e crenças dessas populações. Frequentemente, após alguns anos esses índios ditos “pacificados” voltavam a se contrapor aos agentes econômicos e/ou religiosas. Conseguintemente, em última instância a concepção populações indígenas “pacificadas” significava que elas haviam sido vencidas militarmente pelos portugueses e que temporariamente teriam que aceitar o sistema missionário e colonial. As missões de pacificação, durante o período colonial, tinham como razão de ser a necessidade de se conquistas os territórios das populações nativas e nesses assentar um comando missionário. Nesse espaço a mão de obra indígena estaria à disposição das necessidades produtivas do colonos e do próprio governo (Oliveira, 2016; 2017).

Portanto, em essência, a pacificação dos povos nativos brasileiros referia-se ao processo de conquista militar de territórios e ao estabelecimento de um poder disciplinar sobre essas populações. Esse poder disciplinar objetiva, sobretudo, a transformação do ameríndios em excedente de mão de obra. Conforme houve a expansão territorial do domínio português para o interior do continente, as práticas pacificadoras foram se repetindo, convertendo a ideia de pacificação em uma racionalidade política frequente na história do Estado brasileiro.

3. As práticas pacificadoras e a integração social e territorial durante o período imperial brasileiro

Na seção anterior apresenta-se como a ideia de pacificação serviu ao projeto colonial de disciplinar as populações ameríndias, desempenhando um papel de extrema relevância na consolidação e manutenção do sistema de dominação colonial português no Brasil. As práticas pacificadoras portuguesas permitiram o avanço do controle das autoridades coloniais sobre os territórios brasileiros, uma vez que implicavam na espoliação dos indígenas das suas terras e, até mesmo, da sua identidade. Por conseguinte, a pacificação converteu-se em uma racionalidade que formou e informou, durante o Brasil Colônia, práticas de governo tutelar e o exercício de um poder disciplinar sobre os povos nativos. Tendo isso em conta, essa seção se dedica a apresentar como o termo é resgatado no início do período imperial com o objetivo de combater os movimentos contestatórios ao poder central. A observação sobre o emprego do termo pacificação e da ideia de pacificar no Brasil Império permite questionar alguns dos mitos fundacionais da nação brasileira, como a crença de que a formação do Estado brasileiro se deu de forma pacífica e pouco contestada.

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No ano 1822 é declarada a Independência brasileira de Portugal8, por meio um processo sociopolítico complexo. Destaca-se que, por mais que a independência não tenha ocorrido por meio de uma guerra ostensiva, ainda assim foram formados polos de resistência a esse processo. De uma forma geral, pode-se observar a ascensão de revoltas emancipacionistas e contrárias à monarquia anteriores à independência brasileira, como: a Inconfidência Mineira (1789); a Conjuração Baiana (1798); e a Revolução Pernambucana (1817). Após independência brasileira têm início as chamadas Guerras de Independência, que se caracterizavam como movimentos contestatórios à figura de Dom Pedro e ao regime imperial – realizados por fidalgos portugueses fiéis à Coroa. Para além disso, a abdicação prematura de D. Pedro I e o início do período regencial trouxeram mais instabilidade e contestação à legitimidade e à estrutura do Império brasileiro. Nesse contexto, entre os anos de 1831 e 1848, é possível contabilizar a eclosão de 17 movimentos contestatórios, evidenciando o momento de forte convulsão social do início do Estado brasileiro9 (Souza, 2017, p. 177).

Esses movimentos se espalharam ao longo de todo o território brasileiro e possuíam proporções e características variadas, tendo em comum a contrariedade ao regime imperial. Essa efervescência social e política era percebida com uma ameaça por parte da elite conservadora brasileira, uma vez que poderia implicar em perdas de territórios ou no enfraquecimento do governo central (Carvalho, 1996, p. 241). Logo, o processo de formação de um Estado brasileiro independente, diferentemente do que consta em muitos livros de história brasileira, não aconteceu de forma tranquila e pouco conturbada. Na verdade, esse processo foi caracterizado por intensas disputadas e choques de interesses entre o governo central e as elites locais das províncias. Essas divergências eram potencializadas pelas ascensão de levantes de caráter popular, que questionavam a estrutura econômica escravagistas e os sistemas políticos e sociais excludentes.

