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4 HISTÓRIAS DE UMA HISTÓRIA

4.1.2 Nova historiografia

A chamada nova historiografia israelense não é, de fato, nova. Seus principais argumentos já haviam sido publicados por diversos escritores israelenses e palestinos, árabes e ocidentais.107 Duas circunstâncias políticas estimularam a sua emergência: o crescimento e amadurecimento intelectual da sociedade israelense e a reviravolta no clima político por ocasião da guerra do Líbano em 82.108 Entretanto, foi a liberação para consulta pública de arquivos secretos dos governos de Israel, Estados Unidos e Grã-Bretanha o fator determinante para seu surgimento.

105Tradução minha. Trecho no original: “they were able to propagate

more effectively than their opponents their version of this fateful war. History, in a sense, is the propaganda of the victors” (SHLAIM, 2004, p. 161).

106 Tradução minha. Trecho no original: “[…] a prime example of the

use of a nationalist version of history in the process of nation building” (SHALIM, 1995, p. 287).

107 Cf. SHLAIM, 1995, p. 287-288.

Israel, como a Grã-Bretanha, adota o prazo de 30 anos para liberação de documentos oficiais referentes a política externa dos governos. Documentos referentes à guerra de 48 foram disponibilizados na década de 80. A partir do estudo e da análise desses arquivos, três trabalhos publicados no final dos anos 80, quando Israel celebrava os 40 anos de sua criação, desafiaram aspectos centrais da história da aniversariante: The Birth of the Palestinian Problem, 1947-1949 de Benny Morris, Britain and the Arab-Israeli Conflict, 1948-51 de Ilan Pappé, Collusion Across the Jordan: King Abdullah, the Zionist Movement and the Partition of Palestine de Avi Shlaim. Um quarto livro, na verdade o primeiro cronologicamente, The birth of Israel – myths and realities de Simha Flapan é o único entre os trabalhos da nova historiografia a não se apoiar nessa base documental. Nas palavras de Flapan, a proposta do livro era:

desmascarar esses mitos, não como um exercício acadêmico, mas como uma contribuição para o melhor entendimento do problema palestino e para uma abordagem mais construtiva na busca de uma solução109 (apud SHLAIM, 1995, p.

287).

O livro, entretanto, descreveu de maneira mais ou menos precisa os mitos de criação do Estado de Israel que os outros trabalhos reafirmariam.110

109 Tradução minha. Trecho no original: “to debunk these myths, not

as academic exercise but as a contribution to a better understanding of the Palestinian problem and to a more constructive approach to its solution” (SHLAIM, 1995, p. 287).

Shlaim (1995) aponta de forma geral seis pontos principais de divergência entre a nova e a velha historiografia: 1- a política britânica contra a criação do estado de Israel no período final do Mandato, 2- o extremo desequilíbrio de forças entre o Davi judeu e o Golias árabe, 3- as origens do problema dos refugiados palestinos, 4- o objetivo dos exércitos árabes de exterminar os judeus e, 5- as razões para o travamento das negociações de paz ao final da guerra. A nova historiografia, em linhas gerais, sustenta que:

o objetivo da Grã-Bretanha era prevenir não o estabelecimento de um estado judeu, mas de um estado palestino; que os Judeus excediam em número de combatentes todos os exércitos árabes, regulares e irregulares, que atuavam na arena palestina e, após a primeira trégua, também em número de armas; que os palestinos, em sua grande maioria, não escolheram fugir mas foram expulsos; que não havia um objetivo sólido comum entre os governantes árabes, profundamente divididos entre si; e que a busca por um acordo político foi frustrada mais por parte dos israelenses que por parte de uma intransigência árabe111 (SHLAIM, 2004, p.

162).

111 Tradução minha. Trecho original: “Britain’s aim was to prevent the

establishment not of a Jewish state but a Palestinian state; that the Jews outnumbered all the Arab forces, regular and irregular, operating in the Palestine theatre and, after the first truce, also outgunned them; that the Palestinians, for the most part, did not choose to leave but were pushed out; that there was no monolithic Arab aim because the Arab rulers were deeply divided among themselves; and that the quest for a political settlement was frustrated more by Israeli than by Arab instransigence” (SHALIM, 1995, p. 162).

