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Palavras-chave Cinema; televisão; naturalismo; representação; pós-modernismo.

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A Questão do Naturalismo na Interface Pós-Moderna de Cinema e TV1

Prof. Dr. Renato Luiz Pucci Jr.2

Resumo

A polêmica em torno das relações entre cinema e TV é enfocada segundo a problemática do naturalismo, isto é, da presença de representação verossímil. Refutando concepções que definem características técnicas que imporiam ou não o naturalismo às realizações daqueles meios, ressalta-se a existência de múltiplas possibilidades de composição de imagem e som, de acordo com propostas que façam uso da linguagem clássica ou de linhas modernas de criação. A poética pós-moderna é detectada em alguns programas televisuais brasileiros transpostos para o cinema, como Caramuru – A Invenção do Brasil, que fazem uso de formas tradicionais de narrativas, envolvendo o “parecer real”, e simultaneamente subvertem esse naturalismo através de recursos de distanciamento, típicos do modernismo.

Palavras-chave

Cinema; televisão; naturalismo; representação; pós-modernismo.

1. Introdução

Circulam há décadas, tanto na crítica acadêmica como na jornalística, graves questionamentos sobre a relação entre cinema e TV. Após o cinema ter conquistado o status de arte elevada, devido principalmente à valorização internacional do filme de autor, as baterias se voltaram contra a televisão, a que se atribuiu uma inferioridade intransponível. A “máquina de fazer loucos”, no dizer pitoresco de Stanislaw Ponte Preta, teria em sua definição técnica os vícios de nascença que a diferenciariam de meios suscetíveis de engrandecer a cultura.

No percurso de invectivas, tornou-se memorável o instante em que Jean Baudrillard escreveu que “a luz fria da televisão” seria inofensiva para a imaginação pela razão de que ela não veicula mais nenhum imaginário, pela simples razão de que não é mais

uma imagem. O autor tenta sustentar o aparente contra-senso ao esclarecer que por imagem

entende um mito, algo que se relaciona com o duplo, o fantasma, o espelho, o sonho etc., elementos que faltariam à imagem televisual, que não sugeriria nada, que apenas magnetizaria, nada mais sendo do que um terminal miniaturizado na cabeça do espectador. Baudrillard tinha diante dos olhos a avassaladora ocupação da TV entre os meios de comunicação, que deslocara o cinema para uma posição secundária tanto no que diz respeito ao contato com o grande público quanto em termos de relevância na mídia. Eram condições propícias ao notório tom apocalíptico do autor e para a observação, de passagem, quanto à

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Trabalho enviado para o NP 07- Comunicação Audiovisual, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.

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Professor do Mestrado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná. Mestre e doutor pela Universidade de São Paulo – ECA, autor de O Equilíbrio das Estrelas – Filosofia e Imagens no Cinema de Walter Hugo

Khouri (Annablume, 2001), de artigos publicados nas revistas Cinemais e Significação e de capítulos de livros da área de

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mudança que estaria ocorrendo com o cinema: este ainda seria uma imagem, contudo cada vez mais contaminada pela televisão.3

Será aqui examinada a linha crítica em que se inscreve o último ataque de Baudrillard, ou seja, a que sustenta que o cinema estaria sofrendo um processo de conspurcação televisual. No Brasil atual, são bastante comuns as investidas de cineastas e críticos a essa suposta promiscuidade, quase sempre em vista da presença da Rede Globo no mercado cinematográfico. Denuncia-se que muitos filmes seriam meras transposições de programas da emissora para as salas de cinema. Nesse campo estariam, entre outros, Os

Normais (José Alvarenga Jr., 2003) e Casseta & Planeta – A Taça do Mundo é Nossa (Lula

Buarque de Holanda, 2003). Redunda em crítica semelhante a combinação entre narrativas à maneira da dramaturgia da Globo e atores ou diretores da mesma procedência: A Partilha (Daniel Filho, 2001), Avassaladoras (Mara Mourão, 2002), Sexo, Amor e Traição (Jorge Fernando, 2003). Outras vezes, basta a presença de um ator da emissora para que despontem os ataques, caso de Abril Despedaçado (Walter Salles Jr., 2002), que rendeu críticas à escolha de Rodrigo Santoro para interpretar o papel de nordestino.

