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A escuta do Submundo

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS ARTES

A Escuta do Submundo:

Paisagens sonoras em contexto artístico

Fernando Emanuel da Palma Fadigas

MESTRADO EM ARTE MULTIMÉDIA – AUDIOVISUAIS 2013

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS ARTES

A Escuta do Submundo:

Paisagens sonoras em contexto artístico

Orientação: Professor Auxiliar Rogério Taveira 2013

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Pelo interesse, paciência e apoio, aqui fica expresso o meu agradecimento a pessoas especiais.

À minha família, Sandra Zuzarte Ferreira e ao nosso filho Francisco; Aos meus pais José e Helena Fadigas; À Maria de Jesus Fadigas e ao Luis Ferreira; Ao Mário e Irene Ferreira.

Ao meu orientador Rogério Taveira, à Maria João Gamito e ao Alexandre Estrela pelas críticas, referências, dicas e truques académicos. Aos colegas e amigos Rui Gonçalves, Daniel Pinheiro, Pedro Januário, Diogo Leôncio e João Graça. E por último ao coletivo Pogo, amigos e artistas com quem tenho tido a oportunidade de trabalhar.

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Resumo

A Escuta do Submundo: Paisagens sonoras em contexto artístico, divide-se em duas instalações audiovisuais de carácter experimental com especial enfoque no médium sonoro. Undercurrent e InLand são duas instalações imersivas que demonstram, cada uma à sua maneira, diferentes possibilidades narrativas através das características realistas, subjetivas e metafóricas do som. Ambas as instalações enquadram-se nos conceitos de Soundscape teorizada pelo canadiano R. Murray Schaffer. Baralhando a hierarquia dos sentidos, responde às hipóteses submetidas, traçando vários caminhos possíveis na sua difusão, no contorno à imagem propriamente dita e na demonstração efetiva das potencialidades deste medium em estado puro, quando processado e espacializado. Para culminar naquele que é o foco fundamental da dissertação, desvendar os processos contidos na especificidade dos field recordings, quando aplicados à instalação e à performance sonora contemporânea, recorro a diversas referências literárias como Whitman, Thoreau, Bachelard, Mumford ou Le Breton e a outras mais específicas no campo desta arte como R. Murray Schafer, Douglas Khan, Rob Young, Richard Serra ou Alvin Lucier. Sempre pelo território do som enquanto lugar na arte, abordo os principais protagonistas das vanguardas do séc. XX, tais como: Luigi Russolo, Max Neuhaus ou John Cage; a música experimental na transição para o século XXI e finalmente os artistas dos chamados field recordings como Chris Watson, Peter Cusack ou Jacob Kierkegaard, que tal como os anteriores exploradores, vão deambulando e alternando posições entre a academia, a galeria, o palco e as edições discográficas.

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Abstract

Listening the Underworld: Soundscapes in the artistic context, is divided into two experimental audiovisual installations with special focus on medium sound. Undercurrent and Inland are two immersive installations that demonstrate, each in its own way, through different narrative possibilities of realistic features, subjective and metaphorical sound. Both installations fall within the concept of Soundscape theorized by the Canadian composer R. Murray Schaffer. Shuffling the hierarchy of the senses, responds to cases submitted, outlining several possible paths in their diffusion in the contour image itself and effective demonstration of the potential of this medium in its pure state, when processed and spatialized. To culminate in what is the fundamental focus of the dissertation, unravel the processes contained in the specificity of field recordings when applied to contemporary installation and sound performance, i use several literary references as Whitman, Thoreau, Bachelard, Mumford and Le Breton and others more specific in the art field as R. Murray Schafer, Douglas Khan, Rob Young, Richard Serra or Alvin Lucier.

Always in the territory of sound as place in the art I approach to the main protagonists of the twentieth century avant-garde such as Luigi Russolo, Max Neuhaus or John Cage; experimental music in the twenty-first century transition and finally the field recording artists such as Chris Watson, Peter Cusack or Jacob Kierkegaard, who like previous explorers, go wandering and alternating positions between academy, the gallery, the stage and record editions.

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Índice Resumo iv Abstract v Introdução 1 1. Arte Sonora 3 1.2 Silêncio 6 1.3 Ruído 9 2. Soundscape 13 2.1 Field Recordings 14

2.2 Microfone pendurado e Sounds from Lisbon 16

3. A escuta do Submundo: Undercurrent e Inland 18

3.1 Undercurrent 18

3.1.1 A imprevisibilidade da água; Imersão, espaço e tempo. 19

3.1.2 A apneia 21

3.1.3 Interior e exterior 24

3.1.4 Tela monocromática e paralelismos acusmáticos 26

3.2 InLand 29

3.2.1Interior 29

3.2.2 Camadas 31

Conclusão 34

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Introdução

Nesta dissertação serão abordadas as questões teóricas relativas a duas instalações de carácter experimental. Estas duas peças demonstram diferentes abordagens e possibilidades narrativas na exploração dos aspectos sensoriais do médium sonoro, no contexto da arte actual. A arte sonora comporta características sensoriais muito próprias e é hoje uma área importante de investigação em disciplinas tão díspares como as Artes Plásticas, a psicologia ou a neurociência.

Pretendo fundamentar o meu trabalho, assinalando os momentos que mais se aproximam do meu processo criativo, ou seja, aqueles que pensaram o ruído, o silêncio e todo o espectro sonoro de um novo mundo industrializado e moderno no decorrer do século XX e nas estéticas pós-digitais na transição para o século XXI. Assim, pretendo mapear o som no contexto das artes plásticas, mostrando exemplos práticos e teóricos acerca desta matéria e como esta se difundiu noutras esferas da imaginação humana.

No segundo capítulo, abordarei o conceito de Soundscape através de algumas especificidades como a Ecologia do Som e os Field Recordings, áreas centrais do processo criativo em questão. A paisagem sonora é um som ou uma combinação de sons que forma um ambiente imersivo. Segundo o teórico R. Murray Schafer, soundscape é objecto de estudo da ecologia do som. A ideia de paisagem sonora divide-se então em duas zonas de observação e de estudo. O ambiente acústico natural, composto por todos os sons naturais, e por outro lado, todos os sons ambientais criados pelo homem como a composição musical, o desenho de som e outros atividades humanas, como a conversação, o trabalho, sons mecânicos e tecnologia industrial. A paisagem sonora pode então referir-se a uma gravação áudio ou um desempenho de sons para criar a sensação de um ambiente acústico particular, referindo-me a peças sonoras executadas a partir de gravações de campo. É também sobre esta área particular, os field recordings, que se fala neste capítulo, explicando uma parte significativa deste trabalho sobre composição sonora e musical a partir de sons concretos, descrevendo processos de captação, origem e critérios na escolha de espaços envolventes.

No terceiro capítulo são expostas as duas instalações, nas suas componentes teóricas e técnicas. A instalação Undercurrent possui componente visual, InLand afasta-se totalmente deste dispositivo formal assumindo-se uma composição que se pretende unicamente sonora. Tal como os títulos indicam, concebi duas instalações com características involutivas, isto é, modelos que transportam para o interior remetendo-nos

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ao absoluto involucro, reposicionando-nos ao lugar de origem, num regresso à incómoda escuridão. Em última análise, é o meio natural envolvente e os vários fenómenos acústicos associados, que permitem esta experiência concreta, um convite ao interior da própria existência através do som. Nas duas imersões aqui apresentadas, um mergulho em apneia (Undercurrent) e uma descida ao interior da terra (InLand), o silêncio da própria imagem ganha contornos narrativos herméticos. Pretende-se observar a riqueza perceptiva na escuta de uma corrente submersa, o interior de um rio, nas baixas frequências1 e nas

vibrações subsónicas2 emitidas pelo movimento das placas tectónicas, nos geisers e nas lavas.

