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Globalizacao, Dependencia e Neoliberalis - Carlos Eduardo Martins

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Academic year: 2021

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GLOBALIZAÇÃO,

DEPENDÊNCIA E

NEOLIBERALISMO NA

AMÉRICA LATINA

(2)

Emir Sader

A teoria marxista da dependência conseguiu articular a inserção das

so-ciedades periféricas no mercado internacional com os processos de

acu-mulação de capital internos de cada país. Tornou-se uma teoria essencial

para a compreensão das nossas sociedades, na medida em que superou a

dicotomia das polarizações nação, império e classes sociais, para

rearticulá--las em uma totalidade única, contraditória como qualquer totalidade em

nossas sociedades.

Desde que Ruy Mauro Marini expôs os fundamentos dessa teoria em sua

obra-prima Dialética da dependência, muitas transformações ocorreram no

capitalismo global e em nossas sociedades, colocando sempre o desafio da

atualização da teoria marxista da dependência em condições ainda mais

complexas do que aquelas de sua formulação original, no ano de virada do

ciclo longo do capitalismo internacional, em 1973.

Como se verá neste livro, Carlos Eduardo Martins é um dos

pesquisado-res com as melhopesquisado-res condições para cumprir essa tarefa. Uma abordagem

metodológica, seguida da análise do marco internacional contemporâneo,

propicia as bases para a discussão da atualidade de conceitos indispensáveis

para a apreensão das condições históricas atuais, como os de dependência

e superexploração do trabalho.

Este volume preenche, assim, um espaço teórico fundamental para os que

querem pensar o capitalismo sob a perspectiva do anticapitalismo, a

de-pendência na ótica da emancipação e a realidade na perspectiva de sua

transformação revolucionária.

O teste real de uma teoria é sua adequação como instrumento de

compresão da realidade contemporânea. A teoria marxista da dependência sai

en-riquecida e renovada desta obra de Carlos Eduardo Martins.

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Copyright © Carlos Eduardo Martins, 2011 Coordenação editorial Ivana Jinkings Editora-adjunta Bibiana Leme Assistência editorial

Caio Ribeiro e Livia Campos

Revisão

Thaisa Burani

Diagramação

Antonio Kehl e Bianca Mimiza

Capa

Antonio Kehl

sobre Untitled (Green Stripe), de Olga Rozanova, 1917

Produção

Ana Lotufo Valverde

É vedada, nos termos da lei, a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora.

Este livro atende às normas do acordo ortográfico em vigor desde janeiro de 2009. 1a edição: novembro de 2011

BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda.

Rua Pereira Leite, 373 05442-000 São Paulo SP Tel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M342g

Martins, Carlos Eduardo, 1965-

Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina / Carlos Eduardo Martins. - São Paulo : Boitempo, 2011.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7559-191-8 e-ISBN 978-85-7559-270-0

1. Globalização. 2. Neoliberalismo - América Latina. 3. América Latina - Condições econômicas. I. Título.

11-6616. CDD: 330.98

CDU: 338.1(8)

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Prefácio – Theotonio dos Santos ...7

Introdução ... 11

As ciências sociais e os desafios da globalização ... 15

2. Moderno sistema mundial e capitalismo: origens, ciclos e secularidade ... 39

3. A globalização e a crise do moderno sistema mundial ... 113

4. Os impasses da hegemonia dos Estados Unidos: perspectivas para o século XXI ... 169

5. Dependência e desenvolvimento no moderno sistema mundial ... 213

6. A superexploração do trabalho e o neoliberalismo: a economia política da dependência ... 275

7. Dependência, neoliberalismo e novos padrões de desenvolvimento na América Latina ... 313

Conclusão ... 347

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Para aprimorar a experiência da leitura digital, optamos por extrair desta versão eletrônica as páginas em branco que intercalavam os capítulos, índices etc. na versão impressa do livro. Por esse motivo, é possível que o leitor perceba saltos

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Não reconheço meus irmãos de sangue; não tive pai; e minha mãe morreu. Por isso não condiciono a nenhum modelo fixo o meu desejo de

prolongamento

nem o meu amor (algumas vezes, casto). Nasci em Minas.

Minha cidadezinha há muito deveria ter

desaparecido, mas continua a estar

pela força do hábito.

Quando saí de lá, não senti dor. Mas me ficou no peito uma sensação de vazio (assim como uma herma arrancada ao pilar). Fui católico. E me crismei. Mas, um dia, abandonei o catolicismo pelo simples prazer de deixá-lo para trás. Nego minha pátria (embora ela me reclame e me dê números nos institutos).

A vida, como a imagino, não existe: amplos céus, rasgar de horizontes e florestas inteiras incendiadas sem motivo. Poderia escolher para meu irmão o moço louro que mora no edifício

em frente e que não me conhece.

Mas não quero um irmão! Reclamo para mim o direito de fraternidade com todos os homens!

Para amigos, escolherei aqueles (sem distinção de sexo ou de cor) que, sendo homens, são também promessas de uma outra coisa

que ainda não sei, mas que me faz passar noites inteiras acordado na janela,

fixando no espaço um ponto que não vejo e que nenhuma geometria poderá determinar. (Ruy Mauro Marini, 1955)

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Theotonio dos Santos

Este livro enfrenta com vigor teórico exemplar uma temática de grande atuali-dade e toma pelos chifres três conceitos-chave para o pensamento social contem-porâneo: globalização, dependência e neoliberalismo. O mais significativo, porém, é que inscreve essa vasta tarefa intelectual no quadro da análise do moderno siste-ma mundial, cuja crise discute com rigor.

O autor parte dos estudos de Immanuel Wallerstein sobre capitalismo históri-co para mostrar que as tentativas de históri-compreender o capitalismo históri-como um modo de produção puro, conforme Marx realizou com enorme êxito, não esgotam sua compreensão, na medida em que sua constituição histórica determina em grande parte elementos-chave do sistema econômico, social e político que fazem parte de sua própria essência.

Um desses elementos históricos é o moderno sistema mundial, que se consti-tuiu no século XVI com o início das navegações oceânicas. Apoiadas financeira-mente pelos genoveses, mas organizadas por Portugal e pela Espanha, essas na-vegações incorporaram as Américas ao circuito comercial mundial e abriram o comércio com o Oriente, dominado até então pelos Árabes.

Foi, porém, com o pacto de equilíbrio europeu, implantado pela Holanda no século XVII, e finalmente com a hegemonia britânica no mundo que esse siste-ma se estabeleceu siste-mais firmemente, apoiado também na revolução industrial, que possibilitou a integração entre o modo de produção capitalista e a base material que entregou ao novo sistema mundial os meios de conquista de todo o planeta.

Cada um desses períodos se caracterizou por um movimento cíclico que Fer-nand Braudel estudou com enorme rigor e que Wallerstein se deu a tarefa de

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pes-quisar nos quatro volumes de seu The Modern World-System [Moderno sistema-mundo]*, que se converteu num sistema mundial único. Falta ainda avançar na análise do surgimento de um novo ciclo mundial, que se forma no final da Segun-da Guerra Mundial sob a hegemonia do sistema financeiro, monetário e geopo-lítico internacional estabelecido pelos Estados Unidos e seus aliados, vencedores da guerra.

Carlos Eduardo Martins faz aqui um balanço bastante sério das propostas de análises dos ciclos longos de Wallerstein e de Giovanni Arrighi, que se caracteri-zam pelo estudo do estabelecimento de um poder hegemônico e das zonas perifé-ricas e semiperiféperifé-ricas que constituem esse sistema. O importante de seu enfoque é a demonstração da necessidade dessa visão secular para dar sentido às análises das conjunturas atuais e seus possíveis desdobramentos.

É assim que o conceito de globalização ganha um sentido muito mais con-creto quando é inserido no amplo contexto da formação desse moderno sistema mundial. O autor incorpora, contudo, um elemento explicativo fundamental para a compreensão do processo de globalização. Trata-se do papel da revolução cien-tífico-técnica na caracterização das mudanças qualitativas que conduziram aos fenômenos que se inserem nesse conceito tão amplo.