Pode-se desconfiar de que se trata, antes de mais nada, de uma disputa por espaço nas salas de exibição, com adeptos de linhas autorais a resistir ao que seria a ocupação do mercado pela Globo. Aqui interessa apenas um aspecto desse confronto: a complexa relação entre o naturalismo televisual e o antinaturalismo cinematográfico. Em outras palavras, trata-se de enfocar o suposto pecado da cinematografia nacional, que estaria recebendo da TV o pomo proibido da verossimilhança, que faria os espectadores de cinema voltarem à antiga ilusão de que a tela exibe um mundo que existe por si mesmo. Como se pode adivinhar, não é tão simples a concepção a ser exposta no presente trabalho.

2. Naturalismo em cinema e TV

É curioso que entre as primeiras reflexões de peso sobre o tema estejam as colocações de Marshall McLuhan, que postulou exatamente o inverso do geralmente admitido. Escreveu ele que a TV, por questões técnicas e não por preferência de produtores e realizadores, seria um meio eminentemente antinaturalista: um “mosaico de luz”, isto é, uma trama de pontos de luz e sombras, o que a imagem de cinema nunca é, mesmo quando a qualidade da fotografia é pobre.4 Ele ressaltava a baixa resolução da imagem televisual em

3 BAUDRILLARD, 1981. p. 80. 4

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comparação com a da película cinematográfica, que é composta por milhões de pontos a mais do que a outra, de modo que o espectador de cinema tem à sua frente uma imagem bem mais definida. Comparava a imagem televisual a caricaturas, sempre feitas com mínimos traços, de modo que quem as vê precisa preencher os traços faltantes para reconhecer a figura. A “imagem-chuveiro”, recebida pelo telespectador, não seria em nenhum sentido como a imagem fotográfica, estática, que se move devido ao artifício das 24 imagens por segundo; em TV, disse McLuhan, os impulsos luminosos bombardeiam o telespectador, mas este captaria apenas algumas poucas dúzias, de modo que lhe restaria o trabalho ativo de construir mentalmente o restante da imagem. Tais considerações, aqui muito sumarizadas, levam à surpreendente idéia de que o espectador de TV seria mais ativo que o de cinema, que receberia a imagem pronta, ilusionisticamente perfeita.5

À parte a consideração quanto à atividade do telespectador, o argumento acima foi assumido por vários teóricos. Arlindo Machado, por exemplo, enfatizou os elementos que desfavorecem a ilusão de realidade na televisão. A imagem reticular seria apenas um dos componentes a fazer diferença em relação ao cinema; entre os demais estaria o papel secundário da perspectiva, esfacelada pela “fúria pulverizadora do mosaico eletrônico”, que faria com que, a partir de uma certa proximidade, as figuras tendessem a se desmantelar e a se confundir com as retículas.6 Outro diferencial seriam os “talking heads”, os apresentadores de noticiários, que olham diretamente para o espectador, “ao contrário da narrativa transparente, típica do cinema, em que os eventos parecem acontecer por si sós, como um mundo paralelo ao nosso”.7 A essa forma de construção dos noticiários soma-se decisivamente, na opinião de Machado, a baixa resolução da tela de TV, que obriga o espectador a se aproximar da tela e perceber as linhas de varredura ou a se afastar e então se contentar com um pequeno quadro fragmentário incrustado num móvel da sala de visitas, insuficiente para permitir a plena vigência do efeito de transparência da imagem.8 Em suma, a TV nada teria da famosa janela da representação pictórica renascentista, própria do cinema. Por isso, Machado afirma que a TV seria antes uma “tatuagem eletrônica”, pois nela a imagem é atirada sobre o espectador (ao contrário do cinema, cuja imagem é projetada na tela), o que permite que se elimine a escuridão que, na sala de cinema, favorece a ilusão de realidade.9

5 MCLUHAN, 2002. p. 351-353. 6 MACHADO, 1995. p. 45-46. 7 MACHADO, 1995. p. 49-50. 8 MACHADO, 1995. p. 47.

9 MACHADO, 1995. p. 50-51. Arlindo Machado não está entre os que atribuem uma essência inferior à TV, o que deixa

mais do que claro no livro A Televisão Levada a Sério. É interessante que, para mostrar a especificidade da imagem televisual, tenha utilizado os argumentos usados por outros a fim de desqualificá-la.

