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JOGOS DE PROFANAÇÃO DRAMATÚRGICOS EM SETE CRIANÇAS JUDIAS DE CARYL CHURCHILL

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em jogo? O texto é uma resposta da autora à

operação militar israelense na Faixa de Gaza em

2008/09. Escrita quase simultaneamente ao fato, a

obra gerou fortes repercussões. Para tal resposta,

três visões de jogo são usadas. O jogo infinito e sua

reinvenção de regras e limites para descrever

disposi vos temporais e a quebra do acordo

melodramá co. O jogo como componente de

transformação do indivíduo e da sociedade para

descrever os disposi vos de deslocamento e

mobilizações intra e extraficcionais. E, por fim, o jogo

como profanação simbólica de três usos

consagrados: o melodrama como ferramenta de

manutenção moral, a concepção moderna do

imaginário da criança como objeto de jus fica va do

conflito e o discurso histórico oficial israelense, que

tem conseguido prevalecer no mundo ocidental

como a versão consagrada da história.

Orientador: Stephan Baumgärtel

CENTRO DE ARTES – CEART

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - PPGT

JOGOS DE PROFANAÇÃO

DRAMATÚRGICOS EM

SETE CRIANÇAS JUDIAS

DE CARYL CHURCHILL

ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA JUNIOR

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SETE CRIANÇAS JUDIAS

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ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA JUNIOR

JOGOS DE PROFANAÇÃO DRAMATÚRGICOS:

SETE CRIANÇAS JUDIAS DE CARYL CHURCHILL

Dissertação apresentada ao curso de Pós-graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Teatro.

Orientador: Stephan Baumgärtel

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

O48j Oliveira Junior, Antonio Carlos

Jogos de profanação dramatúrgicos: sete crianças judias de Caryl Churchill / Antonio Carlos de Oliveira Junior. - 2015.

165 p. ; 21 cm

Orientadora: Stephan Baumgärtel Bibliografia: p. 159-165

Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2015.

1. Teatro. 2. Jogos na arte. 3. Conflito árabe-israelense. I. Baumgärtel, Stephan. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. III. Título.

CDD: 792 – 20. ed.

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Para meu pai, dona Flor e cinco dentes,

in memoriam.

Para minha mãe, sempre presente.

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AGRADECIMENTOS

Quero agradecer: Charles Gorri, Mariana Beatriz Taques, Michele Bonatti, e todos que ajudaram a cuidar de dona Flor quando ficou doente.

A Roberto Lage, Antonio Januzelli, Matteo Bonfitto, Marici Salomão, Alessandro Toller pelas trocas e constante aprendizado.

A todos meus companheiros de pós pela comunhão e tensão na medida certa do jogo prazeroso. Particularmente a Ana Paula Belling, por um convite de trabalho que rendeu outros trabalhos e muitos amigos novos. A Marco Vasquez e Tony Alano pelas boas, e saudáveis, brigas de ideias. A Carolina Figner pela parceria e carinho, a Bárbara Biscaro por uma cadeira confortável, entre tantas outras coisas. A Marcelo Fiorin, Gisela Dória, Cris Santaella e tantos outros.

A todos os professores e equipe de funcionários do Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, em especial a Fátima Costa de Lima, a Tereza Franzoni, José Ronaldo Faleiro, Mila e Francini.

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RESUMO

O presente trabalho pretende analisar o texto teatral

Sete Crianças Judias de Caryl Churchill como um jogo

de profanação política. Escrita em 2009, a obra é uma resposta artística e política da autora à operação militar israelense ocorrida em Gaza em 2008/09 e gerou fortes repercussões no mundo todo, inclusive acusações de antissemitismo. O texto é analisado em seu caráter híbrido que transita entre gêneros líricos e épicos, e entre formas dramáticas/melodramáticas e formas não mais dramáticas. Assim, a estrutura formal será abordada a partir da ideia de texto rapsódico, proposta por Sarrazac (2002). A partir do conceito tradicional de jogo conforme Huizinga (2000) e Caillois (1990), e suas correlações com a forma dramática absoluta, a primeira cena é compreendida como a proposição de um jogo melodramático localizado em um passado longínquo. Acordo esse que não será cumprido. Para compreender o jogo proposto pela autora, recorro a três autores principais. 1 - A visão de jogo infinito de Carse (1986) para descrever o dispositivo de abertura temporal e o descumprimento do acordo melodramático. 2- A noção de Gadamer (1999) sobre a capacidade do jogo de mobilizar e transformar indivíduo e sociedade para descrever os dispositivos de deslocamento e mobilizações intra e extraficcionais do texto. 3- A provocação de Agamben (2007), ao eleger como tarefa política do jogo o ato profanador. Nesse trabalho sustento a hipótese de que Sete Crianças Judias profana

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da criança como objeto de justificativa da guerra, e do caráter mítico do discurso histórico oficial israelense.

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ABSTRACT

OLIVEIRA JR, Antonio Carlos de. Profanation’s plays in dramaturgy: Seven Jewish Children by Caryl Churchill. 2015. XXX f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas – Área: Teatro, Sociedade e Criação Cênica) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Programa de Pós-graduação em Teatro, Florianópolis, 2014.

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(2007), by electing as the play/game's political task the profane act. This work supports the hypothesis that Seven Jewish Children profane, in a symbolic way, the consecrated use of melodramatic genre for maintaining an established morality, the use of modern child's imagination design to justify war operations, and the mythical character of the Israeli official historical Israeli discourse.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 17 1 A PROPOSIÇÃO DE UM JOGO ... 33

1.1 FORMAS DO JOGO DRAMÁTICO E DO JOGO

NÃO DRAMÁTICO ... 38

1.2 MELODRAMA: O JOGO DA MORAL

NEGOCIADA ... 45

1.3 POSSÍVEIS PARÂMETROS PARA

DESCRIÇÃO DE JOGOS NÃO DRAMÁTICOS ... 51

2 GESTOS RAPSÓDICOS ... 59

2.1 ALÉM DO AUTOR RAPSODO ... 61

2.2 USANDO MELODRAMA, NÃO MAIS

DRAMÁTICO ... 75

2.3 CONSIDERAÇÕES DE PASSAGEM

SOBRE A TOTALIZAÇÃO DA FORMA

RAPSÓDICA ... 83

3 JOGO DE PRODUÇÃO DE DISCURSOS ... 89

3.1 MUNDOS IMAGINÁRIOS DA CRIANÇA ... 90

3.2 MUSICALIDADES NO BINÔMIO

GUERRA-CRIANÇA ... 99 3.3 DISCURSO EM TRÂNSITO ... 105

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3.3.2 Instâncias de proteção X instâncias de

repressão ... 109

3.3.3 Instâncias de repressão ... 113

3.3.4 Jogo discursivo em colapso ... 120

4 HISTÓRIAS DE UMA HISTÓRIA ... 125

4.1 1948 ... 126

4.1.1 Mitos de Criação ... 128

4.1.2 Nova historiografia ... 133

4.1.3 Al-Nakba: a-versão palestina ... 140

4.2 2008/09 ... 147

4.2.1 Versão Oficial ... 148

4.2.2 Goldstone (2009) ... 151

4.2.3 Goldstone (2009) x Goldstone (2011) ... 154

4.2.4 A criança no conflito ... 159

4.2.5 A narrativa das crianças palestinas ... 166

5 O JOGO DAS PROFANAÇÕES ... 171

5.1 OBJETOS SIMBÓLICOS E SEUS USOS ... 173

5.2 CONSAGRAÇÃO ANUNCIADA... 176

5.3 OSCILAÇÕES SACRO-PROFANAS ... 179

5.3.1 Cena 3 o direito de pertencimento ... 179

5.3.2 Cena 4 uma terra sem gente para uma gente sem terra ... 182

5.3.3 Cena 5 a guerra moral ... 185

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5.4 PROFANAÇÕES DE CHURCHILL:

