• Nenhum resultado encontrado

Borges, Borges, Bruning Bright

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Borges, Borges, Bruning Bright"

Copied!
6
0
0

Texto

(1)

Marisa Corrêa Silva**

BRIGHT*

Resumo: um dos temas recorrentes na obra de Jorge Luís Borges é o tigre. Neste traba-lho, propomos cotejar a imagem do tigre em três contos e tentar entender de que manei-ra Borges entrelaça os significados construídos sobre essa imagem, resultando numa metáfora de ruptura das perspectivas iniciais do narrador. O conceito de objet petit a lacaniano é o ponto para o qual nossa análise se encaminha, sugerindo que a fixação infantil pelo tigre dá corpo a um desses objets e traz todas as implicações clássicas da relação do sujeito com ele para dentro dos contos de Borges.

Palavras-chave: Borges. Tigres. Objet petit a.

O

escritor argentino Jorge Luís Borges era fascinado por tigres, dedicando um

conto especialmente a esse animal, “Os tigres azuis” (Los tigres azules, pu-blicado em La Memoria de Shakespeare), e mencionando grandes felinos como exemplos de objetos fascinantes. Além disso, o tigre surge em outros contos im-portantes do autor. Em “O Zahir” (El Zahir), conto fantástico publicado em El Aleph, o narrador encontra por acaso uma moedinha comum, de baixo valor. Depois disso, ele começa paulatinamente a pensar em moedas, genericamente, para retornar à mo-eda inicial. Logo, percebe que está obcecado com o vintém: tenta parar de pensar nela e descobre que não pode. Assustado, começa a pesquisar em livros diversos a causa da

* Recebido em: 20.10.2011. Aprovado em: 30.11.2011.

** Pós-doutora pela Rutger’s. Professora na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professora asso-ciada no DLE. E-mail mcsilva5@uem.br.

(2)

sua aflição crescente e descobre que a moeda era um zahir, objeto que obceca quem o vê até dominar por completo a mente da pessoa. Lê num desses livros que, a cada vez, um único objeto no planeta é o zahir, e que um desses objetos, tempos atrás, já foi um tigre. A mente tomada pela obsessão do zahir em poucos anos abandonava até a cons-ciência de si, de modo que a pessoa se tornava catatônica e tinha de ser alimentada, banhada etc. O narrador escreve contando sua experiência, sabendo que está conde-nado e enunciando como última esperança uma revelação divina quando, finalmente, desaparecer na moeda.

Em A Escritura do Deus (La escritura del díos), também publicado em El Aleph um sacerdote asteca aprisionado por espanhóis está numa cela dividida em dois, no fundo de uma pirâmide. Uma vez por dia, abre-se um alçapão para que joguem comida e água para ele e para o jaguar (por razões de verossimilhança, o autor opta pela con-traparte americana do tigre asiático) que está na cela ao lado. Inspirado, ele passa a observar os desenhos do pelo do animal a cada dia, nesses breves segundos em que a luz entra nas celas e consegue, após anos de esforço, decifrar a palavra divina escrita nesses desenhos. Essa palavra outorga o poder divino, absoluto, a quem a disser em voz alta, mas o sacerdote, ao alcança-la, alcançou também o conhecimento absoluto, tornando-se indiferente ao seu país, à sua nação, aos espanhóis, à Conquista e ao pró-prio sofrimento.

Ao contrario dos labirintos, dos duplos e das bibliotecas, metáforas recorrentes e bastante estudadas na obra de Borges, a imagem do tigre é mais sutil, aparece com menor evidência e quase sempre está no segundo plano da narrativa. Até mesmo no citado “Os Tigres Azuis”, Borges faz com que o narrador, fascinado pelo grande fe-lino e se embrenhando na selva em busca do tigre de pelo azul, com o qual chegou a sonhar, encontre, na verdade, pedrinhas azuis num planalto defendido por uma tribo primitiva. Essas pedrinhas têm o perturbador condão de aumentarem ou diminuírem de número cada vez que alguém tenta conta-las: de um punhado, tornam-se quatro, ou trinta, e jamais se mantém, enquanto o narrador perplexo não as vê desaparecerem nem reaparecerem.