Através de um trabalho sonoro de precisão, revelar-se-ão então fenómenos acústicos obscuros numa descida vertical3 que trespassará a linha horizontal da superfície em

direcção aos abismos, às entranhas da terra. A sua manipulação e o processamento possível no mundo analógico e digital, a captação do concreto e o entendimento da generalidade dos sons enquanto música, aceitando então o mundo como uma banda sonora evolutiva, pejada de microelementos, átomos, matéria livre global, caótica e dispersa como a própria vida.

1 Baixas frequências são sons áudiveis situados abaixo dos 130Hz no espectro sonoro. 2 Vibrações subsónicas são frequências abaixo dos 20Hz, inaudíveis ao ouvido humano. 3 Tal como na introdução de Eraserhead de David Lynch.

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1. Arte Sonora

A música experimental foi a grande impulsionadora da arte sonora actual. Não existiria uma proliferação e crescimento na qualidade das obras sonoras no contexto da arte, ou a legitimação de uma arte sonora autónoma, como hoje é entendida, sem as inovações de compositores como Alvin Lucier, Terry Riley, John Cage, Pierre Schaeffer ou Brian Eno. Este último, à semelhança dos movimentos de Andy Wharol no underground nova-iorquino com os Velvet Underground, fez uma ligação inteligente entre a arte e a Pop Culture, partilhando muitas das suas experiências com músicos e bandas desta cultura pop mais experimentalista dos anos 70-80. Segundo as palavras de Eno no prefácio de Experimental Music, Cage and Beyound de Michael Nyman,

(…)por um lado aceitamos a música como uma entidade altamente física, livre de narrativas ou estruturas literárias, livre para se tornar numa experiência totalmente sónica. Mas por outro lado, entendemo-la também como uma experiência espiritual e intelectualmente elevada, um lugar onde poderemos testar diversas proposições filosóficas (...) (Nyman, 1974: xii)

Aceitando estas duas ideias, podemos concluir que a música experimental assenta em duas premissas não muito distantes do que representa para alguns a arte: liberdade e transcendência.

Segundo Steve Reich, foi no final dos anos 50 que o músico inglês Michael Nyman chamou à sua música minimal e o mesmo à de La Monte Young e Terry Riley, fazendo uma clara associação destas músicas com as obras dos artistas que sugeriam uma arte minimalista. A Drone Music é uma das vertentes da música minimal e entendeu-se durante alguns anos como uma prática espiritual. Este tipo de composição utiliza a suspensão e repetição de notas com poucas variações harmónicas e é estendida em longas peças que podem atingir mais de trinta minutos, tornando-se hipnótica, tribal e xamânica. Na música étnica encontram-se práticas antigas desta forma através de instrumentos como o Didgeridoo na Austrália, na música clássica Hindustani com o instrumento de cordas Tambura, ou ainda no clássico Gagaku japonês. Um dos mais emblemáticos concertos na vertente mais experimentalista seria The Pocket Theatre ocorrido em 1964 em Nova Iorque, numa espécie de ritual juntaram-se na mesma actuação nomes que viriam a ficar na história das músicas exploratórias, como Tony Conrad, Marian Zazeela, La Monte Young ou John Cale.

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Fig. 1 The Pocket Theatre, New York 1964 Tony Conrad, Marian Zazeela, La Monte Young & John Cale (Fotografia de George Maciunas)

Foram vários os artistas da música experimental que praticaram a Drone Music, tais como Eliane Radigue, Tony Conrad, Phil Nibblock, Robert Fripp e Brian Eno, mas foi La Monte Young em 1958 que ficou conhecido pelo Trio For Strings, considerada a primeira peça Drone. No entanto, seria um artista ligado às artes visuais a abrir o precedente, Yves Klein concebeu em 1947-1948 a sua Sinfonia Silence-Monotone, uma peça de 40 minutos cujo primeiro movimento é um Drone invariável de 20 minutos.

São inúmeras as obras sonoras realizadas ao longo das últimas décadas, mas importa-me destacar três peças seminais (Booimporta-merang de Richard Serra; I’m Siting in a Room de Alvin Lucier; The sound of ice melting de Paul Kos) não só pela relação com o meu trabalho prático, mas também por trazerem ao contexto da arte questões acerca dos vários comportamentos do som no espaço, aos fenómenos associados às repetições (loops), aos atrasos (delays) e às ressonâncias.

A partir de 1970, sensivelmente, o som destaca-se dos conceitos de música e torna-se matéria autónoma, surgindo isolado em diversas instalações sonoras, na videoarte e na performance em diversos espaços como instituições e galerias, dando a este médium um novo estatuto no meio artístico. Christoph Cox distingue música e arte sonora ao nível filosófico. Cox começa por dizer que «arte sonora é arte sónica que dá especial atenção às condições e às possibilidades do som na sua audição (ao que o filósofo Gilles Deleuze chamou de “o virtual” ou o domínio “transcendental”) enquanto a música toma estas condições como garantia e usa sons tal como são (ao que Deleuze chamou de “o real”). Assim, "arte sonora" é geralmente associada ao que se encontra nos limites da música - o

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silêncio, o ruído e os sons do quotidiano - enquanto a música tende a aceitar um conjunto de sons (geralmente os da escala cromática) e usá-los para produzir estruturas sonoras que chamam à atenção para si e não para o objecto.

Realizado em 1970, o vídeo Boomerang de Richard Serra, é uma experiência conceptual sonora através do vídeo, trabalhando simultaneamente questões da percepção e do comportamento humano quando confrontado com o som do seu próprio discurso: uma experiência ao nível da psicoacústica. Este discurso formulado em tempo real, é apresentado num sistema fechado provocando o atraso (delay) suficiente para confundir o córtex auditivo de Nancy Holt. Segundo Richard Serra, trata-se de um trabalho que analiza o processo de discurso no acto da sua formalização. A linguagem, a relação entre o que é dito e o que é analisado não é arbitrário. A linguagem e a imagem vão sendo reveladas ao mesmo tempo que vão sendo organizadas.

Outra obra essencial é I’m Siting in a Room de Alvin Lucier. Sentado numa sala, Lucier usa a própria voz e grava-a para em seguida a devolver ao mesmo espaço. Aproveitando as reverberações e ressonâncias que naturalmente acontecem, regrava este texto continuamente até que o discurso se torne imperceptível. As palavras tornam-se ruído, mecânicas ao estilo vocoder4, perdem-se no excesso

de reverberação da própria sala. As palavras que diz descrevem o que está a acontecer. O processo é aqui antecipado pelo próprio discurso, a honestidade da peça é então justificada com algum humor quando Lucier finaliza: «considero esta atividade não tanto como a demonstração de um facto físico, mas mais como uma forma de suavizar quaisquer irregularidades que o meu discurso possa ter (…)» referindo-se à sua própria gagueira. Lucier pertenceu ao The Sonic Arts Union, cujo trabalho de pesquisa se debruçou na exploração de novos métodos de pesquisa do som aplicados à performance e à música experimental, em conjunto com artistas como Robert Ashley, Vitto Acconci ou David Behrman. A peça remete-nos para o minimalismo e para a tape music, tendo sido inspiradora para muitas obras de arte ao longo das últimas décadas.

Time and space are directly related; durations are proportional to distances between sound sources and reflective surfaces. In I am sitting in a room (1970), several paragraphs of human speech are used to expose sets of resonant frequencies implied by the architectural dimensions of various sized rooms.5

(Lucier, 2005: p. 430)

4 Vocoder é um efeito sonoro realizado através de síntese e modulação de frequências e que torna a voz humana

mecanizada, semelhante a um robot. Este procesamento vocal foi muito usado no cinema de ficção ciêntifica, na música electronica e na pop music.

5 Tradução livre: «Tempo e espaço estão directamente relacionadas; as durações são proporcionais às distâncias entre as

fontes de som e as superfícies reflexivas. Em I am sitting in a room (1970), vários parágrafos de um discurso humano são usados para expor conjuntos de frequências ressonantes implicadas pelas dimensões arquitetónicas dos vários tamanhos das salas.»