MELODRAMA, DISCURSO, CRIANÇA E GUERRA .. 191

5.4.1 Melodrama ... 192

5.4.2 Discurso ... 195

5.4.3 Criança e Guerra ... 203

6 EXTRAFICCIONALIDADES E EXTRA-EXTRAFICCIONALIDADES ... 209

6.1 DISPOSITIVO DO MENSAGEIRO ... 209

6.2 CORALIDADES REIVINDICADAS ... 211

6.3 EXTRA-EXTRAFICCIONALIDADES DENTRO E FORA DAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO ... 216

6.4 REVERBERAÇÕES ... 222

6.4.1 Antissemitismo? ... 224

6.4.2 Textos-resposta ... 232

6.4. Encenações ... 236

12 GUISAS DE CONCLUSÃO PARA 7 CRIANÇAS JUDIAS ... 241

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INTRODUÇÃO

Nos dia 27 de dezembro de 2008, as forças de defesa do Estado de Israel lançaram uma ofensiva militar contra a faixa de Gaza batizada de Operação Chumbo Fundido. Com o objetivo declarado de interromper os ataques do Hamas, a operação militar teve por alvos: bases, escritórios e campos de treinamento do Hamas, mas também casas, hospitais, escolas, mesquitas, fábricas e redes de abastecimento e saneamento de onde, supostamente, teriam sido lançados os foguetes, o que, segundo Israel, legitimaria tais ataques. A operação recebeu por parte do mundo árabe a alcunha de Massacre de Gaza e foi oficialmente encerrada com a retirada das tropas israelenses no dia 21 de janeiro de 2009.

Nas primeiras semanas de 2009, ainda durante os ataques, a dramaturga Caryl Churchill começou a escrever um texto para teatro intitulado: Sete Crianças Judias1. Caso o leitor desse trabalho não conheça ainda a obra de Churchill, sugiro que interrompa a leitura imediatamente após esse parágrafo, e leia a obra. Ou ainda melhor, comece a experiência desde o início. Acesse o site http://www.royalcourttheatre.com/whats-on/seven-jewish-children-a-play-for-gaza, clique no link localizado na metade da página à direita da tela e baixe o texto gratuitamente. Leia todo o material, do título à última página da edição. Ela contém informações extras bastante relevantes para o trabalho aqui apresentado. A operação toda não deve levar mais que 15 minutos.

O texto de Churchill é uma resposta à situação imposta a Gaza por Israel. Compõe-se de sete cenas sucintas distribuídas em 8 páginas, cuja encenação

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costuma girar em torno de 15 minutos. Cada cena está localizada em um período histórico distinto da historia do povo judeu. Os contextos históricos não são determinados pela autora, embora a presença da guerra seja constante. A ação gira sempre em torno da mesma questão básica: o que contar e o que não contar às crianças sobre o que acontece no mundo da guerra? Nenhuma criança aparece em cena. Quem fala são indivíduos adultos, pertencentes ao círculo de relações da criança, mas estes não são nominados nem quantificados.

Sete Crianças Judias estreou no Royal Court Theatre no dia 6 de fevereiro de 2009 sob a direção de

Dominic Cooke. Embora pouco questionada quanto ao seu valor artístico, a obra despertou reações extremas, tanto da crítica especializada quanto de comentaristas de outras áreas, acusando a autora de antissemitismo e de fomentar o ódio ao povo judeu. Apesar disso, o texto teve um número impressionante de montagens em todo o mundo apenas nos primeiros meses após a peça ser escrita, incluindo uma montagem de rua em Israel.

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saber o que Churchill alcança ou toca, devida ou indevidamente, e que foi capaz de provocar tanta polêmica a sua volta. Para buscar algumas dessas respostas, recorrer-se-á ao conceito de jogo.

A noção de jogo será tomada como conceito central da análise, tanto no sentido tradicional – Huizinga (2000) e Caillois (1990) – de uma articulação e mobilidade restrita aos componentes internos do texto, como em outras leituras que ampliam ou problematizam essa visão tradicional. O sentido de um jogo infinito, conforme Carse (1986), cujas regras e limites temporais-espaciais estão sempre em constante renegociação. Ou o jogo compreendido como meio de produção de um conhecimento capaz de mobilizar e transformar indivíduo e sociedade, conforme Gadamer (1999). Ou ainda, o jogo como um ato político de profanação, conforme Agamben (2007). A hipótese defendida nesse trabalho sustenta que o barulho gerado pela obra é efeito de um ato de profanação simbólica de três objetos: o gênero melodramático, a figura da criança como objeto de justificativa de uma guerra e o discurso histórico oficial israelense.

O trabalho está estruturado em 6 capítulos mais as conclusões. No primeiro capítulo são apresentadas de forma sucinta as principais referências teóricas utilizadas sobre o jogo e suas correlações com formas de uma dramaturgia dramática – Huizinga (2000) e Caillois (1990) – e com formas de uma dramaturgia não mais dramática – Carse (1986), Gadamer (1999) e Agamben (2007). Uma atenção especial é dedicada à descrição do jogo melodramático a partir de três traços característicos: a dualidade bem-mal do caráter das personagens, o campo temático e sua moralidade, ou mais precisamente, um certo procedimento de instrução moral

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moral negociada” – um jogo de cartas marcadas. O melodrama é tomado, portanto, como instrumento de manutenção de uma ordem e de uma hierarquia social, fator fundamental para compreender sua função e uso profanador no ato artístico-político de Churchill.

O capítulo 2 descreve os componentes formais da obra a partir do conceito de texto rapsódico, proposto por Sarrazac (2002). A metáfora aristotélica do belo animal dá lugar a de um monstro: uma criatura híbrida, cujos contornos se caracterizam por um devir rapsódico entre formas líricas, épicas, dramáticas e não mais dramáticas. O caráter híbrido em Churchill se enuncia desde a rubrica inicial ao estabelecer duas regras que ampliam o gesto do autor rapsodo também ao leitor-espectador e aos agentes criativos de uma possível encenação.

A primeira regra diz respeito à livre distribuição das falas entre qualquer quantidade de jogadores, permitindo ler o texto como monólogo, diálogo, estruturas corais diversas ou diferentes combinações. Somada ao caráter rapsódico, permite também configurar diversos tipos de seres ficcionais: personagens dramáticos, tipos sociais ou vozes líricas ou épicas de um coletivo fragmentado. A regra confere á estrutura formal uma mobilidade interna entre gêneros, estruturas dialéticas, tipos e quantidades de personagens e entre eixos intra e extraficcionais de enunciação.

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leitor-espectador-encenador, ainda que em graus diferentes, uma atitude investigativa para, a partir de seu universo de referências culturais e históricas, operar um jogo de encaixe e desencaixe entre o contexto ficcional de cada quadro e o potencial recorte histórico dentro do qual ele se insere. Esse jogo confere ao texto outra mobilidade, que parte de um passado ficcional interno ao texto para o presente documental interno e externo a ele. Da ampla abertura histórico-temporal do primeiro quadro, que flerta, como se verá, com a ideia de infinito ao projetar o contexto ficcional em um espectro de possibilidades históricas da ordem de mais de 2.500 anos, o texto se move rumo ao fechamento temporal quase ideal do sétimo quadro no, então, presente histórico de Gaza. Esse fechamento, por sua vez, transforma-se também em abertura e flerta com a mesma ideia de infinito, mas projetando-se em direção a um futuro longínquo: a cada nova ofensiva militar israelense sobre Gaza e West Bank, o presente histórico da cena final é reconfigurado.