O breve resumo é suficiente para traçar outro retrato de Israel na guerra de 48: o do conquistador. Na nova historiografia, o sionismo é descrito como um movimento de caráter nacionalista e colonialista. Nas palavras de Pappé (2007), o “sionismo secularizou e nacionalizou o judaísmo”112 (p. 11), o que não deixa de ser a sua negação.113 Desde as origens, o conceito de “transferência” estava e está profundamente enraizado no pensamento político sionista. A opção de “limpar o território” sempre foi considerada.114

Para Pappé (2007) e para Morris (2007), o que ocorreu em 48 foi uma limpeza étnica da população palestina. Em 6 meses: 800.000 pessoas foram tiradas de sua terra, 531 vilas destruídas e 11 cidades esvaziadas.115 Em termo proporcionais:

Metade da população nativa residente na Palestina foi expulsa, metade de suas vilas e cidades foi destruída, e apenas alguns pouco entre eles conseguiram retornar116

(PAPPÉ, 2007, p. 9).

Morris (2007) defende que a operação não foi premeditada, foi fruto dos excessos da guerra e de medos judaicos e palestinos. Para Finkelstein (1991) e para Pappé (2007), a operação cumpriu um planejamento rigoroso:

112 Tradução minha. Trecho original: “Zionism secularized and

nationalized Judaism” (PAPPÉ, 2007, p. 11).

113 Cf. SAND, 2013, 23:20.

114 Cf. MASALHA apud PAPPÉ, 2007, p. 7. 115 Cf. PAPPÉ, 2007, p. xiii.

116 Tradução minha. Trecho original: “Half of the indigenous people

living in Palestine were driven out, half of their villages and towns were destroyed, and only very few among them ever managed to return” (PAPPÉ, 2007, p. 9).

na manhã de uma quarta feira fria, 10 de março de 1948, um grupo de onze homens, lideranças veteranas sionistas junto com jovens oficiais judeus, puseram os toques finais no plano para a limpeza étnica da Palestina. Na mesma manhã, ordens militares foram despachadas às unidades no fronte para que preparassem a expulsão sistemática dos palestinos de vastas áreas do país. As ordens vieram com detalhadas descrições dos métodos a serem empregados para expulsar o povo à força; intimidações em larga escala; cercar e bombardear vilas e centro populacionais; incendiar casas, propriedades e bens; expulsões; demolições; e , finalmente, plantar minas entre os destroços para impedir o retorno dos habitantes. Cada unidade ficou encarregada de alvos específicos desse plano com sua própria lista de vilas e vizinhanças. A operação, codinome plano D (Dalet em hebreu), foi a quarta e última versão de outros planos menos substanciosos que desenharam o destino que os sionistas haviam reservado para a Palestina e consequentemente para a sua população local. [...] Esta quarta e última versão estabelece de forma clara e inequívoca: os palestinos precisam partir. [...] O objetivo do plano era a destruição de ambas as zonas rurais e urbanas da Palestina117 (p. xii).

117 Tradução minha. Trecho no original: “on a cold Wednesday

afternoon, 10 March 1948, a group of eleven men, veteran Zionist leaders together with Young military Jewsih officers, put the final touches to a plan for ethnical cleansing of Palestine. That same evening, military orders were dispatched to the units on the ground to prepare for the systematic expulsion of the Palestinian from vast areas of the country. The orders came with a detailed description of the methods to be employed to forcibly evict the people: large-scale intimidation; laying siege to and bombarding and bombarding

Entre os documentos que demonstram o seu planejamento prévio estão os “arquivos das vilas” – village files. Ainda no começo do século XX, com o apoio do Jewish National Fund – Fundo Nacional Judaico118 - teve início um mapeamento das vilas e cidades palestinas. No final dos anos 30, tais arquivos traziam informações sobre:

a topografia local de cada vila, seus acessos por estrada, qualidade da terra, nascentes de água, principais fontes de renda, composição sócio-política, filiações religiosas, nomes dos seus muhktars [119],

suas relações com outras vilas, a idade dos indivíduos do sexo masculino (de 16 a 60) e muito mais. Uma importante categoria era um índice de hostilidade120