O livro analisa os diferentes enfoques da globalização, entre os quais se distinguem:

a) a interpretação globalista, que considera a globalização como uma realidade totalmente nova que constitui um novo objeto de análise para as ciências so-ciais, com novos atores (as empresas e o mercado global) que subjugariam os Estados Nacionais; um novo paradigma tecnológico que serviria de base para um novo sistema mundial desterritorializado;

b) as teorias da hegemonia compartilhada, que veem na revolução microele-trônica uma mudança no grau de internacionalização que não destrói o papel fundamental dos Estados Nacionais;

c) o enfoque neodesenvolvimentista, que vê a globalização como um fenôme-no essencialmente financeiro, baseado na integração mundial dos mercados financeiros que se impõem sobre o sistema produtivo. O grave, de acordo com essa teoria, é que o capital financeiro teria de liberar o capital produtivo para poder retomar o desenvolvimento econômico e os Estados Nacionais, únicos capazes de concentrar os gigantescos recursos que permitem conduzir o de-senvolvimento na etapa da revolução científico-técnica;

* Immanuel Wallerstein, The Modern World-System (Berkeley, University of California Press, 2011). [Ed. esp: el moderno sitema-mundial, Buenos Aires, Siglo XXI, 2010.] (N. E.)

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d) a interpretação dos teóricos do sistema-mundo que identificam um único sistema global. Entre eles se destaca a posição dos que acreditam existir uma continuidade secular nesse sistema único e a daqueles que acentuam as descon-tinuidades de sua evolução, inscrita em ciclos de longa duração.

Por fim, o autor analisa a teoria da dependência, que, apesar de suas ligações his-tóricas com a teoria do sistema mundial, se diferencia desta pela caracterização da globalização como um período de crise do modo de produção capitalista que incor-pora contraditoriamente a revolução científico-técnica e promove ao mesmo tempo o máximo desenvolvimento da lei do valor no plano mundial e a sua superação.

Somente a descrição detalhada dessas correntes já é uma contribuição impor-tante para a sistematização de uma problemática cuja compreensão se encontra em fase de grande confusão, mas o autor nos brinda ainda com uma análise minu-ciosa do caráter da crise do sistema mundial e da hegemonia norte-americana, tão contestada, mas tão evidente quando estudada por um ângulo histórico.

O balanço da questão da hegemonia e das perspectivas do século XXI permite ao autor abordar um capítulo extremamente novo na história das ideias sociais ao estudar as relações entre a teoria da dependência e a teoria do sistema mundial. Eu tratei deste tema no livro A teoria da dependência: balanço e perspectivas1, e no meu artigo para o livro eletrônico em homenagem a Immanuel Wallerstein2, mas o autor adiciona elementos novos ao enfoque dessa continuidade teórica e analítica que po-dem ser encontrados no livro da Unesco Los retos de la globalización – ensayos em homenaje a Theotonio dos Santos3, editados em espanhol na Venezuela e no Peru.

Também considero extremamente importante o capítulo dedicado ao tema da dependência e do desenvolvimento no moderno sistema mundial. O enfoque do autor contextualiza historicamente o debate sobre o desenvolvimento e mostra o papel crítico da teoria da dependência ao analisar seus limites históricos.

A ofensiva do pensamento neoliberal desde a década de 1980 derrubou o desenvolvimentismo apoiando-se em parte nas suas debilidades, mas sobretudo buscou eliminar as conquistas sociais e civilizacionais que ele tinha alcançado. O autor mostra como o fracasso histórico do neoliberalismo abre caminho em nossos dias para uma retomada da temática do desenvolvimento e dos debates sobre a dependência, aprofundados pela teoria do sistema mundial.

1 São Paulo, Civilização Brasileira, 2000.

2 “World Economic System: On the Genesis of a Concept”, em Giovanni Arrighi e Walter L.

Gold-frank (orgs.), Festschrift for Immanuel Wallerstein – Part I, Journal of World-Systems Research, Califór-nia, v. xi, n. 2, Summer/Fall, 2000. p. 456-77. Disponível em: <http://jwsr.ucr.edu/archive/vol6/ number2/pdf/jwsr-v6n2.pdf>.

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Martins dedica um capítulo especial ao tema da superexploração do trabalho, desenvolvido por nós, mas em particular por Ruy Mauro Marini na sua Dialéti-ca da dependência4. A relação entre a expropriação internacional dos excedentes gerados nos países da América Latina e a busca de superexploração dos trabalha-dores por parte das classes dominantes locais para compensar essas perdas está no coração do fenômeno da dependência. É extremamente auspicioso ver um grupo de jovens pesquisadores retomar essas questões com grande rigor teórico.

Creio que o leitor compreenderá rapidamente que este é um livro essencial e necessário, com grandes possibilidades de se converter num clássico das ciências sociais latino-americanas, sobretudo neste momento histórico, em que a região necessita de um rigoroso aparelho teórico para fundamentar suas políticas pro-gressistas em marcha com crescente apoio popular.

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Vivemos numa época de grandes incertezas e uma enorme aceleração do tem-po histórico. Mais do que nunca parecem vivas as palavras de Marx de que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”.

A integração da economia mundial se intensifica e, com ela, o choque entre forças sociais, políticas e ideológicas, provocando resultados inesperados. Captar o movimento da crescente articulação entre o global e as particularidades regionais, nacionais e locais é um dos maiores desafios das ciências sociais contemporâneas.

O fín de siècle definitivamente se foi e, com ele, o fim da história. Emerge com a força da vida, mesmo ao olhar menos atento, um mundo paradoxal: decadente e intenso, apático e vital, ordenado e caótico, privado e público, violento e pacífico, de ódios e esperanças, de indiferenças e memória, de anonimatos e identidades. Mapear suas forças dinâmicas e as encruzilhadas que se apresentam permite não apenas a compreensão de uma realidade de aparente non sense, mas iluminar a intervenção social e política para tornar possível imprimir na realidade o selo de nossos desejos.

As certezas de outras gerações de um destino previsível se evaporam e em seu lugar surge a liberdade, significando ameaça e possibilidade. Torna-se cada vez mais necessária a aproximação entre ciência e ética, razão e sentimento, para tra-çarmos os caminhos que levam à paz, à diversidade, à liberdade, à igualdade e à solidariedade.

Este livro parte dessa preocupação e busca situar as trajetórias e possibilida-des da América Latina num espaço mundial em movimento. Essa é uma grande aventura teórica, metodológica e empírica, e os seus riscos não são pequenos. Ao

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tomarmos o movimento como parte de nosso objeto de análise, abandonamos as certezas de uma realidade bem arrumada, que o tempo, entretanto, em sua longa duração, não toma em consideração. Nossa análise se faz prospectiva e retros-pectiva e, para tanto, usa como guia a história. Estruturas, tendências seculares e ciclos permeiam o nosso trabalho, que não tem a pretensão de oferecer certezas matemáticas, mas interpretações heurísticas da realidade.

Globalização, dependência e neoliberalismo são os três eixos analíticos que nos conduzem à interpretação da posição da América Latina no mundo em que vivemos e das alternativas com que se defronta.

No capítulo 1, que intitulamos “Introdução metodológica à globalização”, nos propomos situar as principais leituras do fenômeno da globalização. Estabelece-mos cinco ou seis visões que aglutinam diversos autores, apesar de suas diferenças, e a partir daí nos dedicamos a construir, num diálogo com elas, nosso aparato de investigação desse processo. Para isso, demos especial ênfase às teorias do sistema mundial e da dependência.

No capítulo 2 buscamos a chave do desenvolvimento capitalista no conceito de capitalismo histórico. Este surge da formação do moderno sistema mundial, que constitui a sua superestrutura política, e da sua articulação com o modo de produ-ção capitalista, sua base material. Propomo-nos identificar suas tendências secula-res e ciclos para situarmos o espaço teórico e histórico da etapa atual do capitalis-mo e do sistema mundial em que vivecapitalis-mos. Para isso, articulacapitalis-mos tradições que se aproximam lentamente, como são a braudeliana, impulsionada desde o Fernand Braudel Center, e a marxista, que se funda na teoria do valor de Marx, em sua visão sobre os ciclos, mas também nas teorias do imperialismo, da dependência, da revolução científico-técnica e dos ciclos longos. Mas não nos detivemos apenas nessas tradições. Dialogamos com as tradições schumpeteriana, neo-schumpete-riana, regulacionista e institucionalista sobre inovação tecnológica, ciclos, regimes institucionais e sistemas de inovação. Esse rico diálogo nos exigiu o cuidado, que esperamos ter sido adequado, para construir e reconstruir conceitos e evitar as tentações mais imediatas, porém estéreis, do ecletismo.