Cabe ressaltar que, o período regencial foi marcado tanto pela ampla ocorrência de movimentos contestatórios e contrários ao Regime e, como também, pelo avanço de um grupo político que explorava, justamente, esses levantes populares para alavancar a sua pauta política conservadora (Mattos, 1990). O grupo, que se autodeterminava de o “Regresso Conservador”, era defensor, no Parlamento, da centralização do poder no governo do Rio de Janeiro. Com o objetivo de angariar apoio junto às elites nacionais, esse grupo associava as revoltas populares brasileiras

8 A chegada da Família Real em 1808, e a elevação do Brasil de colônia a reino, terminaram por favorecer e acelerar o processo de independência brasileiro. As modificações nas estruturas políticas e sociais brasileiras fortaleceram o movimento pela independência no Brasil. Em Portugal, em contrapartida, era crescente a pressão para que o Brasil voltasse ao seu antigo status de colônia. Com o fim das Guerras Napoleônicas (1815), Dom Joao VI é chamado para retornar a Portugal (1821), que se encontrava sem um governante. Nesse contexto, D. Pedro I se tornou regente no Brasil e viria a proclamar a independência no dia 7 de setembro de 1822.

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à experiência francesa com a Revolução Haitiana (Souza, 2017, p. 178). Já no final do período colonial, conformou-se entre as elites políticas e intelectuais brasileiras o medo de que o haitianismo10 se espalhasse pelo Brasil (Borba de Sá, 2018, p. 64). Em essência, o que se temia com esse haitianismo eram os possíveis efeitos, inspirados na Revolução de São Domingos realizada por escravos haitianos, produzidos nos escravizados e na população negra brasileira. As elites brancas e oligárquicas receavam que os escravos brasileiros, a exemplo dos haitianos, se revoltassem contra o sistema dominação escravagista brasileiro.

Percebe-se que era atribuído um caráter ambivalente ao termo haitianismo, vinculado ao emprego das palavras “inspiração e medo” (Borba de Sá, 2018, p. 66). Assim, por um lado, o haitianismo dizia respeito às revoltas e movimentos pela libertação dos negros no Brasil inspirados na Haiti e, por outro lado, se referia ao crescente medo das elites locais de que os eventos do Haiti pudessem se repetir em território nacional. Nesse contexto, Flávio Gomes (2002) aponta para como as “ideias, temores e narrativas” em torno do Haiti no Brasil escravista terminavam por ativar políticas especificas de controle e repressão à população negra (2002, p. 209-211). De acordo com Araújo et al (2006, p. 51), “temores de insurreições sempre dominaram as sociedades escravistas”, de modo que o levante escravo no Haiti apenas reforçava um sentimento já existente na sociedade brasileira. A intensidade e a violência do movimento haitiano, que praticamente eliminou os habitantes brancos daquele país (Moura, 1959, p. 106), aprofundava o caráter sociorracial do temor político causado pelo haitianismo – conformando o que, Célia Maria de Azevedo (2004, p. 15), conceitua como “medo branco”.

Assim, o medo do haitianismo foi utilizado pelos conservadores para a consolidação do seu projeto político e, também, deu legitimidade a uma política repressiva por parte do Estado brasileiro aos movimento contestatórios. De forma geral, os conservadores defendiam que era preciso reorganizar a estrutura administrativa do Estado brasileiro, concedendo maior controle sobre as províncias ao governo central11. Com isso, esperava-se conter a efervescência político-social ao longo do território brasileiro. Dentre os movimentos que mais despertavam a preocupação dos conservadores, estavam Revolta dos Cabanos no Pará (1835-1837), a Revolução Farroupilha ao sul do país (1835-1845), as Sabinadas na Bahia (1837-1838) e a Balaiada (1838-1841) no Maranhão12. Todos esses movimentos, de uma forma geral, apresentavam características particulares – decorrentes das estruturas socioeconômicas locais. Mas englobavam alguns aspectos

10 Para ver mais sobre o as repercussões da revolução de São Domingos entre as elites brasileiras no Império, ver: (Gomes, 2002).

