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Crítica ambiental e existencial: a cuia na obra multimídia de Roberto Evangelista e a influência do pintor Hahnemann Bacelar

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Academic year: 2021

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Crítica ambiental e existencial: a cuia na obra multimídia de Roberto Evangelista e a influência do pintor Hahnemann Bacelar

SÁVIO LUIS STOCO*

ORLANDO FRANCO MANESCHY*

RICARDO AGUM RIBEIRO*

A proposta desse trabalho é investigar estética e historicamente a apropriação artística das cuias esféricas na obra multimídia de Roberto Evangelista (1946-2019), cuja trajetória é marcada por trabalhos que promoveram uma crítica ambiental e existencial na região amazônica. Buscaremos focalizar a influência inicial de uma ação artística efêmera promovida pelo pintor expressionista amazonense Hahnemann Bacelar (1948-1971), acontecimento que estaria na gênese da apropriação das cuias promovida por Evangelista.

O enfoque se justifica dada a centralidade enquanto símbolo que esse elemento, as cuias, possui na trajetória do artista, angariando diferentes sentidos de acordo com a utilização em determinada obra, tais como: a representação dos seres humanos, a alusão aos processos biológicos (gênese e alimentação), a menção à práticas/cultura caboclas, dentre outros.

Para tanto iremos, na primeira parte do texto, contextualizar a trajetória do artistas e as aparições da cuia em suas obras para, em seguida, na segunda parte, considerarmos o episódio que ficou gravado na memória do artista e foi mencionado com destaque em uma entrevista (EVANGELISTA, 2018b) envolvendo o referido pintor e que, aqui levamos em conta por ter sido crucial para a tomada da cabaça como elemento simbólico por Evangelista.

Trajetória artística

* Doutor pelo PPGMPA ECA/USP. Docente dos cursos de graduação em Artes Visuais e do Programa de

Pós-Graduação em Artes - PPGArtes do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará - ICA / UFPA.

* Doutor pelo PPGCOS PUC-SP. Docente dos cursos de graduação em Artes Visuais e do Programa de

Pós-Graduação em Artes - PPGArtes do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará - ICA / UFPA.

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2 Alguns elementos naturais e orgânicos estão presentes na obra do artista conceitual Roberto Evangelista, cuja temática gira em torno de questões ambientais e pretende também promover uma aproximação ao pensamento indígena/caboclo, interculturalmente. As cuias (cabaças esféricas cortadas ao meio) são um desses objetos, pouco processados pela indústria/homem, utilizados artisticamente por Evangelista.

Além de aludirem aos seres biológicos em etapas de suas vidas, como dissemos, também materializariam o conceito de "formas prototípicas", indícios de possibilidade de resgate cultural dos povos originários da Amazônia segundo a poética do artista (EVANGELISTA, 2018). Além das cuias, também encontramos a farinha, a juta e as pedras como elementos naturais apropriados na criação de suas obras, mas todos estes em menor recorrência, e aparentemente também com menor centralidade simbólica, do que as cuias. Nas obras em que fez em associação com a artista carioca radicada nos Estados Unidos Regina Vater, mencionadas a seguir, as cuias foram associadas a penas de pássaros, elemento característico de uma parcela de obras dessa artista, formando um encontro de símbolos mas também da poética ecológica dos dois artistas e que, assim, também sintetizaram a parceria a partir da junção desses dois elementos naturais pinçados do contexto regional amazônico/brasileiro.

A proeminência dos elementos de origem natural e relativos à cultura dos povos originários amazônicos foram atentados por Diane Armitage no texto crítico sobre a obra

Mongarayba – a origem sagrada (1990), participante da exposição Revered Earth,

exposição itinerante norte-americana curada por Dominique Mazeaud e Robert Gaylor. “Ambos [Roberto Evangelista e Regina Vater, parceiros na criação dessa obra] falam uma linguagem artística internacional e interdisciplinar, embora trabalhem sobretudo com matérias-primas daquela terra para apresentar a matriz física da mensagem que querem comunicar” (PINTO, 2017, p. 89). Para Otoni Mesquita, as cuias podem ser interpretadas “como parte de uma unidade repartida pelo homem. Mesmo que duplicadas, não perdem a vinculação direta com a forma circular originária”. Para Evangelista, citado por Mesquita, trata-se da “integração do homem com o cosmos” (PINTO, 2017, p.57). Como se vê, a decodificação da simbologia das cuias é aberta, dependendo em parte da apreensão do espectador mas também de cada inclusão do elemento em determinada obra.

