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Na cena 6 chega-se ao ápice da instância repressora do imaginário da criança. A realidade parece se impor com mais força, a produção do discurso dá sinais de fadiga na tentativa de proteger a criança da realidade. Na impossibilidade de proteger, a alternativa é conformar o imaginário à realidade, de forma a manter sob controle a produção cultural da criança. Cito-a na íntegra abaixo:

6

Não lhe diga

Não lhe diga do problema das piscinas Diga-lhe que é a nossa água, nós temos o direito

Diga-lhe que não é água para os seus campos

Não lhe diga sobre o bulldozer

Não lhe diga para não olhar o bulldozer Não lhe diga que ele estava pondo a casa abaixo

Diga a ela que é um canteiro de obras Não lhe diga nada sobre o bulldozer Não lhe diga das filas nos postos de checagem

Diga-lhe que nós estaremos lá a qualquer momento

Não lhe diga nada que ela não pergunte Não lhe diga que o garoto foi baleado Não lhe diga nada

Diga-lhe que nós estamos fazendo novas fazendas no deserto

Não lhe diga sobre as oliveiras

Diga-lhe que estamos construindo novas cidades sobre o deserto.

Não lhe diga que eles atiram pedras Diga-lhe que elas não são muito boas contra tanques

Não lhe diga isso.

Não lhe diga que eles explodem bombas em cafés

Diga-lhe, diga-lhe que eles explodem bombas em cafés

Diga-lhe para tomar cuidado Não a assuste.

Diga-lhe que nós precisamos do muro para nos manter seguros

Diga-lhe que eles querem nos empurrar para o oceano

Diga que eles não irão conseguir Diga-lhe que eles querem nos expulsar para o mar

Diga que nós matamos muito mais que eles

Não lhe diga isso Diga isso

Diga que nós somos mais fortes Diga-lhe que nós estamos autorizados Diga-lhe que eles não entendem nada exceto violência

Diga-lhe que nós queremos a paz

Diga-lhe que nós iremos nadar82

(CHURCHILL, 2009a, p. 5-6).

82“Don’t tell her

Don’t tell her the trouble about the swimming pool Tell her it’s our water, we have the right

Tell her it’s not the water for their fields Don’t tell her anything about water.

O contexto espaço-temporal é próximo do presente histórico da sétima cena. Embora não apresente elementos precisos que permitam determiná- lo, a menção ao muro, cujos planos foram anunciados em 2001 mas cuja construção teve início em 2002, restringe a abertura temporal da cena a um recorte de Don’t tell her about the bulldozer

Don’t tell her not to look at the bulldozer Don’t tell her it was knocking the house down Tell her it’s a building site

Don’t tell her anything about bulldozers.

Don’t tell her about the queues at the checkpoint Tell her we’ll be there in no time

Don’t tell her anything she doesn’t ask Don’t tell her the boy was shot

Don’t tell her anything.

Tell her we’re making new farms in the desert Don’t tell her about the olive trees

Tell her we’re building new towns in the wilderness. Don’t tell her they throw stones

Tell her they’re not much good against tanks Don’t tell her that.

Don’t tell her they set off bombs in cafés Tell her, tell her they set off bombs in cafés Tell her to be careful

Don’t frighten her.

Tell her we need the wall to keep us safe Tell her they want to drive us into the sea Tell her they don’t

Tell her they want to drive us into the sea. Tell her we kill far more of them

Don’t tell her that Tell her that

Tell her we’re stronger Tell her we’re entitled

Tell her they don’t understand anything except violence Tell her we want peace

mais ou menos 7 ou 8 anos. O discurso, tal e qual o muro, traça uma divisão clara e concreta entre duas realidades. Do lado de lá, há referências à falta de água, demolição compulsória de residências, assassinatos, inclusive de um garoto, cerceamento do direito de ir e vir e do acesso à informação, uso de armamentos pesados, enfim, uma praça de guerra. Do lado de cá, embora se faça referências a uma violência cotidiana, o quadro é de expansão e crescimento. Novamente, a identidade do vizinho é mantida dentro de certos limites. O termo que designa o outro – eles – oscila entre uma indeterminação genérica de sua identidade e a sua designação como um terrorista – “explodem bombas em cafés” –, ou, na melhor das hipóteses, agressores selvagens e inconsequentes – “atiram pedras [...] contra tanques”. A novidade é que a identidade dos personagens adultos começa a se esconder sob o pronome “nós”. Até a cena 4, o pronome referia-se quase sempre a um núcleo familiar – “diga-lhe que nós a amamos” (p. 3) ou “diga- lhe que nós estaremos lá o tempo todo” (p. 1). O mesmo pronome, a partir da cena 4, passará a se referir, cada vez mais, à ideia de um coletivo ampliado, talvez uma nação, dentro do qual a identidade do autor do discurso parece diluir-se cada vez mais – “diga-lhe que nós somos mais fortes [...] diga-lhe que nós queremos paz”.