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Cito apenas mais uma fonte nessa linha, a americana Anne Friedberg, que enumerou cinco preceitos (precepts) para a existência do espectador de cinema clássico: 1) recinto escuro e projeção de imagens luminosas; 2) espectador imóvel; 3) filmes são assistidos uma única vez (o modo de exibição e distribuição baseado na novidade e obsolescência, requer sempre novos produtos para encher os cinemas); 4) relação não-interativa entre espectador e imagem; e 5) imagem em tela grande (“maior do que a vida”).10 Disse a autora que todos esses itens são desafiados pela espectatorialidade televisual e afins, como videocassete e novas tecnologias interativas: nesses casos o ambiente não precisa ficar escuro, pois as imagens são uma fonte de luz, não projeção; o espectador pode se movimentar pela sala sem maior prejuízo; a programação e o videocassete permitem que se assista duas vezes ao mesmo programa; o telespectador pode escolher a programação mesmo depois de sentado em sua sala; e, por fim, a imagem de TV surge numa tela menor que a de cinema.11 Está sempre em foco a questão do naturalismo, uma vez que não favorecem o ilusionismo as apontadas condições do espectador de TV.

Um dos componentes obrigatórios do trabalho do pesquisador deve ser a ousadia, inclusive contrariando o que parece óbvio ao senso comum. No presente caso, poderia estar equivocada a opinião generalizada de que a TV seria ilusionista: não bastaria o conhecimento empírico de que, exemplificando, com freqüência pessoas comuns confundem atores e seus personagens. Tal possibilidade, entretanto, não significa que a posição do pesquisador esteja imune às críticas.

Os dois primeiros teóricos mencionados têm em comum a idéia de que a televisão desfavorece a ilusão de realidade, ao contrário do que teria sido apanágio do cinema. Anne Friedberg, por sua vez, enfatiza que a contraposição ocorre entre a TV e um certo tipo de espectatorialidade cinematográfica: a do cinema narrativo clássico, ou seja, aquele em que o filme é construído com o objetivo precípuo de provocar a ilusão. Pode-se definir a linguagem clássica como a forma de narração em que, através do cuidadoso apagar das marcas de enunciação ou, pelo menos, tornando-as discretas o suficiente para que não chamem a atenção do espectador, constrói-se a ilusão de que é o mundo real e não uma construção discursiva aquilo a que o espectador assiste na tela. Essa é uma das formas de fazer cinema, não a única, haja vista a existência de outras linhas de criação, como a das vanguardas históricas

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FRIEDBERG, 1993. p. 133-136.

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FRIEDBERG, 1993. p. 136-137. A autora fala na verdade em seis preceitos da espectatorialidade clássica. Entretanto, o último deles, a tela plana e, portanto, a imagem bidimensional, não chegou realmente a ser desafiado pela experiência de assistir à TV, como a própria autora reconhece na p. 137.

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(Eisenstein, à frente) e das diversas correntes modernas (cinema experimental americano, Godard, Cinema Novo etc.). A observação é relevante na medida em que por meio dela pode-se relativizar o antagonismo entre cinema e TV: nem pode-sempre o primeiro foi utilizado como campo para o naturalismo, comentário óbvio para pesquisadores de cinema, mas que parece ter escapado completamente a McLuhan e seus seguidores. O ponto a destacar é o seguinte: apesar de suas características técnicas, o cinema desenvolveu uma longa e variada tradição de narrativas antinaturalistas em que se evidenciava o caráter discursivo e não-realista do que se mostrava.

Cabe um questionamento semelhante em relação à suposta natureza antinaturalista da televisão. Apesar dos enfáticos argumentos que apontam o antiilusionismo do meio, cuja raiz estaria em características tecnológicas, portanto, intransponíveis,12 qualquer levantamento irá constatar que a produção narrativa televisual é, não de hoje, hegemonicamente fundamentada na linguagem clássica: Rin Tin Tin, Jornada nas Estrelas, Irmãos Coragem,

Gabriela, Pantanal, Friends, Arquivo X, Terra Nostra, A Muralha... Em sua esmagadora

maioria, telenovelas, minisséries, seriados e demais formas narrativas televisuais são elaboradas de forma naturalista.13 Sem pretender apagar a diferença técnica entre os meios, pode-se dizer que os citados programas, além de inumeráveis outros, foram constituídos segundo o prescrito para a obtenção do naturalismo em filmes clássicos: continuidade espaciotemporal, estrita causalidade entre os fatos narrados, direcionamento para o personagem, divisão em gêneros, submissão geral a formas preestabelecidas (desencorajando-se inovações que problematizem a familiaridade do espectador com o que (desencorajando-se exibe).14 É de se surpreender que, em um meio tido como altamente desfavorável à ilusão de realidade, haja tanto empenho em produzi-la. Ou qual poderia ser a explicação para a superabundância de construções naturalistas na TV senão a certeza de que é possível produzir algo semelhante ao que no cinema existe pelo menos desde os primeiros filmes de D. W. Griffith?