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A última referência vai para o artista conceptual Paul Kos e sua escultura The sound of ice melting de 1970. Este artista californiano que ao lado de Vitto Aconcci ou Bruce Nauman fez parte da geração da Arte Conceptual da década de 60 do século XX, foi um dos primeiros artistas a incorporar o som, o vídeo e a interactividade nas suas instalações. Influenciado pelo meio natural e dando extrema importância aos trabalhos produzidos pelos artistas da Land Art como Robert Smithson, Richard Long ou Walter de Maria, também chegou a trabalhar com La Monte Young e John Cage. Kos criou diversas esculturas em que o acontecimento é vivido em tempo real, onde há uma interacção do espectador com a obra. Esta é influenciada pelo meio envolvente na medida em que dependerá dela para mudanças formais. Em The sound of ice melting, 10 microfones captam o som de 25 quilogramas de gelo a derreter, fenómeno que dependerá da luz e da consequente temperatura no espaço envolvente. A manipulação e participação são fundamentais para a arte de Kos, revelando aqui uma forte atracção pela integridade dos materiais, tentando encontrar um lugar onde o objecto, o acaso e o significado possam, como por magia permanecer juntos.

1.2 Silêncio

Há dois nomes, Marcel Duchamp e John Cage (…) estão para as artes como Freud para a psicologia e Marx para os estudos sócio-económicos. Cage inventou o silêncio e teve marcada influência (…) na acção do Grupo Fluxus. Duchamp descobriu a indiferença estética (…) claramente postulado com os ready-made (…). (Sousa, 1998: p.133)

John Cage dedicou grande parte da sua vida à prática da arte e ao ensino da mesma, sobretudo no campo da música e do som em contextos artísticos, muito para além das orquestras e da composição musical erudita. Cage, que ficou associado ao movimento Fluxus, reconhece na sua vasta obra as atitudes inconformistas das primeiras vanguardas, das práticas e teorias desenvolvidas pelos Futuristas e dos seus sucessores Dadaístas, mas com ele, agora elevadas a um pensamento contemporâneo fortemente espiritual. Cage atravessou a época dos grandes eventos tecnológicos: gravadores de fita, sistemas vídeo e a conversação à distância com o telefone. Viveu as revoluções sócio-culturais americanas, os movimentos Hippies associados à luta contra a guerra do Vietname, a literatura e a poesia Beatnick e o nascimento da vídeoart.

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A sua acção cultural manifestou-se em fenomenologias dum radicalismo estético singular como o experimentalismo, o aleatório, a poesia gráfica, a notação, rádio music, vídeo art, multimédia, interarte, instalação, dança, percussão, bio música, etc. (Barreto 1995: p.44)

Importante foi também o contacto com o mundo espiritual da cultura Zen e do I Ching, fundações dos ensinamentos sobre liberdade, natureza e mutação, descobrindo filosoficamente o silêncio, comparando-o ao puro nada em música. Rejeitou qualquer hierarquia na arte e mais especificamente no mundo dos sons, considerando-os todos iguais, colocando os intencionais e os involuntários ao mesmo nível: o conceito All sounds. Todos estes factos tiveram a maior relevância na sua formação enquanto artista e professor no ensino da arte, deixando uma posição clara quanto à importância do desensinamento da música e das suas fórmulas académicas e obsoletas, isto como limpeza e libertação de metodologias canónicas, contribuindo para um maior e benéfico arranque de novos processos criativos.

Extremamente fracturante enquanto performer e músico, foi influenciado por Erik Satie, aluno de Shoenberg, trabalhou e conviveu com Duchamp e foi protagonista e autor de variadíssimas performances ao lado de David Tudor, Stockhausen ou Nam June Paik. Como anteriormente referido, foi pioneiro no estudo e na compreensão dos aspectos ontológicos do silêncio, deixando publicado o livro Silence Lectures and Writings, onde expõe grande parte da sua pesquisa e teoria acerca do silêncio, do ruído, da música experimental e das experiências em composição para nova dança, incidindo no panorama Norte-Americano com Martha Graham ou Merce Cunnigham.

Marcante foi também a sua experiência numa câmara anecoica6 em Harvard, só ao fim

de alguns minutos exposto à sua estranheza, quando o cérebro dispara o dispositivo da perceção, o compositor tomou contacto com dois sons muito distintos, um agudo e outro grave. Perante tal perturbação recorreu ao técnico de serviço da exposição e foi informado que o que ouvira, eram respectivamente o seu sistema nervoso e o circulatório. Cage acrescentara uma nova experiência à sua vida, descrevendo e mencionando esta história durante todo o seu percurso. Através dela tomara contacto com duas coisas muito simples e primordiais da esfera do existencialismo, silêncio e vida, concluído que o silêncio puro não existe. Um ano mais tarde em 1952 surgia a peça emblemática 4’33’’, o inconformismo de Cage desafiara os cânones do meio musical erudito e à conta desta provocação, viria a

6 Do latim an-echoic “sem eco”. Compartimento especialmente concebido para conter ondas sonoras e electromagnéticas,

permite a realização de diversas experiências acústicas, científicas e nas comunicações, contribuindo para uma melhor compreensão do comportamento das ondas sonoras e electromagnéticas em espaço aberto, isto é, na ausência da reflexão.

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produzir uma das mais importantes obras sensoriais da percepção humana. Através dela apelou à compreensão do silêncio e à escuta profunda da vida, à percepção do espaço e a toda a envolvência de um espectáculo, questionando a posição do público, a postura e as acções do performer. Peça de extrema importância para história da música e mais do que isso, para a arte em geral. Fracturante no entendimento do espaço e do tempo, do aqui e agora e das muitas possibilidades intersticiais existentes nos sistemas e processos criativos, tal como na própria natureza humana.

A relação com o mundo não é tecida apenas na continuidade da linguagem, mas também nos momentos de suspensão, de contemplação, de retiro, isto é, nos inúmeros momentos em que o homem se cala. (Le Breton, 1997: 23)

Na perspectiva da comunicação, Le Breton diz-nos também que «o silêncio rompe com a regra da reciprocidade do diálogo onde o tagarela corre o risco da repetição infindável do inútil.» e que na literatura também existe silêncio «Se o escritor deixar em branco a página onde o leitor esperava uma resposta (…) se usa frequentemente pontos de suspensão ou elipses, como na literatura japonesa, ou ainda se usa uma escrita branca, como Camus no L’étranger» (Le Breton, 1997: p.67); traçando ainda algumas equivalências na pintura como a simbologia monocromática de Yves Klein ou os ambientes evocadores de silêncio na pintura metafisica representada por De Chirico e Hopper, pelo que acrescentaria ainda o suprematismo de Malevich com os quadros negros, as Seascapes de Hiroshi Sugimoto ou ainda a serie Skulls de Gerard Richter. Silêncio é então um local não de ausência mas de reflexão e interiorização. O que na música e nas pautas da academia era pausa, para Cage tornou-se num espaço aberto, repleto de sons livres e envolventes, todos os sons fazem parte da natureza e como tal deveriam seguir o seu caminho na longa composição do mundo.

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1.3 Ruído

O aumento do som no mundo moderno, deu origem a uma mudança no sentido do ruído mundial. Etimologicamente ruído leva-nos até à antiga palavra noyse e mesmo aos termos do provençal do século XI noysa, nosa ou nausa, mas sua verdadeira origem é incerta. (Schafer, 1977: p.182)

Para Murray Shafer, a sugestão de que o ruído tem origem nestas palavras foi rejeitada e expõe uma série de significados para definir o conceito de ruído, sendo os mais importantes os seguintes:

Unwanted sound (Som rejeitado) no The Oxford English Diccionary contém referência ao ruído como um som rejeitado e é datado de 1225;

Unmúsical Sound (Som não-músical), em que o físico Hermann Helmotz (século XIX) empregou o termo ruído para descrever um som composto por um período de não-vibração (o raspar das folhas por exemplo), em comparação com sons musicais que consistem em períodos definidos de vibração. Em certo sentido ainda é usado em expressões como “white noise” bem conhecido entre nós como ruído branco;

A expressão Any Loud Sound (qualquer som alto), a forma mais generalizada e comum na definição de ruído, refere-se a sons particularmente altos. Através de regras para a sua redução e controle, as leis proíbem sons altos e estabelecem limites admissíveis em decibéis7 para diferentes locais e determinadas horas do dia.