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3 Nesse panorama pelas criações do artista, o importante a destacar é que as cuias foram apropriadas por Evangelista a partir de sua segunda instalação, Mano-maná - das

utopias (1976), na qual as cuias são ladeadas por pequenos punhados de farinha de

mandioca, com este elemento aludindo, segundo o título, ao alimento bíblico maná, um flocado comestível dado por Deus ao povo israelita guiado por Moisés que atravessava faminto o deserto. Essa obra contou com duas versões. A primeira delas foi estruturada com vinte cuias formando um espaço de 5x4 metros, cuja montagem ocorreu no Salão Aberto de Arte, sob curadorias dos artistas Álvaro Páscoa e Zeca Nazaré, apresentada em Manaus em 1976 (PÁSCOA, 2017).

A segunda versão de Mano-maná – das utopias foi feita na Bienal Nacional de Arte (1976), em São Paulo, com algumas diferenças com relação à primeira. Além da ampliação da quantidade de cuias (aqui com 70) e das dimensões, outras distinções significativas foram promovidas. Evangelista eliminou o pano de juta que recobria o chão, unificando as cuias e os pequenos montes de farinha. Além disso, o artista acrescentou um grupo de cuias quebradas (EVANGELISTA, 2018a). Retenhamos o detalhe das cuias fraturadas, pois será a forma como esse elemento foi apresentado por Hahnemann Bacelar na ação artística efêmera rememorada por Evangelista.

A partir de Mano-maná – das utopias, as cuias continuaram a ser empregadas com centralidade, simbolicamente, a ponto de se tornarem um emblema de sua poética. Esses artefatos tiveram sua importância potencializada com a consagração do artista ocorrida sobretudo a partir com filme de artista Mater dolorosa II in memoriam (1978), considerado espinha dorsal de sua poética, além de ser a obra de Evangelista que, provavelmente, mais circulou em exibições artísticas. De fato, esse trabalho notabilizou-se como um dos marcos na criação em arte contemporânea na região amazônica, considerando a desmaterialização da obra, uma nova relação com a representação da realidade, o engajamento crítico social, a presença de conceitualismo e a diversificação de meios e suportes.

Criado no contexto da série Documentos da Amazônia, projeto de série de filmes em curta-metragem financiados pela TV Educativa do Amazonas. Mater dolorosa II in

memoriam se destacou também com relação aos outros três trabalhos realizados no

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amazonenses (16mm, 16’44’’, 1974), ambos dirigidos pelo sociólogo Renan Freitas

Pinto; e O palco verde (16mm, 1975), de Maurício Pollari. Nas palavras de Gustavo Soranz, que estudo sobre Documentos da Amazônia, Mater Dolorosa II é “seguramente o mais intrigante e interessante da série” (SORANZ, 2009, p. 115). Ao longo da sua trajetória de circulação, o filme de artista de Evangelista angariou uma prolífica circulação também internacionalmente e até hoje mantém um interesse de curadores1.

Após Mater dolorosa II, ainda temos as seguintes obras nas quais Evangelista se apropriou e utilizou conjuntos de cuias: Nika uiikana – homenagem a Chico Mendes (1989) e Zona de atração II (1983), ambas em co-autoria com Regina Vater; além de

Resgate I (instalação, 1992), Resgate II (performance, 1992) e Mongarayba - a origem sagrada (1990)2.

Mas, tratemos agora do episódio que teria contribuído com a gênese da apropriação das cuias na obra de Roberto Evangelista.