É preciso desfazer um grave equívoco em torno do naturalismo: a suposição de que imagens perfeitas sejam necessárias para que exista ilusão de realidade. Esse é um dos pontos em que os estudos de Comunicação poderiam aprender com a historiografia das artes

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McLuhan escreveu (2002. p. 352) que no futuro a televisão poderia vir a ter características técnicas diferentes, como maior resolução de imagem; acrescentou, porém, que isso seria o mesmo que acrescentar mais traços a uma caricatura, que, por conseguinte, deixaria de ser caricatura: a TV deixaria de ser TV.

13 Note-se que, assim como no cinema clássico, cada gênero televisual possui as próprias normas de verossimilhança. Por

isso, assim como em incontáveis comédias cinematográficas, seriados cômicos admitem olhares para a câmera, elemento intolerável em dramas naturalistas de quaisquer dos meios.

14 A linguagem cinematográfica clássica foi exaustivamente pesquisada desde as primeiras décadas do século XX. Para um

melhor entendimento, consulte-se, por exemplo: XAVIER, 1983. p. 55-73; XAVIER, 1984. p. 19-35 e BORDWELL, 1985. p. 156-204.

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visuais, com seus séculos a mais de reflexão sistematizada. Em 1959, isto é, poucos anos antes do lançamento do citado livro de McLuhan, E. H. Gombrich lançou Arte e Ilusão – Um

Estudo da Psicologia da Representação Pictórica, que consolidava uma tradição de pesquisa

em torno do naturalismo nas artes visuais. Em sua terceira parte, o autor discorreu acerca da participação do observador na produção do efeito ilusionístico na pintura, desenho e artes similares. Gombrich defendeu a idéia de que toda representação depende, até certo ponto, da projeção dirigida do espectador.15 Para que se produza a ilusão de que o objeto pintado seja idêntico ao objeto real, não é preciso pintar detalhes, uma vez que o espectador se encarrega de preencher os que faltam. Mesmo pinturas de excepcional semelhança com o mundo real possuem tal exigência. Causa espécie a lembrança do requisito de imagem perfeita, disposto por McLuhan, em contraposição às análises de Gombrich. Ao escrever, por exemplo, acerca do quadro “Anjos Músicos”, de Jan van Eick, mostrou que, apesar de se ter a impressão de que cada ponto do damasco de ouro, cada fio de cabelo dos anjos, cada fibra da madeira pareçam ter sido pintadas, é claro que o pintor não poderia ter feito isso, mesmo que trabalhasse com a maior paciência, utilizando uma lente de aumento: “Por menos que saibamos sobre o segredo de tais efeitos, eles têm de ser fundados numa ilusão.”16 Como o autor explica páginas à frente, trata-se da ilusão do observador, que supõe (ou vê) uma imagem completa, onde ela não existe. Algo parecido poderia ser dito da imagem televisual. Olhos adestrados com certeza percebem a diferença de resolução frente à imagem cinematográfica; todavia, o público não precisa da qualidade da segunda para visualizar na TV uma imagem convincente.

Visto que o olho humano é capaz de preencher detalhes que faltam, é cabível indagar por que existiriam imagens não convincentes. Isto é, onde não há naturalismo e por quê? Bastaria um meio inapropriado? Escreveu Gombrich que são duas as condições para a ilusão: o destaque dos elementos mais característicos do objeto real e que não haja nenhuma mensagem contraditória.17 O cinema moderno, que rompeu em graus variados com o naturalismo do cinema clássico, operou sobretudo com a quebra da segunda condição exigida. Quando cineastas modernos introduziam elementos disparatados em seus filmes, conseguiam não apenas agredir as expectativas do público, mas também desfazer qualquer possível encanto ilusionista que pudesse brotar na relação entre filme e platéia. Cite-se um exemplo, entre infinitos outros. Em Terra em Transe, de Glauber Rocha (1967), Paulo Martins 15 GOMBRICH, 1986. p. 175. 16 GOMBRICH, 1986. p. 188. 17 GOMBRICH, 1986. p. 191.