No capítulo 3 situamos no desenvolvimento da globalização a crise do moder-no sistema mundial que vivenciamos. Defendemos que a globalização é uma força revolucionária e, como tal, destrói e constrói. Entretanto, destruição e construção são processos relativamente autônomos e estabelecem uma dialética de desdobra-mentos imprevistos, onde um dos polos pode prevalecer e condicionar o outro. No momento em que estamos, a globalização não encontrou ainda sua estrutura institucional e societária criadora. Os períodos de crise sistêmica são épocas de bifurcações históricas, e nossa tese é a de que caminhamos nos próximos dez a quarenta anos para uma bifurcação totalmente nova, em relação as que se

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estabe-leceram no moderno sistema mundial, onde a destruição e a construção se baterão pela formação de um novo mundo: aquela, destruindo para conservar os privilé-gios existentes, saí na frente e busca a segurança do império; a última, impulsio-nada pela força da vida, se organiza ou brota de forma espontânea e inesperada, procura os caminhos de um mundo pós-hegemônico, centrado na humanidade e na efetivação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, proclamados pela Revolução Francesa, em todos os cantos da Terra.

No capítulo 4 analisamos os impasses da hegemonia dos Estados Unidos, um dos temas mais centrais e polêmicos do pensamento social contemporâneo. Situa-mos as duas grandes visões sobre o tema: as que postulam que os Estados Unidos se encontram em crise hegemônica e as que, inversamente, enfatizam que se en-contram fortalecidos em seus passos rumo ao império. Marcamos nossa posição na primeira corrente, realizamos uma análise histórica e empírica do desenvolvimento dessa hegemonia e polemizamos com os principais autores da segunda visão.

No capítulo 5 situamos as relações entre dependência e desenvolvimento no moderno sistema mundial. Discutimos as principais teses formuladas pelo pensa-mento latino-americano e mundial para avaliar o papel do capital estrangeiro nesse desenvolvimento, a persistência do subdesenvolvimento e da pobreza e os cami-nhos da elevação da renda e do bem estar dos latino-americanos. Buscamos articu-lar essa discussão com a análise empírica do desenvolvimento latino-americano.

No capítulo 6 analisamos o conceito de superexploração e buscamos seu lugar na teoria do valor marxista. Indicamos ainda as formas que assume nos princi-pais padrões de desenvolvimento estabelecidos na região, dando especial ênfase ao padrão neoliberal.

Concluímos no capítulo 7, com um balanço dos resultados alcançados pelo neoliberalismo na região e destacamos os efeitos deletérios que possui sobre a sua base econômica e social. Fazemos ainda uma analise prospectiva das possibilida-des da América Latina no século XXI e da influência sobre seu possibilida-desenvolvimento da projeção da China na economia mundial.

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AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS

AS CIÊNCIAS SOCIAIS E OS

DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃO

DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃO

1- A névoa global e as visões da globalização

Giovanni Arrighi e Beverly Silver afirmam em Chaos and Governance in The Modern World System1 que vivemos o período de uma névoa global. Essa névoa deriva das incertezas trazidas pelos processos de globalização que proliferam na economia mundial desde os anos 1970. Profundas modificações se desenvolvem no campo das forças produtivas, afetando a vida social no seu conjunto. O tempo histórico se acelera e causa impacto nas estruturas societárias vigentes e na geo-história dos povos. A economia, a política, as formas de pensamento e a vida coti-diana são submetidas a grandes mudanças.

Mas o que vem a ser exatamente a globalização? Que impactos e modificações ela produz sobre as estruturas econômicas, políticas, sociais e ideológicas anterio-res? Que novas direções despontam para o desenvolvimento da humanidade?

Tempos de transição são tempos de confusão, e as respostas a essas questões variam amplamente. Podemos identificar, sem a pretensão de sermos exaustivos, cinco grandes interpretações da globalização. Cada interpretação, que apresen-taremos em suas linhas mais gerais, compreende matizes e, por vezes, diferenças significativas entre seus principais autores.

1 Giovanni Arrighi e Beverly Silver, Chaos and Governance in the Modern World System

(Minnea-polis, Minnesotta Press, 1999). Publicado no Brasil com o título de Caos e governabilidade no

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A primeira interpretação é a que denominamos de globalista. Ela parte da suposição de que a globalização estabeleceu um novo objeto para as ciências so-ciais: a sociedade global. O global se apresenta como uma novidade radical e uma nova era que subsume o nacional e o local. Na base dessa realidade está o novo paradigma tecnológico microeletrônico, que, ao fundir as tecnologias eletrônicas e de comunicação, permite a integração financeira e produtiva em escala plane-tária. O resultado desse processo é a constituição de novos atores dominantes na economia mundial: as empresas e as forças do mercado global que subjugam os Estados nacionais mediante suas dimensões tecnológicas planetárias ou cósmicas e a velocidade do capital circulante. Cria-se um regime de acumulação desterrito-rializado que afirma o predomínio da riqueza financeira sobre a produtiva, con-vertendo a era global em era do capital financeiro. As corporações multinacionais se transformam em empresas globais/rede ou tecnobergs e atuam em escala glo-bal, em conjunto com os fundos de investimento e de pensão e os grandes bancos, condicionando as políticas estatais a seus objetivos de rentabilidade. Os direitos trabalhistas e de proteção social se tornam obsoletos.

Se há nos globalistas uma razoável coincidência quanto à descrição dos ele-mentos mais gerais da era global, eles divergem amplamente sobre seus efeitos. Podemos subdividi-los em dois grupos: aqueles que veem nesse processo a ten-dência à sincronia, harmonia e integração, uma vez assimilada a nova cultura da competitividade; e os que, inversamente, qualificam, em maior ou menor grau, esse processo de polarizante, diacrônico e, no limite, suscetível a revoluções socia-listas mundiais. No primeiro caso, podemos incluir autores como Kenich Omae (1996) Robert Reich (1993) e Francis Fukuyama (1992) e, no segundo, autores como Octávio Ianni (1992, 1995, 1999a e 1999b), René Dreifuss (1996 e 1999), Toni Negri (2001), Michael Hardt (2001) e Jürgen Habermas (2001).

A segunda interpretação da globalização é formulada pelas teorias da hegemo-nia compartilhada. Aqui podemos inserir autores como Paul Hirst (1998), Graha-me Thompson (1998), Anthony Giddens (1999), Joseph Nye (2000 e 2002), Ro-bert Keohane (2002) e Zbignew Brzezinki (2005). Essa visão questiona a tese dos globalistas de que as novas tecnologias dos anos 1970 construíram uma sociedade global. Ela vê nas tecnologias microeletrônicas uma mudança de grau no processo de internacionalização e não uma ruptura qualitativa. Destaca a cumulatividade desse processo e seus importantes antecedentes, como o telégrafo, introduzido na segunda metade do século XIX, a partir dos cabos submarinos intercontinentais, que possibilitou o compartilhamento de informações em tempo próximo ao real, viabilizando tecnicamente um sistema comercial capaz de determinar diariamente os preços mundiais. Para esses autores, a globalização aumentou o grau de inter-nacionalização da economia mundial. As empresas capitalistas, apesar de atuarem

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mundialmente, permanecem internacionais, pois são organizações competitivas que buscam concentrar em suas bases nacionais de origem os ativos estratégicos que permitem sua projeção sobre a economia mundial. Os Estados nacionais con-tinuam a ser os atores fundamentais da realidade em que vivemos. Oferecem às empresas externalidades que constituem serviços indispensáveis à estruturação e potencialização da acumulação de capital. Entre estes: a segurança, centralizada no poder público mediante os aparatos de coerção e de regulação jurídica; a absorção parcial dos custos de produção da infraestrutura de transportes e comunicações, da P&D ou da qualificação da força de trabalho; e a referência de identidade cul-tural que permite ao capital reduzir a mobilidade da força de trabalho e explorar em seu benefício os laços nacionais de solidariedade.