Gênese das cuias

1 Na primeira década de circulação de Mater Dolorosa II, o filme percorreu eventos de duas áreas específicas: o artístico, com mais ênfase, e o televisivo (já que a obra integrou a série da TV Educativa, como mencionado anteriormente). Primeiramente, a obra participou da mostra coletiva Exposição de Artes

do Amazonas (1979), ocorrida em São Paulo no Paço das Artes (Museu da Imagem e do Som, no bairro

Jardim Europa). Evangelista participou desse evento ladeado pelos trabalhos em pintura, desenho e gravura dos artistas Auxiliadora Zuazo, Rita Loureiro, Sérgio Cardoso e Van Pereira. Dois anos depois, em 1981, a obra participou do I Festival Nacional de Filmes para TV, realizado em Curitiba pela Secretaria de Cultura e do Esporte do Paraná. Foi premiada no V Salão Nacional de Artes Plásticas, da Fundação Nacional de Arte (FUNARTE, 1982). Por conta disso, integrou a programação do Seminário de Artes Visuais na

Amazônia, ocorrido em Manaus - um dos eventos paralelos ao VII Salão Nacional de Artes Plásticas,

organizado pela Funarte. Nessa ocasião, Mater Dolorosa II foi programado juntamente com dois vídeos premiados de Evangelista, Playtime – infinitude (1980) e Afrescos pré-Mondrianescos - Homenagem

caipira a Mondrian (1980). Também integrante do VII Salão Nacional de Artes Plásticas, promoveu-se em

Natal a Mostra de Vídeo Arte Nacional e Internacional com a participação do filme de Evangelista. No exterior, há indícios de que teria sido exibido em algumas ocasiões na cadeia de televisões europeia Eurovision (PINTO et al, 2007). Bem como, foi exibido em 1989 em Nova Iorque na instituição expositiva MoMA PS1 - atual braço experimental do Museu of Modern Art – MoMA, conhecido no Brasil por Clocktower Gallery, cujo nome de origem foi PS1 Contemporary Art Centre. Essa projeção se ligou à criação e montagem, no MoMA PS1, da instalação Niká uiícana – homenagem a Chico Mendes (1989), que Evangelista criou em parceria com a artista Regina Vater. Apreende-se que ambos, instituição/artista, aproveitaram o ensejo da viagem de Evangelista aos EUA para o agendamento da projeção do filme. A circulação no século XXI pode ser acessada em Dispersão/aglomeração na obra Mater Dolorosa – in

memoriam II (1978) de Roberto Evangelista: uma história da humanidade (STOCO; MANESCHY;

AGUM, 2020), publicado nos anais do 29° Encontro Nacional da ANPAP. 2 Para registros fotográficos, descrições e análises dessas obras, cf. PINTO, 2017.

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5 No ano de 2018 Evangelista concedeu uma entrevista aos autores desse artigo na qual o artista rememorou o impacto estético que lhe causou a apreciação de uma ação artística com uma cuia, empreendida pelo pintor amazonense Hahnemann Bacelar (EVENGELISTA, 2018a; 2018b). Tratou-se de uma ação que deixou rastros praticamente obscurecidos na memória da arte de Manaus, apesar desse artista, após a sua morte prematura, em 1971, ter inspirado consideráveis comentários, garantindo uma ampla memória com relação à sua atuação no meio artístico. Estes são, no geral, depoimentos pendulando entre o saudosismo e o reconhecimento de seu desempenho pictórico (SOUZA, 1977; MESQUITA, 2000; LIMA, 2004; MICHILES, 2005; VIANA, 2014).