E por ultimo a Disturbance in any signaling system (distúrbio do sinal). Na Electrónica e na Engenharia a expressão noise (ruído) refere-se a um distúrbio de sinal, sonoro ou visual, algo que se encontra fora do sistema como ruídos de estática no gira-discos, no telefone ou na emissão de “chuva” visível no ecrã do televisor.

Até ao início do século XX o ruído era considerado tudo o que era dissonante ou agressivo para os ouvidos. Em 1913 o artista futurista Luigi Russolo propôs o mais importante manifesto sonoro de sempre, Arte di Rumori (A Arte dos Ruídos). Este manifesto rejeitava a linguagem musical instituída e sugeriu a experimentação de uma nova paleta sonora, apelando ao uso de uma nova realidade ambiental: A paisagem moderna, industrial e tecnológica do novo século XX.

Tendo como ponto de partida a ambiência vivida, atento à poesia do quotidiano, Russolo apercebeu-se das grandes diferenças entre a dimensão sonora do real e a limitação

7 Decibel é unidade de medida na escala que ordena o volume de som. Esta medição vai de -36dB a 140dB e é obtida com

a aproximação dos valores mínimos e máximos da possibilidade e dos limites da audição humana. O som no deserto ou numa camara anecóica representa sensivelmente 10dB enquanto que os motores de um avião atingem os 140dB.

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perceptiva dos sons institucionalizados, revelando através do som o encontro entre arte e quotidiano moderno, uma intenção clara em diminuir o fosso entre a instituição arte e a vida propriamente dita. Nas palavras da autora de O Universo dos Sons nas Artes Plásticas, «O ponto de partida russoliano é a consciência de que no início do século XX habitamos uma nova paisagem sonora, na qual somos obrigados a experimentar diferentes sensações, impregnadas de actualidade» (Almeida, 2007: p.39). Para tal, propôs-se então o uso de novos objectos tecnológicos para enriquecer a limitada variedade tímbrica de uma orquestra regular. Para Russolo as instituições Música e Arte eram territórios sagrados tornando-se impenetrável a composição aleatória e desconstruída com base no quotidiano.

Através dos Intranarumori8, Russsolo propôs substituir a realidade tímbrica musical,

ultrapassando os limites dados pelos instrumentos convencionais e desafiando as mentalidades da época, para uma nova abordagem na apresentação de peças musicais. Através das máquinas que inventara, era possível reproduzir alguns aspectos tecnológicos da paisagem urbana. A imaginação de Russolo tornara-se reflexo do crescente estado inventivo da humanidade, tal como acontecera com a invenção do Fonógrafo de Thomas Edison ou com a invenção e desenvolvimento da fotografia por Niépce e Daguerre. A memória, o registo, a representação da natureza, o acto de criação e a verdadeira mimesis de Platão ou Aristóteles no início do século XX.

Mas para Edgar Varése9, considerado o mais importante músico Dadaísta, seria a arte

a resgatar a vida e não o contrário. Apesar de concordar com os futuristas de que o novo século estaria a exigir novos modelos de expressão, novos padrões sonoros, este compositor desprezou desde logo a armadilha materialista da vida moderna não se deixando levar pelo fascínio da mimética dos sons mecânicos. Sobre a sua própria música afirmou que esta seria determinada pelas exigências do seu ritmo interno - o que a tornava mais rica e transcendente. Considerava os concertos para sirenes de fábrica um processo meramente imitativo em oposição ao criativo (Stubbs, 2009: p.33). Edgar Varése mostrou-se interessado em dar corpo à matéria sonora proteiforme10. Transformar as massas sonoras

em cores de timbres, jogos de interações recíprocas, libertadas do jugo de um sistema, trabalhando o ruído a níveis mais exigentes. É esta a grande imagem que detém Varése, a metamorfose sonora, a forte capacidade em dialogar com a ciência e a electrónica,

8 Intrarummori são os instrumentos-máquinas em forma de funis, inventados por Russolo e apresentados pela primeira vez

ao público em 1912. Produziam sons que replicavam a realidade moderna, simulando ambientes citadinos e indústriais, um simulacro acústico que viria a mudar todo o pensamento músical nas décadas seguintes.

9 Edgar Varése foi um compositor francês e naturalizado americano. Criou a New Symphony Orchestra e compôs peças

inovadoras como Amériques, Ionization, Ecuatorial ou Poéme Electronique. Foi responsável pela aproximação da música à ciência, à fisica e à electrónica, por achar que só esta poderia acrescentar algo de inteiramente novo à música.

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criando composições cujos sistemas e estruturas se tornam autónomas, progredindo elas mesmas como um organismo vivo, antevendo algo como a música generativa do século XXI.

Após a Segunda Guerra Mundial os gritos de ordem, ruídos das bombas e ataque aéreos, inspiraram compositores como Ianis Xenakis por exemplo, mas é sobretudo em Paris na década de 50 que Pierre Schaeffer ou Pierre Henry (fundadores do Groupe de Recherches de Musique Concrète), à semelhança dos Futuristas, voltaram a incorporar a realidade nas suas pesquisas sonoras, através da gravação e manipulação em fita da diversidade de ruídos provenientes das novas tecnologias. Muito à custa dos avanços tecnológicos deixados pela indústria da militar (rádio, telecomunicações, gravadores de fita, etc.), Schaeffer que era um engenheiro ligado aos estúdios de rádio e televisão francesa, abria assim uma via sem precedentes para o que entendemos hoje como a estética Noise e Glitch. Depois de alguns anos na clandestinidade da arte, o ruído é no século XXI a principal matéria moldável.

Também John Cage colocou em prática uma série de Happenings inovadores, utilizando o ruído e a manipulação de objectos (water music), recorrendo a gravações em fita (tape music), usando instrumentos modificados (sonatas and interludes for prepared piano) ou simplesmente modulando som em espectáculos intermedia, onde se misturavam a dança, o concerto, a performances, a recitação de poesia, a pintura, a projecção de slides e filmes, como os realizados na Black Mountain11 ao lado de Alan Kaprow, Merce Counnigham,

Robert Rauschenberg, Charles Olson ou David Tudor.

Repleta de novas potencialidades, na modulação de ruído utilizam-se processos tecnológicos avançados que, como nunca, facilitam a proliferação de novos mecanismos e linguagens, novas abordagens criativas e diferentes conceitos de apropriação. Num ápice, para curadores e galeristas, o ruído retoma posição na grande arena da arte, é a grande descoberta, «a novidade sonora que se tornará responsável pela génese de uma nova sensibilidade perceptiva artística (…) um elemento real dessacralizado com presença física, que integra todas as dimensões vitalistas do quotidiano.» (Almeida, 2009: 41).

O conceito de ruído foi evoluindo ao longo dos séculos, para desembocar no que é hoje considerado, a mais oculta e prolífica matéria-prima das novas estéticas artísticas. Na música contemporânea do séc. XX foi usado em composições de Iannis Xenakis ou

11 Black Mountain College foi uma escola de artes fundada em 1933 na Carolina do Norte. Este local de experimentação e

ensino das artes envolveu o trabalho, a participação e a formação de diversos artistas como Charles Olson, Rauschenberg, Merce Cunnigham, John Cage, Robert Ducan, Walter Gropius, entre muitos outros. Foi a mais importante encubadora do movimento avant-garde americano e um campus importantíssimo no contexto das artes experimentais, no desenvolvimento da música experimental, no Happening e na Performance.