A proibição da repetição interdita também qualquer possibilidade de uma leitura linear, ou mesmo de uma compreensão dramática, da obra como um todo. Tal interdição é fundamental aos propósitos políticos da autora, na medida em que formas dramáticas se insinuam na trama rapsódica e provocam tal leitura. Cada um dos 7 quadros possui uma mesma estrutura formal básica e permite, entre outras possibilidades, ser configurado dramaticamente. A primeira cena cumpre papel estratégico ao fazer uso de fortes indícios melodramáticos para seduzir o espectador que, por sua vez, é conduzido a um outro jogo, nada dramático, nem melodramático.

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oscilatório e flutuante entre as diversas camadas de gênero contidas em cada quadro e em cada fala, e um movimento vetorizado politicamente que parte do território preservado de um melodrama localizado em um longínquo passado ficcional rumo a um território instável, nada confortável e aberto à realidade histórica de Gaza. A projeção das aberturas temporais em direção ao infinito é tomada como reflexos de um conflito histórico que adquire cada vez mais a característica de permanente. Tal e qual o jogo infinito de Carse (1986), um conflito que reinventa seus limites e regras para impedir que a guerra chegue a um fim. O jogo de Churchill nada tem de infinito, mas sua estrutura reflete e projeta esse caráter do conflito. A ideia de uma totalidade rapsódica na criatura textual de Churchill implica um paradoxo: ela só se constitui na medida de sua abertura ao presente histórico. Sete Crianças Judias

encerra a história do massacre em Gaza que, para a autora, tem suas origens na história da criação do estado de Israel. Esse percurso histórico, entretanto, só se fecha quando se abre à realidade.

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vocabulário nas estruturas consolidadas do discurso, ao mesmo tempo em que opera um deslocamento interno entre instâncias de proteção e repressão à criança que orientam a produção do jogo discursivo.

Para descrever tal movimento, o capítulo parte de um estudo sobre a figura histórica da criança para descrever uma relação histórica de poder entre o caráter criativo-subversivo dos mundos imaginários da infância e a forma como a modernidade vem concebendo e colonizando esses imaginários. Desde a concepção medieval que negava qualquer especificidade do universo da infância – convertendo a criança em uma espécie de adulto em miniatura –, passando pelas correntes psicológicas que concebem o imaginário da criança como a expressão de um déficit – convertendo a criança em objeto de proteção –, até a visão sociológica e antropológica que atribui relativa autonomia criativa e potência criativa a esse imaginário – convertendo criança em objeto de repressão e colonização –, o texto se apropria de tais concepções como regras de um jogo de produção de discursos.

A forma como o texto usa tais regras cria um deslocamento que parte de instâncias discursivas de proteção ao imaginário da criança, em direção a instâncias discursivas de repressão a esse mesmo imaginário, até a cena final quando a concepção do imaginário da criança parece se aproximar da visão medieval que, em última análise, nega sua existência. Nesse momento, o jogo discursivo, como função mediadora entre a realidade da guerra e da criança, entra em colapso: ou se nega a criança para revelar a guerra em sua crueza, ou não se diz nada.

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além de compor um dos polos do campo de tensões, é fundamental para apontar o caráter consagrado do discurso oficial israelense. Ao mesmo tempo, busca-se determinar a forma como a experiência da guerra atravessa crianças israelenses e palestinas e, principalmente, a função que elas ocupam dentro dos discursos históricos oficiais. O objeto discursivo é compreendido nesse trabalho, conforme a visão de Foucault (1996), como uma realidade transitória e material. Para o autor, o discurso não é apenas um objeto que traduz ou oculta o desejo e o poder, mas o próprio objeto pelo qual se luta. No caso do conflito Israel-Palestina, a produção de discursos históricos é designada por Shlaim (2004) como uma verdadeira guerra historiográfica e o estado de Israel como uma poderosa máquina de propaganda.

O conflito em questão envolve uma séria de ataques, batalhas e guerras travadas entre judeus e palestinos desde, pelo menos, a criação do Estado de Israel em 1947. Se considerarmos os antecedentes da guerra de 1948, precisaremos ainda nos remeter aos primeiros movimentos do sionismo no território palestino ainda no final do século XIX. Há ainda os que argumentam que, para se compreender as origens do conflito, é preciso remontar às diásporas do povo hebreu ocorridas há mais de dois milênios. O arcabouço histórico de guerras e batalhas e suas linhas historiográficas diversas é abordado em dois recortes específicos: a guerra de 48 e os eventos de 2008/09.

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oficial sionista, a nova historiografia israelense e a versão palestina. A historiografia sionista, versão mais amplamente difundida, designa os eventos de 48 como a guerra da Independência. Coloca Israel na condição de vítima da intransigência de uma legião de países árabes que não aceitaram, desde a sua fundação, seu direito de existir como nação. O segundo ponto de vista, os chamados novos historiadores, desafiam os pontos centrais da narrativa oficial. Surgidos a partir da liberação nos anos 80, por parte do Estado de Israel, de documentos confidenciais da guerra de 1948, os novos historiadores atribuem à versão sionista um caráter mítico e nacionalista que oculta responsabilidades e busca fundar e incutir um senso de nação ao recém-criado estado. Para Pappé (2007), um dos novos historiadores, a guerra de 1948 foi, na verdade, uma operação de ‘limpeza étnica’, cujos preparativos se iniciaram algumas décadas antes. A nova historiografia vem desconstruindo a versão sionista, ou, como ela denomina, os mitos de criação do Estado Israel. E apresento a versão palestina como nosso terceiro ponto de vista, caracterizada mais por sua ausência que por uma narrativa da experiência palestina. Seus discursos não apenas foram excluídos da narrativa histórica ocidental e das mesas de negociação sobre o conflito, como a própria presença da população palestina no território palestino foi, e tem sido, sistematicamente negada desde as origens do movimento sionista no final do século XIX, como mostra o famoso slogan: “uma terra

sem povo para um povo sem terra” 2 (ZANGWILL apud SAID, 2013, p. 60). Para os palestinos a experiência de 48 é designada pelo termo Al Nakba – catástrofe, o

2 Tradução minha. Trecho no original: “una tierra sin gente para una

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período em que metade da sua população foi expulsa e metade de suas vilas, cidades e casas foi destruída.

A escolha dos eventos de 2008/09 se autojustifica, pois são a razão de Churchill escrever sua obra. Os acontecimentos são descritos primeiramente na versão do governo israelense, por meio de declarações oficiais de Tzipi Livni (2008, 2009 e 2014), então ministra das relações exteriores de Israel. Para a ministra, trata-se de uma operação realizada em legítima defesa contra os ataques de um grupo terrorista movido por ódio irracional contra o povo judeu. Nessa versão, Israel é nação modelo na prevenção de vidas civis em conflitos urbanos. Nosso segundo ponto de vista sobre o evento será o relatório Goldstone (2009). O extenso relatório, fruto do trabalho de uma comissão de investigação da ONU – Organização das Nações Unidas, descreve crimes de guerra cometidos por ambos os lados. O número de ocorrências e de mortos de lado a lado, entretanto, dá a dimensão clara de um massacre: aproximadamente 1,5 mil palestinos mortos contra 4 israelenses. Sem mencionar a enorme lista das mais diversas arbitrariedades cometidas por parte das forças de defesa de Israel, incluindo, entre outras coisas, sequestro, prisão e tortura de crianças palestinas. Nosso terceiro ponto de vista é um curto artigo assinado pelo mesmo Richard Goldstone (2011). Aparentemente sem o respaldo da ONU, o artigo publicado dois anos depois no

Washington Post isenta Israel de todas as acusações e

atribui toda a responsabilidade dos eventos de 2008/09 ao Hamas. As circunstâncias que o levaram à brusca mudança de opinião não são nada claras e o artigo é um documento tão frágil frente ao relatório de 2009 que parece antes um recuo, motivado por pressões externas, do que um olhar histórico objetivo, motivado por

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não esclarece. Por essa razão, retorno ao relatório de 2009 para descrever, por meio de relatos de depoimentos colhidos pela comissão de investigação da ONU, as diferentes formas como a guerra é vivida por crianças judias e israelenses. A descrição será fundamental para apontar a forma como as crianças, judias e palestinas, são usadas nos discursos e nas práticas do estado de Israel. Encerro o capitulo passando a palavra para aquelas que são duplamente excluídas das narrativas oficiais: as crianças palestinas. Em três depoimentos, colhidos no documentário

Crianças de Gaza, são apresentados breves relatos dos

eventos de 2008/09 pelo olhar de quem sentiu na pele as forças de defesa de Israel em ação.