Dos tigres azuis do sonho, nada; as pedrinhas, exatamente do mesmo tom de azul sonhado, são objetos de pesadelo que ameaçam destruir toda a lógica humana. Como se trata de um conto fantástico, o narrador não se propõe leva-las a um grande instituto científico para analisar o comportamento fabuloso das pedrinhas: ele intui que isso permanecerá inexplicável, transformando a ciência numa piada e a própria noção de humanidade num engano. Em pânico, carregando as pedras e temendo que outros as vissem, acaba se livrando delas tempos depois, numa mesquita distante, num ato de fé: o narrador reza e aparece um mendigo cego que lhe pede a “esmola” que ele carrega. O narrador entende que suas preces foram atendidas, mas sente-se na obrigação de alertar o mendigo de que sua dádiva é espantosa. O outro responde, muito simplesmente: “Pequei.” (He pecado), dando a entender que Deus lhe ordenou a custódia das pedras para expiar sua culpa.

(3)

Essa estratégia de transformar o objeto em outra coisa remete às Metamorfoses de Ovídio, livro cujo elemento comum entre as diversas narrativas eram as transfor-mações mágicas de deuses e de humanos. Só que, como Borges não faz mitologia e sim contos fantásticos, as transformações borgianas não são simples atos mágico--maravilhosos e são, sempre, inquietantes. A metamorfose do tigre azul de sonho em pedra azul de pesadelo é repetida, indiretamente, nas outras referências: o tigre zahir que, no passado, paralisou devagar as mentes dos que o viram, até reduzi-los a cascas humanas lotadas de zahir, faz pensar na Medusa, ser mitológico que transformava to-dos que a viam em pedra. Zahir ou Medusa, o olhar que os encontra é castigado com a maldição paralisante que petrifica e mata. O zahir, mais do que um objeto, é uma pro-priedade, que muda de objeto quando seu portador desaparece. Em outras palavras, quando a moedinha do conto se gastar ou for destruída, alguma outra coisa no planeta vai virar zahir. A Medusa, similarmente, não é um ser vivo com o poder de paralisar por vontade própria, mas simplesmente a portadora dessa propriedade, uma vez que, mesmo depois de morta por Perseu, sua cabeça cortada petrificava quem a olhasse.

O sacerdote asteca, ao decifrar na pele do jaguar a palavra simples e única que lhe permitiria alcançar o poder divino, podendo destruir os espanhóis e tornar-se Im-perador do Mundo, passa a ver o mundo com o olhar de quem se encontra fora dele: deixa de se importar com as coisas históricas e materiais – o que inclui seu próprio corpo, envelhecido e desgastado na prisão. Novamente, o conto borgiano mostra uma situação na qual a posse do segredo condena seu possuidor a abandonar a si próprio, convertendo-se em um corpo inanimado – só que, ao contrário dos contaminados de zahir, esse sacerdote não teve sua consciência focada num único objeto. Ao contrário, ele abriu essa consciência para o Cosmos e é capaz de entender tudo: o tempo, o espa-ço, a criação, o ínfimo papel do ser humano nesse todo. Do ponto de vista metafísico, esse homem ascendeu ao Absoluto mas, do limitado ponto de vista humano, ele con-tinua preso e morrendo lentamente em sua cela úmida. Tal paradoxo não escapa ao leitor do conto, que saboreia a ironia.

O único dos três narradores a encontrar uma solução “feliz” para seu dilema é o protagonista de “Os Tigres Azuis” – e ele se salva unicamente por um salto de fé, já que a lógica e a ciência o conduziriam a um beco sem saída. A fé não apenas faz surgir um portador capacitado para receber e proteger as pedrinhas (numa boa metáfora do Cristo escolhido para carregar as culpas dos homens), mas permite ao narrador esque-cer a existência das pedras e negar para si mesmo a constatação de que o conhecimen-to humano seja uma piada. Essa personagem, quando tentava entender uma possível lógica da multiplicação e sumiço das pedras, lembra que a palavra “cálculo” vem da raiz grega que significa “pedra” – como em “cálculo renal”. Portanto, as pedras azuis ameaçam o próprio Universo, tal como constituído pela percepção humana e ordena-do através ordena-do logos.