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Stochkausen. Mas são hoje inúmeros os artistas que desenvolvem pesquisas e trabalhos instalativos a partir do ruído, natural, artificial, analógico ou digital, como são os casos de Rioji Ikeda, Carsten Nicolai ou o Dinamarquês Jakob Kirkegaard. Este último, um exemplo da nova geração de artistas cujo trabalho é focado nos aspectos estéticos e científicos do som, utilizando o ruído e as gravações de campo em instalações, produz composições e performances apelando à reflexão sobre os aspectos acústicos e aos fenómenos aparentemente imperceptíveis em determinados ambientes. Kirkegaard utiliza acelerómetros, receptores electromagnéticos e hidrofones de fabrico artesanal para gravar sons provenientes dos mais diversos ambientes, muitas vezes lugares raros como geisers, dunas de sal ou zonas nucleares de acesso proibido e de grande perigosidade. Com a instalação LABYRINTHITIS, levou estudos e descobertas científicas sobre o ouvido humano à galeria de arte. Uma terceira frequência é imitida quando este reage ao cruzamento de duas frequências puras, um reflexo do sistema auditivo conhecido por DPOAE (distortion product otoacoustic emission), também conhecido em musicologia por “Tartini tone” referenciando-se ao compositor Giuseppe Tartini12.

Mas na transição para o séc. XXI, Noise (ruído) seria o nome dado a uma estética musical extrema, que utiliza maioritariamente o ruído, a distorção e o feedback como material de eleição, bem como técnicas de processamento analógico e digital de modo a produzir peças caóticas, aparentemente desestruturadas e radicais para os espectadores mais incautos. O Noise afirma-se a partir da estética Industrial13 com colectivos que

utilizavam o ruído branco14 e spoken word com vocalizações ao estilo punk, como Whitehouse,

ou as guitarras e máquinas em alta distorção dos seminais Throbbing Gristle.

Noutra zona do globo, o artista Masami Akita, também conhecido como Merzbow, é um dos símbolos máximos do Noise japonês e assume-se como altamente influênciado pelo Dadaísmo e pelas colagens feitas por Kurt Switters. Em 1981 começou a fazer experiências sonoras que se tornaram incontroláveis. Mais tarde, o projecto que montou, fruto das gravações que realizara, tornava-se pioneiro no movimento Noise Japonês.

12 Giuseppe Tartini foi o maior violinista do século XVIII, pedagogo e compositor italiano. A sua obra mais conhecida é a

sonata Il Trillo del Diavolo (O trilo do diabo), publicada após a sua morte. A realização desta sonata teria sido sugerida em sonho pelo próprio demónio.

13 Indústrial refere-se a um estilo de música experimental e performática próxima das ideias e conceitos sonoros do

futurismo, dadaísmo e do movimento fluxus. Em plena crise social e sob o regime duro de Margaret Tatcher, a música

indústrial surgia em inglaterra como uma subcultura ligada às artes e proveniente de cidades como Londres ou Sheffield,

movendo-se de costas viradas para o movimento punk. A este movimentos ficaram associados nomes como os Throbbing Gristle, Cabaret Voltaire, Z’Ev, S.P.K. ou Einsturzende Neubauten.

14 Ruido Branco, também conhecido por Whitenoise, é o som obtido na mistura de todas as frequências contidas no

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Wherever we are, what we hear is mostly noise, when we listen to it, we find

it fascinating. (Cage, 1968: p.3) 2. Soundscape

Para Murray Schaeffer os primeiros sons estão nos oceanos e mares, a água é o primeiro elemento sonoro estudado. Russolo afirmou ser esta melhor matéria em termos acústicos e John Cage fala da sua imponderabilidade, explorando várias possibilidades na composição musical na performance Double Music (1940) ou Water Walk: For solo television performance (1952). Existe uma obra de Parmegiani em que o compositor francês e pioneiro da música electrónica e acusmática (também ligado ao Groupe de Recherches Musicales), que tenta recriar a paisagem sonora do início do mundo, uma obra poética sobre imprevisibilidade tal como é a música generativa, em que o algoritmo não permite repetições (loop). Pauline Oliveros15,

definiu paisagem sonora como todas as ondas sonoras fielmente transmitidas ao nosso córtex pelo ouvido. A paisagem sonora é por isso, um som ou uma combinação de sons que formam ou decorrem de um ambiente imersivo.

O estudo da soundscape é objecto da ecologia acústica. A ideia de paisagem sonora refere-se tanto ao ambiente acústico natural, composta por sons naturais, incluindo por exemplo vocalizações de animais, os sons do estado do tempo e outros elementos naturais; como todos os sons criados por seres humanos, composições musicais, desenho de som e outros comuns das atividades humanas, incluindo conversa, trabalho, ou mesmo os sons de origem mecânica resultante do uso da tecnologia industrial. O rompimento desses ambientes acústicos resulta na poluição sonora. A "paisagem sonora" também pode referir-se a uma gravação sonora ou a um dereferir-sempenho de sons que criam a referir-sensação de um ambiente acústico particular, ou composições criadas a partir de gravações de campo. Para R. Murray Schafer16 a base do estudo da Soundscape está num meio termo entre a ciência, a

sociedade e as artes. A acústica e a psico-acústica17, fala-nos das propriedades físicas do

15 Pauline Oliveros é uma compositora norte americana e fundadora da Tape Music Center em São Franciso USA. Figura

central no desenvolvimento da música electronica nos Estados Unidos foi ainda directora do mesmo centro de estudos, mas agora no Mills College sob o nome de Center for Contemporary Music. Escreveu vários livros, criou novos conceitos musicais e sonoros, como o Deep Listening ou Sonic Awareness.

16 R. Murray Schafer é considerado um dos compositores de vanguarda norte americanos mais interessado no estudo

aprofundado do som, com foco na acoustic ecology, introduziu nos estudos académicos os termos, Schizophonia, Soundscape (Paisagem Sonora) ou Ecologia do Som, foi também autor do famoso livro The Soundscape – Our Sonic Environment and The

Tunning of The World. Teorizou metodologias de organizaçãoo e catalogaçãoo dos sons em determinado espaço geográfico

ou lugar. Para uma correcta compreensão de Soundscape dividiu-a em três elementos fundamentais: Keynote sounds (nota predominante, tonalidade); sound signals (sinais sonoros comuns); soundmarks (marcas sonoras únicas nesse lugar).

17 A psicoacústica refere-se ao estudo da percepção do som, da relação entre as sensações auditivas e da física do som. O

som comporta características específicas como frequências, amplitudes de onda, volume, e duração, estas são percepcionadas de modo diferente em cada individuo, provocando variações de comportamentos físicos e psíquicos.

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som e da forma com que este é interpretado pelo cérebro humano. Num contexto sociológico observa-se como o ser humano age perante os aspectos sonoros no seu meio envolvente e como estes podem afectar e transformar o seu comportamento, quer individualmente quer em grupo. Em relação às artes e porque esta dissertação nos fala de arte e da sonora em particular, Soundscape significa aqui observar até que ponto o homem consegue criar a sua paisagem sonora ideal, utópica e transcendental, elevando-se a uma outra dimensão, à vida da imaginação, da criatividade e da reflexão. Segundo o autor de The Soundscape – Our Sonic Environment and The Tunning of The World, é justamente a partir destes estudos que se iniciam os fundamentos para uma nova interdisciplina – o desenho acústico (acoustic design)18, um dos territórios escolhidos para a construção deste projecto artístico.

2.1 Field Recordings

Field Recordings ou gravações de campo, são registos sonoros do quotidiano urbano e da natureza em geral, que dispensam o estúdio de gravação. Inicialmente realizadas com gravadores de fita pouco portáteis, esta actividade veio sendo facilitada com os avanços tecnológicos, pois nas últimas décadas algumas marcas especializadas, têm colocando no mercado gravadores portáteis de alta precisão a preços cada vez mais acessíveis.