O capítulo 5 é dedicado ao jogo como ato político de profanação. Conforme a visão de Agamben (2007), são apresentados os conceitos de consagração – o sequestro de um objeto para uso exclusivo na esfera do sagrado – e de profanação – a restituição desse objeto ao uso comum. A análise dos jogos de profanação se utiliza da relação entre mito e rito nas operações sacras e profanas de acordo com Benveniste (apud AGAMBEN, 2007). Para o autor, a consagração conjuga um mito, que narra a história, e um rito, que a reproduz em ações. A profanação, por sua vez, se dá de duas formas. Pelo contágio, ao colocar o objeto sagrado em contato com objetos profanos. Ou pelo jogo, ao cancelar o mito e traduzir somente o rito em ações, ou ao cancelar o rito e traduzir o mito somente em palavras.

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uma redentora promessa melodramática. Os elementos responsáveis pelo contágio ou pelo cancelamento da conjunção sagrada estão representados por instâncias de repressão à criança (ou mesmo a sua anulação como figura mediadora do jogo discursivo) e pelo uso de fragmentos de outras versões não oficiais da história em que podem ser observados vestígios e correlações com os trabalhos de Pappé (2007 e 2010), Shlaim (1995 e 2004), Sand (2013 e 2015), Said (2013), Peled-Elhanan (2011 e 2012) e Finkelstein (2001). Todos críticos da versão sionista.

O capítulo descreve o gesto profano de Churchill como um percurso que parte na cena de abertura do anúncio de uma consagração – mito sionista e rito de proteção à criança conjugados no contexto melodramático. Instaura na sequência uma máquina sacrificial que alterna usos sacros e profanos – jogo e contágio – ao longo das cenas seguintes, articulando uma verdadeira trama sacro-profana que entrelaça fragmentos do mito sionista, instâncias rituais de proteção à criança e seus polos opostos de contágio e cancelamentos de mito ou de rito. Consagrações e profanações por contágio ou por jogo operam alternadamente no contexto, que é na verdade uma descontextualização ficcional, de uma redentora promessa melodramática que se quebra fala a fala, cena a cena até o ato final.

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sequestrados do debate público pela consagração do estado de Israel.

O sexto capítulo analisa alguns dispositivos criados no intuito de projetar o texto para além do seu contexto ficcional e que são responsáveis pela ampla repercussão gerada pelo texto mundo afora. Os dispositivos extraficcionais e outros que, na falta de termo mais apropriado, serão denominados por extra-extraficcionais, não apenas explicitam o caráter político do gesto profano e o potencializa, ao intensificar sua inserção no tecido social e sua ampla divulgação, como atribuem ao próprio objeto artístico um último gesto profano.

O primeiro desses dispositivos extraficcionais é composto por uma figura e uma operação. A figura implícita no contexto ficcional é a do mensageiro: o portador das novidades à criança. A operação é a possibilidade de a qualquer momento o ator endereçar suas falas no eixo extraficcional, colocando o problema da ação dramática no colo do espectador. A operação convoca o espectador a tomar uma posição diante do problema. Tal convocação configura, em si, uma primeira reivindicação de coralidade ao mesmo tempo em que redimensiona a dimensão gadameriana de participatio do

espectador no jogo.

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exacerbados, a ideia de comunidade, cujas relações de pertencimento, conforme Bauman (2011), e de autonomia, conforme Castoriadis (1982), estão severamente fragilizadas, permite tomar o conceito de coralidade como uma busca e um questionamento.

Churchill reivindica larga faixa desse espectro em seu texto. Entre seus componentes internos temos: a abertura para o presente histórico, o dispositivo do mensageiro, o jogo de sonoridades, e toda uma gama de polifonias diversas e sobrepostas. Uma verdadeira rapsódia de coralidades.

A autora lança mão ainda de outros dispositivos de coralidade que agenciam um acordo de ordem ética nas relações de produção entre a autora, a expressão da coletividade dos agentes criativos e os leitores-espectadores. Na verdade, tais dispositivos localizam-se extra-extraficcionalmente e parecem responder com perfeição às questões formuladas por Benjamin (2006) em sua conferência O autor como produtor. Tanto do

ponto de vista da tendência política, isto é, como a autora se posiciona diante das relações de produção de seu tempo, como do ponto de vista da qualidade literária, isto é, como a obra se posiciona dentro dessas relações de produção, Sete Crianças Judias não deixa dúvidas: é

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criativos da cena e leitores-encenadores nas relações de produção; e como uma provocação de ordem profana: teria Churchill realizado um último gesto profano, desta vez, do objeto artístico, ao atribuir-lhe um uso exclusivamente público? E, nesse caso, ainda que em escala microscópica, teria profanado o “improfanável”

culto capitalista?

Apresento ainda alguns exemplos do alcance que o gesto de Churchill teve no mundo inteiro, tomados aqui como indícios de uma profanação bem sucedida. Primeiramente recorto algumas das principais acusações de antissemitismo de Jacobson (2009), Hoffman (2014), Philips (apud HIGGINS, 2009), Goldberg (2009) e Freedland (2011). Menciono a longa e elegante resposta de Rose (2009) e cito a resposta de Churchill na íntegra. Apresento os textos teatrais escritos em resposta a resposta de Churchill por Horovitz (2009), Stirling (2009), Margolin (2009), Gringras (2009), Geras (2009). Quase todos se utilizam da mesma superfície formal, mas invertem a tendência política. Quanto a suas forças políticas, não resistem a uma análise crítica. A rigor, não são nem mesmo pró-Israel, são antes anti-Churchill.

E por fim, listo a enorme quantidade de encenações e registros em vídeo do texto realizadas apenas nos 2 primeiros anos de vida. E outro efeito que parece particularmente interessante: uma série de registros audiovisuais dessas diversas encenações e versões em vídeo, todas disponibilizadas on-line. Pelo

caráter conciso, o texto de Churchill e todo esse material audiovisual é um rico material pedagógico para as mais diversas áreas da formação teatral: encenação, atuação, dramaturgia, iluminação, cenografia, crítica, etc.

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1 A PROPOSIÇÃO DE UM JOGO

Diga-lhe que é um jogo Diga-lhe que é sério Mas não a assuste

Não lhe diga que eles irão matá-la

Trata-se de um jogo. É o recado básico da primeira fala do texto teatral Sete Crianças Judias3 de Caryl Churchill: “diga-lhe que é um jogo” (CHURCHILL, 2009a, p. 2). Fazer referência a uma certa realidade como a de um jogo, mais do que esclarecer acerca do contexto dessa realidade, remete a um vasto, ambíguo e transversal campo conceitual utilizado para descrever realidades tão distantes quanto o jogo das ondas e das estrelas, o jogo das crianças, o jogo da política e o jogo teatral. No trecho acima, os contornos da realidade do jogo podem ser definidos nos termos de uma realidade particular, cujos eventos ocorrem dentro de um território espaço-temporal independente e isolado da realidade empírica, dotado de regras e segundo uma ordem próprias e exclusivas desse território. No texto de Churchill como um todo, é o caso de perguntar: por mais ou menos adverso que o contexto dessa realidade se configure, o que acontece no território do jogo pertence exclusivamente à realidade do jogo? Não terá, portanto, nenhuma consequência no mundo empírico?