O narrador é, assim, salvo pela fé; mas essa salvação tem o aspecto de um mero intervalo, um parêntese no caos universal: afinal, mesmo que ele se esqueça delas, as

(4)

pedrinhas azuis ainda existem, e não somente no bolso do mendigo: em algum lugar remoto existe um planalto cheio delas, defendido por uma tribo que faz de tudo para ocultar a existência delas. O deus que acudiu esse homem simplesmente fechou os olhos dele, para que ele não visse a Medusa petrificante, esquecesse sua aventura e pudesse seguir vivendo.

Podemos desenvolver essa ideia e propor que a fé cria uma alternativa de existên-cia totalmente separada da vida regida pela ciênexistên-cia, que era a vida que o narrador leva-va quando se aventurou a procurar o tigre azul. Isso está de acordo com o pensamento de Alain Badiou, filósofo de língua francesa, quando conceitua a intrusão da metafísi-ca no cotidiano, um fenômeno em geral político e poderoso, que o filósofo batizou de Evento (Èvenement). Para Badiou, o Evento (que em algumas traduções brasileiras aparece com o nome de “Acontecimento”), mais do que um fato ou uma série de fatos, é o surgimento de uma nova maneira de pensar que muda radicalmente a história, abre uma brecha no mundo, cria um caminho que se afasta perpendicularmente das lógicas até então aceitas e instaura outra lógica, permitindo mudanças nem sequer imagináveis para quem continua fechado no mundinho anterior ao Evento. Para ele, São Paulo, ao estabelecer as bases filosóficas do cristianismo, inventou uma dessas portas de saída, alçapões que levam a um modo de existir totalmente novo e inconta-minado pelas “verdades” anteriores.

Mas voltando a Borges, é como se, em seus contos, o tigre fosse uma porta para a metafísica – para o transcendente, ou até mesmo para o mágico – mas ao mesmo tem-po tivesse o dom de transformar os objetivos iniciais daqueles que o buscam em coisas totalmente distintas. Câmbio de sonho em pesadelo; de busca de saída em abandono de si; de objeto comum em maldição, a metamorfose do tigre segue as regras da maio-ria das transformações descritas por Ovídio: põe o humano em contato com forças que é incapaz de compreender e/ou que sonhou inutilmente dominar. Existem inúmeros casos em Ovídio relatando que a amante mortal de algum deus do Olimpo fez com que o parceiro lhe prometesse atender um pedido antes que ela o formulasse. O deus con-cordava e ela pedia algo perigosíssimo, como ver Júpiter em todo seu esplendor, por exemplo. Ela pedia porque, na verdade, não tinha ideia das implicações do que estava pedindo, e o amante, contrariado, obedecia porque havia prometido, e via a mulher ser destruída como resultado do cumprimento do pedido.

Paralelamente, esses tigres sonhados ou entrevistos brevemente, seja num livro que relata as aparições do zahir, seja nos segundos diários de luz na cela escura do feiticeiro, podem ser comparados com as figuras míticas dos animais guardiões. Pen-semos em Cérbero, o cão de três cabeças que guarda o Inferno; no Dragão Fafner, que guarda o ouro dos nibelungos; e muitos outros exemplos. Indomesticáveis, fascinan-tes e assustadores, são menos perigosos do que o conhecimento ou poder para o qual são a chave. Cérbero é apaziguado ou enganado em alguns casos, e é arrastado por Hercules para fora do Inferno, mas ninguém consegue vencer Hades. Fafner é morto por Sigfried, mas o ouro que guardava desencadeará paixões que destruirão os

(5)

pró-prios deuses do Valhalla, num movimento implacável que funde paixões amorosas, ambição, enganos e mentiras que mesmo Wotan (Odin), o maior dos deuses, é impo-tente para conter.