A busca é por um discurso que possa justificar, sem culpa, a disparidade entre duas realidades e, ao mesmo tempo, garantir a sua manutenção ou mesmo sua ampliação. Não se busca reconfigurar poeticamente a realidade, mas excluir do horizonte imaginário da criança qualquer traço de realidade que permita

problematizar o discurso. O processo é

predominantemente de colonização do imaginário.

A instância protetora reduziu-se apenas a uma superfície retórica. O repertório vocabular – bulldozers,

postos de checagem, muro, baleado, violência autorizada – está longe da “atmosfera infantil” habilmente construída na primeira cena para reinventar os horrores do holocausto. O “canteiro de obras” tenta, é verdade, re-significar a demolição de residências como um novo empreendimento, ora imobiliário, ora agrícola, mas não se sustenta como instância protetora. Parece antes querer apagar da memória histórica e afetiva da criança o fato de que havia uma casa onde agora passa um trator e amanhã se erguerá um novo empreendimento. Mesmo a preocupação em não assustar a criança, ou em que ela tome cuidado, soa aqui como um lugar comum, um tique verbal sem efeito real, esvaziado e desarticulado do restante das falas. Não se busca proteger a criança, mas reconfigurar o imaginário da criança de forma a conformá-lo a essa realidade. Dessa forma, não é mais o discurso que busca se adequar à realidade da criança, mas a criança que precisa se conformar à realidade de um mundo dividido.

Há, entretanto, um problema. A forma do discurso é desprovida de qualquer capacidade de seduzir o imaginário da criança. Na impossibilidade de seduzir o interesse da criança, a estratégia é barganhar seu interesse em troca de um banho de piscina. O aparente absurdo da barganha não está, de fato, desprovido de razão, e pode ser justificado politicamente. A questão identitária, penso, não desperta na criança um interesse tão espontâneo quanto o problema de uma piscina vazia. Na busca de justificar racionalmente, ou eticamente, tal estado de coisas, a produção do discurso da cena 6 negocia o interesse da criança, um banho de piscina refrescante em pleno deserto, com o interesse do adulto, justificar a manutenção de privilégios em um cenário onde tudo parece faltar ao outro lado do muro. Como a

realidade não pode ser negada em absoluto, pois parece próxima demais e grita aos olhos da criança, a estratégia é barganhar a colonização do imaginário por meio de um objeto de desejo e satisfação. O procedimento, aliás, é o mesmo que a publicidade da indústria cultural utiliza para seduzir as crianças ao consumo:

A cultura comercial das crianças apela tanto às crianças porque toma seriamente em conta o jogo, a satisfação e o desejo das crianças. Claramente, ela ajuda a construir o seu jogo, prazer e desejo, mas também procura compreendê-lo e inserir- se dentro dele. Na pior das hipóteses, ele envolve a exploração [da constatação] [sic] cínica (...) de um presidente de agência publicitária (...): “A publicidade no seu melhor faz com que as pessoas sintam que sem o seu produto você é um perdedor. As crianças são muito sensíveis a isso” (KENWAY; BULLEN apud SARMENTO, 2002, p. 6).

No contexto histórico da cena 6, a guerra já está ganha, vencedores e vencidos já estão consagrados. Embora ainda possam ocorrer baixas ocasionais, importa aos personagens adultos garantir a primazia do discurso histórico. Para ganhar um banho de piscinas sem culpa, é necessário apreender o discurso dos vencedores que transforma o lado de lá do muro em algo sem nome, invisível e, se possível, inexistente. O discurso histórico transforma-se em conteúdo colonizador do imaginário infantil e o banho de piscina, em tema político. Como se disse, não se trata mais de proteger a criança do mundo da guerra, mas de proteger o discurso histórico que autoriza e justifica uma guerra sangrenta de qualquer pretensão subversiva da criança.

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