As ideias expostas acima sobre a realidade particular do jogo são referência à obra Homo Ludens de

Huizinga (2000). Seu trabalho de 1938 foi a principal referência que encontrei nos textos sobre o tema4. De acordo com o autor:

3Tradução minha. Título original: “Seven Jewish Children”.

4O trabalho de Huizinga (2000) é citado, por exemplo, nos trabalhos

(35)

Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com a tendência de rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes (HUIZINGA, 2000, p. 13,14).

Conforme Pavis (1999, p. 220), essa poderia ser também a descrição do jogo teatral: “a ela não falta nem

a ficção, nem a máscara, nem a cena delimitada, nem as

convenções.” À identificação quase absoluta entre o jogo de Huizinga e o teatro, quero somar outra. Teatro e drama permaneceram durante considerável tempo “tão

estreitamente relacionados [...] que toda transformação radical do teatro sofre a resistência obstinada da concepção normativa de drama como latente noção normativa de teatro” (LEHMANN, 2007, p. 245). Dessa forma, as ideias de jogo e teatro, teatro e drama, muitas vezes perdem sua especificidade de uso, embora, a rigor, nem todo jogo seja teatral, e nem todo jogo teatral

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seja necessariamente dramático5. O termo pós-dramático, cunhado por Lehmann (2007), tem, entre outras atribuições, o propósito justamente de tornar a separar os conceitos de drama e teatro ao constatar que

o critério normativo do gênero dramático “não mais

resolve a tarefa da concepção teórica de aguçar a percepção; antes, obstrui o conhecimento tanto do teatro

quanto do texto teatral” (p. 52). Assim, discordando de Pavis (1999), a visão de jogo conforme Huizinga (2000) não consegue descrever parte considerável da produção teatral e de textos teatrais contemporâneos.

A escolha de Huizinga (2000) como conceito de abertura, mas não necessariamente central, é justificada por dois motivos interligados. Primeiro, permitirá traçar uma aproximação entre as características dessa visão de jogo, doravante denominada tradicional, e o caráter normativo e a-histórico da forma dramática absoluta.6 Ao mesmo tempo, permite assinalar a cisão entre algumas características do jogo tradicional e algumas práticas de uma dramaturgia e de uma cena não mais dramáticas. O segundo motivo é o nosso objeto de estudo.

Em Churchill, a menção ao jogo é enunciada dentro de um contexto ficcional, mas permite uma leitura meta-teatral com implicações performativas. Mais que enunciar um aviso que constata uma realidade dada, a fala de abertura instaura a realidade do jogo e seu território, configurando o que Austin (1962) denominaria

5 Ver Lehmann, 2007, p. 52. A retomada da cisão entre teatro e o

gênero dramático determina um recorte histórico amplo que inclui formas teatrais pré-dramáticas, da qual seriam exemplos a tragédia antiga e o teatro medieval, e formas de um teatro pós-dramático, do qual a contemporaneidade está cheia de exemplos.

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de ato perlocutório.7 Em ambas as leituras, ficcional e performativa, um objetivo em comum, tranquilizar o interlocutor – quer seja outro ser ficcional, um espectador teatral ou simplesmente um leitor – ao trazer implicitamente a ideia de separação ideal do território do jogo. Ainda que de forma sutil e indireta, o texto mergulha o leitor/espectador no território protegido e isolado da realidade do jogo, ao estabelecer um acordo tácito: o que acontecer aqui, morrerá aqui. As três falas seguintes, entretanto, colocam a realidade exclusiva do

jogo em jogo. Ao informar que é “sério”, assustador e

que, dentro desse território, uma vida está em risco, a autora anuncia desde o início a instabilidade do jogo proposto, no qual “é possível à ‘vida cotidiana’ reafirmar seus direitos” (HUIZINGA, 2000, p. 19). O status de

proteção, segurança e isolamento ideal do território do jogo em Churchill pode, a qualquer momento, ser corrompido8. Novamente, a fala é enunciada dentro de um contexto ficcional, mas não deixa de suscitar outras leituras extraficcionais e performativas: o que acontecer aqui, não morre necessariamente aqui. Assim, na abertura do texto, dois atos de fala instauram e problematizam a visão tradicional do jogo e o acordo com leitor/espectador.

O texto de Churchill, embora não possa ser filiado ao gênero dramático, tão pouco o nega. Ao contrário, faz

7 Cf. Austin (1962), a fala possui a capacidade de agir sobre o

mundo das coisas. O ato de fala é designado perlocutório quando o ato de falar intencionalmente produz como consequência um efeito sobre os sentimentos, os pensamentos ou sobre as ações de quem fala, de quem ouve ou de outras pessoas.

8 Para Huizinga (2000), toda violação do território do jogo é

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dele um uso estratégico específico para cativar o espectador que, uma vez envolvido pelo jogo dramático é deslocado a um outro tipo de jogo, onde o caráter ficcional (ou de não seriedade), o isolamento territorial e a afirmação da diferença entre o jogo e o mundo cedem lugar ao caráter não ficcional, à permeabilidade territorial e ao embaçamento da diferença entre a realidade do jogo e a do mundo. O jogo dramático em Churchill é usado como isca para a armadilha de um jogo não mais dramático.

A pergunta pelo jogo em Churchill aponta em duas direções. Busca as rupturas formais, mas também sua inserção na tradição, propondo-lhe novos usos. Dispositivos dramáticos e não dramáticos em Churchill configuram dois polos de um campo de forças responsável por uma série de deslocamentos e mobilizações, que ocorrem nas micro e nas macroestruturas, entre a representação e a performatividade, entre o dramático e o não dramático, entre o ficcional e o não ficcional, entre o mítico e o histórico e entre o sagrado e o profano. Tais polarizações, presentes em outros estudos sobre a cena contemporânea, serão tomadas nesse trabalho como instrumento e como objeto de análise.

Dessa forma, o dramático é tomado aqui como legado fundamental. Mesmo na condição de critério normativo ainda é uma ferramenta útil para se compreender a especificidade de alguns jogos não mais dramáticos, mas não se constitui mais como conceito central nem preferencial para a análise tanto do teatro quanto do texto teatral. Não se trata, portanto, de uma discordância com Lehmann (2007). A crítica do autor se dirige antes ao uso que parte da “crítica jornalística” fez

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inquietantes, ainda que nem sempre bem sucedidas, a meros desvios de rota e da norma.9 Entretanto, sua atualidade, quer como objeto de análise quer como ferramenta conceitual, implica compreender sua tradição

não como “o testemunho de um passado morto, mas

uma força viva que informa e anima o presente” 10 (STRAWINSKY, 1970, p. 57). E exige que se lhe atribuam novos usos.

1.1 FORMAS DO JOGO DRAMÁTICO E DO JOGO NÃO DRAMÁTICO

A forma poética do drama moderno surgiu no renascimento e entrou em crise no final do século XIX. O caráter a-histórico11 desse princípio de construção textual e da cena deve muito de sua normatização à leitura que os filósofos renascentistas fizeram da Poética

de Aristóteles. O processo de sua historicização, por sua vez, se deu a partir da visão hegeliana da relação de identidade entre forma e conteúdo12. Enquanto categoria literária normativa, o gênero dramático exige o cumprimento de regras formais independente do

conteúdo em questão, assim, “a forma pré-estabelecida do drama realizava-se quando unida a uma matéria selecionada com vistas a ela” (SZONDI, 2001, p. 23). Qualquer problema decorrente da união recaía sobre a escolha da matéria, uma vez que a forma estava predeterminada, ou, é possível dizer, consagrada. A necessidade de abordar novos temas emergentes do

9 Ver LEHMAN, 2007, p. 52-53

10 Tradução minha. Trecho no original em inglês: “A real tradition is

not the relic of a past that is irretrievably gone; it is a living force that animates and informs the presente.” (STRAWINSKY, 1970, p. 57)

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século XIX fez o problema da união entre a forma pré-estabelecida e os novos conteúdos recair sobre a primeira, obrigando os autores a buscar soluções formais para o texto teatral não mais necessariamente dramáticas.