Como o “objet petit a” de Lacan, os tigres borgianos simbolizam uma passagem para um estado que, para o ingênuo que o busca, aparenta ser uma felicidade perfei-ta mas, paradoxalmente, esse esperfei-tado é impossível e o próprio ato de alcançar o tigre (efetuar a passagem) transforma tudo e consome a consciência do seu possuidor, re-duzindo-o a nada.

Tiger! Tiger! Burning bright In the forests of the night What infernal hand and might Dared frame thy fearful symmetry?

(Robert Blake)

Posfácio à maneira de Borges: após a redação deste trabalho, encontrei outro tex-to curtex-to de JLB, intitulado “Dreamtigers”, publicado em El Hacedor (Buenos Aires: Emecé, 2005), no qual o narrador confessa uma admiração na infância pelos tigres, que teria se tornado aparentemente mitigada com o passar dos anos; e a experiência frustrada desse narrador em sonhar com um tigre é descrita como “incompetência”. Novamente, o objeto que liga o sujeito a um passado idealizado é inatingível, irrecri-ável. Suspeito que, se o narrador desse conto pudesse sonhar o tigre tão cobiçado de forma satisfatória, enlouqueceria. Ou, num final borgiano, seria devorado pelo ani-mal sonhado.

BORGES, BORGES, BURNING BRIGHT

Abstract: the tiger is one of Jorge Luis Borges’ leitmotifs. This work aims to compare the great feline in three of Borges’s tales in order to understand how the author mixes diffe-rent meanings of this image, resulting in a failure of the narrator’s initial standpoints. The lacanian concept of objet petit a is the fulcrum of the present analysis, suggesting that the omnipresent tiger is built in one of such objets, turning the classical lacanian view of the subject-objet petit a relationship into one of his many textual resources. Keywords: Borges. Tigers. Objet petit a.

Referências

BADIOU, Alain. L’être et l’événement. Paris: Éditions du Seuil, 1985.

BLAKE, Robert. The Tyger. In: DRIVER, Paul (Org.). Romantic Poetry. London: Penguin Books, 1995. p. 1.

(6)

BORGES, Jorge Luís. El Aleph. 3. reimp. Madrid: Alianza Editorial, 1999.

BORGES, Jorge Luís. La Memoria de Shakespeare. Madrid: Alianza Editorial, 1998 BORGES, Jorge Luís. El Hacedor. Buenos Aires: Emecé, 2005.

OVÍDIO, Metamorfoses. Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras Editora, 2003.

Referências

Documentos relacionados

Estas questões vão um pouco além do objecto de estudo da pesquisa em causa, mas são essenciais à justificação e legitimação da pertinência da problemática central do tema da

Os resultados das análises físico-químicas das salsichas de frango padrão (S0), salsicha de frango condimentada com óleo essencial (S1) e a salsicha de frango condimentada

Este ano letivo a equipa pedagógica da instituição escolhei como tema anual para um trabalho comum e transversal a todas as salas, a “ARTE”, enquanto descoberta para

Personagens • Escritor Romeu • Letras do alfabeto Onde • Na sede da revolução Quando • A noite passada Início da história.. Romeu, um escritor em ascensão, vivia

Centro Caraívas Rodovia Serra dos Pirineus, Km 10 Zona Rural Chiquinha Bar e Restaurante Rua do Rosário Nº 19 Centro Histórico Codornas Bar e Restaurante Rua Luiz Gonzaga

Os livros, abaixo relacionados, foram especialmente selecionados para atender ao perfil da criança em cada faixa etária, pois eles funcionam como recursos valiosos no

Todo o material deverá ser encapado com plástico transparente, etiquetado contendo SOMENTE nome e ano em que o estudante está matriculado, ESCRITO EM CAIXA ALTA (letra de

Segundo Crepaldi (2006) os custos diretos na atividade rural são aqueles que são diretamente apropriados aos produtos agrícolas, e variam de acordo com a quantidade