Mas a elevação do grau de internacionalização aumenta os fluxos de bens e ca-pitais através das fronteiras dos Estados nacionais e pode levar a um descolamento da articulação entre Estado e capital, provocando uma crise da governabilidade in-ternacional com efeitos disruptivos para o conjunto das formações sociais. Ao Es-tado caberá reformular-se para articular-se de uma nova forma às dimensões locais e internacionais. Essa reformulação deverá levar a novos marcos de regulação fun-dados em regimes internacionais. Estes estarão baseados em tratados e agências de regulação internacionais, em blocos de integração regional e na cooperação intergo-vernamental. A reformulação do Estado deverá implicar ainda no aprofundamento da sua democratização e permeabilidade às demandas locais, em razão da maior capacidade de organização da sociedade civil proporcionada pelas tecnologias de in-formação. Na organização dos regimes internacionais terão papel destacado os Esta-dos mais desenvolviEsta-dos. Na criação Esta-dos novos marcos regulatórios, estes não abrirão mão de suas vantagens competitivas para a localização dos investimentos, mantendo suas hierarquias frente ao conjunto dos Estados periféricos e semiperiféricos.

A terceira interpretação que destacamos é a estabelecida pelos neodesenvolvi-mentistas. Nela podemos incluir autores socialistas como François Chesnais (1996, 1998a e 1998b) e Samir Amin (1997), ou partidários do capitalismo organizado como Maria da Conceição Tavares (1985 e 1997), José Luis Fiori (1998, 1999, 2001, 2004 e 2008), Celso Furtado (1999 e 2000a) e Susan Strange (1997). Eles entendem a globa-lização como um fenômeno principalmente financeiro, fundado na integração mun-dial desses mercados. Embora destaquem a base tecnológica da integração financeira, indicam que nem de longe se pode mencionar a existência de um sistema produtivo mundial. Mas da globalização financeira não extraem consequências como o fim da soberania e da autonomia do Estado nacional. Pelo contrário, afirmam que na origem da globalização financeira está a ofensiva dos Estados Unidos para manter e expan-dir sua condição hegemônica. Ao serem ameaçados pela competição tecnológica de outros polos mundiais, os Estados Unidos recorrem à força de sua moeda e à força

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das armas para captar a liquidez da economia mundial e financiar seu próprio desen-volvimento mediante a criação de um regime de acumulação mundial financeirizado. Para isso, impõem uma nova regulação: o neoliberalismo, que permite liberalizar a conta capital e os mercados dos Estados nacionais. O resultado é a projeção dos Es-tados Unidos de uma condição hegemônica para outra, quase imperial, sobre uma economia internacional que funciona mediante baixas taxas de crescimento.

Diante desse cenário, a preocupação dos neodesenvolvimentistas é a de res-tabelecer um regime de acumulação que priorize o investimento produtivo. As respostas para isso irão variar amplamente. Um dilema paira sobre tal enfoque: quanto maior a ênfase no poder dos Estados Unidos para determinar a financeiri-zação, mais se restringem as alternativas a ela. Susan Strange, por exemplo, men-ciona o caráter decisivo da participação dos Estados Unidos na construção de um novo regime de acumulação. François Chesnais aposta na regionalização ligada à formação de importantes blocos continentais. Samir Amin afirma a necessidade da transição ao socialismo por meio de processos cumulativos de desconexão e reconexão à economia mundial. Maria da Conceição Tavares, José Luis Fiori e Celso Furtado se perguntam sobre os caminhos de recuperação da soberania em países semiperiféricos, como o Brasil, e mencionam a necessidade de se construir um capitalismo organizado capaz de gerar uma centralização financeira interna que impulsione, por meio do setor bancário público e privado, o desenvolvimento da burguesia industrial local. Celso Furtado põe ênfase ainda na organização de um padrão de consumo que priorize o desenvolvimento tecnológico nacional e o mercado interno dos países semicontinentais de estrutura social heterogênea.

A quarta interpretação da globalização é a desenvolvida pelos teóricos do sis-tema mundial. Podemos distinguir dois grandes grupos analíticos: os que partem do conceito de moderno sistema mundial, como Immanuel Wallerstein (1979a, 1979b, 1984, 1998a, 1999a, 1999b, 2000a e 2000b, 2001a, 2003, 2004 e 2006), Gio-vanni Arrighi (1996, 1997a e 1997b, 1999, 2000a e 2008) e Beverly Silver (1995 e 1999) para analisar a globalização. E os que questionam esse conceito, como Andre Gunder Frank (1990, 1996, 1998) e Barry Gills (1996), em favor da tese da existência de um único sistema mundial, tomando-o como a referência teórica para interpretá-la. Ambas as visões procuram enfatizar as continuidades da globa-lização, compreendendo-a como parte do movimento de expansão sistêmica. Mas profundas diferenças organizam seus enfoques.

O primeiro grupo se apoia na obra de Fernand Braudel e em seu conceito de tem-po histórico dividido entre a longa duração, a conjuntura e o acontecimento, para de-finir instrumentos analíticos de grande fecundidade, como são os de ciclos sistêmicos e de tendências seculares. Os ciclos sistêmicos estão ligados à ascensão e à queda de Estados hegemônicos que organizam uma economia mundial desigual e polarizada

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em centros, semiperiferias e periferias. Nos períodos de ascensão e consolidação, o moderno sistema mundial se expande, mas durante a decadência prevalece a crise que exige a reestruturação. Enquanto as tendências seculares do moderno sistema mundial são capazes de absorver suas contradições, novos ciclos sistêmicos podem ser desencadeados, redirecionando os caminhos do desenvolvimento.

A globalização é vista como a etapa final de uma longa continuidade. O pe-ríodo de máxima realização do moderno sistema mundial e, simultaneamente, de esgotamento de sua capacidade em conter suas tendências antissistêmicas. Ela resultará em sua crise derradeira e na transição da humanidade para outra forma sistêmica a ser estabelecida pelas lutas sociais. Essa transição traz uma única certe-za: o fim do capitalismo histórico que dirige o moderno sistema mundial.

Andre Gunder Frank e Barry Gills postulam a existência de um único siste-ma mundial forsiste-mado desde a revolução neolítica há 5 mil anos. Ele possui usiste-ma origem afro-eurasiana, constituindo-se na Ásia Central, mediante a confluência entre o Egito e a Mesopotâmia. Articula-se através da rota da seda e alcança a China, a Índia e a Europa, através de rotas terrestres e marítimas. Posteriormente, estende-se às Américas, ao continente africano e à Oceania. Está dirigido desde os primórdios pela acumulação de capital e, até o século XVIII, tem o seu centro na Ásia. Somente a partir do século XIX, a Europa e o Ocidente empurram o Oriente a uma condição periférica, assumindo a posição de centro. Esse sistema passa por processos cíclicos de larguíssimo prazo, envolvendo períodos de aproximadamen-te quatrocentos a quinhentos anos. Para os autores, as mudanças introduzidas pela globalização incidem em um sistema mundial já existente e devem ser entendidas dentro da sua dinâmica cíclica, significando sua recentragem na Ásia.

A quinta interpretação da globalização é a estabelecida pela teoria da dependên-cia, em sua versão marxista, organizada por autores como Theotonio dos Santos (1978, 1983, 1987, 1990, 1992, 1995, 2001 e 2004), Ruy Mauro Marini (1973, 1977a, 1977b, 1979a, 1979b, 1992a e 1996), Orlando Caputo (1973, 2000, 2001a e 2001b) e Ana Esther Ceceña (1995, 1999, 2001 e 2002). Ela dá grande ênfase à compreen-são da globalização como o período de crise do modo de produção capitalista. A globalização significa um processo de revolução das forças produtivas e o período de máximo desenvolvimento da lei do valor no capitalismo. Essa interpretação se apoia nas reflexões de Marx em O capital e nos Grundrisse* e na obra de Radovan

Richta para identificar na globalização um processo de revolução científico-técnica em escala planetária. A revolução científico-técnica subordina a técnica e a tecno-logia à ciência, viabilizando a construção de processos produtivos mundialmente * Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – Esboços da crítica da economia

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integrados. Ela substitui a base produtiva criada pela revolução industrial, gerada pelas relações de produção capitalistas, e a ultrapassa. E por isso não pode ser ple-namente absorvida e integrada a tais formas econômicas. Só o é por um período de transição que, sob profundas contradições, resulta na mais ampla realização da lei do valor e, dialéticamente, em sua crise, impulsionada pela tendência decrescente da taxa de lucro e pelo esgotamento das forças capazes de limitá-la.