Evangelista rememorou que em um dado evento artístico do Clube da Madrugada, entre as décadas 1960/1970, Bacelar, quebrou uma cuia que continha tinta vermelha, em um canto do ambiente expositivo e a deixou no local. Possivelmente estava protestando contra o contexto político opressivo, por sua condição periférica naquela sociedade e de seus pares. O despojamento e significação do gesto e a representatividade do próprio símbolo escolhido marcaram a memória de Evangelista, que ainda não havia iniciado sua trajetória artística nas artes visuais, o que viria ocorrer em 1976, como dissemos anteriormente. (EVANGELISTA, 2018b)

Uma certa proximidade entre a proposta de Hahnemann e de Evangelista foi, mas não explicitada ou detalhada, pelo relato memorialístico feito pelo cineasta amazonense Aurélio Michiles. Ainda que esse relato tenha a qualidade de trazer uma faceta pouco abordada, sobre Bacelar, pelos outros autores, também não nos parece justo considerar que esse artista pintor deva ser associado aos questionamentos estéticos trazidos pelas instalações e pela “não-arte” do pós-segunda guerra mundial, a despeito das técnicas mais tradicionais artísticas, tal como Michiles coloca. Isso porque Bacelar se notabilizou justamente por elas, especialmente a pintura e não por outros meios artísticos vanguardistas. A ação artística rememorada por Evangelista teria que ser entendida como um desvio em sua trajetória que circulou prioritariamente entre o desenho, a xilogravura e a pintura.

Como artista, ele [Hahnemann Bacelar] quis retratar o que via e vivia de um outro jeito, não a paisagem do “realismo social”, mas o sentimento convulsionado do seu tempo algo paralelo às metáforas de Jimi Hendrix e ao The Who, quando destruíam guitarras, baixos e baterias durante as suas performances. O cinema, ao sugerir “uma câmera na

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mão e uma ideia na cabeça”, o teatro, ao pregar o anti-realismo, o mesmo desejo dos artistas plásticos querendo extrapolar os limites da tela e propor uma outra monumentalidade relacionada à tridimensionalidade da criação. Algo como a ‘não-arte’, as ‘instalações’ como um gesto criador capaz de incorporar o cotidiano mais desprezível, volúvel, consumista e mistificador dos comerciais de propaganda. Com certeza, o artista Hanneman [sic] se encontrava num movimento que acabou sendo interrompido por sua própria pressa, relacionado a sua história de vida pessoal. Hanneman [sic], maldito, prefigura a força poética e provocadora do artista Roberto Evangelista. Aquele outro Hanneman [sic] celebrado está mais perto da artista Rita Loureiro. Mas, por mais paradoxal que tudo isso possa parecer, ele vai de encontro a uma mesma sintonia do movimento dos rios, num verdadeiro encontro das águas, como se fosse possível afirmar que Hanneman [sic] deixou de existir como pessoa para forjar a existência desses dois artistas. (MICHILES, 2005: 15-16)

A compreensão adequada, nos parece, sobre o afastamento de Hahnemann para com as técnicas mais tradicionais é de que ela estava sendo iniciada, quando comparamos os relatos. O que talvez responda a questão do obscurecimento da memória acerca da ação da cuia quebrada observada por Evangelista. Refletindo sobre a fase final de Bacelar, Álvaro Páscoa disse:

Aquela foi a época da demolição de valores, da negação da arte, das drogas, do movimento Hippie. Hahnemann, com muitos outros jovens não podia deixar de se envolver pela doutrina nova e fascinante. Usou cabelo “black power”, jeans, deixou de pintar – quadro a óleo já era – fez viagens. (PÁSCOA, 1981: 10)

Em sua trajetória de vida, Evangelista também se associou a movimentos contra hegemônicos e/ou contestatórios, deixando isso evidente em sua obra. Ao residir em Brasília, frequentou como ouvinte aulas de cinema na Universidade de Brasília e assim aproximou-se do repertório do Cinema Novo, tomando contato com filmes de Glauber Rocha, Ruy Guerra e outros diretores. Além ter começado a se informar sobre as mudanças nas artes visuais na nova capital brasileira. Retornando a Manaus integrou algumas montagens teatrais com diretores e textos de vanguarda no período em que estudou na Universidade Federal do Amazonas. Foi por conta de críticas à austeridade e posicionamentos conservadores de alguns docentes no curso de Filosofia que abandonou essa formação (EVANGELISTA, 2018a).