Ao se comparar, em linhas gerais, as características da forma dramática com formas não dramáticas, uma série de diferenças podem ser constatadas. A separação ideal, aqui proposta, entre formas dramáticas e formas não mais dramáticas serve a fins descritivos e de análise, mas não corresponde necessariamente à realidade empírica dos textos, onde muitas vezes formas dramáticas e não dramáticas coexistem, em configurações e graus de intensidade diferentes, dentro do mesmo texto.

O teatro dramático é definido, em linhas gerais, como um acontecimento intersubjetivo no presente13. O texto dramático não é propriamente o acontecimento, mas a proposição de um jogo teatral, dentro do qual ocorrem os acontecimentos. Nele, as relações intersubjetivas são construídas entre personagens por meio de palavras e ações. Os personagens configuram instâncias individuais, subjetivas e, como tais, reconhecíveis. O texto dramático apoia-se na primazia do herói, do âgon e da intencionalidade da palavra. Tais

elementos, articulados por meio de uma trama ficcional, operam no drama dentro de um sistema fechado e autônomo, onde o encadeamento de ações é regido por uma lógica causal que funciona nos moldes dos mecanismos de uma máquina.

Textos não dramáticos podem ser esboçados, segundo Ryngaert (2007), como escritas de ação esvaziada, cujos personagens, antes tipos sociais e

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psicologicamente identificáveis, passam a ser figuras vagas. No esvaziar do acontecimento, desaparecem o nó e o desenlace dramático como elementos estruturantes do texto. Os enunciados assumem a forma de uma rede de sentidos latentes. Princípios e encerramentos, não mais articulados pela tessitura de uma trama, tornam-se abruptos, pouco claros e muitas vezes ambíguos. A estrutura dialogal é substituída por um jogo entre vozes na forma de monólogos, fragmentos de diálogo e discursos de origem não identificável. Ao leitor/espectador sobram tênues elementos narrativos para supor que uma história esteja sendo contada. Tais elementos operam como um sistema aberto, exigindo do leitor/espectador a tomada de pontos de vista específicos diante de uma rede de sentidos latentes de forma a construir ativamente o seu olhar sobre o objeto artístico. Mesmo longe de contemplar inúmeras exceções, o esboço acima pode ser tomado, segundo Ryngaert (2007), como um conjunto das características gerais das dramaturgias não dramáticas.

Aponto três características da forma dramática que se aproximam da visão tradicional de jogo e que a distinguem das formas de um jogo não dramático: o caráter ficcional ou de não seriedade, o isolamento do seu território espaço-temporal e a tendência de sublinhar sua diferença em relação ao resto do mundo.

Os três aspectos estão inter-relacionados e vinculados à função totalizante14 do jogo tradicional, correlata à ideia de drama como a representação de uma totalidade, no caso, de um microcosmos ficcional absoluto. A concepção de drama como totalidade

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remonta à concepção aristotélica de tragédia.15 É pela ideia de totalidade que Aristóteles (1999) se refere ao drama16 como uma criatura viva: “um todo completo em

si mesmo” 17 (p. 83). Para ser absoluta, a forma

dramática “deve ser desligada de tudo que lhe é externo”

18 (SZONDI, 2001, p. 30). Por essa razão, seus componentes básicos só podem ser compreendidos a partir da ideia de “uma dialética fechada em si mesma, mas livre e redefinida a todo momento” (SZONDI, 2001, p. 30). É a partir da necessidade de desligamento que se pode compreender as unidades de tempo, lugar e ação como exigências normativas da forma dramática19 para garantir ao seu jogo a totalidade de um microcosmos ficcional absoluto.

Unidades de tempo e lugar não são meras restrições quantitativas do tempo e do espaço ficcional. Tais restrições buscam emoldurar a realidade interna do jogo dramático, isolando-a da realidade externa:

O entorno espacial deve (assim como os elementos temporais) ser eliminado da consciência do espectador. Só assim

15 Conforme Aristóteles (1999, p. 27), a tragédia é a “imitação de

uma ação que é completa em si mesma, como um todo de certa

grandeza”15. (ARISTÓTELES, 1999, p. 27)

16 A ideia de drama em Aristóteles é designada como uma obra

literária na qual a imitação se dá por meio de “personagens que

representam a trama”16 (ARISTÓTELES, 1999, p. 10), assim, a

categoria do drama engloba tanto os textos trágicos, como as comédias, os dramas satíricos, enfim a categoria define o “poema dramático”. (Cf. PAVIS, 1999, p. 109)

17 Tradução minha. Trecho no original: “[…] un todo completo en sí

mismo”. (ARISTÓTELES, 1999, p. 83)

18 É preciso observar, entretanto, que esse desligamento absoluto

não se realizava, nem mesmo, nas tragédias, devido a presença do coro e de figuras alegóricas como deuses.

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surge uma cena absoluta, isto é, dramática (SZONDI, 2001, p. 33).

O tempo presente do acontecimento intersubjetivo não é compreendido de maneira estática, mas como uma sequência de presentes absolutos, um fluxo temporal que exclui qualquer possibilidade de descontinuidade ou abertura. O presente do gênero dramático:

passa produzindo uma mudança, nascendo um novo presente de sua antítese [...] cada momento deve conter em si o germe do futuro, deve ser prenhe de futuro (SZONDI, 2001, p. 32).

Assim posto, parte significativa do caráter absoluto da forma dramática, ao circunscrever e isolar o território temporal e espacial da sua ação, encontra seu correlato nos limites espaciais e temporais próprios da visão tradicional do jogo.

A unidade de ação opera, no mesmo sentido, assegurando o fechamento da moldura. Conforme Aristóteles (1999), “tudo aquilo que não provoca pela sua

presença ou ausência alguma diferença perceptível não constitui parte real do todo “20 (p. 31). Para Szondi (2001), trata-se de uma “exigência de excluir o acaso” (p.

33) – a exigência de uma motivação enraizada no solo do próprio drama. Rosenfeld (1985) a descreve nos termos de um mecanismo, um sistema fechado onde

“tudo motiva tudo, o todo as partes, as partes o todo” (p.

33).

20 Tradução minha. Trecho original: “[…] aquello que por su

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Nesse sistema fechado, os acontecimentos formam um jogo de encaixes precisos onde toda ação se remete à anterior, como sua consequência, e à posterior, como sua causa.21 A articulação teleológica e sequencial das ações, isoladas de qualquer interferência externa, imprime ao drama o seu caráter ficcional. O mecanismo,

“uma vez posto em movimento, dispensa qualquer

interferência de um mediador, explicando-se a partir de

si mesmo” (ROSENFELD, 1985, p. 33). Quando é acionado o primeiro evento dramático, ele projeta-se em direção ao seu desfecho mediante atos de personagens movidos por objetivos e animados por conflitos. Qualquer quebra, elipse, salto, seja temporal, espacial ou de ação, implica uma abertura na forma dramática, ou como

descreve Szondi (2001), “somente quando, na sequência, cada cena [e cada ação, e cada tempo] produz a próxima (ou seja, a cena necessária ao drama),

é que não se torna implícita a presença do montador” (p.