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(interpretado por Jardel Filho) está abraçado a Sara (Glauce Rocha) numa cena em que falam de se desligar do político populista interpretado por José Lewgoy. Sara usa uma blusa clara. Corte seco e a conversa continua num outro espaço, exatamente de onde havia sido suspensa ao final do plano anterior, com Sara a responder ao que Paulo lhe dissera. Eles surgem praticamente na mesma posição, no entanto Sara usa roupa escura. Olhares ingênuos talvez reclamem de um suposto erro de continuidade, mas, além do conflito imposto pela continuidade do diálogo em espaços diferentes, a profusão de rupturas como essa fazem com que seja possível dizer que o filme foi construído com o evidente objetivo de não permitir que se instalasse a continuidade, que, segundo o senso comum, seria traço essencial do realismo. Aí está um dos recursos utilizados por cineastas modernos, que se empenharam em destruir o naturalismo apesar da reconhecida qualidade da imagem cinematográfica.18

O processo inverso é o que, hipótese aqui levantada, teria ocorrido com a TV: a precariedade da resolução da imagem, aliada às condições desvantajosas de espectatorialidade na comparação com o cinema, fez com que os realizadores se empenhassem na eliminação de mensagens contraditórias. A adoção estrita das normas do cinema clássico poderia ter sido apenas uma herança inercial, destinada a logo ser esquecida quando os realizadores e o público percebessem que elas seriam inúteis diante das condições técnicas da TV. Contudo, a persistência das mesmas normas por mais de cinco décadas faz pensar que não se trata de trivial reacionarismo dos envolvidos. A obsessiva preocupação com a continuidade, as regras de iluminação, de edição (como a proibição da “abominável” quebra de eixo), a exigência de desfecho conclusivo, de divisão em gêneros e de tudo o mais que caracteriza a linguagem clássica, não poderia ter senão o efeito de proporcionar ao público um efeito de ilusão. Pode não ser igual ao vivido na sala escura, diante de um filme clássico projetado na tela grande, mas em algum nível trata-se de idêntico resultado: quem pode dizer que telespectadores não se envolvam com os dramas telenovelescos tanto quanto o fizeram em outros tempos os espectadores de melodramas cinematográficos?

3. A representação não morreu, mas...

Essas considerações ocorrem numa época em que a crise da representação se aprofundou como nunca. O empenho modernista no solapamento da crença no realismo da

18

Há aqui o problema paralelo de que a qualidade da imagem de determinado meio não é um fator absoluto, mas relativo. O que era considerado excepcionalmente realístico na época, digamos, de Lumière, foi poucas décadas adiante rejeitado como “cinema primitivo”. O cinema sempre seguiu nesse aspecto o que outras artes experimentaram ao longo de milênios. Vejam-se os relatos de admiração dos contemporâneos dos pintores gregos da Antigüidade, cujas obras, dizem as lendas, confundiam até os pássaros, que vinham bicar frutas pintadas como se fossem de verdade.

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representação teve efeitos na crítica especializada, que no início do século XX se empenhava em atacar as novas formas de representação. Recordem-se antigas palavras do crítico Clement Greenberg, um dos maiores defensores da estética modernista:

Renuncia-se à ilusão da terceira dimensão, assim como à ficção da representação, que pertence tão pouco ao papel literal da pintura quanto ao da música; transpor a imagem de um objeto tridimensional para uma superfície plana, mesmo que apenas esquematicamente, é considerado por um pintor moderno, como Mondrian em sua fase final, uma negação e uma violação da natureza do meio. A sensibilidade moderna tende a considerar isso um embuste, e por isso mesmo superficial, estagnante, sem concretude.19

Sabe-se bem o quanto esse tipo de discurso se espalhou entre os meios cultos. O cinema mesmo viu-se, durante longas décadas, às voltas com ataques à sua representação ilusionista e alegadas seqüelas, ataques empreendidos inclusive por intelectuais de outras especialidades. Roger Caillois, autor do importante livro Os Jogos e os Homens, investiu contra “a mais vã das ilusões, na sala escura”: a identificação do espectador com a personagem do filme, um dos efeitos mais poderosos da mimicry cinematográfica, expressão de Caillois para a categoria de jogo empreendido durante o ato de assistir a um filme.20

A generalidade dos ataques de eruditos e acólitos à ilusão de realidade permite indagar: será que apenas o grande público não percebeu a irrealidade da representação? A leitura de Baudrillard faz supor um público idiotizado, iludido tão facilmente quanto os habitantes da caverna de Platão, que nunca percebiam estar às voltas com sombras e não com a verdadeira realidade.