11 Para ver mais sobre essas reformas, ver: (Souza, 2008).

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similares, como a composição dos revoltosos a partir de classes sociais distintas e a presença de lideranças populares.

Os conservadores responderam a esses movimentos com a adoção de práticas pacificadoras que eram, concomitantemente, repressivas e conciliatórias. Lembrando que, quanto mais popular fosse a revolta, maior seria o grau de repressão e violência empregado pelos poderes públicos para combatê-la. Nesse sentido, o movimento Farroupilha, liderado pelos ricos estancieiros do Rio Grande do Sul, não enfrentou a violência do Estado, na mesma medida, em que os cabanos no Pará enfrentaram. Esses últimos, eram em sua maioria negros, mestiços e indígenas – populações que, tradicionalmente, já eram alvo da repressão estatal em terras brasileiras (Souza, 2008). Como consequência disso e, lembrando que esse era um momento no qual o temor dos efeitos do haitianismo no Brasil era uma constante entre as elites brasileiras, esse movimento foi tido como bárbaro e incivilizado pelas autoridades da época (Kray, 2017, p. 155).

Além da guerra empreendida contra os cabanos e da eliminação das suas lideranças, o General Francisco José de Sousa Soares de Andrea, presidente das províncias do Pará entre 1836 a 1837, propôs em ofício que o recrutamento militar para a província deveria evitar os indivíduos originários daquela localidades e dar prioridades a soldados provenientes do sul do país. Para Andrea (1837, p. 29), “todos os homens de cor nascidos aqui [no Pará]estão ligados em “pacto secreto”, a “darem cabo de tudo quanto for branco”. Por conta disso, para ele era “indispensável por as armas nas mãos de outros e [...] proteger, por todos os modos a multiplicação dos brancos (Idem).

Assim, o lugar que os grupos revoltosos ocupavam na estrutura social brasileira determinava como o governo trataria os envolvidos em uma revolta. Apesar dessa diferenciação quanto à intensidade da violência e o tipo de estratégia adotada pelo Estado, as práticas pacificadoras do Estado brasileiro foram uma das suas principais marcas durante o século XIX e, certamente, desempenharam um papel muito importante na manutenção da integridade territorial brasileira. Mais do que isso, a noção de pacificação compôs o imaginário político e social brasileiro, colaborando com a construção da nação. Hendril Kray (2017, p. 152) afirma que entre os anos de 1820 e 1840 houve um aumento significativo na frequência com que as palavras pacificação, pacificado e pacificar apareciam nos jornais brasileiros. A ocorrência dos termos somados na década de 1820 foi igual a 137 em comparação a 3.036 ocorrências nos anos 1840 (Ibidem, p. 172).

Cabe destacar que o significado do verbo pacificar, presente no ‘Dicionário da Língua Portuguesa’ de Antonio de Morais Silva, datado do ano de 1789, consistia em “restituir a paz, V.g. pacificar a Europa; aquietar desavindos, e discordes; fazer obedecer revoltados ou rebeldes;

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amigar, e fazer paz entre inimigos, ou pessoas que brigam”. Chama atenção a noção “fazer obedecer aos voltados” constar como um dos significados atribuídos ao verbo pacificar, uma vez que associa o ato de pacificar aos grupos internos que apresentassem comportamentos dissidentes. Essa definição, por fim, acabava por resumir a racionalidade da pacificação do período colonial – de fazer obedecer às populações ameríndias rebeldes e com comportamentos dissidentes dentro da ordem social portuguesa. Então, no século XIX essa lógica de atuação é retomada pelo governo regencial e direcionada aos movimentos contestatórios.

Cabe destacar que no auge da utilização dessas práticas pacificadoras, alguns nomes foram ganhando mais relevância e, com isso, a alcunha de “pacificador”. Luís Alves de Lima e Silva, mais conhecido como Duque de Caxias, merece destaque. Ele esteve presente nas campanhas militares mais significativas do Brasil Império, como a Guerra da Tríplice Aliança13 e Guerra da Cisplatina; e no enfrentamento à Balaiada (Maranhão) e à Revolução Farroupilha (na província de São Pedro do Rio Grande do Sul). Ele se destacou entre os oficiais brasileiros da época por defender que as guerras contestatórias, em última instância, deveriam ser consideradas como instrumentos de “proteção” e “integração” da sociedade e da economia do Estado e, consequentemente, como um método civilizatório (Souza, 2017, p. 182). Assim, as suas campanhas foram marcadas por uma postura, por um lado, conciliatória com as elites locais e, por outro lado, por suas respostas repressivas aos movimentos que visavam contestar o poder centralizado no Estado brasileiro (Idem). Em razão disso, foi apelidado por colegas militares e por políticos da época de “o pacificador”.