Em paralelo a sua inserção no meio artístico, Evangelista trilhou vínculos com a cultura dos povos originários e a cultura cabocla que impactaram profundamente sua vivência. Trabalhou e viajou para municípios do interior do Amazonas, Rondônia e Pará quando esteve no cargo de coordenador do Movimento de Educação de Base (MEB), além de ter se aproximado da prática espiritual que envolve a bebida ayahuasca,

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tornando-7 se um dos primeiros mestres da União do Vegetal (UDV) em Manaus. Ambas atividades iniciadas entre as décadas 1960/1970. Dessa maneira, consideramos que estava sensibilizado quanto ao potencial estético e simbólico para a arte contemporânea dos elementos cotidianos regionais que faziam alusão sensível aos povos originários; elementos estes fora da tradição artística mesmo em Manaus (EVANGELISTA, 2018a).

Na segunda metade da década de 1970, contornou as dificuldades de um cenário amazonense pouco ativado no campo das artes visuais. É certo que cultivou a proximidade de pessoas envolvidas no circuito artístico e às vanguardas do período, tais como o cineasta e dramaturgo Márcio Souza - que publicou na importante revista de circulação nacional Visão o memorável texto de cinco páginas Um país esquecido dentro

do país (1978) sobre a primeira obra do artista Mater dolorosa – in memoriam I; além do

curador Paulo Herkenhoff, da artista Regina Vater e do crítico inglês Guy Brett, para citar apenas quatro nomes dos que contribuíram para a sua projeção nacional e internacional. Por sua vez, devemos considerar que Bacelar contou com experiências que poderíamos supor mais restritas que as de Evangelista. Veio de uma família de poucas posses; era negro. O curta-metragem Um pintor amazonense (1965, Roberto Kahane e Felipe Lindoso) parte dessa premissa evidenciando a precariedade de sua condição de origem. Na adversidade, encontrou no professor e artista português radicado em Manaus Álvaro Páscoa, um mestre engajado com temas sociais na concepção de suas obras e nesse retrato seguiu na maior parte de sua trajetória. Além disso, compartilhou com os participantes do movimento multiartístico Clube da Madrugada (1954) e outros jovens da época3 as angústias daquele período, sobretudo as críticas sobre a destruição da Cidade

Flutuante pela ditadura militar, grande conjunto de casas e comércios flutuantes com milhares de moradores localizada na baia do rio Negro na frente de Manaus destruída entre 1964 e 1967 (STOCO, 2020).

Essa hipótese, a respeito da Cidade Flutuante, constrói-se ao analisarmos as cenas de costumes de grupos empobrecidos de Manaus que são centralizadas nas pinturas de Bacelar. Personagens e práticas diretamente vinculados ao universo da cultura indígena/cabocla, cuja maior expressão renegada pela Manaus continental era a Cidade

3 Aurélio Michiles menciona um grupo formado por ele, Carlito Michiles, Claudia Silva, Enéas Valle, França Moss, Hahnemann Bacelar, Ilton Oliveira, Milton Hatoum, Narciso Lobo, Plínio Jr. e Regina Farias (MICHILES, 2005).

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8 Flutuante, estão presentes nas pinturas Canoa com japá (1964), As lavadeiras (1965),

Mãe do corpo (1966), com uma cena localizada no interior de uma cabana de paredes e

cobertura de palha, Miséria (1968) e Cafuné (c. 1964). Essa última pintura de Bacelar, onde se vê ao fundo um amontoado de pequenas casas entre palafitas, de coberturas diversas, aparentemente localizadas sobre terra, talvez em alusão aos novos bairros da cidade após o término da Cidade Flutuante. Ou mesmo aludindo ao período de vazante, quando os flutuantes se assentavam sobre o leito dos rios seco4. Um fundo desolador

criado pelo artista que lembra muito o que um fotojornalista, não identificado, da revista carioca O mundo ilustrado captou com relação aos flutuantes em período de seca, na reportagem Sol & lama: o povo flutuante dos igarapés (1962).