A globalização é vista, nesse enfoque, como um processo extremamente com-plexo. Ela não cria de per si uma nova sociedade global, nem é apenas uma lon-ga continuidade, ou se restringe a dimensões específicas da vida social como as finanças. Ela é uma profunda revolução nas forças produtivas e, como tal, afeta a produção da vida humana em seu conjunto. Como força revolucionária, não pode ser absorvida integralmente pela acumulação de capital, mas cria um perío-do de transição, no qual se perfilam projetos distintos e antagônicos para dirigi--la. A globalização impulsiona inicialmente uma economia mundial imperialista que incorpora sob diferentes formas países dependentes e/ou semiperiféricos e socialistas – embora estabeleça limites crescentes para sua expansão. Esse enfoque destaca ainda a importância dos ciclos de Kondratiev para análise e prospectiva dos movimentos de expansão e crise da gestão capitalista da globalização.

Que balanço podemos fazer dessas distintas visões sobre a globalização e suas tendências? Não pretendemos mapear ou seguir exaustivamente os seus enfoques2, mas sobretudo construir um referencial teórico-metodológico capaz de interpretar suas transformações e dimensioná-las. O conjunto das interpretações se apresen-ta inicialmente como uma gigantesca Babel: sociedade global, sistemas mundiais, sistema mundial, imperialismo estadunidense, hegemonia compartilhada, crise de hegemonia, fim da soberania nacional, centralidade asiática, regionalismo, des-conexão, capitalismo organizado, socialismo, financeirização, produção mundial, ciclos, larga continuidade, ruptura, mudança de grau... Expressões que designam diferenças importantes na avaliação dos conteúdos da globalização, de seus efeitos ou das respostas a ela.

2 Alguns autores não podem ser classificados claramente num desses cinco enfoques, pertencendo

a mais de um deles. Fernando Henrique Cardoso (1998), por exemplo, apresenta uma visão sobre a globalização que pode ser situada entre o globalismo e a hegemonia compartilhada. Ele assinala que a hegemonia do capital financeiro condenou à impotência os Estados nacionais, mesmo os dos países centrais. Por isso considera superada a questão da dependência, uma vez que estão submetidos os diversos Estados nacionais ao capital globalizado. Mas aposta na construção de regimes internacio-nais liderados pelos Estados mais poderosos para disciplinar os movimentos internaciointernacio-nais de capital. Já autores como Robert Kurz (1992) podem ser incluídos numa sexta visão da globalização, que de-nominamos catastrofista. Ele considera que, desde a década de 1990, esgotaram-se os instrumentos do capitalismo para conter a tendência decrescente da taxa de lucro, embora seus trabalhos apresen-tem poucas referências empíricas sobre isso.

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Mas a ampla diversidade de interpretações parece confirmar a sugestão de Arri-ghi e Silver de que estamos vivendo um período de crise e transição. Eles nos cha-mam a atenção para a imensa diversidade de enfoques sobre um mesmo fenômeno como um elemento indicativo da própria realidade histórica em que vivemos. Veem nisso um sinal de transição, onde a inflexão para o caos predomina num sistema ainda hegemônico, antes que as forças sociais emergentes consigam suficiente acu-mulação para superar a inflexão negativa por outra positiva. A crise dos paradigmas científicos é uma expressão ideológica de uma crise que alcança, como veremos, dimensões muito mais extensas. Num contexto desse tipo, a realidade histórica atin-ge altíssima velocidade, e as acomodações entre as forças sociais estão prenhes de contradições e instabilidades. A realidade imediata torna-se fonte de ilusões e de enfoques parciais incapazes de captar o movimento social em seu conjunto.

Para a compreensão desse cenário, é necessário tomar como um de seus ins-trumentos metodológicos a proposta braudeliana de articulação do tempo longo, com os tempos conjuntural e breve, ou seja, a articulação dos tempos das estru-turas, dos ciclos e dos acontecimentos. Se olharmos dessa perspectiva, no plano estrutural, o quadro que se apresenta é o de uma profunda crise do capitalismo, que se globaliza por meio do neoliberalismo. Na crise das estruturas, é de grande importância a dimensão cíclica, pois ela nos permite traçar sua dinâmica e suas tendências. As dimensões estrutural e cíclica condicionam as forças do tempo imediato, estabelecendo limites e possibilidades para a sua ação.

Entretanto, realizar a proposta de articulação braudeliana é um processo al-tamente complexo. Requer que ultrapassemos os próprios limites da obra de Braudel. Para contribuirmos a essa construção, consideraremos as sugestões de Immanuel Wallerstein para a reconstrução do pensamento científico, formuladas principalmente em Impensar (1991), Abrir as ciências sociais (1996) e em seu ar-tigo “Time and Duration” (1998). Ele aponta que nosso desafio está em superar o legado científico do liberalismo. Para isso, devemos partir das principais forças teóricas que apresentam histórias e trajetórias de confrontação a ele.

2- Premissas teórico-metodológicas para uma

análise crítica da globalização

Wallerstein afirma que a hegemonia britânica construiu as bases ideológicas mais profundas para a expansão do capitalismo histórico. Elas foram incorporadas em seus elementos fundamentais pelos pensadores estadunidenses quando da re-conversão para a hegemonia dos Estados Unidos. Os britânicos estabeleceram, en-tre 1850 e 1945, o pensamento universalista-particularista, que se baseou em duas premissas: a primeira, segundo a qual o conhecimento se move do particular ao

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abstrato; e a segunda, que defende que o conhecimento deve ser compartimentali-zado em disciplinas particulares. Essas premissas tiveram implicações radicais para a organização e produção do conhecimento, entre as quais destacamos cinco:

a) A separação do conhecimento entre as disciplinas nomotéticas (sociologia, economia e ciência política), dedicadas à formulação de leis gerais, e as idiográficas (história e antropologia), dedicadas às particularidades e ao indeterminado. As dis-ciplinas nomotéticas ignoraram o tempo como duração e propuseram-se a uma teo-rização que partiu do presente e das tendências mais gerais e abstratas da conjuntura como permanentes e estáticas. E as disciplinas idiográficas, dedicadas ao particular, circunscreveram-se ao acontecimento, rechaçando a teoria em favor da descrição.

b) A segmentação do conhecimento entre as disciplinas nomotéticas. Isso im-plicou a tentativa de estabelecer as leis puras da economia, da política e do social, entendidos como os domínios separados e combinados do mercado, Estado e so-ciedade civil. Essa organização do conhecimento desautorizou qualquer interven-ção nas três áreas do saber que ultrapassasse a sua separainterven-ção e combinainterven-ção.

c) A compreensão do capitalismo como sistema baseado na livre-competição, universalista e largamente independente da força do Estado.

d) A eleição das sociedades nacionais como a instância organizacional dos se-res humanos, inscrita nos marcos jurídico-políticos delimitados pelo Estado.

e) A visão da história como um fenômeno progressivo e dirigido ao equilíbrio das leis puras estabelecidas pelas ciências nomotéticas, o que permite subordiná-la à sua expressão mais abstrata, o modelo teórico.

Não é difícil perceber o caráter apologético desse projeto científico positivista. Ele projetou o desenvolvimento capitalista como natural, suprimindo sua tempo-ralidade e seus fundamentos políticos e sociais. O capitalismo surge como uma força expansiva, oriunda da anarquia e da autorregulação dos mercados, que se impõe à interferência indevida dos poderes políticos nacionais, mediante os quais os homens organizam sua vida social. Esse projeto epistêmico foi conservado com algumas alterações pelo pensamento estadunidense. Este, diante dos processos de descolonização e da luta pelo desenvolvimento nas periferias, criou os estudos de área que reuniram num mesmo objeto as ciências nomotéticas e idiográficas. A confrontação a essa concepção de ciência veio, segundo Wallerstein, de três enfo-ques: das ciências do Estado, da escola dos Annales e do marxismo.

As ciências do Estado tiveram seu principal polo de organização na Alemanha e se basearam principalmente na obra de Friederich List, cujo trabalho fundamental é Sistema nacional de economia política (1841). Surgiram na segunda metade do século XIX e criticaram as pretensões dos liberais em criar uma economia inter-nacional independente do Estado e da política, fundada no cosmopolitismo dos mercados e na paz. A economia internacional não eliminava as guerras, os

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inte-resses nacionais e a polarização mundial. Essas ciências mostraram a importância do Estado como instância de organização da vida econômica, social e cultural da humanidade. Criticaram fortemente a economia liberal por sua compreensão limi-tada da origem da riqueza, centrada nas trocas e nos desdobramentos que estas, por meio da separação, proporcionariam – como a divisão do trabalho e as liberdades individuais. Em contraste, enfatizaram o trabalho coletivo, a união, o planejamento e a acumulação cultural, mobilizados pelo Estado, como os fundamentos de uma teoria das forças produtivas capaz de situar a riqueza sob bases realistas. Embora produzisse conceitos e percepções de grande fecundidade para a construção de uma economia política internacional, esse enfoque teve o seu grande limite no fato de buscar no Estado o principal instrumento e fonte de contraposição ao liberalismo.