Tendo esses elementos em conta, essa seção agora traz a importância das ideias de Duque de Caxias para a consolidação das forças militares e do próprio Estado Brasileiro. É claro que a formação do Estado brasileiro não é um processo que pode ser reduzido à figura de um único homem, uma vez que se configura em um processo histórico longo, complexo e multidimensional. Contudo, a análise sobre as ações de Duque de Caxias e a sua leitura estratégica sobre o papel da guerra dentro da ascensão e da consolidação da “nação” brasileira permitem uma compreensão mais apurada e aprofundada sobre as racionalidades políticas da época e como as mesmas ainda refletem aspectos importantes do Estado e das forças militares brasileiras. Além do mais, Caxias é uma figura central para a formação da identidade do exército brasileiro – identidade essa que ainda hoje está vinculada às práticas pacificadoras do período imperial.

De acordo com informações do site do Ministério da Defesa (2020), em 1838, Luís Alves de Lima e Silva – já promovido a Tenente-Coronel – é destacado para “pacificar” a província do

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Maranhão, onde se deu o início da Balaiada14. A atuação de Luís Alves para a contenção da Balaiada acabou por fomentar a sua ascensão como uma figura política importante para a história nacional15. Segundo Adriana Barreto de Souza (2017, p. 180-182) a força de pacificação, comandada por Luís Alves, chegou ao Maranhão em fevereiro de 1840. As estratégias iniciais adotadas por ele foram: i) a reformulação da administração política e militar da província; ii) e a conscientização da elite maranhense que havia “colaborado” e/ou “permitido” que a revolta se formasse. Esse curso de ação retardou o enfrentamento militar dos revoltosos, mas foi fundamental para consolidar o domínio imperial na província. No campo de batalha, as forças imperais empregaram táticas de cerco aos revoltosos, buscando estrangular a sua vantagem logística na região. Essas ações se mostraram bem sucedidas e logo as forças oficiais ampliaram a sua posição tática. Uma vez estabelecida a superioridade militar do Estado, Luís Alves começou o processo de negociação da rendição dos “caboclos”, colocando como condição que os negros envolvidos na revolta deveriam ser abatidos. Para ele essa era uma medida educadora e objetivava conter a crescente resistência dos escravos ao sistema escravocrata.

Assim, pacificar as províncias significava “fazer obedecer” à ordem imperial àqueles “revoltados e rebeldes”. Essa prática envolvia tanto uma política de aproximação, de “educação” e “disciplinamento” das elites locais, como respostas mais violentas às lideranças populares – sobretudo se elas fossem negras e mestiças. Por mais que Luís Alves tenha ficado conhecido como “pacificador” e, portanto, símbolo dessa estratégia. As práticas pacificadoras foram amplamente utilizadas por outros oficiais como forma de “apaziguar” e massacrar movimentos contestatórios. Em decorrência do sucesso de Luís Alves no Maranhão, ele foi destacado no ano de 1842 para a pacificar o levante, de cunho liberal, na província de São Paulo e na província de Minas Gerais. Ainda, em 1842 ele é enviado ao sul do país para pacificar a Revolução Farroupilha. Nessa última, Luís Alves procurou reforçar a importância da unidade nacional diante dos “verdadeiros inimigos” da nação, como Manuel Oribe (Uruguai) e Juan Manuel de Rosas (Argentina). Ele obteve sucesso e a revolução foi dissolvida pelas forças imperiais. Aqui a força despendida pelo Estado para a punição dos envolvidos de deu em menor escala do que em outras revoltas.