É provável que a abordagem mais sensível para com a realidade dos desvalidos da época, entre os artistas visuais, esteja contida na obra de Hahnemann Bacelar; além do posicionamento crítico dos curta-metragistas amazonenses5 e de alguns escritores do Clube da Madrugada, a exemplo de Jorge Tufic. Fato que ajudaria a compreender parte de sua rápida ascensão e premiações locais, na segunda metade da década de 1960, entre os artistas estabelecidos e a preservação da sua memória mesmo após sua morte precoce em 1971, como dissemos anteriormente.

Dessa maneira, concluímos considerando que o contexto da ação artística de Bacelar com a cuia quebrada entintada de vermelho, relatada por Evangelista, ganha sentido ao contextualizarmos com a formação inicial do artista por meio da arte de preocupações sociais ensinada por Páscoa. Assim como pelo posicionamento crítico de parte do movimento cultural/crítico de Manaus com relação à destruição da Cidade Flutuante nos anos da ditadura militar, além da última fase de contestação de Bacelar com relação à arte mais tradicional que havia feito até então. Vislumbrar esse quadro explicativo também nos também nos ajudaria a inferir o impacto sentido por Evangelista

4 Além desses, Da Silva da Selva (Sebastião Corrêa da Silva) e J. Maciel (Jurandir de Oliveira Maciel)

também possuem desenhos em que exploraram o tema da Cidade Flutuante, no caso do primeiro, assim como o seu sucedâneo, dos bairros decorrentes do desmanche, no caso do segundo artista.

5 Igual a mim... igual a ti... (1966) de Roberto Kahane, Carniça (1966), de Normandy Litaiff – ambos premiados no I Festival de Cinema Amador do Amazonas (1966). Esses filmes constroem uma empatia com os mais desvalidos, em suas diferentes abordagens. Além disso, há um posicionamento como o diretor e escritor Luiz Maximino de Miranda Corrêa, diretor de Sangue e suor a saga de Manaus (1978), com sua visão dividida entre as novidades e a realidade dos habitantes empobrecidos dos flutuantes.

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9 a partir da ação de Bacelar e, assim nos permite aquilatar a ação de Bacelar no processo de maturação até a escolha pelas cuias por Evangelista, esse elemento que veio a ser trabalhado como emblema de sua poética.

Referências

PINTO, Renan Freitas; ARAÚJO, James; GOMES, Verônica (Org.). Ritos: Roberto Evangelista. MANAUS: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2017.

EVANGELISTA, Roberto. Entrevista concedida a Sávio Stoco e Ricardo Agum. Manaus, 11 ago. 2018 [2018a].

__________________. Entrevista concedida a Sávio Stoco. Manaus, 29 dez. 2018 [2018b].

LIMA, Lenda V. R. Onde andará Hahnemann Bacelar Fragmentos de um expressionista. Monografia (graduação). Departamento de Comunicação Social. UFAM, Manaus, 2004.

MESQUITA, Otoni. Cores de um meteoro. Somanlu: Manaus: UFAM, 2000. MICHILES, Aurélio. E tu me amas. Somanlu: Manaus: UFAM, 2005.

PÁSCOA, Álvaro. Hahnemann – Catálogo de imagens. Fundação Cultural do Amazonas. Edições Governamentais do Estado do Amazonas. Manaus, 21 de janeiro de 1981, ano 313.

SORANZ, Gustavo. Território imaginado: imagens da Amazônia no Cinema. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia. UFAM, Manaus, 2009.

SOUZA, Márcio. A expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977.

SOUZA, Márcio. Um país esquecido dentro do país [1978]. In: Araújo, James; Gomes, Verônica; Pinto, Renan Freitas. (Org.). Ritos: Roberto Evangelista. MANAUS: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2017, v. 1, p. 43.

STOCO, Sávio. Imagens e símbolos de Manaus. Manaus: Manauscult, 2020.

VIANA, Décio. Um estudo iconográfico da obra pictórica de Hahnemann Bacelar

(1962-1969): contribuições para um inventário. Dissertação (Mestrado). Programa de

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