As ciências do Estado partilharam com o liberalismo o suposto de que a na-cionalidade é o marco organizacional por excelência dos seres humanos, embora se diferenciassem no grau de autonomia que pretendessem conferir à organização política da nacionalidade e à sua intervenção sobre a economia e os mercados. Por isso foram incapazes de realizar uma crítica de conjunto do sistema liberal, não percebendo o Estado como um dos instrumentos da “ordem cosmopolita” criada pelo capitalismo histórico. Em consequência, sua confrontação perdeu densidade e elas se aproximaram das utopias liberais de um mundo ao mesmo tempo pacífi-co e baseado nos mercados, ainda que vissem no Estado um instrumento essencial para realizar esse percurso, pois este seria o ator capaz de superar as assimetrias que os mercados espontaneamente provocam. Na segunda década do século XX, as ciências do Estado desapareceram na Alemanha, cedendo lugar à organização anglo-saxônica do conhecimento.

A escola dos Annales surgiu em torno da Revue de Synthèse Historique, fundada por Henri Berr em 1900. Posteriormente, Lucien Febvre e Marc Bloch criaram, em 1929, os Annales d’Histoire Économique et Social. Mas o grande auge dos Annales foi entre 1945 e 1968, durante a Guerra Fria, por oferecerem uma cosmovisão que resistia tanto à hegemonia intelectual anglo-saxã quanto ao marxismo oficial da III Internacional. Essa cosmovisão ganhou projeção com a pretensão de a França ser uma terceira força entre os Estados Unidos e a União Soviética e com o desenvolvi-mento de uma cultura internacional do não alinhadesenvolvi-mento, que teve na Conferência de Baundung, em 1955, um dos seus momentos mais importantes. Nesse período se destacou como protagônica a obra de Fernand Braudel. Em História e ciências sociais (1958), ele desenvolveu o conceito de longa duração, que será chave na crítica aos fundamentos do pensamento liberal. Esse conceito combate a separação entre as ciências nomotéticas e idiográficas e a segmentação disciplinar das primeiras entre a economia, a ciência política e a sociologia. A duração se diferencia do tempo crono-lógico e físico, de inspiração newtoniana, que se funda, simultaneamente, na

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diacro-nia entre unidades atômicas, padronizadas e infinitamente pequenas, e na estática, baseada em dimensões infinitamente longas. A duração é o tempo das estruturas. Significa mudança, processo e, portanto, irreversibilidade. Representa a dialética entre os tempos múltiplos e contraditórios da vida social, que não podem existir isoladamente. Nessa dialética se apresentam em conjunto o tempo propriamente dito das estruturas, das conjunturas e do acontecimento. O tempo das estruturas sig-nifica o lento desgaste da arquitetura que fundamenta a organização suficientemente fixa entre as realidades e as massas sociais. As estruturas representam os apoios, os obstáculos e os limites diante dos quais os homens não podem se emancipar. São as prisões de longa duração (Braudel, 1982, p. 14). O tempo das conjunturas representa o movimento das oscilações regulares e periódicas que atua sobre as estruturas e as modifica, renovando-as, sem afetar a expansão de seus componentes profundos. O tempo dos acontecimentos é o tempo breve, da crônica, do dia a dia, imediato e anárquico que incide sobre as estruturas e suas oscilações cíclicas.

O conceito braudeliano de duração designa, portanto, um processo que para ser percebido exige um alto nível de abstração: um movimento de reflexão que parte do geral para o particular – e não o inverso, como o liberalismo concebeu –, e que permite dar ao tempo imediato e ao acontecimento seus limites e possibilidades. Esse movimento de reflexão exige não apenas a integração dos tempos múltiplos da vida social, mas também a integração das diversas dimensões da realidade, con-frontando a segmentação do saber em tempos ou disciplinas. Isso traz diversas im-plicações que questionam os fundamentos do pensamento liberal.

A crítica à separação entre o econômico, o político, o social e o histórico se desdobra na reconceituação do capitalismo como uma forma econômica que não sobrevive sem uma vinculação privilegiada com o Estado. Longe de significarem realidades que se articulam externamente a partir de lógicas distintas, o econô-mico e o político constituem dimensões indissociadas de um mesmo processo: a gênese e o desenvolvimento do capitalismo. Por outro lado, a ênfase no global permite identificar no capitalismo um sistema que surge e se desenvolve do mun-dial para o nacional. O conceito de economia-mundo estabelecido por Braudel, desde suas obras sobre o Mediterrâneo, será chave para as tentativas posteriores de teorizar o capitalismo como um sistema mundial.

Embora os Annales enfatizassem a necessidade de uma compreensão das estru-turas, faltou a essa escola uma maior potência teórica em suas análises sobre elas. Braudel, por exemplo, em O tempo no mundo (1984), hesita em aceitar o desgaste do capitalismo3. Wallerstein situa a decadência e a crise dos Annales a partir de

3 “Com efeito, ou estou muito enganado ou então o capitalismo não poderá ruir por si, por uma

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1968. Ele a explica pelo fato de que foram muito mais uma escola de análise da conjuntura, renovando os métodos em história4, do que das estruturas, embora

tenham estabelecido conceitos de tal fecundidade nesse campo que se tornaram pontos de partida indispensáveis para análises posteriores.

Wallerstein vê no marxismo a ideologia por excelência das forças antissistêmicas da economia-mundo capitalista, tendente ao universalismo e a fundamentar a tran-sição mundial do capitalismo para o socialismo. Ele chama a atenção para o fato de o marxismo difundir-se com o crescimento das forças antissistêmicas, mas aponta o risco de uma grande confusão intelectual que essa tendência universalista provoca. Ao tornar-se a linguagem central das tendências antissistêmicas que as classes do-minadas impõem secularmente às burguesias, surgem respostas sistêmicas que vi-sam desfigurá-lo, despojando-o de seus componentes revolucionários para produzir marxismos de direita e de centro. Essa dialética entre revolução e contenção no mar-xismo vem se afirmando desde meados do século XIX e ameaça o desenvolvimento de sua estrutura teórico-metodológica de resistência e emancipação popular.

Para nós interessa aqui distinguir o marxismo enquanto teoria antissistêmica e revolucionária. Ele se afirma a partir das obras de Marx e Engels que traçam um enfoque metodológico para estabelecer a teoria da produção da existência huma-na, integrando as relações do homem com a natureza e as relações dos homens entre si. Como tal, constitui um marco teórico que parte do global para o particu-lar e do abstrato para o concreto, num processo dialético permanente. O capita-lismo é analisado como um conjunto de forças econômicas, tecnológicas, sociais, políticas e ideológicas que produz a existência humana. Essas forças partem do domínio sobre o Estado e o mercado mundial para criarem, posteriormente, seu próprio modo de produção. Este converte o capitalismo em uma força planetária, estendendo o mercado mundial para todos os continentes do globo. O marxismo antissistêmico rompe, portanto, com os nacionalismos metodológicos do libera-lismo5 e se fundamenta numa perspectiva global e internacionalista. Ele terá, entre

extrema violência e uma solução de substituição confiável.” Fernand Braudel, Civilização material,

economia e capitalismo: o tempo do mundo (São Paulo, Martins Fontes, 1996), p. 581.

4 De fundamental importância para a renovação do ofício do historiador foi o manejo das

estatísti-cas econômiestatísti-cas de longa duração, impulsionado pelos Annales, o que permitiu superar os limites do trabalho documental e em arquivos para a descrição e interpretação da realidade.

5 A absorção do marxismo pelo liberalismo se manifestou, por exemplo, nas posições de direita e

centristas da II Internacional, que apoiaram de forma aberta (direita) ou mais sutil (centro) o colonia-lismo, as guerras imperialistas e a oposição entre reforma e revolução; e nas teses de socialismo em um só país ou região, impulsionadas a partir da III Internacional pelo stalinismo e seus desdobramen-tos. Essas visões partiam do nacionalismo metodológico para definir o desenvolvimento capitalista em bases nacionais. Tratava-se, então, de estendê-lo mediante o colonialismo aos países atrasados (Henri van Kol), ou de romper com o internacionalismo proletário e defender as burguesias nacionais

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as suas principais referências de interpretação da economia mundial capitalista, as análises de Karl Marx e Frederich Engels; as teorias do imperialismo de Bukharin, Lenin, Rosa Luxemburgo, Hilferding e Grossmann; as teorias do ciclo de Nicolai Kondratiev; a teoria da revolução científico-técnica de Radovan Richta; e as teo-rias da dependência de Theotonio dos Santos e Ruy Mauro Marini.