A Etnomusicologia é a vertente antropológica aplicada ao estudo da etnografia e recolha de vozes, cânticos e música popular em vários pontos do globo. Outras denominações coexistem como a Bioacoustics e Biomusicology no estudo das vocalizações no comportamento animal. Mas foi através da música concreta dos anos 1940-50 e mais precisamente com Pierre Scheffer, que inicialmente se difundiu esta actividade no meio artístico. Mais tarde, o grupo canadiano conhecido por World Soundscape Project liderado por F. Murray Schafer, avançou com estudos mais aprofundados que focavam particularidades acústicas em determinados lugares, lançando novas propostas, terminologias e conceitos organizacionais através da captação de sons, como foi o caso da Acoustic Ecology19. Actualmente, num

mundo pós-digitalizado, os field recordings são encontrados em diversas acções artísticas

18 O Acoustic Design (desenho de som ou desenho acústico), é hoje considerada uma disciplina nos estudos da arquitectura, design

e nas artes plásticas. Estuda os espaços, os materiais e as superfícies em termos acústicos. Desenha sistemas de modo a controlar e equilibrar ambiente exterior do interior através do estudo da reflexão, absorção e vibração das matérias, recorrendo a medições especificas de ressonâncias através da emissão de frequências.

19 Entende-se por ecologia do som todo o estudo acústico e sonoro que esteja relacionado com a necessidade de

compreender, ordenar e contextualizar o som. Despertando consciências e estabelecendo regras na utilização saudável do som, pensando o mundo através das relações do homem com os espaços acústicos envolventes, quer se trate de um deserto, montanha, cidade ou o campo.

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como a instalação sonora, aplicações interactivas, vídeo, multimédia, videojogos, teatro ou performance, mas sobretudo na música experimental e electroacústica.

Existem vários artistas dos field recordings e um dos líderes desta geração é Chris Watson. Conhecido por ter pertencido ao grupo industrial Cabaret Voltaire no final dos anos 70 e início dos anos 80 do século XX, dedicou-se posteriormente à gravação sonora para documentários de natureza no canal televisivo BBC. Algumas das suas gravações encontram-se publicadas na editora inglesa Touch20, uma das mais emblemáticas

plataformas independentes na divulgação da música experimental, pelo que Chris Watson aproveita para publicar aqui composições mais obscuras. Watson é mais um defensor da escuta livre mas tal como Pauline Oliveros ou John Cage entre outros teóricos e artistas, apela aos sentidos da escuta e reforça a intenção e a necessidade de parar e aprender a ouvir, referindo-se à grande diferença entre ouvir e escutar, do inglês hearing and listening. Estabelece-se um pequeno paralelismo com a imagem quando diferenciamos olhar e ver, no sentido de observar com mais atenção, focar um determinado objecto, ou quando o zoom nos traz o detalhe a primeiro plano. Chris Watson diz-nos numa entrevista:

(…) we spend lot of negative energy stopping ourselves from listening and is quit a journey to be able to go somewhere and open our hears and engage with an environment, or a place, or an animal, or piece of music, or an instrument, or the acoustics of a build environment (…) but is a key part of the process, is the first step in composition in fact I believe.21 (Watson, 2012: em linha)

Através desta identidade visual e sonora, a editora de Chris Watson reflecte diversos conceitos hoje em discussão nas artes, na filosofia e nas ciências humanas, questões primordiais sobre quotidiano e meio envolvente, todo um pensamento sobre meio, espaço, tempo e lugar, complementando-se com outros mais específicos da esfera sonora, como imersão, espacialidade, ritmo e matéria.

Florian Hacker22 ou Kim Cascone23 por exemplo, exploram as gravações de campo

através de processamento digital com recurso a linguagens computacionais, construindo

20 Touch é uma editora discográfica sediada em Londres com foco na música experimental. Fora de qualquer doutrina e

distante das ideologias New Age e Música Ambiental do passado século, esta editora avança com novas propostas sonoras e com preocupação em difundir uma nova estética músical. O design e a fotografia de Jon Wozencroft complementam um conjunto de trabalhos de artistas como Fennesz, Biosphere, Z’ev, Phill Niblock, Thomas Köner ou Philip Jeck.

21 Entrevista Chris Watson – The Art of Listening na SNYK, uma rádio de Copenhaga dedicada à arte Sonora e à música

contemporânea e que partilha os seus conteúdos através da publicação de podcasts. http://snykradio.dk/home/chris-watson-interview-the-art-of-listening

22 Florian Hecker (1975-) vive e trabalha em Kissing (Alemanha) e Viena. É artista sonoro, músico, professor e participou

em inúmeras exposições individuais, coletivas e performances, as mais recente foram na dOCUMENTA (13), Kassel (Alemanha, 2012).

23 Kim Cascone é um compositor americano de música electrónica, indústrial e electro-acústica. Editor e teórico, escreve

para diversos jornais académicos e revistas especializadas na música electrónica e contemporânea. The Aesthetics of Failure é um texto famoso sobre Glitch, ruído e erro na composição pós-digital que ficou bem conhecido no meio académico e

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objectos e ferramentas próprias, através de softwares como Max/MSP/Jitter, Pure Data, ou SuperCoollider. Na utilização dos field recordings aplicados à música experimental e com métodos semelhantes em Portugal, também podemos encontrar ao mesmo nível nomes como João Castro Pinto, Vitor Joaquím, Luís Costa e Rui Costa, Paul Raposo e Carlos Santos, estes últimos colaboradores e mentores de projectos como a Binaural/Nodar24 ou a

Associação Granular25.

Hecker, que cruza o seu conhecimento de linguagens informáticas com estudos em psicolinguística e arte, realizou recentemente uma instalação sonora site-specific com alguma complexidade espacial e de grande detalhe acústico. No Jardim Botânico do Museu de História Natural foram instalados 10 speakers para uma composição que misturava sons pré-gravados e o processamento em tempo real, através de microfones e sensores de movimento instalados no espaço. Para a sua exposição no espaço Lumiar Cité, Hecker criou a obra Articulação, uma instalação sonora que parte de um libreto experimental do filósofo iraniano Reza Negarestani e que é um prolongamento de Chimerization, um trabalho que o artista apresentou na dOCUMENTA (13) em Kassel (Alemanha 2012). Acerca do artista, no press release da exposição podia ler-se:

Nas suas instalações, performances e edições discográficas, Florian Hecker negoceia com desenvolvimentos particulares na composição musical da modernidade do pós-guerra, com a música eletroacústica, bem como com outras disciplinas. Hecker dramatiza o espaço, o tempo e a autopercepção, isolando eventos auditivos específicos na sua singularidade e, assim, estendendo os limites da sua materialização. (Hecker, 2012)

2.2 Microfone pendurado e Sounds of Lisbon

Entre 1986 e 1990 realizei um programa de rádio sobre novas abordagens da música alternativa e contemporânea onde a música experimental e a estética ambiental eram frequentemente abordadas. Por vezes, intencionalmente, o microfone era colocado fora da janela de modo a captar ambientes exteriores, emitindo simultaneamente música e sons

sobretudo nos cursos de Digital-Media. Trabalhou como assistente e editor de música para David Lynch em Twin Peaks e

Wild at Heart.

24 A Binaural/Nodar é uma Associação Cultural sem fins lucrativos fundada em 2004 com o intuito de promover a

exploração e a pesquisa nos domínios da arte sonora experimental, com especial ênfase na transversalidade de media e linguagens e na articulação entre a produção artística e o contexto envolvente, particularmente ao desenvolver actividades nos espaços rurais de Nodar e do Maciço da Gralheira (concelho de São Pedro do Sul, sub-região de Lafões), através da plataforma de experimentação colectiva Nodar Rural Art Lab.

25 Granular é uma associação cultural sem fins lucrativos dedicada ao desenvolvimento e à promoção da arte

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reais do quotidiano (vento, chuva, tráfego, etc.), surgindo novas peças sonoras em cada emissão. Estas sessões terão sido as minhas primeiras abordagens aos field recordings.