(PAPPÉ, 2007, p. 19).

villages and population centres; setting fire to homes, properties and goods; expulsion; demolition; and, finally, plating mines among the rubble to prevent any of the expelled inhabitants from returning. Each unit was issued with its own list of villages and neighbourhoods as the targets of this plan. Codenamed Plan D (Dalet in Hebrew), this was the fourth and final version of less substantial plans that outlined the fate the Zionists had in store for Palestine and consequently for its native population. […] This fourth and last blueprint spelled it out and clearly and unambiguously: the Palestinian had to go. […] The aim of the plan was in fact the destruction of both rural and urban areas of Palestine” (PAPPÉ, 2007, p. xii).

118 Cf. PAPPÉ, 2007, p. 17. O JNF era na ocasião a principal

agência sionista para a colonização da Palestina. Seus fundos eram utilizados para a compra de terras palestinas nas quais seriam fixadas os imigrantes judeus.

119 Chefe tradicional de uma aldeia árabe.

120 Tradução minha. Trecho no original: “the topographic location of

each village, its access roads, quality of land, water springs, main resources of income, its social-political composition, religious

Após 1943, os arquivos passaram a conter informações mais detalhadas sobre:

a agricultura, a terra cultivada, o número de árvores nas plantações, a qualidade de cada pomar (até de cada árvore), a quantidade média de terra de cada família, o número de carros, proprietários de lojas, membros de oficinas e os nomes dos seus artesãos em cada vila e suas habilidades. Depois, detalhes meticulosos sobre cada clã e sua filiação política, a estratificação social entre notáveis e camponeses comuns, e os nomes dos agentes civis durante o mandato governamental121

(PAPPÉ, 2007, p. 20).

Quase ao fim do período Mandatório, os arquivos incluíram informações de caráter militar: “o número de guardas (a maioria das vilas não tinha nenhum) e a quantidade e a qualidade das armas a disposição dos habitantes das aldeias (geralmente antiquadas ou mesmo inexistentes)”122 (PAPPÉ, 2007 p. 20). Os ajustes affiliations, names of its muhktars, its relationship with other villages, the age of individual men (sixteen to fifty) and many more. An important category was an index of hostility’” (PAPPÉ, 2007, p. 19).

121 Tradução minha. Trecho no original: “the husbandry, the

cultivated land, the number of trees in plantations, the quality of each fruit grove (even of each single tree), the average amount of land per family, the numbers of cars, shop owners, members of workshops and the names of the artisans in each village and their skills. Later, meticulous detail was added about each clan and its political affiliation, the social stratification between notables and common peasants, and the names of the civil servants in the Mandatory government” (PAPPÉ, 2007, p. 20).

122 Tradução minha. Trecho no original: “the number of guards (most

villages had none) and the quantity and quality of the arm villager’s disposal (generally antiquated or even non-existent)” (PAPPÉ, 2007, p. 20)

finais nos arquivos em 1947 incluíram listas de pessoas procuradas em cada vila. Os critérios para ter o nome incluso nessas listas eram bastante abrangentes. Apenas o primeiro critério, envolvimento com o movimento nacional Palestino123, poderia “incluir vilas inteiras”124 (PAPPÉ, 2007, p. 22). De acordo com o autor, tais arquivos orientaram as ações de 48 e alimentaram atrocidades contras as vilas levando a atos de tortura, estupros e execuções em massa.

Na perspectiva da nova historiografia, o status moral de Israel no conflito vira do avesso. De vítima covardemente atacada por uma legião de inimigos que queriam exterminá-lo – expulsá-los para o mar – torna-se o cruel colonizador, responsável pelo problema dos refugiados, pelo impasse nas negociações de paz, pelo desenvolvimento e continuidade do conflito nas décadas seguintes.

A considerar o prazo legal de 30 anos e o caráter cada vez mais permanente do conflito, a liberação de novos documentos deve permanecer constante e permite supor que a guerra da historiografia israelense está apenas no início.

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