Nos Grundrisse, Marx estabelece seu método de análise das formações sociais e da sociedade capitalista que servirá de fundamento para o desenvolvimento poste-rior do método e da teoria marxista. Segundo Marx, a análise das formações sociais deve elevar-se do abstrato ao concreto para reproduzi-lo como concreto espiritual. Ela parte da percepção do concreto como intuição e representação, isto é, de certo nível de abstração deste, para buscar suas categorias mais gerais e simples. Poste-riormente, a análise deve integrar e subordinar as categorias mais abstratas e simples às dimensões mais concretas e complexas da formação social. Integração e subordi-nação do abstrato ao concreto e do simples ao complexo são os elementos-chave do método marxista. Esse enfoque põe ênfase nos processos, o que permite postular e perceber tanto o desenvolvimento de uma totalidade como a sua ruptura.

Ao enfocar o capitalismo, Marx indica como necessários, para a compreensão do desenvolvimento dessa formação histórico-social, os seguintes níveis de análise: a) as determinações abstratas que correspondem em maior ou em menor medida a todas as sociedades (população, produção, distribuição, troca e consumo); b) as categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa (capital, tra-balho assalariado, propriedade da terra) e que são a base das três grandes classes sociais da sociedade burguesa (capitalistas, proletariado e proprietários de terra); c) a síntese da sociedade burguesa sob a forma de Estado, que introduz, entre outros elementos, os impostos, a dívida pública, o crédito público e a questão colonial; d) as relações internacionais de produção, que introduzem a questão da divisão inter-nacional do trabalho; e e) o mercado mundial e as crises (Marx, 1987, p. 29-30).

Ao discorrer sobre a articulação desses níveis de análise, ele enfatiza que as ca-tegorias econômicas de uma sociedade não têm ordem de importância de acordo com sua sucessão histórica. Antes, ao contrário, sua importância deriva da articu-lação que entre elas se constitui no âmbito de uma sociedade concreta. No desen-volvimento do capitalismo, sua tendência à mundialização redefine e integra suas leis mais gerais e abstratas da acumulação. Se, por um lado, o capital, enquanto

para impulsionar o capitalismo local e, consequentemente, as políticas de reformas (Bernstein) ou de revolução (Plekhanov). Tratava-se também de postular teoricamente a etapa de um capitalismo endo-genista, submetido ao planejamento e contido em seu impulso competitivo-mundializante, para per-mitir sua coexistência com um sistema mundial socialista paralelo (Stalin) ou com uma ordem mun-dial pacífica (Kautsky), ainda que seu parto possa vir a ser violento.

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categoria mais complexa que a mercadoria, subordina e integra suas leis às da acu-mulação de capital, estabelecendo custos de produção abaixo do valor do produto ao transformar a força de trabalho em mercadoria, por outro, o desenvolvimento do Estado, das relações internacionais de produção e do mercado mundial incide sobre a acumulação de capital, modificando seu funcionamento, ainda que não construa uma nova totalidade histórico-social, como no primeiro caso.

As tentativas de desenvolver essas implicações antevistas por Marx ganharam forma, num primeiro momento, com as teorias do imperialismo. Elas mostraram como o desenvolvimento do Estado, das relações internacionais de produção e do mercado mundial se tornavam necessários para a superação das crises nos paí-ses centrais e para o estabelecimento de uma nova etapa da acumulação de capital comandada pelo capital financeiro, entendido como interpenetração e fusão do capital bancário com o capital industrial. Esse capital drenava a poupança dos pe-quenos e médios empresários e dos assalariados e a dirigia para o desenvolvimento da grande indústria, impulsionando assim a formação dos monopólios. O aumen-to das escalas produtivas e da produção não era acompanhado pela expansão dos mercados nacionais dos grandes centros, em razão da maior lentidão da expansão da massa salarial. O resultado era a queda da taxa de lucro e a exportação de capital em busca de investimentos mais rentáveis e da expansão de uma oferta internacio-nal de matérias-primas, minerais e produtos alimentícios capaz de baratear os capi-tais constante e variável nos grandes centros. Esse processo de internacionalização representou a anexação e a repartição do mundo entre as grandes potências. Mas as análises das teorias do imperialismo focavam, sobretudo, os países centrais e se prendiam demais à forma política dominante em que se apresentava a competição intercapitalista durante os períodos de crise da hegemonia britânica: o colonialis-mo. Como tal, tinham dificuldades em pensar o funcionamento das relações inter-nacionais de produção e do mercado mundial como instâncias que condicionavam o Estado e eram capazes de se libertar das formas políticas neocoloniais.

As teorias da dependência vão destacar a divisão do trabalho e as relações interna-cionais de produção como os eixos de um sistema de dominação mundial capitalista que une os interesses das classes dominantes dos países centrais e dos países depen-dentes. Elas ultrapassam as teorias do imperialismo ao distinguir e teorizar a situação de compromisso que articula essas classes e o seu dinamismo. Nesse sentido, se apro-ximam da construção de uma teoria do sistema mundial e constituem um importante antecedente a esta visão. A postulação do dinamismo nas relações de produção inter-nacionais permite às teorias da dependência perceber as mudanças de centros cíclicos na economia mundial e criticar o enfoque que atribuía ao imperialismo um papel predominantemente coercitivo no plano econômico e político, negando aos países dependentes o desenvolvimento e a autodeterminação. Embora não dispensasse os

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instrumentos coercitivos e provocasse grandes distorções na economia dependente, o imperialismo não impedia que os países dependentes se desenvolvessem a partir de determinantes internos que se articulavam à economia mundial.

As teorias da dependência ainda renovam fortemente o debate sobre as leis de acumulação capitalista ao introduzir o conceito de superexploração do tra-balho. A superexploração resulta da incidência das leis da concorrência, impul-sionadas pelas relações de produção internacionais e pelo mercado mundial, sobre a taxa de lucro dos países dependentes e é a condição para o estabele-cimento da situação de compromisso que permite o funcionamento da eco-nomia mundial capitalista. Entretanto, ainda que constituam um importante antecedente às teorias do sistema mundial, essas teorias vão enfocar sobretudo a dependência, não tomando como objeto central a economia-mundo, o que limitará sua potencialidade de interpretação.

As teorias da crise constituem outra importante contribuição do pensamento marxista para desafiar a visão liberal dominante. Elas se dividem em dois tipos: as teorias cíclicas e as teorias do desmoronamento. As teorias cíclicas encontram em Nicolai Kondratiev sua melhor expressão: ele se propõe a analisar a economia ca-pitalista através de períodos de 48 a 60 anos, divididos em fases A e B, de expan-são e recesexpan-são, com amplas consequências sociais, políticas e ideológicas. Esses ciclos são compatíveis com outros de menor dimensão – como os ciclos médios de 7 a 11 anos, descobertos por Marx, Juglar e Rodberus, e os ciclos curtos de 3 a 3,5 anos, descobertos por Kitchin –, condicionados ao seu desenvolvimento e que assumem a sua tonalidade, expansiva ou recessiva, como dominante, em seus movimentos específicos.

As teorias do desmoronamento partem das considerações desenvolvidas por Marx nos Grundrisse e em O capital que situam a tendência decrescente da taxa de lucro como a lei mais importante da economia política. Esse enfoque de Marx ganha impulso com a obra de Grossmann e com a teoria da revolução científico--técnica de Richta. Grossmann desenvolve a análise das contratendências à queda da taxa de lucro, indicadas por Marx, dando ênfase ao papel do comércio exterior, do imperialismo e da inovação tecnológica. Richta, por outro lado, desenvolve a postulação, presente de forma mais ou menos explícita na obra de Marx, de que as relações de produção capitalistas encontram sua base adequada de forças produti-vas na revolução industrial, não podendo incorporar plenamente a etapa posterior de sua configuração, fundada no trabalho científico, na redução da jornada de trabalho e no tempo livre.