Em 1994, produzi Sounds of Lisbon a propósito de uma exposição colectiva em Berlim, jogando com a memória dos lugares, a identidade e a iconografia da capital, apresentei uma instalação com recolhas sonoras da cidade de Lisboa. Numa altura em que Berlim sofria grandes alterações estruturais (o muro havia caído há 5 anos apenas) modificando grande parte da sua zona leste, Lisboa procedia a obras de grande envergadura pretendendo criar, de raiz, uma nova área metropolitana, a expo 98 e o parque Sony. Gravei som numa perspetival field recordist e produzi um kit composto por uma cassete de fita áudio, um Walkman e 10 fotografias que iriam corresponder às 10 faixas de som da cidade de Lisboa. O objectivo da peça era criar um jogo de correspondências e associações entre sons e imagens, na sua maioria representações de lugares e percursos, linhas fictícias de fronteiras, de transporte de pessoas e bens, a identidade sonora nas diversas entradas e saídas da “nova capital europeia”. Assim, devolvi à Alemanha uma cassete BASF de 60 minutos com os sons da estação de comboios de Sta. Apolónia, do Cais do Sodré, da estação fluvial de Cacilhas, ou da Expo’98 em construção. Repleta de ruídos de máquinas, podia-se também escutar o ruído das várias travessias na ponte sobre o Tejo, as linhas de comboio entre Lisboa e Cascais, os sincopados sistemas de rega já desaparecidos e por último, os diálogos de trabalhadores emigrantes vindos de todo o mundo.

Por último e mais recentemente, numa outra abordagem aos field recordings, através da minha participação no projecto de investigação Multidimensional Interactivity do departamento de Arte Multimédia do CIEBA (Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes). Numa perspectiva de soundwalks, explorei o som através da orientação de estudantes num workshop de registo em movimento e na captação de sons naturais com o intuito de produzir uma instalação interactiva a partir do processamento das referidas captações.

A instalação intitulada Pós-Paisagem pretendia reflectir sobre a interferência do Homem na paisagem e esteve patente na Cisterna da Faculdade de Belas-Artes em Abril de 2012.

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3. A escuta do Submundo: Undercurrent e Inland

3.1 Undercurrent

In nature (water) is the most frequent, most varied, and richest sources of noises. Luigi Russolo, The Art of Noises, 1916 (Khan, 1999, p.246)

Como anteriormente foi referido, na construção desta instalação audiovisual e numa lógica totalmente experimental, procurei mover-me num ambiente natural que proporcionasse momentos visuais e sonoros ímpares, mas que simultaneamente me abrisse novas possibilidades no meu campo exploratório. Só assim poderia apresentar novas ideias quanto à composição a partir dos chamados field recordings, quer fossem apresentados em estado puro ou após processamento digital. Dando prioridade à captação e ao processamento da água em movimento, registando os respectivos fluxos, realizei diversas captações de imagens e sons no interior de um rio, através do uso de microfones especiais para captura de sons em meio líquido (hydrophones) e de uma câmara estanque de fabrico artesanal. Esta recolha que opera numa lógica laboratorial, criando etapas, catalogando e ordenando samples para posterior observação e escolha definitiva, segue alguns parâmetros semelhantes às teorias do soundscape teorizado por Murray Schaffer. No terreno, a repetição destas acções em diferentes períodos, construíram sucessivamente uma sólida ideia de ritual, num processo criativo em que abdicar de ambientes urbanos e tecnológicos é um statement, uma postura intencional que actua numa perspectiva “back to the basics”, o inevitável regresso e escapatória. Este retorno à natureza denuncia então um ciclo primordial e que actua na génese da condição humana, pois o homem procurar confronto na única dimensão superior e palpável, aquela cuja dinâmica e força o relembrará sempre e ciclicamente da sua verdadeira posição, valor e escala. Neste sentido, escapar aqui será então regressar, exibindo-se um reencontro intencional com a paisagem Romântica de um rio ou de um lago, lembrando Ofélia de Millais ou os mitos gregos de Narciso e Eco. Em Walden, Thoreau afirma que a sua experiência não era mais que uma necessidade intrínseca de « (...) viver em profundidade e sugar toda a medula da vida» (THOREAU 2009: p.8), para

tal, teremos sempre de avaliar a nossa presença, a nossa dimensão e até uma possível submissão à implacabilidade da própria natureza. Mas aqui, o belo poderá transformar-se no

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mais obscuro e medonho momento, muitas vezes através dos sons, tal como registou Thoreau ao falar do comportamento das corujas e mochos na floresta.

Que eles vaiem os homens com o seu o pio idiota e maníaco. É um som que se harmoniza admiravelmente com os pântanos e bosques crepusculares em que não penetra a luz do dia, sugerindo uma natureza vasta e virgem que os homens não identificaram. Representam a completa penumbra e os pensamentos frustrados que todos abrigamos no espírito. (Thoreau, 2009: p.145)

Fig. 2 – Still do video Undercurrent

3.1.1 A imprevisibilidade da água no som e na imagem; Imersão, espaço e tempo.

Em termos acústicos e visuais, interessava-me então explorar os movimentos da água, os fluxos e toda a sua imprevisibilidade, um conjunto de características do domínio da física e que a tornaram tão apelativa para a arte sonora, para a música exploratória, arte e cinema. «A água nunca morre. Vive para sempre reencarnada nas chuvas, nos riachos, nas cascatas e fontes, como o turbilhão ou as profundezas dos rios.» (Shaffer, 1977: p.18). Foi aliás o ponto de partida para composições como Water Music de Handel no séc. XVIII, Water Talk de Cage no século XX e hoje na música generativa, aquela em que os algoritmos e os fluxos de dados não permitem repetições óbvias, dispensa a ideia de loop como na peça Aquatism de Parmegiani quando este compõe La Création du Monde. «Qual foi o primeiro som escutado? Foi o carinho das águas. Proust chamou ao mar “o exercício da ancestral melancolia da terra, como nos dias em que nenhuma criatura viva existia, a sua agitação imemorial e lunática”». (Schafer, 1977: p. 15). Também Parmegiani se propôs a compor e a

imaginar o início do mundo a partir de computador e para tal, inspirou-se nos diversos fenómenos físicos e químicos ocorridos no grande início, utilizando as possibilidades acústicas dos diferentes meios líquido e gasoso.

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Fig. 3 – Still do video Undercurrent

Esta relação com a água, o rio, a sua profundeza, o reflexo, as diferentes perspectivas e a subjectividade dada por um olhar a partir do interior, a sua escuridão e as particularidades acústicas de um mundo submerso, mais do que o meio é ele próprio a mensagem codificada, porque «os rios do mundo falam a sua própria linguagem» (Shaffer, 1977: p.18). Na verdade uma vez submersos, existe uma aproximação ao falso silêncio quando revivemos a sensação de vácuo ou bolha irreal à qual não somos indiferentes. Em termos perceptivos, tal como na câmara anecoica, estas experiências proporcionam estados mais profundos e de grande acuidade auditiva, aumentando o detalhe das malhas e das texturas mais subtis. Uma vez mais por razões da física, a água tem então esta capacidade, são os átomos, as ligações entre moléculas que possibilitam uma melhor e maior rapidez na propagação do som. No ar o som move-se a uma velocidade aproximada de 340 m/s, enquanto que na água este comportamento aumenta para os 1400 m/s. Mas a água é além do mais representativa do conforto iniciático, desde logo dado através do líquido amiótico. Escutar e sentir o mundo é sobretudo um atributo físico, as vibrações sonoras são sentidas através do seu embate no nosso corpo e não apenas escutadas pelo nosso aparelho auditivo.