É preciso desconfiar desse platonismo extemporâneo. De fato, a velha concepção modernista de ataque à representação ilusionista se espraiou pela sociedade, transbordou dos guetos intelectualizados, a ponto de que hoje encontram-se por todo lado, mesmo em escritórios e residências pequeno-burguesas, não as velhas reproduções figurativas, mas cópias de Picasso, Kandinsky, Mondrian.

É bem provável que os indivíduos percebam, sim, as fraudes e falseamentos com que se deparam.21 O privilégio que se concedia ao cinema e à fotografia, a capacidade de reproduzir fielmente a realidade (ao contrário dos meios não indiciais), resultou em que hoje qualquer criança sabe que, sim, a câmera mente. As imagens naturalistas se tornaram suspeitas quando mais fácil se tornou produzi-las.

19

GREENBERG, 1997. p. 68. O texto está no artigo "A Nova Escultura", de 1949. Grifo meu.

20

CAILLOIS, 1990. p. 149. É curioso que Caillois diga que qualquer jogo supõe a aceitação temporária ou de uma ilusão, ou, pelo menos, de um universo fechado, convencional e, sob alguns aspectos, imaginário, operação intelectual que caracteriza a mimicry (1990: 39). Contudo, apenas a mimicry cinematográfica mereceu qualificações negativas do autor.

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Eis, no que diz respeito à credibilidade das imagens, o caráter antitético de nossa época: jamais houve tão grande disponibilidade de recursos tecnológicos para reproduções convincentes; entretanto, cada vez mais esse resultado deixa de ser o escopo da produção audiovisual. Em outros tempos exigiam-se uma complicada câmera escura e muito talento do pintor para produzir um quadro minimamente persuasivo, ao passo que hoje está à mão de todos o botão de câmera que permite gravar imagens em movimento, depois exibi-las com boa definição, possivelmente após o tratamento com um software qualquer. Esse é o desenlace de sessenta anos de ataque modernista ao efeito de real, em conjunto com o processo galopante de inovações tecnológicas: o final do século XX se colocou entre os modelos renascentista e moderno.22 O figurativismo naturalista não sucumbiu, pois permanece entremeado não apenas com as técnicas de manipulação de imagem, mas principalmente com o conhecimento do espectador acerca dos efeitos que podem ter sido utilizados para que surgisse a imagem que tem diante dos olhos. A imagem digital, com seu hiper-realismo, provocou a hipertrofia dos cânones do século XV, e isso é visto tanto em propagandas de revistas como na novela das oito; por outro lado, são infinitas as metamorfoses à mão dos interessados,23 como se vê não apenas na videoarte, de público extremamente restrito, mas também em videoclipes e em propagandas mais arrojadas, também exibidas após o jantar.

Pode-se arriscar a dizer que mais do que nunca é preciso voluntariamente suspender a incredulidade para que o efeito de real se manifeste – o que não significa que ele seja impossível atualmente. Muito ao contrário, ele ainda é hegemônico, embora o espectador já conheça os segredos da mágica ou, pelo menos, já saiba que no Vídeo Show e nos inumeráveis making of serão desvelados os truques que o envolveram por magnetizadores momentos. Acompanhar o vai-e-vem do naturalismo entre o cinema e a TV não deve mais confundir a reflexão; pode, inversamente, eliminar de uma vez por todas a falácia de atribuir uma essência a cada meio, visto que a relação deles com os respectivos espectadores pode estar sujeita a mais vicissitudes do que se julgou nas primeiras pesquisas a respeito.

4. A opção pós-moderna

Examinarei agora um território que se conjuga com o acima exposto de uma forma não definida exclusivamente pelos parâmetros clássicos ou modernos. Trata-se de um conjunto de produções narrativas e ficcionais, cuja definição oscila entre a vinculação ao

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MACHADO, 1997. p. 229.