33), o chamado eu épico. O drama constitui assim, por meio de suas regras de unidade, um microcosmos ficcional, independente da realidade cotidiana, com um início, meio e fim claramente delimitados.

Formas não dramáticas apresentam a tendência oposta de abolir a “moldura fechada da ficção teatral a

fim de conquistar a dimensão do tempo partilhado por atores e público como processualidade aberta, que estruturalmente não possui nem início, nem meio, nem fim” (LEHMANN, 2007, p. 303). Buscam justamente

forjar “o apagamento das fronteiras entre a vivência real

e a fictícia” (LEHMANN, 2007, p. 267), o que implica uma mudança na compreensão do espaço-tempo do jogo teatral. O jogo não dramático busca justamente borrar suas fronteiras, sua diferença com a realidade,

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se “uma parte do mundo, decerto enfatizada, mas

pensado como algo que permanece no continuum do

real: um recorte delimitado no tempo e no espaço, mas ao mesmo tempo continuação e por isso mesmo fragmento da realidade da vida” (LEHMANN, 2007, p. 268). O território do jogo não dramático se apresenta ao espectador como difuso, instável e movediço. Suas regras, limites e sua ordem podem ser reinventados a qualquer momento. Seu território não é necessariamente seguro nem confortável.

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subversão do jogo dramático em Churchill, é imprescindível trazer para a discussão uma subcategoria do jogo dramático, cujo uso é estratégico em Churchill: o melodrama.

1.2 MELODRAMA: O JOGO DA MORAL

NEGOCIADA

A capacidade do jogo de “absorver o jogador de maneira intensa e total” foi incluída por Huizinga (2000) em sua definição de jogo. Para Gadamer (1999), entretanto, o espectador também precisa ser incluído:

Quando ele [o espectador] realmente “vai junto” não se trata de outra coisa senão da

participatio, da participação interior nesse

movimento que se repete. [...] Parece-me, portanto, outro aspecto importante que o jogo seja nesse sentido um fazer comunicativo, que ele desconheça propriamente a distância entre aquele que joga e aquele que se vê colocado frente ao jogo. O espectador é notadamente mais que um mero observador que vê o que se passa diante de si; ele é, como alguém

que “participa” do jogo, uma parte dele

(GADAMER, 1985, p. 40).

A supressão da distância entre aquele que joga e aquele que se coloca diante do jogo encontra na catarse um possível correlato. A catarse é definida como objetivo da tragédia de suscitar a compaixão e o terror para obter o efeito de purgação dessas mesmas emoções.22 Ela

ocorre “no próprio momento de sua produção no

espectador que se identifica com o herói trágico” (PAVIS,

1999, p. 40). O dispositivo de identificação pode ser

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descrito como um “processo de ilusão [efeito de

realidade] do espectador que imagina ser a personagem representada” (PAVIS, 1999, p. 200). Tal dispositivo é descrito por Szondi (2001) como a necessidade que a

experiência dramática tem de converter a “passividade

total” do espectador em uma “atividade irracional”:

o espectador era e é arrancado para o jogo dramático, torna-se o próprio falante (pela boca de todas as personagens, bem entendido). A relação espectador-drama conhece somente a separação e a identidade perfeitas, mas não a invasão do drama pelo espectador ou a interpelação do espectador pelo drama (p. 31).

Entre as categorias do jogo dramático, existe uma particularmente orientada na construção de uma identidade perfeita com o espectador desse universo ficcional: o melodrama. Surgido no final do século XVIII, o gênero tem suas raízes justamente “na tragédia familiar [...] e no drama burguês” (PAVIS, 1999, p. 238). Pode-se representá-lo historicamente como a tentativa do homem burguês de se alçar em sua batalha, de caráter privado e sentimental, à condição de herói trágico.

Nas suas características gerais o melodrama é um modelo de jogo dramático por excelência. Dentre as características específicas, entretanto, quero apontar três que a distinguem do drama e potencializam o dispositivo de identificação: o caráter das personagens, o campo temático e a sua moralidade.

O primeiro traço característico, a divisão explícita das personagens por seus caracteres, define algumas figuras preferenciais. No melodrama clássico:

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intangível: de um lado os bons, de outro os maus. Entre eles, nenhum compromisso possível. Esses personagens construídos em um único bloco representam valores morais particulares. [...] Esta tipologia caracterizada pela fixidez dos tipos reduz-se a algumas entidades principais: o vilão, a vítima inocente, o cômico; e outras secundárias, como o pai nobre, ou o protetor misterioso (THOMASSEAU, 2005, p. 39).

O herói do melodrama é definido por sua condição, sine qua non, de vítima inocente, desprovida de força para

suplantar as ações dos elementos externos.23 O vilão, ao perseguir a vítima, torna-se o agente principal do melodrama e carrega consigo, para o espectador, a promessa de um castigo final.24 As vítimas preferenciais do melodrama são “as mulheres e crianças

que desempenham melhor esse papel” (THOMASSEAU,

2005, p. 42). No primeiro caso, a heroína “é sobretudo a

mãe que algo ou alguém separa de seus filhos” (p. 42)

No segundo caso, dos pequenos heróis, as crianças encontram-se geralmente:

[...] abandonadas, entregues à sua própria sorte, expostas à perseguição de pessoas brutais, graças a seu ingênuo e bom coração e a seu heroísmo, depois de uma longa e errante jornada, elas reencontram a célula familiar, aqueles que as haviam perdido ou rejeitado. Com efeito, o aprisionamento ou a errância do herói são temáticas constantes no melodrama. Trazendo em si os sinais que possibilitarão seu reconhecimento, as crianças serão

23 Cf. ABREU, 2011b, p. 4.

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então os heróis das cenas de reencontro (THOMASSEAU, 2005, p.43).

Abreu (2011a) aponta como essa tipologia dos personagens melodramáticos reduz, por meio do seu desenraizamento histórico, o escopo social e político à dimensão mais familiar, íntima e privada possível.25

[...] os personagens são individualizados, representam a si próprios, mas são desprovidos da grande força que impulsiona os personagens da tragédia e do drama. Se o mundo é o palco da luta para as personagens da tragédia e do drama, esse mesmo mundo no melodrama é um universo opressor, agressivo, violento e estranho. Seus personagens buscam refúgio na família, mas trata-se de uma família frágil, sujeita à destruição pelos vilões que habitam o mundo. Se no drama e na tragédia a moral e as leis devem ser, necessariamente, transgredidas ou reformadas, no melodrama elas são o caminho que leva à virtude. Aqui, a força da família e da comunidade está diluída ou extinguiu-se completamente.

É interessante notar que no melodrama a história familiar, para os personagens pobres, perdeu-se. Enquanto na tragédia grega a família do herói tem uma história rica em realizações e que remontam até a ligações ancestrais com divindades e, no drama, percebe-se uma linhagem aristocrática, histórica, o herói melodramático, oriundo das baixas camadas, não tem história familiar, não tem raiz, não tem referência concreta no mundo (p. 64-65).

(50)

Do ponto de vista temático, a perseguição é “o pivô de toda intriga melodramática” (THOMASSEAU, 2005, p. 34). Em uma estrutura melodramática, o tema é desenvolvido por três longos atos até o seu reconhecimento final, pressentido, esperado e retardando o máximo possível o seu apaziguamento, a atonia dramática.26 Novamente, a cena estabelece um acordo tácito com o espectador: a promessa de um reencontro redentor e catártico entre a vítima e seus protetores.