4. A persistência das práticas pacificadoras por meio das ideologias interventoras das Forças Armadas no século XX

14 A Balaiada foi uma revolta popular ocorrida no Maranhão entre 1838 e 1841. A balaiada foi liderada por homens pobres, mestiços e escravos, e tem as suas origens no descontentamento popular quanto a atuação dos prefeitos – cargo criado pelo presidente da província Camargo. No entanto, o movimento também questionava a própria autoridade monárquica no Brasil.

15 Principalmente com a publicação do livro A Revolução na Província do Maranhão desde 1839 a 1840 por José Gonçalves de Magalhães.

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Na seção anterior se discutiu como as práticas pacificadoras do Brasil imperial foram fundamentais para a manutenção da integridade territorial brasileira e para a própria construção da nação brasileira. Nessa seção, o texto se direciona a apresentar como a racionalidade política da pacificação persistiu na história brasileira do século XX, sobretudo ao ser associada com ao intervencionismo crescente dos militares na política nacional. Nesse sentido, por mais que o termo pacificação não apareça largamente século XX, é possível observar que a racionalidade política contida no termo está presente em termos como intervenção, ordem e segurança nacional. Para entender esse processo, no entanto, precisamos olhar brevemente para os acontecimentos políticos no Brasil do final do século XIX.

A vitória brasileira na Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) construiu uma imagem positiva das forças armadas junto a sociedade brasileira, reforçando a sua capacidade de articulação política dentro do Estado. Nesse contexto, as forças militares, que possuíam uma posição mais conservadora e alinhada ao governo no Primeiro Império, passam cada vez mais a apresentar posições divergentes às elites dirigentes do Segundo Império. Na segunda metade do século XIX, gradativamente, o recrutamento militar brasileiro de oficiais passou de aristocrático para endógeno e de classe média (Carvalho, 2019, p. 36-37). Em decorrência disso, os oficiais que, anteriormente, estavam diretamente vinculados às aristocracias regionais, passam a estar cada vez mais atrelados à própria organização militar. Assim, há a modificação no perfil do oficialato e a ascensão de uma elite militar brasileira16.

Essa modificação no caráter social das tropas brasileiras favoreceu o crescimento de um sentimento antimonárquico, tanto entre os oficiais como entre os praças. Era notável, entre os militares, a percepção de que as elites políticas eram privilegiadas frente à classe militar. Logo, o mesmo exército que foi responsável pela manutenção da integridade territorial e pelo fortalecimento do imaginário sobre a existência de uma “nação brasileira coesa” durante o Primeiro Império, passa cada vez mais a defender os ideais republicanos. Esse fato fica evidente quando se observa que os militares estiveram envolvidos na fundação do Partido Republicano (1870) e na publicação do Manifesto Republicano no jornal do Rio de Janeiro “A República”. Esse movimento denotava o fortalecimento da “instituição militar brasileira no campo político-ideológico” (Tifaldi, 2017, p. 19). Por fim, o militar Marechal Deodoro da Fonseca foi responsável por Proclamar a República em 1889. Marechal Deodoro da Fonseca assumiu o governo interino do novo regime, sendo substituído logo em seguida por Floriano Peixoto (1889-1895), que também 16 O recrutamento dos praças, por sua vez, se manteve majoritariamente entre as classes mais baixas. De uma forma geral, os soldados brasileiros eram provenientes das classes média e baixas, incluindo escravos em busca de alforria ou libertos (Carvalho, 2019, p. 37).

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era militar. Em decorrência da constante presença de militares no poder, esse período ficou conhecido como República da Espada.

O objetivo desses governos era a consolidação do regime republicano, a centralização da política nacional e a estabilização das agitações políticas que vinham ocorrendo. Em tal contexto, era crescente a percepção de que as forças armadas brasileiras possuíam a responsabilidade de resguardar as instituições políticas do país, bem como a ordem social interna. Para José Murilo de Carvalho (2019, p. 62), quando pensamos no fortalecimento de uma mentalidade que entende as forças armadas como um poder moderador ou interventor no Estado Brasileiro, é preciso considerar que “diante da tradição civilista do Império, os militares republicanos se viam obrigados a fornecer ao país e a si mesmos uma justificação do intervencionismo militar”. Mas é importante esclarecer que o processo interno para a construção de uma narrativa e de um imaginário que coloca as forças armadas brasileiras no centro da política nacional não se deu sem disputas e divergências internas. Por conseguinte, a trajetória política das forças armadas é fruto do próprio processo histórico de formação do Estado Brasileiro; mas também resultado de conflitos entre posições divergentes dentro da própria organização.