Marxismo, escola dos Annales e ciências do Estado são as principais fontes de crítica do paradigma científico liberal, cuja superação é fundamental para dissi-par a névoa global. Mas a dissipação da névoa global requer não apenas a crítica

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e a superação dos fundamentos metodológicos do liberalismo, como também a construção de uma teoria desse período de crise e transição, que vimos designan-do de globalização, capaz de orientar as práticas antissistêmicas. Como esses dis-tintos enfoques críticos podem ser combinados para o estabelecimento de uma teoria antissistêmica da globalização?

3- Para uma teoria antissistêmica da globalização

Immanuel Wallerstein propõe integrar a contribuição daquelas visões críticas ao liberalismo a partir de seu conceito de moderno sistema mundial. Ele busca com esse conceito a construção de um marco estrutural para a análise do que chama de capitalismo histórico. Wallerstein procura superar os limites do con-ceito de modo de produção para reconstituir a trajetória histórica do capitalismo como forma econômica dominante. Essa percepção encontra apoio nas próprias obras de Marx e Engels, que nunca quiseram fazer do modo de produção um conceito onipresente, particularmente, nas fases de criação de um novo modo de produção, quando as forças políticas e sociais jogam um papel preponderante em relação à base material6.

A constituição do capitalismo como força dominante, vocacionada à mun-dialização, precederia, portanto, o surgimento de seu modo de produção espe-cífico. Para sua conversão em força dominante seria necessária a emergência do moderno sistema mundial. Ele se caracteriza pela conformação de um sistema interestatal articulado por uma economia-mundo que o atravessa mediante flu-xos de capitais e mercadorias. Cria-se uma assimetria espacial entre a política e a economia que configura uma assimetria de poder entre essas duas instâncias. A política se torna geograficamente delimitada pela circunscrição do exercício da soberania a territórios e populações determinados. A economia, inversa-mente, pela sua capacidade de mover-se mundialinversa-mente, mediante a competição entre diversos atores privados por lucros, pode condicionar as políticas estatais, submetendo-as a seus objetivos. A criação dessa superestrutura – ou andar su-perior, na terminologia de Braudel – garante a articulação privilegiada do capi-tal com o Estado, que o utiliza para garantir sua reprodução e expansão.

6 Marx e Engels afirmam que o surgimento do modo de produção capitalista supõe um amplo

pe-ríodo de acumulação primitiva. Nele, a ação dos capitais comercial e financeiro, em particular sua articulação com o Estado, é fundamental para gerar as condições necessárias para transformar a força de trabalho e a terra em mercadorias e concentrar recursos para o investimento industrial. Por outro lado, para esses autores, o modo de produção comunista supõe uma primeira fase da sociedade comu-nista, anterior a ele, fundada no trabalho assalariado e na ditadura do proletariado, como forma de transição. Ver, principalmente, de Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (São Paulo, Boitempo, 1998) e, de Karl Marx, Crítica ao programa de Gotha (Lisboa/ Moscou, Progreso, 1977).

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O moderno sistema mundial se estabelece a partir do século XVI e vem, desde então, se estendendo – até incorporar, no século XIX, todo o planeta – e desenvolvendo suas principais características: a economia-mundo, o Estado nacional, o Estado hegemônico e os ciclos sistêmicos. O Estado hegemônico tem um papel estratégico na articulação do sistema. Cabe a ele impulsionar um consenso mundial sobre certas bases jurídicas e políticas, capaz de estabelecer o padrão monetário, as regras de contrato, os limites do mercado internacional e as fronteiras entre a paz e a guerra. Sua atuação, baseada em parte na coerção e em parte no consenso – ambas fundadas em sua maior competitividade co-mercial, produtiva e financeira – permite controlar a anarquia entre os Estados, fazendo prevalecer a integração sistêmica. Entretanto, essa sua capacidade de conter a anarquia, oriunda da disputa entre os Estados, é limitada. Essa é uma exigência sistêmica, uma vez que a preservação, sem limites, da hegemonia por um Estado poderia dar lugar à construção de impérios-mundo, fazendo desa-parecer a autonomia dos Estados-nações. Os ciclos sistêmicos compreendem períodos de expansão (fase A) e crise (fase B) de Estados hegemônicos. A crise normalmente é sucedida por um período de caos sistêmico, marcado por guer-ras mundiais de cerca de trinta anos. Enquanto o sistema mostrar vitalidade e afirmar suas tendências seculares, o caos é superado por um novo Estado hege-mônico que inicia outra etapa cíclica.

Voltaremos mais adiante ao conceito de moderno sistema mundial. Aqui nos interessa sua contribuição, que reputamos crucial, para uma teoria antissistêmica da globalização. O moderno sistema mundial deve ser entendido como o marco político superestrutural que permite o desenvolvimento do modo de produção capitalista7. É uma referência histórica mais ampla para situar o desenvolvimento

do capitalismo. O conceito de moderno sistema mundial não deve dissolver o de modo de produção capitalista, mas se articular a ele. Deve ser pensado concre-tamente como parte indispensável de seu desenvolvimento. O moderno sistema mundial o antecede, mas, por outro lado, tem suas possibilidades de reprodução condicionadas pelas contradições materiais do modo de produção. Entretanto, esse enfoque que prioriza a relação entre estas instâncias analíticas, implica o re-pensar daquele estabelecido por Wallerstein.

Para Wallerstein, o moderno sistema mundial deve ser pensado como o marco de referência para o desenvolvimento do capitalismo histórico. Segundo o autor,

7 “A superestrutura política da economia mundial capitalista é um sistema interestatal dentro, e por

meio do qual as estruturas políticas chamadas ‘Estados soberanos’ são legitimadas e constrangidas.” Immanuel Wallerstein, The Politics of the World-Economy: the States, the Movements, and the

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o conceito de capitalismo histórico é indutivo e enfatiza as indagações empíricas ao invés das teóricas:

O capitalismo é, em primeiro lugar e primordialmente, um sistema histórico. Para en-tender suas origens, formação e perspectivas atuais, precisamos examinar sua configu-ração real. Podemos tentar captá-la, usá-la para avaliar e classificar a realidade. Por isso tentarei descrever o que o capitalismo tem sido na prática, como tem funcionado como sistema, por que se desenvolveu das maneiras que se desenvolveu e qual é seu rumo atual [...] O capitalismo histórico é o locus concreto – integrado e delimitado no tempo e no espaço – de atividades produtivas cujo objetivo econômico tem sido a acumulação incessante de capital. Essa acumulação é a “lei” que tem governado a atividade econô-mica fundamental, ou prevalecido nela. (Wallerstein, 2001a, p. 1-18.)

O resultado desse enfoque é a dissolução do conceito de modo de produção capitalista na realidade empírica do capitalismo histórico, impedindo que este seja contemplado como uma configuração concreta que se expande à medida que desenvolve as leis mais abstratas do modo de produção capitalista. Se é correto afirmar que o capitalismo histórico se antecipa a esse, nos parece equivocado eli-minar a dimensão mais abstrata do modo de produção, como condicionante de seu desenvolvimento e expansão empírica.

Esse descuido por parte de Wallerstein o leva a definir o modo de produção ca-pitalista por critérios exclusivamente empíricos, entendendo-o como a produção que maximiza o lucro e é dirigida ao mercado, baseada nas mais diversas formas de trabalho que viabilizem essa iniciativa:

Se o capitalismo é um modo de produção, produção para o lucro num mercado, então nós devemos, eu penso, verificar se essa produção ocorre ou não. Isso resolve o proble-ma do uso generalizado do trabalho assalariado como um definidor das características do capitalismo. Um individuo é não menos um capitalista explorador de trabalho assa-lariado (incluindo salários em produtos) porque o Estado o assiste para que pague os salários e nega aos trabalhadores o direito de mudar de emprego. Escravidão e a chama-da “segunchama-da servidão” não devem ser olhachama-das como anomalias no sistema capitalista. (Wallerstein, 1979a, p. 16-7.)

Wallerstein segue, em verdade, os caminhos de Braudel8. A busca de uma

sín-tese entre as várias formas históricas de acumulação capitalista leva à ausência em

8 Fernand Braudel, em Civilização material, economia e capitalismo: o jogo das trocas (São Paulo,

Martins Fontes, 1996), afirma a presença do capitalismo nas fazendas de cana-de-açúcar do Brasil colonial, vistas por ele como criações capitalistas por excelência, ainda que proporcionassem baixas taxas de lucro e se baseassem no trabalho escravo.

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