É no aspeto moral, entretanto, que o melodrama revela a dimensão do acordo de um jogo de cartas marcadas com o espectador. No contexto em que surgiu, a Revolução Francesa do final do século XIX, o melodrama contemplava em seu conteúdo programático uma missão moral, civilizatória e religiosa.27 Em sua

concepção clássica, o melodrama procura “reabilitar a família e a pátria” (THOMASSEAU, 2005, p. 48) e

“ensina também a necessidade da manutenção de uma hierarquia social” (THOMASSEAU, 2005, p. 49). Monod (apud THOMASSEAU, 2005) afirma o caráter doutrinário e moralizante do melodrama como “uma empreitada

deliberada da burguesia para doutrinar e moralizar o

povo” (p. 140), comparando-o, assim, a um “ópio do povo”. De um ponto de vista didático, o melodrama

confia que “o sentimento purifica o homem e que a plateia se acha melhor à saída de um melodrama”

(THOMASSEAU, 2005, p. 48), designando-o assim como

um “meio de instrução para o povo, porque ao menos

este gênero está ao seu alcance” (NODIER apud THOMASSEAU, 2005, p. 49). Entretanto, apesar do

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gênero não negar o seu berço histórico, não é possível estabelecer um balizamento moral homogêneo do gênero.28

Interessa aqui apontar não um conteúdo moral específico no melodrama, mas o procedimento de sua instrução moral. Xavier (2000), em artigo que examina as razões da permanência e eficácia do gênero melodramático no contexto contemporâneo, coloca a

questão em termos de uma “sedução da moral

negociada”. Conforme o autor:

Se a moral do gênero supõe conflitos, sem nuanças, entre bem e mal, se oferece uma imagem simples demais para os valores partilhados, isto se deve a que sua vocação é oferecer matrizes aparentemente sólidas de avaliação da experiência num mundo tremendamente instável, porque capitalista na ordem econômica, pós-sagrado no terreno da luta política (sem a antiga autoridade do rei ou da Igreja) e sem o mesmo rigor normativo no terreno da estética. Flexível, capaz de rápidas adaptações, o melodrama formaliza um imaginário que busca sempre dar corpo à moral, torná-la visível, quando

esta parece ter perdido os seus alicerces. Prove a sociedade de uma pedagogia do certo e do errado que não exige uma explicação racional do mundo, confiando

na intuição e nos sentimentos "naturais" do individual na lida com dramas que envolvem, quase sempre, laços de família

28 Thomasseau (2005, p. 140), na conclusão de seu livro afirma que

embora o melodrama pratique em geral uma moral convencional e “burguesa”, ele também foi veículo, durante boa parte do século, de ideias políticas, sociais e socialistas, mas sobretudo humanitárias e

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(p. 85).

Esses três componentes do melodrama, a tipologia dos personagens, o campo temático e o procedimento de uma instrução moral previamente negociada, longe dos olhos do leitor espectador, configuram o território de um jogo, não apenas isolado e protegido, mas familiar e acolhedor, onde o leitor/espectador não é de fato colocado em jogo. O potencial mobilizador do jogo melodramático é reduzido ao máximo. Leitor/espectador podem até ser jogados, mas dentro de limites pré-negociados: estreitos, seguros e familiares. Atores e espectadores conhecem a gramática do gênero, sabem que seus valores morais serão desafiados, mas tem a garantia de que ao final, serão reafirmados com maior contundência e força.

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1.3 POSSÍVEIS PARÂMETROS PARA DESCRIÇÃO DE JOGOS NÃO DRAMÁTICOS

Todo dispositivo textual e todo texto é fruto de determinados jogos discursivos e de linguagem. Toda forma de linguagem é também uma forma de jogo. E como qualquer outro jogo, segue regras específicas. O texto teatral, entretanto, ao mesmo tempo em que segue regras específicas para sua construção, é propositor de outras regras destinadas ao jogo da cena teatral. Interessa aqui compreender tanto as regras do jogo que estruturam a linguagem discursiva do texto como as regras do jogo enunciadas a partir do próprio texto que as gera. Dessa maneira, o texto teatral é, ao mesmo tempo, a consolidação de jogos de linguagem e o germe, ainda que em estado latente, do jogo cênico.

A crise da forma dramática é sintoma da dissolução do mundo burguês. Como qualquer crise, é esperado que se inventem realizações artísticas diversas. Embora tal dissolução aconteça de várias formas, todas envolvem o não drama, não apenas por motivos estruturais, mas por ser o drama a representação por excelência do homem burguês e seus valores. A dissolução do personagem autônomo, da ação linear, a dominância da intersubjetividade ficcional em favor de uma oscilação entre os eixos intra e extraficcionais devem ser entendidas não como sedimentações formais, mas como pólos de um campo de forças em constante oscilação.

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dramático deslocados de seu uso historicamente consagrado. Não se trata de atender demandas saudosistas, de descuido ou mesmo de vícios criativos, mas de uma intenção formal por parte desses autores na busca de atribuir novos usos e novas potências a dispositivos consagrados na busca de determinados efeitos junto ao público. A oscilação entre os dois tipos de jogos instaura, por si, um terceiro jogo, onde nada se fixa: tudo está em movimento, mudança, alternância, separação, sucessão, associação. Para se compreender a estrutura de tais jogos, é preciso somar ao conceito tradicional, outras visões teóricas sobre o jogo. O campo referencial disponível, como se disse, é vasto e não se pretende propor nenhum modelo conceitual para a análise dessa produção dramatúrgica, mas ao contrário, buscar as especificidades do jogo proposto em cada texto. A proposição de jogos dramatúrgicos específicos demanda, assim, referências específicas para sua descrição e análise. Mais do que apontar a presença do jogo em determinado texto, é necessário perguntar pela sua especificidade, pela sua função nos propósitos da obra.

No caso de Sete Crianças Judias, além de

Huizinga (2000) e Caillois (1990), algumas referências se apresentam. Três delas diretamente relacionadas ao tema do jogo – Gadamer (1985 e 1999), Carse (1986) e Agamben (2007) – e uma terceira que não aborda especificamente o tema do jogo embora permita uma aproximação ao tema: a visão de autor rapsodo proposta por Sarrazac (2002). Embora o dramaturgo francês não faça menção específica à ideia de jogo, a sua proposição caracteriza o texto teatral como uma criatura híbrida

“entre os grandes modos poéticos [sic], que remete para

(55)

(SARRAZAC, 2002, p.54). O texto rapsódico “decide-se num movimento duplo que consiste, por um lado, em abrir, desconstruir, problematizar as formas antigas e, por outro, em criar novas formas” (SARRAZAC, 2002, p. 36). Ao colocar dispositivos dramáticos em um jogo, não mais dramático, mas com outros dispositivos de outros gêneros literários ou mesmo não literários, o drama se configura como mais um jogo dentro de outros jogos. Tal abertura permite interromper a dominância unitária-linear e fazer atravessar o território da cena forças externas –

históricas, políticas, sociais, econômicas – que evidenciam criticamente o percurso da ação. Não basta, entretanto, inscrever os contornos gerais de uma obra na poética rapsódica, é preciso investigar os gestos singulares que lhes dão consistência: o gesto do autor rapsodo.

Gadamer (1999), nossa primeira referência específica relacionada ao jogo, não discorda em linhas gerais da visão tradicional, mas compreende o jogo artístico de forma peculiar: um meio específico para a produção de um conhecimento específico. Tal produção não apenas absorve o jogador, como o mobiliza e o desloca: “todo jogar é um ser jogado” (p. 181). A capacidade do jogo de criar e gerar movimento “pertence tão essencialmente ao jogo que, em último sentido, faz que de forma alguma haja um jogar-para-si-somente”

(GADAMER, 1999, p. 180). Pode não ser o outro um

jogador, mas ӎ preciso que sempre haja ali um outro

com o qual o jogador jogue e que, de si mesmo, responda com um contra-lance ao lance do jogador”

(GADAMER, 1999, p.180). A experiência da arte, nesse sentido, possui um caráter lúdico peculiar e constitutivo de seu modo de ser, pois “todo representar é um

Referências

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