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cinema de arte e à TV, em outras palavras, entre a arte sofisticada e os meios de comunicação de massa.

A título de exemplo, menciono Caramuru – A Invenção do Brasil (Guel Arraes, 2001), filme que derivou da minissérie A Invenção do Brasil, exibida pela rede Globo em meio às comemorações pelos 500 anos do Descobrimento. A minissérie foi editada, transposta para película e exibida nos cinemas, o que por si só atenta contra o valor modernista de pureza dentro de cada campo artístico. O exame, ainda que breve, de sua abertura servirá para que se ressaltem os traços necessários.

A primeira imagem, após os créditos, é a de um cometa acintosamente falso num céu estrelado e nada convincente em termos de naturalismo. O enquadramento se abre através de um zoom out e revela-se que o cometa é apenas um reflexo na pupila de um jovem (interpretado por Selton Mello) que olha para o céu. Uma onisciente voz-over explica que o português Diogo observa a noite de 01 de janeiro de 1500. Ele está na sacada de um edifício antigo e veste-se de maneira condizente com a época. Alarga-se o enquadramento e surge uma praia ao longe. Há muitos elementos alheios ao naturalismo, pois a iluminação é artificiosa e tanto o edifício como a paisagem se revelam como cenários, mesmo que haja movimento nas ondas do mar. Com segundos de narração, já se pode perceber que a tecnologia digital é utilizada não no sentido de produzir o ilusionismo, nem tampouco no de o destruir: a narrativa segue em parte os padrões mais tradicionais, inclusive com o ingrediente da narração over a parodiar contadores de histórias. Atenta-se, portanto, contra o princípio de desfamiliarização, que norteou a produção modernista. Por outro lado, escancara-se o fake, denunciando-se o irrealismo de tudo a que se assiste.

Prossiga-se a análise ainda mais um pouco a fim de se constatar a persistência dos elementos acima e indicar mais alguns outros. Outro zoom out, desta vez rapidíssimo e espacialmente tão largo que não pode deixar, mesmo a olhares inocentes, de denotar o uso de um efeito especial, mostra que Diogo está na península Ibérica e esta no planeta Terra, que gira no espaço. A voz-over fornece dados do céu do hemisfério sul, onde o enquadramento se fecha, num zoom in em direção ao Brasil, então chamado de "Pindorama", até enquadrar, na praia, a índia Paraguaçu (Camila Pitanga), também a olhar para o firmamento. Enquanto a voz-over adianta dados sobre o futuro da personagem, o enquadramento se fecha num de seus olhos e nele descobre o reflexo de uma constelação. Corta e surge Diogo a desenhar uma estrela de cinco pontas que magicamente se transforma na estrela do mar encontrada na praia por Paraguaçu. Outro corte, e a Lua se ergue por trás da índia, percorre a abóbada celeste e, sem corte, aparece no céu atrás de Diogo. Abre-se o enquadramento de modo a revelar-se que

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tanto a imagem do rapaz como a de Paraguaçu são desenhos num livro arcaico, desenhos que se movem através de um recurso de animação. Em suma, no intervalo de apenas um minuto e vinte segundos de narração, esta passa quatro vezes de um lado ao outro do Atlântico, transita a partir de algum ponto em órbita da Terra e, num ritmo alucinatório, estabelece a ligação entre os protagonistas.

É preciso ressaltar que esse pequeno trecho poderia ter sido concebido da forma mais tradicional, assemelhando-se a incontáveis cenas cinematográficas e televisuais em que se procura fazer com que os acontecimentos narrados mimetizem a realidade segundo regras convencionais de composição. Em outras palavras, o trecho poderia se constituir segundo o que acima foi definido como linguagem clássica. A abertura de Caramuru se autodenuncia como um discurso, através do eminente virtuosismo das delirantes transições espaciais e pela paródia lúdica ao filme histórico. O resultado é uma composição estilística paradoxal, isto é, simultaneamente heterogênea e de acordo tanto com o filme clássico como com o modernista. Há elementos da produção mais convencional da cultura de massa (como as explicações adiantadas pelo narrador-over, que possibilitam a alta comunicabilidade com o grande público) e a autoconsciência típica das criações modernistas.