Para entender melhor essas disputas ideológicas entre diferentes grupos de militares, Carvalho (2019) diz que se pode falar na consolidação de duas ideologias de intervenção entre as forças militares brasileiras durante a Primeira República. A primeira ideologia intervencionista girava entorno da ideia de um “soldado cidadão” e pode ser denominada de intervenção reformista. Essa ideologia estava atrelada ao positivismo civilista de Benjamin Constant, entendia que os militares deveriam intervir nos assuntos políticos com o objetivo de reformar o Estado (imperial) e fomentar o progresso da sociedade brasileira. A ideologia reformista, por uma lado, “servia de instrumento de afirmação militar” e, por outro lado, “refletia o sentimento de marginalidade e o ressentimento dos militares em relação à sociedade civil, sobretudo à elite política” (Carvalho, 2019, p. 63). Dessa maneira, ela visava reformar o sistema político em decorrência da sua estrutura promotora de desigualdades e, ao mesmo tempo, consolidar a organização militar como um agente político importante no Brasil. Para Constant, o soldado deveria ser um cooperador e facilitador do progresso, ou seja, um cidadão armado. Esse tipo de mentalidade estava muito presente entre os oficiais mais jovens e de escalões inferiores das forças armadas, como o Tenente Juarez Távora – liderança nos movimentos tenentistas.

A segunda ideologia intervencionista versava sobre a ideia de um “soldado-corporação” e pode ser denominada de intervenção moderadora. Para essa ideologia o Exército possuía a função de conservar e estabilizar os elementos sociais e políticos, bem como de corrigir as “perturbações” internas (Carvalho, 2019, p. 67). Bertholdo Klinger foi um dos nomes mais importantes desse tipo

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de mentalidade. Ele defendia abertamente a intervenção na política das forças armadas. Essa intervenção, se diferenciava daquela defendida pela ideia de soldado-cidadão, por admitir que a sua função era, essencialmente, moderadora e/ou controladora e que deveria ser levada orientada pela mais alta cúpula militar. Para Carvalho (2019, p. 68), a ideologia da intervenção moderadora “era uma combinação do intervencionismo tenentista com as transformações estruturais da organização militar promovidas pelos reformadores”. Ela pode ser resumida à ideia de “intervencionismo de generais ou do Estado Maior” (Idem).

A ideologia da intervenção moderadora acabou se consolidando como a racionalidade orientadora da atuação militar na política brasileira. Isso pode ser evidenciado, primeiramente, a partir do Movimento Pacificador em 1930 e, posteriormente, com a consolidação do Golpe de 1964. No contexto de instabilidade causado pela Revolução de 193017, o Movimento Pacificador, foi responsável por depor o presidente Washington Luís. Esse movimento pode ser descrito como a “primeira tomada de poder pelos militares planejada e executada pelos altos escalões das duas forças” (Carvalho, 2019, p. 80). O coronel Bertholdo Klinger – chefe do Estado-maior das Forças Pacificadoras – planejou a operação, cujo objetivo era resolver o impasse entre os legalistas e os revolucionários por meio de novas eleições (Idem). Klinger defendia que as forças armadas deveriam atuar como força independente e mediadora em meio aos conflitos civis. Todavia, com o fortalecimento das forças revolucionárias, os membros da Junta – os generais Tasso Fragoso, Mena Barreto e o contra-almirante Isaías de Noronha – optaram por passar o governo aos revoltosos. O movimento pacificador foi um primeiro movimento das forças armadas como uma força política organizada, independente e com interesses próprios, indicando a linha de atuação que viria a ser adotada nas próximas décadas (Ibidem, p. 81).