O oceano dos nossos antepassados é reproduzido através do útero da nossa mãe e está quimicamente relacionado com ele. Oceano e mãe. No líquido escuro do oceano as implacáveis massas de água empurram a orelha como um primeiro sonar. À medida que a orelha do feto se transforma e movimenta no líquido amniótico, também sintoniza o colo e o borbulhar da água. (Schaffer, 1977: p.15)

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3.1.2 Apneia e o Espectador Imerso

Neste longo e sinuoso percurso de Undercurrent, o espectador mergulha então no fundo de um rio e é convidado a descê-lo através de uma corrente submersa. Neste fluxo emerso que alterna entre a imagem e a escuridão absoluta, assistimos então à formação das diversas etapas que compõem os interstícios desta viagem, onde cada momento visual parece evoluir e estimular exponencialmente uma composição sonora. É aqui neste lugar recôndito da percepção, na permanente tensão sinestésica, através de uma escuta espacializada e de uma câmara subjectiva, que se constata pela primeira vez uma relação entre o interior e o exterior. No desenrolar das acções, o mergulho, os diferentes movimento de câmara, o olhar ascendente e vertical, a visão que revela uma linha tangente, há uma permanente geometria que acompanha esta narrativa transcendental. «Se multiplicássemos as imagens, tomando-as nos âmbitos da luz e dos sons, do calor e do frio, prepararíamos uma ontologia mais lenta, mas sem dúvida mais segura que aquela que se baseia nas imagens geométricas.» (Bachelard, 2005: p. 215). Observamos então as árvores e os detalhes das margens, há uma superfície ofuscada repleta de imagens instáveis que deformam a realidade, tudo através de uma lente subvertida e transformada nesta tangente ao meio submerso.

Undercurrent revela-se então um processo evolutivo no afastamento da imagem e na primazia do som, entendidas apenas como imagens introdutórias, ao mesmo tempo expõe fenómenos e aspectos formais mais obscuros e que de outra forma, permaneceriam ocultados. Aqui, as imagens e os sons tocam simultaneamente as profundezas e os lugares mais recônditos do nosso subconsciente. Através da água, da tela negra e de uma peça sonora minimalista em forma de drone, a instalação confronta-nos a própria existência, pois há uma permanente avaliação da narrativa e do respectivo percurso ao ponto de nos perdermos, ao nos situarmos a ficção revela-se tão próxima da realidade que se torna ela própria desconfortável.

É sobretudo a procura de novos sons que proporcionaram o escape. A fuga é inerente a qualquer processo criativo, é despoletada no momento em que existe uma necessidade de procurar algo inovador, de responder a uma nova questão. Envolto numa força natural e ao mesmo tempo utópica, Undercurrent surge da necessidade de mergulhar no desconhecido e partir do zero, como se fizesse tabula rasa para renascer em termos espirituais, questionando a própria existência como na poesia de Brian Eno em By This

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River. No entanto, não sendo estas as imagens da “Ilha” de Thomas More, talvez tivesse encontrado outra forma de a pensar ou a viver por um instante que fosse.

Mais uma vez, em Walden ou a Vida Nos Bosques, também encontramos a visão utópica de Thoreau, um viver sensível aos diversos ecos que rodearam a sua escrita. Numa das mais belas narrativas de escape, o autor de Walden fala-nos da distância e do tempo através de um capítulo inteiramente dedicado ao sons. Sobre a capacidade do vento lhe trazer sons distantes, Thoreau descreveu com precisão e musicalidade de algumas das sensações adquiridas quando emerso no interior da floresta.

Todo o som ouvido à maior distância possível, produz um só efeito, uma vibração de lira universal, exactamente como a atmosfera que nos circunda torna interessante aos nossos olhos uma remota aresta de terra, graças ao tom de azul que lhes confere. (Thoreau, 2009: p.143)

A dimensão e a escala aqui apreendida, através dos diferentes sons e das respectivas dinâmicas, são descritas em Walden como um episódio fundamental no profundo retiro, tal como os cegos num mundo altamente visual, os fenómenos acústicos apreendem-se aqui com grande sensibilidade e são tidos em conta a cada instante que passa. Como um alarme constante, o som é a chave. Através do eco, o homem funciona como um sonar mais limitado, um scanner contido que lê o mundo permanentemente, onde a percepção é feita tanto no silvo do vento e no cantar do pássaro, como na devolução dos respectivos sons, fruto do reflexo natural oferecido pela montanha ou pelos enormes edifícios da cidade. Thoreau registou diversos pensamentos e dados, onde se reforçaram estas sensações, sobretudo quando afirma que

(...) chegava até mim um melodia filtrada pelo ar e que havia conversado com todas as folhas e hastes do bosque, aquela porção de som que os elementos apreenderam, modularam e ecoaram de um vale ao outro. O eco, até certo ponto, é um som original, e daí a sua magia e encantamento. Não é mera repetição do que merecia ser repetido pelo sino, é em parte a voz do bosque; as mesmas palavras e notas triviais cantadas por uma ninfa. (Thoreau, 2009: p.143) A propósito do som das aves e das corujas à noite, Thoreau descreveu ainda em tom melancólico

(...) almas degradadas que um dia em forma humana vagaram à noite sobre a terra, fazendo a obra das trevas, e agora expiam os pecados com hinos de lamentação ou elegias no cenário das suas transgressões. Proporcionam-me uma nova percepção da variedade e capacidade da natureza, nossa morada comum. (Thoreau, 2009: p.144)

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A água aparece então como orgânica de uma memória e do infortuito, do pesadelo e da morte, do sagrado e do profano. Em Five Angels For The Millenium de Bill Viola por exemplo, como em muitas das suas obras, encontramos preocupações com o tratamento sonoro na manipulação de sons de água aparentemente banais, como gotas, cascatas ou o simplesmente o fluxo do rio. É atrasando estes sons no filme e mesmo no vídeo que se obtêm frases sonoras longas com predominância de baixas frequências, aquelas que no córtex auditivo apelam às emoções. Assim também é afirmado por Rhys Davies numa análise ao trabalho sonoro de Bill Viola. Em The Frequency of Existence lê-se que

o dispositivo de baixas frequências, provocador de uma resposta emocional, é utilizado desde os primeiros seres humanos quando tentaram compreender o seu lugar na existência através da expressão criativa. É o som feito por bolas de chumbo a cair em peles de animais esticadas que significam as intervenções de Deus na tragédia grega clássica. (Towsend, 2004: p.144)

Talvez seja significativo afirmar que o início da carreira de Viola coincidiu com uma nova referência para o design de som no cinema mainstream. Star Wars: Uma Nova Esperança por (George Lucas, 1977) foi um dos primeiros a usar o sistema THX e Dolby de som surround. Mas neste caso concreto, a espacialização para quatro pontos será suficiente para uma experiência imersiva e ao mesmo tempo representativa do espaço acústico em questão (o interior de um rio).

Em Undercurrent também escutamos detalhes de água processada através de reduções de tempo, cortes e saltos no próprio vídeo, numa intenção de obter sons mais graves e emotivos. Estas técnicas também foram exploradas através de fita magnética por alguns pioneiros da música concreta e electrónica como Pierre Schaeffer, Eliane Radigue ou Delia Derbyshire26. No filme também o som arquétipo é usado para sensibilizar o observador à

acção sobre a tela. O som não se limita à estrutura visual e, por conseguinte, beneficia de uma maior liberdade de expressão, particularmente quando é contextualizado por elementos diegéticos27.

No meu subconsciente, talvez estivesse a necessidade partilhar experiências como a vivida numaa câmara anecoica, onde as únicas coisas escutadas eram sons do meu próprio corpo: os batimentos cardíacos, fluxos da corrente sanguínea e o próprio trabalhar do

26 Delia Derbyshire foi uma compositora britânica que experimentou diversas técnicas na música concreta e música

electronica. Licenciou-se-se em Matemática e Compusição Músical, sempre esteve ligada à rádio através da BBC

Radiophonic Workshops. Aqui participou como assistente dos estúdios e compôs diversa peças para filmes e documentários. 27 «Ettienne Souriau lançou o termo de diegética para distinguir o cinema do processo narrativo da literatura. A diegética será

tudo o que pertence à inteligibilidade, ao mundo suposto ou pressuposto pela ficção do filme. É formado por duas realidades: o dado sonoro da narrativa e a sua extrapolação musical (Souriau 1953)» (Barreto 1995: p.113)

Imagem

Fig. 1 The Pocket Theatre, New York 1964  Tony Conrad, Marian Zazeela, La Monte Young & John Cale  (Fotografia de George Maciunas)
Fig. 2 – Still do video Undercurrent
Fig. 3 – Still do video Undercurrent

Referências

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