O exame do restante do filme permitiria constatar que os traços acima levantados se compõem segundo uma poética coerente, sempre em regime oscilatório. A ironia constante, que transmuta a narração historicista num discurso sobre a atualidade (por exemplo, quando o chefe índio engana o conquistador português interpretado por Luís Mello, à maneira do que faria um esperto brasileiro com um turista estrangeiro) e o abuso das convenções e representações familiares fazem com que se desnaturalizem as representações articuladas no filme. Trata-se, portanto, de uma forma de narrar que inscreve as convenções da narrativa e, simultaneamente, as subverte.

Recordando que Caramuru surgiu primeiro na TV, não se acredite que seja apenas uma exceção. Essa poética é constante na produção não apenas de seu realizador, Guel Arraes, como também na do núcleo de produção que leva o seu nome. Com variações que não podem ser aqui examinadas, Armação Ilimitada, O Auto da Compadecida, Dias de Glória,

Retrato Falado, As 50 Leis do Amor e outros quadros ou programas realizados por Guel

Arraes ou seu núcleo e veiculados na Rede Globo fazem com que o naturalismo seja minado internamente, no último e mais resistente reduto da linguagem clássica.

Para nomear essa produção, é conveniente a expressão "pós-modernista", aqui entendida numa acepção que não se confunde com a de Fredric Jameson, David Harvey ou Jean Baudrillard, autores de larga circulação nos meios críticos nacionais. Não se trata de

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apelar a noções como nostalgia, compressão espaciotemporal ou simulacro. Seja no que diz respeito à combinação paradoxal entre elementos de extração modernista e da cultura de massa, seja quanto à exploração conjunta de elementos cinematográficos e televisuais, propõem-se aqui os termos que a teórica Linda Hutcheon utilizou acerca de uma parcela da produção cultural das últimas décadas do século XX.24

O espírito aqui assumido, em sintonia com o que Hutcheon abordou o pós-modernismo, nada possui do caráter apocalíptico com que outros se voltam para a cultura contemporânea. Entende-se por pós-modernismo não a irrevogável degeneração da comunicação ou da arte, mas uma formação cultural que, embora longe de ser hegemônica, possui determinações suficientes para ser examinada em sua especificidade, antes de quaisquer avaliações negativas sobre sua existência. A produção pós-modernista pode estar dando vazão a um fluxo de representações com papel relevante nas relações culturais da atualidade, com chances de ampliação desse papel no futuro.

5. Conclusão

Críticos que manifestam repulsa ao pós-modernismo, assim como outros que ao menos o pesquisam como um objeto digno de interesse, estão de acordo que está em curso um processo de deterioração do cinema, associável ao advento da televisão, fenômeno às vezes visto como um divisor de águas em relação à modernidade.25 Muito já se escreveu sobre como as características da TV, por exemplo, o zapping e o acesso irrestrito às obras cinematográficas do passado, transformaram o panorama cultural. Nem todos, porém, deram-se conta do quanto a TV assimilou do que estava no ar quando de deram-seu estabelecimento como meio hegemônico de comunicação de massa: o naturalismo do cinema de Hollywood e afins, com certeza, mas também as rupturas do cinema modernista, que acabaram se amalgamando num tipo de produção que escapa às antigas e sumárias classificações. O ilusionismo persiste, em grande parte, mas será que a postura do público diante do mesmo seria tal como descrita pelos críticos mais acerbos? Nesse caso, o que permitiria a assimilação de narrativas que combinam naturalismo e rupturas constantes do mesmo?

O caráter paradoxal da abertura de Caramuru, construindo uma narrativa que tangencia o onírico, é tão somente um dos elementos que fazem supor que os produtos simultaneamente cinematográficos e televisuais podem se constituir como imagens, mesmo no sentido restrito que deu Baudrillard à palavra.

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HUTCHEON, 1991.

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Ainda não está claro o sentido do processo, isto é, se caminhará para a expansão da capacidade crítica do público ou à instauração plena do lúdico. De qualquer modo, pode-se afirmar, retomando palavras de Andreas Huyssen, que se trata de uma lenta transformação cultural e de sensibilidade, não apenas moda ou espetáculo.26 E o exemplo levantado faz supor que talvez a relação entre cinema e TV possa ter resultados salutares para ambos os meios, retirando o primeiro do elitismo a que chegou em suas manifestações artisticamente mais felizes e, sem destruir a comunicação com o grande público, levando ao segundo um pouco do refinamento que lhe faltava.

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