De acordo com René Armand Dreifuss e Otávio Soares Dulci (2008, p. 136-137) o papel político das forças armadas no Brasil passou, paulatinamente, por uma transformações nos anos que antecederam ao Golpe de 1964, com destaque para as reformulações nas dimensões político-ideológica e institucional/organizacional. A reformulação político-político-ideológica das Forças Armadas estava estreitamente vinculada com a legitimação do crescente intervencionismo militar no sistema político brasileiro. Essa legitimação estava assentada em dois aspectos ideológicos do período: i) a doutrina de Segurança Nacional elaborada pela Escola Superior de Guerra; e pela ação de correntes políticas contrárias aos governos mais populistas, notadamente a União Democrática Nacional (UDN). Essas últimas “tendiam a recorrer à intervenção militar como forma de corrigir

17 A Revolução de 1930 foi liderada pelos estados Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Esse movimento culminou na deposição do então presidente Washington Luís, impedindo a posse do presidente eleito, Júlio Prestes. Getúlio Vargas (que era militar de baixa patente), então, tornou-se o chefe do Governo Provisório (1930-1934) até a constituição a ser escrita.

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o que consideravam como desvios do meio político e dos resultados eleitorais” (Ibidem, p. 137). Por conseguinte, as forças armadas eram reconhecidas como “poder moderador”, uma vez que o texto constitucional determinava que o chefe do Estado estava subordinado aos “limites da lei” (Pedreira, 1964). A crença no poder moderador das forças armadas era resgatada, com relativa frequência durante a Primeira e Segunda Repúblicas, para questionar a legalidade dos governos democraticamente constituídos. Assim, as forças armadas – tidas enquanto atores “desinteressados politicamente” e “preocupados com a harmonia” dos poderes políticos instituídos – deveriam intervir nos momentos em que se apresentassem ameaças potenciais a ordem pública.

É nesse período também que se fixa a necessidade de desenvolver, de forma programática, uma doutrina capaz de estabelecer uma visão globalizante da sociedade brasileira e dos seus problemas (Dreifuss e Dulci, 2008, p. 138). Assim, na década de 1950 é elaborada a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que serviu de base ideacional para a formulação da política das forças armadas. De acordo com a DSN a segurança interna passava a ser um elemento fundamental dentro da ideia de segurança nacional, de modo que era dever das forças armadas neutralizar e eliminar os “inimigos da nação” (Brasil, 1976, p. 431-432). Para isso, a Doutrina passa a empregar os conceitos de guerra revolucionária, direcionado a compreender as ameaças internas de “subversão” da ordem (Alves, 2005, p. 40). Segundo o Manual Básico da ESG, a guerra revolucionária diz respeito ao “conflito, normalmente interno, estimulado ou auxiliado do exterior, inspirado geralmente em uma ideologia, e que visa à conquista do poder pelo controle progressivo da nação” (Brasil, 1976, p. 78)18. Tendo essas características em conta, para a DSN o principal objetivo da “nação brasileira” – Estado e sociedade – era a prevenção, o controle e a derrota dessas guerras. Os efeitos dessa mentalidade foram: i) o estado de constante alerta das forças de coerção brasileiras, de modo que esses movimentos não se consolidassem; ii) a responsabilização da sociedade civil, que deveria unir forças com os militares no combate aos grupos revolucionários; iii) a crença de que, em meio a guerra revolucionária, “os fins justificam os meios”; iv) o apagamento das fronteiras entre ações repressivas e ações preventivas (Fernandes, 2009, p. 849).

Assim, apesar da aparente inovação, a Doutrina de Segurança Nacional, em essência, significou a conversão das velhas práticas “pacificadoras” brasileiras em uma racionalidade de Estado modernizante. Ela incorporou os elementos da Guerra Fria e resinificou a ideia de “inimigo interno”, que no Brasil colônia eram os povos indígenas e quilombolas; posteriormente, no período

18 A DSN destacava a existência de três formas de guerra “que estão na base da elaboração da guerra total, ou seja, a percepção de que se vivia em uma situação de conflito permanente contra o comunismo: a generalizada, a fria e a revolucionária” (Fernandes, 2009, p. 849). A guerra generalizada é a guerra absoluta – nuclearizada. A guerra fria é um embate travado em todos os campos – político, econômico, social, militar, cultural, ideológico e psicológico. A guerra contrarrevolucionária (contra insurgente) se referia às guerras de baixa intensidade e assimétricas localizadas no terceiro mundo.

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